acerca da questão do sentido do ser, anotações

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(Introdução à recordação amadora)

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Fenomenologia 02

Acerca da questo do sentido do ser, anotaes(Introduo recordao amadora)Introduo

O ttulo indica o que a seguinte coleo de reflexes, artigos e observaes gostaria de ser, a saber, uma espcie de cadernos de anotaes. Daqueles que como estudantes trocamos, para ajuda mtua, recordando o que se ouve nas prelees, seminrios e leituras, de autores, professores e especialistas abalizados e que bem ou mal conseguimos assimilar e anotar, dentro das nossas limitaes de estudantes amadores. As anotaes aqui recebem ocasionalmente forma externa de ensaio, artigo, discurso, apostilha e reflexes avulsas e ocasionais, feitas durante seminrios e colquios. E algumas foram publicadas j h muito tempo ou recentemente, em forma de artigos. Sejam quais forem a forma externa que as anotaes assumem, todas elas gostariam de ser lidas como anotaes de estudante amador e amante na coisa, i. , na causa da filosofia, na modalidade aqui denominada de modo bastante vago de fenomenologia. Anotaes de um tal caderno s as entende quem as rabiscou, e quem, ao l-las, tem o mesmo tipo de complexo e paixo. Complexo e paixo de busca da coisa ela mesma da filosofia e do seu fascnio, sofridos pelo iniciante ou amador. De que complexo e de que paixo se trata, diz o sub-ttulo: Introduo recordao amadora.Recordao aqui no tem a ver com memrias do passado longnquo saudoso e/ou traumtico de antanho, nem com depsito de lembranas, reminiscncias, portanto com arquivo de dados. Antes, tem a ver com latim cor, -dis, com a re-cordao, portanto com retomada e volta ao cerne, corao, ao fundo oculto, donde nasce, cresce e se consuma, o que sempre de novo aparece, dentro, diante e ao redor de ns. Mas ento o que , pois, cerne, corao, o fundo oculto, donde nasce, cresce e se consuma o estudo de um amador na fenomenologia? Por ser o fundo do amador h ali psicologicamente algo como medo de pouco saber, uma espcie de complexo do aprendiz que no especialista, de ser apenas iniciante e diletante. Mas, ao mesmo tempo, h tambm ali algo como mpeto da inocncia ingnua de um grande desejo, vontade de adentrar, sim de estar por dentro, em casa, naquilo que a alma do amador ama, a saber, naquilo que a fenomenologia tem de mais prprio e fascinante, sem conhecer bem a complexidade e exigncia de exatido objetiva e informativa que exigem o empenho e o desempenho de tal empreendimento do saber. E a tudo isso, acrescente-se o receio de iludir-se a si mesmo, contentando-se com o saber particular, subjetivo, trocando verdade, acuidade e claridade da teoria com paixo e sentimento. Trata-se de um humor angustiante que toma conta de todo e qualquer estudante de filosofia que ama a filosofia, que se lana a cata de informaes, cada vez mais numerosas, asseguradas, que lhe parecem proporcionar o poder do saber dominante e ao mesmo tempo se sente inquieto, como que tocado por outro hlito de fascnio. Fascnio e prazer de concentrao no pouco essencial, de afundamento para a interioridade de uma intuio da verdade originria. Intuio que por um instante aparece como vislumbre de algo como vivncia aventureira e singularmente venturosa, sim altamente pessoal de uma dimenso inominvel. As exposies que se seguem sofrem da ambigidade desse humor angustiante do amador, que sempre permanece iniciante, jamais iniciado. De estudante inacabado, sempre temeroso de estar expondo a sua ignorncia. Por isso, no subttulo a palavra recordao indica essa perplexidade psicolgica, mas ao mesmo tempo esperana de que, mesmo tambm nessa perplexidade, possa estar atuando, talvez, por menor que seja, um hlito do pensamento da busca da verdade, o toque do vislumbre do sentido do ser, operante nas diversas problemticas tratadas nas reflexes, no desengono e na impreciso, caractersticos de trabalhos de amador.O interesse dos termos fenomenolgico e fenomenologia aqui na nossa exposio se refere corrente filosfica que historicamente teve incio com Edmund Husserl sob a denominao de fenomenologia e se manifestou em diversas escolas e inmeros movimentos de fenomenologia. Na infindvel srie de nomes de filsofos e pensadores, de tendncias filosfico-fenomenolgicas, o nosso inter-esse se limita mais a trs, a saber, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Heinrich Rombach, que usualmente so classificados como pertencentes escola fenomenolgica de Freiburg i. Br. No entanto, no se fala tanto sobre esses autores e seus pensamentos, mas as reflexes que seguem tratam diversos assuntos de cunho filosfico ou semifilosfico como que a partir do mdium em que se acha essa corrente fenomenolgica friburguense, na medida em que, bem ou mal, foi assimilada e compreendia pelas reflexes. Com outras palavras, os pensamentos vlidos que ocorrem nas nossas reflexes foram tirados desses autores, certamente quase sempre mal assimilados ou simplificados de modo diletante, ou mesmo falsificados por causa da ignorncia ou pouco volume do pensar. Por isso, tambm o termo introduo no se refere a uma exposio historiogrfica acerca dessa escola de filosofia e de apresentao sucinta, na medida do possvel sistemtica de suas teses, doutrinas e ensinamentos filosficos, para estudiosos de filosofia, ainda no iniciados nessa corrente filosfica contempornea. A palavra introduo do subttulo praticamente no tem nada a ver com esse tipo de introduo. Pois nossas reflexes no conseguem realizar to difcil tarefa. Para isso, falta-lhes tanto o volume de conhecimentos como o domnio de complexos dados historiogrficos e filosficos, implicados por qualquer introduo desse tipo.

Aqui no subttulo, a palavra introduo indica to somente o inter-esse, no propriamente de conduzir os outros para dentro da fenomenologia, mas sim de a prpria reflexo, de alguma forma, ser uma tentativa. Tentativa de intuir, i. , de ir para dentro, mesmo que seja somente num vislumbre passageiro, do fundo incandescente da coisa ela mesma da fenomenologia e ser atingido pela sua fasca, na cintilao do seu aparecer.

Por isso, os pensamentos, informaes, referncias que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotaes, se forem usadas, devem ser controladas em sua exatido e validade, pois so na sua maioria chutaes e simplificaes de um amador. Se, porm, houver nessas chutaes do amador e amante da causa da fenomenologia, alguns pensamentos vlidos, podem ser quem sabe teis para os que sofrem das mesmas dificuldades e no entanto querem intuir, portanto ir para dentro daquilo que do fascnio da fenomenologia. Nessa perspectiva, as reflexes, nos seus dados informativos, limitam ao mnimo a exposio dos conhecimentos e do saber usual acadmico sobre a fenomenologia, supondo-os como conhecidos de alguma forma.

I NIETZSCHE E A CRTICA DA RAZO OCIDENTAL

O ttulo do tema a ser desenvolvido como tarefa diz: Nietzsche e a crtica da razo ocidental. Os temas que compem o ttulo so: Nietzsche, crtica e razo ocidental. Eles so determinaes prvias dentro das quais devemos conduzir as nossas reflexes. Por isso necessrio determinar o que significam esses termos aqui na nossa exposio.

Nietzsche significa aqui a metafsica de Nietzsche. Metafsica o nome que a tradio do Ocidente deu filosofia, enquanto ela a busca do sentido do ser dos entes em seu todo.

A busca do sentido do ser dos entes quer dizer: a busca do princpio metafsico, isto , a busca da origem que est para alm (met em grego) de toda e qualquer determinao particular deste ou daquele ente, a saber de todos os entes (t physyk, em grego). A busca do princpio metafsico a busca do que h de mais entranhado em tudo que pode ser invocado como sendo, o que h de mais fundamental, no sentido de vastido, profundidade e originariedade.

Dito de outro modo: a busca do sentido do ser dos entes no seu todo a busca da intuio originria, a partir e dentro da qual se constitui o sentido de todos os entes no seu ser.

A determinao do sentido do ser dos entes na sua totalidade muda de poca em poca, estruturando-se e vindo fala em conceito bsico, ao redor da qual se constituem outros conceitos afins, formulando os assim chamados conceitos ou as categorias fundamentais de uma determinada filosofia.

As categorias fundamentais da metafsica de Nietzsche so:

- o nihilismo europeu,

- a everso de todos os valores,

- a vontade do poder,

-o eterno retorno do igual.

Essa constelao dita numa nica expresso: Deus est morto ou a morte de Deus. A expresso Deus est morto oculta pois um determinado sentido fundamental do ser que lana e abre uma possibilidade epocal da compreenso dos entes no seu todo.

Crtica significa uma ao. Ao de criticar. No no sentido de censurar, de fazer crticas. Mas, sim, no sentido do verbo grego krnein, do qual a palavra crtica deriva. Krnein quer dizer separar, cortar, dividindo, diferenciar, distinguir.

A ao de distinguir isto e aquilo, ou isto daquilo da vida cotidiana, no uso e na vivncia das necessidades imediatas. Ali, no h ainda uma exigncia, mais engajada e temtica, do querer ver realmente a verdade da coisa ela mesma por ela mesma. Ver realmente a coisa ela mesma, por ela mesma, em grego se diz Theorein. Assim, quando a exigncia de distinguir e diferenciar cresce na necessidade de ver, cada vez mais, a verdade, a crtica se torna teortica. Crtica nesse sentido pois o exerccio da auto-responsabilizao da existncia humana pela verdade, por ela mesma.

A crtica teortica pode se referir responsabilidade de buscar a verdade de duas maneiras.

Em primeiro lugar, em distinguir entre ente e ente. Mas a distino entre ente e ente feita a partir e base de uma determinada medida comum, que se chama diferena. A crtica que distingue, diferencia, pe limpo, isto , disseca e analisa o que h no ente e entre o ente e ente j pressupe uma colocao, uma posio de diferena. Essa posio, o positum, o critrio da crtica cientfica, isto , das cincias positivas. A crticas das cincias anlise que se refere ao ente na sua distino como diferena entre ente e ente.

Em segundo lugar, a crtica teortica pode tambm se referir responsabilidade de buscar a verdade da coisa, ela mesma, por ela mesma, em distinguindo no mais entre ente e ente, mas sim entre ente e o ser. Trata-se pois de no e atravs do ente penetrar at o mago do sentido do ser que o constitui, como condio de possibilidade dos entes, isto , como princpio. Esse modo de ser da crtica o prprio da crtica filosfica, portanto a crtica de Nietzsche.

Razo ocidental o terceiro termo que compe o ttulo da nossa reflexo. o objeto da crtica filosfica da metafsica de Nietzsche. Como tal, a razo ocidental o que est sob a mira que divisa o sentido ltimo e originrio do ser dos entes. Mas a razo seria a faculdade do pensar, o intelecto, ao lado da vontade e do sentimento. O destino do Ocidente est marcado desde os gregos at hoje pela dominao totalitria da razo, no cultivo unilateral e desenfreado do intelecto, deixando-se de lado toda a dimenso do sentimento e da vontade. Nietzsche, o filsofo de vontade do poder, do lan dionisaco, da afirmao da vida seria ento o contestador que ope ao imprio do racional o poder nascivo da Vida, o vigor dionisaco do irracional!?...

Aqui, porm, na nossa exposio, os termos razo e racional no indicam tanto o intelecto como faculdade da alma, mas sim como aquele qualificativo essencial, com o qual a tradio do pensamento no Ocidente definiu o prprio do homem: Homo est animal rationale. Animal rationale a traduo latina da formulao grega zon lgon chon, usualmente traduzida como vivente que possui a fala. No entanto, a formulao e as palavras gregas dizem antes zon, isto , o vivente, o vivendo, o sendo como vida. Mas a vida aqui no a biolgica, nem zoolgica. sim lgon chon, isto , em tendo logos, isto , em sendo na atinncia e na pertena a lgos. O que determina a vitalidade essencial do ser do homem a sua atinncia, a sua pertena a lgos. Em sendo na atinncia a lgos, na pertena a lgos o vigor, o nimo chamado homem: o animal racional.

O termo razo ocidental propriamente indica esse vigor essencial, constitutivo do ser do homem, que em diferentes variaes de determinaes e interpretaes atravessa a histria do Ocidente e determina de antemo a concepo ocidental de ns mesmos enquanto humanos: a razo. E a razo, essa vigncia prpria e essencial do homem, que caracteriza o Ocidente e o ocidental. Da a razo ocidental.A razo ocidental vem fala como a busca da verdade dos entes no seu todo, como a inexorvel exigncia da absoluta certeza e asseguramento dos entes no seu todo como verdade. Vem fala como a busca do conhecimento verdadeiro, certo e inconcusso de primeiros e ltimos princpios e fundamentos, e primeiras e ltimas causas e reflexes dos entes no seu todo. Assim, a verdade como segurana do conhecimento certo o valor supremo que move, fascina e impulsiona a vitalidade do homem ocidental, do animal racional. O que acontece com esse valor supremo da nossa vitalidade, do nosso nimo essencial, se com a morte de Deus se anuncia um sentido do ser epocal, a partir e dentro do qual todos os valores supremos, cujo sustento a verdade, perdem o seu vigor, seu valor? No ocaso do Ocidente, caracterizado como morte de Deus, o que h como a essncia, isto , com a jovialidade do nosso conhecimento verdadeiro dos entes no seu todo? O que acontece com toda a nossa crena na verdade, sob a mira, sob a crtica da morte de Deus? O que divisamos numa tal mira como o sentido epocal do ser do nosso conhecimento verdadeiro?

Assim, sob o ttulo Nietzsche e a crtica da razo ocidental, examinemos de modo muito imperfeito o relacionamento entre a morte de Deus e o conhecimento. Pois, se aqui estamos, reunidos numa busca chamada estudo da filosofia, porque o conhecimento nossa Vida.

Perguntamos pois:

1. O que a morte de Deus em Nietzsche?

2. O que a verdade, o conhecimento para Nietzsche?

3. Na morte de Deus o que vale a verdade como valor ou o que diz a morte de Deus como valor da verdade?

1 O que a morte de Deus em Nietzsche?

A expresso a morte de Deus ou Deus est morto indica o mago da Filosofia de Nietzsche. Contem 4 momentos principais que receberam o nome de: O nihilismo europeu; a everso de todos os valores; a vontade do poder e o eterno retorno do igual (cf. A vontade do poder, ). Examinemos rpida e resumidamente esses momentos principais da metafsica de Nietzsche para intuir o que quer dizer A morte de Deus.

Na obra pstuma A vontade do poder (Der Wille zur Macht) aforismo 2 (1887) Nietzsche pergunta: O que significa nihilismo? E responde: Que os valores supremos se desvalorizam. E acrescenta: Falta a meta; falta a resposta para por qu?

E no quarto livro da obra A gaia cincia (Die froehliche Wissenschaft), intitulado Ns, os intrpidos (Wir Furchtlosen), Nietzsche assinala o aforismo 343 com as palavras: O que h com a nossa jovialidade. E o texto inicia: O novo evento mximo que Deus est morto, que a crena no Deus cristo perdeu a sua credibilidade comea j a lanar suas primeiras sombras sobre a Europa.

O nihilismo, usualmente, o entendemos como uma atitude e concepo particular e subjetiva, na qual se v tudo a partir e na direo do negativo, do nada (nihil). algo como rejeio pessimista e depressiva da vida. O nihilismo do qual fala Nietzsche se chama, no entanto nihilismo europeu. No se trata, pois, de atitudes ou concepes subjetivo-particulares. Mas, tambm, no se refere propriamente mundiviso, muito espalhada na Europa do sculo XIX, ao Positivismo, que afirma: somente o que acessvel pela apreenso sensvel real e verdadeiro. O adjetivo europeu do nihilismo de Nietzsche no se refere Europa geogrfica. Refere-se sim Histria, ao Destino do Ocidente. O nihilismo europeu portanto o termo usado por Nietzsche para indicar o movimento que caracteriza e domina a histria do Ocidente, ou melhor, o movimento que a prpria Histria do Ocidente, e isto, desde os seus primrdios com os gregos at os nossos dias do Ocidente-europeu. Trata-se portanto de um processo, cujo evento mximo, cuja consumao se expressa e se resume nas palavras Deus est morto.

O nihilismo de Nietzsche no portanto opinio ou multividncia, doutrina de um sujeito chamado Sr. Friedrich Nietzsche ou de um grupo de pessoas. No apenas uma fato histrico entre outros, uma corrente espiritual entre ou ao lado das outras, como p. ex. iluminismo, atesmo, humanismo. o prprio ser, o prprio destinar-se do Ocidente. o movimento de fundo da histria do Ocidente, um movimento subterrneo que vem de longe, e que somente agora comea a lanar as suas primeiras sombras sobre a Europa.

Mas o que caracteriza esse evento? Diz Nietzsche: A morte de Deus, isto , a perda da credibilidade no Deus cristo. Aqui, a falta de credibilidade no Deus cristo, assim interpretada, seria um episdio inocente, particular e caseiro diante do evento mencionado por Nietzsche. Pois todos esses fenmenos negativos acima mencionados no so ainda o nihlismo europeu como evento-causa, mas apenas alguns de seus efeitos.

Deus cristo em Nietzsche indica o sobre-natural (o met-fsico), o mundo supra-sensvel, o mundo de valores de ideais e idias que constituem a meta, o fim para o qual tende a vida.

No portanto apenas o fato e a situao de no crer mais na revelao da Bblia, no Deus e na Igreja do cristianismo. O fato de o Cristianismo com tudo que ele implica no ter mais vez, de no mais atuar nem possuir a fora de colocar uma possvel meta para a Humanidade, no altera essencialmente em nada o fato de a humanidade ocidental, desta ou daquela forma, viver a estrutura da opo preferencial pelo mundo sobre-natural, viver a estrutura de predominncia do mundo de ideais, idias, metas, de princpios e fins, razo da existncia do mundo natural, sensvel e terrestre, fins, razo da existncia do mundo natural, sensvel e terrestre. Mesmo que o habitante n 1 do mundo sobre-natural, o Deus Cristo tenha sido ou seja destronado ou morra inane, o prprio trono vazio permanece. Assim se tenta sempre de novo reintronizar os substitutos do Deus cristo como p. ex. o Estado, a Conscincia, a Sociedade, a razo, a Humanidade, o progresso, o Mundo Melhor e toda a sorte de diferentes-ismos.

Essa tentativa de preencher, sempre de novo, o vazio deixado pelos diferentes valores supremos desvalorizveis, por meio de valores substitutos do Deus cristo, denominada por Nietzsche de nihilismo incompleto. Assim diz Nietzsche em A vontade do poder, aforismo 28 (1887):

O nihilismo incompleto, suas formas: ns vivemos bem no meio dele. As tentativas de esquivar-se do nihilismo, sem reverter os valores que eram vlidos at agora: trazem o efeito contrrio, tornam mais agudo o problema.

O descrdito do Deus Cristo quer dizer portanto: a determinao do sentido do ser que tem como sua a mais consumada e absoluta manifestao o Ente Supremo (Deus), em todas as suas variantes e modalidades de interpretao, perdeu o poder sobre o ente e suas determinaes. Assim, com o Deus Cristo, caem do trono, juntos, todos os ideais, normas, princpios, regras, fins, metas, valores que foram e ainda so por algum tempo estabelecidos sobre o ente para lhe dar no seu todo um fim, uma ordem, um sentido. Por isso diz Nietzsche: ... os valores supremos se desvalorizam ... falta a meta, falta a resposta para por qu.

Mas o que necessrio para que o nihilismo no fique a meio caminho, mas sim chegue sua consumao? O nihilismo completo, consumado e pleno deve no somente constatar e considerar a desvalorizao de todos os valores supremos, mas tambm vigiar atentamente que no se volte aos valores antigos em substituindo-os por valores novos similares. E deve antes de tudo efetuar a everso de todos os valores.

Everso de todos os valores aqui no significa inverter, revirar ao contrrio os valores que ocuparam ou ocupam os lugares de hierarquia de valores estabelecida como o escalonamento dos entes no seu todo. No se trata pois de pr a cabea para baixo a ordem do sistema de dois mundos, do mundo sensvel passageiro, relativo, provisrio e ilusrio e do mundo supra-sensvel: eterno, absoluto, definitivo e verdadeiro. Everso significa estabelecer uma mudana total, no somente nos valores, mas sobretudo no ser da estrutura que aparece como o escalonamento do sistema de dois mundos. Isto significa revolver, revolucionar a totalidade da valncia para colocar tudo novo, desde a raiz, buscar um novo princpio da prpria valorao, fundar um novo cu e uma nova terra, onde o cu e a terra no so mais dois reinos hierarquizados como meta-fsicos, mas como uma inteiramente nova ptria da Terra dos Homens, a qual Nietzsche d o nome de Terra, Vida, Corpo. Somente quando se der essa everso e a fundao da nova ordem da afirmao da Terra, da Vida, o nihilismo chega sua consumao e se torna completo. Temos ento o que Nietzsche chama de nihilismo clssico, o nihilismo europeu.

Na exigncia da everso de todos os valores do nihilismo clssico, o que de incio era a exinanio do ser de todos os valores supremos, se consuma no nihilismo completo na necessidade e exigncia da nova busca do novo sentido do ser, que faa jus absoluta afirmao da Vida. A essa nova afirmao do ser de uma nova Vida absoluta Nietzsche chama de Princpio de uma nova valorizao (der Wille zur Marcht, III parte).

O que significa valor, valorizao para Nietzsche?

Acerca do valor diz Nietzsche em A vontade do poder, aforismo 715 (1887/1888):

O ponto de vista do valor o ponto de vista de condies de conservao-escalao, em vista de complexas formaes de durao relativa da vida dentro do devir.

No Ocidente chamamos de metafsica ou filosofia a busca do sentido do ser dos entes no seu todo. Dissemos bem no incio dessa reflexo que a busca do sentido do ser a busca do princpio, isto , da fonte da vida, que est na raiz, na origem de tudo que pode ser invocado como sendo. Para Nietzsche, o sentido do ser dos entes, isto , aquilo que faz com que cada ente seja ente enquanto ente, se chama valor. E a dinmica do surgir do valor como estruturao do todo como mundo se chama valorizao. Assim, em vez de se dizer ser, aqui se diz valorizar, valorizao. Em vez de ente, (coisa, algo, objeto) se diz valor. Portanto, tudo, cada ente e o todo dos entes, considerado sob a perspectiva do valor e da valorizao.

Mas o que valor, valorizao? Responde Nietzsche: ponto de vista de condies de conservao-escalao... da vida do devir.O ponto de vista a medida estabelecida previamente, de antemo, a qual projetamos diante de ns como perspectiva e prospectiva de referncia. De l, a partir e em vista desse ponto, estruturamos tudo que somos e no somos, tudo que fazemos e no fazemos, segundo o escalonamento possibilitado e exigido pela medida previamente estabelecida. Essa medida prvia no uma coisa fora de ns, uma norma, uma exigncia ou necessidade impostas de fora, mas a afirmao de ns mesmos, a im-posio que somos ns mesmos. o quantum da possibilidade de ns mesmos, a medida que damos a ns mesmos e a tudo que se refere a ns, enquanto capazes de ser, enquanto possveis, isto , potentes de viver. O ponto de vista portanto condio ou condies da vida. Condio em alemo diz: Bedingung (Be = movimento incoativo; Ding = coisa; ung = sufixo de ao). Na palavra Bedingung est a palavra Ding (thing em ingls) que usualmente traduzimos por coisa, objeto, mas que evoca um todo ajustamento. Uma concentrao ao redor do mesmo interesse e da mesma causa, como p. ex. a assemblia popular, portanto a corporificao da intensidade da energia vital de um povo livre. Condio ou condies de vida nessa evocao significaria o quantum ou os quanta da Vida.

Mas que Vida? Biolgica? Zoolgica? Psicossomtica? Anmica, espiritual? Nietzsche diz: de conservao-escalao. Diz conservao-escalao e no conservao e escalao, para significar que conservao e escalao dizem dois momentos do mesmo.

Conservao: aqui a ao de se conservar. Conservar-se manter-se, ater-se de corpo e alma ao prprio de si, guardar intata, originalmente, a vitalidade e o frescor da dinmica de si mesmo. a Erhaltung.

Escalao: escalar subir passo a passo de degrau em degrau. ao, a dinmica que cria o escalonamento, mas aqui no um escalonamento de degraus fixos, um aps o outro num movimento unidimensional linear, mas sim na ordenao da dinmica da potencializao, do crescimento, do aumento do poder, como a escalao de fora, como a dinmica da autoinduo no crescimento. a bersteingung, a transcendncia.Conservao-escalao da Vida o modo de ser da autossuperao (berwindung), a transcendncia, o ir para alm (met), mas no saindo de si, no abandonando a si, ou negando a si em favor de uma coisa, de um reino, de uma regio acima, para alm, para fora de ns, mas sem ir para alm de ns mesmos como potencializao, como escalada, no de violncia, mas sim da afirmao da Vida. Esse modo de auto-superao, isto , da simultnea dinmica de se manter e se aumentar, portanto da conservao-escalao, esse poder, essa fora, essa vitalidade de transcender, esse modo de ser a estrutura da vontade que deve sempre de novo querer o querer do seu querer, numa contnua manuteno-escalao de si como liberdade. Essa liberdade no liberdade de, mas sim liberdade para.Essa dinmica do querer como aumento da cordialidade de ser a partir de si na doao livre de si a si mesmo o contnuo e crescente vir a si como crescimento. tornar-se cada vez mais presente a si mesmo. Esse aumento de si mesmo como a vitalidade da autocordializao o que caracteriza o poder. Assim, o novo sentido do ser que satisfaz exigncia e necessidade da absoluta afirmao da vida, isto , o princpio de uma nova valorizao, se chama a vontade do poder.A vontade do poder em Nietzsche, portanto, no o desejo, a ambio da conquista do poder dominador. o princpio de nova valorizao, o ser dos entes na sua totalidade, cujo modo de ser caracterizado como vontade do poder, por causa do modo de ser da vontade e do poder, descrito por Nietzsche como valor, como valncia da coragem do ser, como valentia de ser que perfaz a condio da conservao-escalao da Vida.

Valor e valores so por conseguinte quantum e quanta da concreo da vontade do poder em diferentes densificaes, formando assim as complexas configuraes, isto , os diversos entes, cada qual por si e na mtua implicncia de interao como todo. Essas complexas formaes, isto , os entes na implicncia mtua como textura energtica da totalidade, assim criada, so duraes do devir. So duraes porque so contenes, momentos contidos, cristalizaes passageiras do fluxo dinmico e generoso da Vida, do devir. So relativas, porque so relacionadas entre si uma na outra, uma com a outra. O ser do ente no seu todo para Nietzsche pois a vontade do poder, a Cordialidade-Vida no seu conservar-se e crescer, formando-se, em mil e mil diferentes quanta, isto , pores homogneas da dinmica do querer ser e poder ser. Essas pores, a que Nietzsche chama de valor, so valncias da vontade do poder. Esse movimento e fluxo contnuo, cada vez mais intenso do vir a si da vontade do poder um movimento espiral de auto-escalao e auto-conservao, que no renovado transcender-se para a essncia de si mesmo a expanso de si como aumento de auto-escalao da vontade do poder, o seu crescimento. portanto contnua repetio circular do mesmo, no na indiferena e chatice da monotonia linear de um rodar sem crescimento a modo de realejo, mas, sim, circulaes da escalada do aumento, a modo dos anis-espirais do vo da guia que em diferentes e repetidos crculos concntricos sobe cada vez mais, no flutuando, indiferente e carregado pelo vento como um balo de ar, mas superando sempre de novo o peso da sua sustentao da conservao e aumento da vontade do poder. Por isso a vontade do poder na sua dinmica interna do crescimento o eterno retorno do igual ou do mesmo, como a permanncia no mesmo da retomada cada vez nova do todo da vontade do poder.

Nesse relacionamento mtuo dos 4 momentos principais do que chamamos da morte de Deus, a saber, do nihilismo europeu, da everso de todos os valores, da vontade do poder e do eterno retorno do igual, temos resumidamente a metafsica de Nietzsche.

Assim, na metafsica de Nietzsche tudo visto, avaliado, em vista e a partir da vontade do poder, tudo como funo ou funes de valia, como valor, valncia, como a contnua conservao, escalao e retomada da coragem de ser. nessa perspectiva que a vigncia da razo ocidental, isto , o conhecimento, a verdade transformada em valor da Vida, em valor da vontade do poder.

O que pois o conhecimento, a verdade, nessa crtica da metafsica de Nietzsche da razo ocidental?

2 O que a verdade, o conhecimento para Nietzsche?Na tradio da histria do Ocidente, cujo destino recebe o nome de filosofia ou metafsica, a definio do que seja a verdade est intimamente ligada definio do homem.

A filosofia define o homem como animal racional. Animal racional o homem, cuja ao essencial a razo ocidental. O que a verdade, enquanto intimamente ligada razo ocidental, ao do homem ocidental, do animal racional?

Dissemos no incio da reflexo que o animal racional significa vida enquanto atinncia e pertena a lgos. Essa vitalidade lgica, isto , referida a lgos grego, a dinmica, a fora que impregna e impulsiona o Ocidente como razo. Razo , pois, um mpeto, uma tendncia, digamos um instinto fundamental que aciona e agiliza o Ocidente numa estranha mobilizao total da busca dos ltimos fundamentos dos entes no seu todo. Essa mobilizao est sob a inexorvel exigncia e necessidade da absoluta certeza e do asseguramento do desvelamento do que . no sentido dessa mobilizao total da busca dos ltimos fundamentos do ente no seu todo que a tradio do Ocidente definiu e define a verdade como adaequatio rei et intellectus. Aqui deixemos de lado detalhes da explicitao dessa definio que atravs da histria do Ocidente recebeu diversas conotaes. P. ex. a Idade Mdia desdobrava essa definio em seus dois momentos constitutivos, expressos na formulao adaequatio rei ad Intellectum divinum e adaequatio intllectus humanus ad rem. Concentremo-nos aqui unicamente na observao de que no Ocidente a verdade definida, seja qual for a sua formulao, como adequao, correspondncia, concordncia com o que . Aqui no vem ao caso, se o que se chama coisa, ente, objeto; ou vontade e intelecto divino; sujeito, eu, estrutura, ideal, idia, bem, meta, fim, valor etc. O piv da questo que sempre em diferentes modalidades uma direo, um ir de c para l, um sair de si para o outro, um ir para alm (met), ultrapassando o que no para o que realmente . Assim a verdade se define essencialmente em funo, a servio do que . Esse direcionamento, esse pr-se na reta, na correo do que , esse ser direto, reto no direito do o que , o conhecimento. O conhecimento no Ocidente sempre conhecimento do verdadeiro, do reto, do correto. E o verdadeiro o direcionar-se para o que . Aqui as palavras verdade, verdadeiro significam ambiguamente essa busca. Significam esse direcionamento para o que , e ao mesmo tempo a meta, o fim que plenifica totalmente essa busca, o ser, a saber, o que d o ltimo e o absoluto sentido busca do que : o ser dos entes no seu todo. Mas, nessa busca dos ltimos fundamentos de tudo, o que est sempre para alm do que ainda no , do que ainda no plenamente, Por isso, caracterizamos o que , em vista do ltimo e do pleno, do ser supremo, do valor supremo. Se essa a estrutura do conhecimento, se esse direcionamento para o ser supremo o caracterstico do conhecimento, ento podemos dizer que em todas as atividades humanas est implcito o conhecimento, na representao, na dvida, no anelo, na saudade do alm, na espera, na avaliao, na doao vontade do outro, no obedecer, na cobia, no progresso etc. Esse direcionar-se para, em tudo que fazemos e no fazemos, em tudo que somos e no somos o que se chama a razo ocidental. Mas a razo ocidental como direcionamento, se estabeleceu como meta-fsica, isto , como o movimento de sair de si, de c para l, ultrapassando e abandonando o que somos ns mesmos, e o que est ao nosso redor como a nossa proximidade, indo para o longnquo, para um outro reino, onde est a nossa ptria definitiva, onde habita o ltimo, o definitivo, o eterno, o absoluto, a verdade em si. Assim a razo ocidental, segundo Nietzsche se estabeleceu desde Plato at os nossos dias como a doutrina metafsica de dois mundos; do mundo natural-sensvel e do mundo sobrenatural suprassensvel. E para Nietzsche essa colocao de Plato veio at ns atravs do cristianismo que, segundo ele, no outra coisa do que um platonismo popularizado.

Resumindo o que dissemos: nessa colocao a verdade significa o fim ltimo do conhecimento. Conhecimento aqui como razo ocidental inclui todos os nossos impulsos de busca, suas exigncias, suas necessidades e a sua satisfao, todas as nossas intencionalidades, sejam elas de que nvel e modalidades forem. A verdade portanto na sua ltima acepo o ente supremo, a realidade ltima e primeira, o primeiro e o ltimo princpio, a razo ltima, o fundamento inconcusso, o fim absoluto de todos os entes.

Dessa verdade diz Nietzsche em A vontade do poder, n 494 (1885): verdade a espcie de erro, sem a qual uma determinada espcie do ser vivente no poderia viver.

A verdade uma espcie de erro! A verdade no , apenas parece ser. iluso! Se iluso, a verdade no tem sentido, no tem serventia. Diz porm Nietzsche: Tem uma grande utilidade. Utilidade de sustentar uma espcie de ser vivente, o homem, o qual no poderia viver se no fosse sustentado por essa iluso, por essa aparncia tida como verdadeira. Mas isto tudo no uma trapaa? Uma racionalizao? Um enganar-se a si mesmo? Responde Nietzsche: No, no trapaa, avaliao do valor! E continua em A vontade do poder, n. 507 (1887):

A avaliao do valor, isto , eu creio, que isto e isto assim como essncia da verdade. Nas avaliaes de valor expressam-se as condies de conservao e crescimento. Todos os nossos rgos de conhecimento e sentidos so desenvolvidos somente em vista de condies de conservao e crescimento. A confiana na razo e nas suas categorias, na dialtica, portanto a avaliao de valor da lgica, somente prova a j por experincia comprovada utilidade da verdade para a Vida: no a sua verdade. Que deve haver ali uma grande poro de crena, para que se possa julgar; para que falte a dvida em vista de todos os valores essenciais; isto pressuposio de todo o vivente e da sua vida. Portanto, que algo deve ser tido por verdadeiro, necessrio, no, que algo verdadeiro.

O mundo verdadeiro e o mundo aparente esta oposio reconduzida por mim a relacionamentos de valor. Ns projetamos as nossas condies de conservao como predicados do ser como tais. O fato de que ns devemos ser estveis na nossa crena, para crescer, disso fizemos com que o mundo verdadeiro no seja nenhum mundo de mudanas e do devir, mas sim que seja um mundo que .

A verdade iluso, apenas funo para a sobrevivncia de uma espcie do ser vivente, a saber, do homem; a verdade uma crena, rejeio de dvidas e incertezas em vista da avaliao, isto , do clculo da valia, da valncia dos nossos posicionamentos, para criar condies de estabilidade em favor da conservao e crescimento da Vida; o mundo verdadeiro, absoluto e eterno do suprassensvel, o mundo metafsico, apenas um projeto do clculo de valor do asseguramento do nosso crescer. A verdade no outra coisa do que projeto do homem-sujeito e do seu agenciamento da prpria sobrevivncia e conservao.

Mas tudo isso, essa colocao de Nietzsche no no fundo, mutatis mutandis, exatamente o que Kant na Crtica da razo pura prope, na sua viragem copernicana, segundo a qual, o conhecimento no mais se deve orientar segundo o objeto, mas sim, pelo contrrio, o objeto deve-se orientar segundo o intelecto? Certamente tanto Kant como Nietzsche na sua crtica da razo ocidental, permanecem, no fundo, na pista da colocao metafsica do Ocidente. Assim, seja como for, a estrutura da verdade para ambos sempre adequao, concordncia, direcionamento como a transcendncia da superao. Ambos colocam, como o centro e o substrato do ponto de referncia do constituir-se do mundo, a Subjetividade, o homem como Sujeito e agente da estruturao do ser do ente no seu todo. O que, porm, em Nietzsche prprio e para ns de grande importncia que essa correspondncia, esse direcionar-se, se d como avaliao de valor (Wertschaetzung). Diz Nietzsche: A avaliao do valor... a essncia da verdade. Nessa afirmao est o piv, o ponto nevrlgico da Filosofia de Nietzsche, a sua crtica da razo ocidental. A palavra alem para a avaliao de valor Wertschaetzung (Wert = valor; Schaetzung = avaliao; Schatz = tesouro; ung = sufixo de ao). Portanto, no termo Werschaetz-ung est a palavra Schatz que significa tesouro. Avaliao de valor sugere pois que o valor diz respeito ao tesouro. O valor a valncia do tesouro. a unidade de verificao de todas as coisas, portanto, dos entes na sua totalidade, enquanto contm ou no contm, enquanto contm mais ou menos do ouro de fundo, isto , do tesouro. Quanto mais fundo de ouro, quanto mais tesouro ali houver, tanto mais forte, tanto mais de valia a unidade, tanto mais quantum de ser possui o ente. Mas l onde est o teu tesouro, l est tambm o teu corao. E o corao do tesouro da metafsica de Nietzsche , como j foi dito acima, a vontade do poder.

Isto significa que a essncia da verdade, o que ela de fato, realmente, s pode ser compreendido, se tivermos a vontade do poder como o tesouro do corao de todas as coisas, como o fundo de ouro da bolsa de valores que o mundo, o universo, o ente no seu todo.

Mas como fica ento a verdade, se a verdade no outra coisa do que a valncia, o valor da vontade do poder? Como fica a verdade que constitui o fundamento, a estrutura essencial da razo ocidental, a meta, as pistas e a garantia do seu buscar, se a vontade do poder o ser dos entes no seu todo, a suprema e a ltima verdade da razo ocidental?

Em Nietzsche, a crtica, isto , o vigor do olhar que distingue e divisa o fundo, o mais profundo de uma realidade, responde: todas as respostas da razo ocidental que sempre de novo, desde Plato, por sobre o Cristianismo, at os nossos dias, buscou e busca as primeiras e as ltimas causas de todas as coisas, portanto o ser do ente no seu todo, direcionou essa busca, colocando diante de si como ponto de referncia suprema o ser como a plenitude da substncia. Substncia aqui entendida como a presena absoluta, subsistente em si e por si, imutvel e eterna na sua consistncia, incio e fim, princpio e meta, a medida suprema e nica, definitiva de todas as realidades, isto , a verdade de todas as buscas. Essa colocao inicial da razo ocidental recebe mais tarde o nome de platonismo. E uma vez popularizado, recebe o nome de cristianismo, em cuja fixao dogmatizada fez aparecer o Deus Cristo, nome representativo para todas as posies, para todas as verdades que a partir desse Ser Supremo se estruturam como o arcabouo sustentador do Mundo supera-sensvel, o mundo dos valores supremos do Ocidente. Na medida em que esse supremo Ser e tudo que a ele se refere como o sustento da totalidade do ente como o mundo, comeam a perder a sua fora de sustentao, e comeam a cair no descrdito, surgem diferentes tentativas de reanim-lo, substituindo-o com outras presenas com diferentes denominaes. Essas tentativas de substituio longe de deter o processo do esgotamento do sentido do ser supremo, exacerbam cada vez mais o avano da sua senilidade, esgotamento esse que aparece hoje como a desertificao do sentido do ser na humanidade ocidente-europeia. Mas tambm na mesma medida em que o supremo ser metafsico e tudo que a ele se refere perdem a sua fora de coeso e mobilizao, de convocao e atuao, comea a aparecer nua e cruamente o arcabouo do esquema de segurana adotado pela razo ocidental. Esse arcabouo aparece ento por sua vez como esquematismo de categorias e estruturaes lgicas, que constituem pistas de direcionamento da busca da verdade, que encaminham o mpeto de busca para dentro de obedincia corretora ltima instncia da busca da verdade, ao princpio da no-contradio. O princpio da no-contradio ento no outra coisa do que o vir fala do ser da razo ocidental que sempre de antemo compreende o ser como a afirmao da auto-identidade absoluta da plenitude da presena, na constncia imutvel e subsistncia inamovvel do ser como substncia. O nihilismo europeu clssico, a morte de Deus liquida e coloca em fluncia todo esse esquema de fixao da lgica e dialtica da razo ocidental, desmascarando-o como o auto-engano ou melhor como um recurso de animao que a razo ocidental se impe a si mesma como comando da afirmao de si, para poder-se manter na confiana e na crena de si, como uma possibilidade de conservao e crescimento de si mesma.

O nihilismo europeu na sua plena consumao como a morte de Deus, em trazendo tona o estado do esvaziamento do sentido do ser de todos os valores supremos que foram e so ainda por um pouco de tempo o sustento da conservao e crescimento da razo ocidental, reconduz-nos ao nada, ao despojamento total desse esquema de autoasseguramento da razo ocidental. Ao desvalorizar tudo que no autenticamente o prprio, o mago, o fundo da razo ocidental, isto , o que no a prpria vontade do poder, expe-nos, a ns, a razo ocidental, pura e lmpida responsabilidade de ser sujeito e agente do nosso prprio ser, e do ser de tudo quanto diz referncia a ns mesmos como seres humanos, na riqueza e pobreza, na infinitude e finitude, na grandeza e pequenez do nosso destino mortal. Grandeza e pequenez do nosso destino mortal, assumido, reconduzido na autocompreenso da sua verdadeira autonomia, de volta ao esprito de finura e jovialidade da Gaya Cincia (Die froehliche Wissenschaft), no mais no esprito de ressentimento e de vindicncia, isto , da vingana, no mais como carncia do infinito, no mais como injustiado pela privao da imortalidade, mas sim como simples, imediata afirmao da vida, isto , afirmao dos entes no seu total como cordialidade de ser, isto , com outras palavras como vontade do poder. Estar assim responsabilizado em tudo por e para ser no mais ser o subiectum de um projeto grandioso de asseguramento da verdade substancial fixa transcendentalmente como a meta do nosso prprio ser e tornar-se como substncia. No mais viver a partir e em vista da subsistncia suprema e absoluta, mas sim viver como pura, cada vez finita automanuteno e crescimento da cordialidade de ser, denominada por Nietzsche de vontade de poder e seu eterno retorno. Este novo modo de ser a verdade do conhecimento como avaliao do valor, como valncia, como valentia de ser, cada vez, sempre de novo, sempre novo, sendo o ser do seu querer, sendo o ser do seu poder como a vontade do poder.

A humanidade ocidental, que h sculos foi definida como animal racional, acorda, no nihilismo europeu, desse seu grande sonho meta-fsico. E livre dessa megalomania da razo ocidental, passa por sobre o limite de si mesma para onde? No para fora de si, para alm de si, para o infinito, para o absoluto como sempre veio fazendo at agora na acribia meta-fsica da razo ocidental, mas sim transcende para dentro de si mesma, para o mago mais ntimo da identidade da sua liberdade mortal. Uma tal humanidade de passagem se chama em Nietzsche Ueber-mensch. Quando o Ueber-mensch traduzido como Super-homem nos evoca erroneamente a Humanidade da razo ocidental levada sua mais exacerbada aberrao, cuja personificao aparece na ridcula figura do Superman americano. Na realidade, ueber diz mais trans, diz a passagem, o movimento de ir por sobre. Mas por sobre o que, de onde para onde? Por sobre o homem de at agora, que superado, no no sentido de superiorizado, no no sentido de levado escalada no que era, ao grau supremo de consumao, mas sim no sentido de consumido, acabado, como terminado, como no trmino de uma busca.

3. Na morte de Deus, o que vale a crtica da razo ocidental como verdade?

Resumindo o que at aqui dissemos: a morte de Deus, aps a primeira etapa do nihilismo incompleto, alcana a sua consumao na Everso de todos os valores. Ali Nietzsche descobre como o fundo da razo ocidental, o princpio da nova valorizao a vontade do poder. Os valores, todos os valores, desde os mais insignificantes at os mais altos e absolutos, que desde Plato at hoje sustentam a humanidade na busca do sentido do ser dos entes no seu todo, no so outra coisa do que as condies de conservao e crescimento da prpria vontade do poder, colocados como tais por ela mesma. Os valores supremos do mundo supra-sensvel, as verdades do reino do Deus cristo e de seus substitutos, isto , a verdade absoluta da razo ocidental se desmascaram como valncia, como funes de valia da vontade do poder, que se torna agora, em Nietzsche, a verdade de todas as verdade, o valor de todos os valores, portanto o ser dos entes na sua totalidade.

Mas o que isto a verdade da vontade do poder? A vontade do poder no ela agora a verdade suprema? Com essa pergunta nos coloquemos no ponto crtico da crtica de Nietzsche da razo ocidental. A desvalorizao do sustentculo fundamental da razo ocidental e a descoberta do Princpio da nova valorizao a descoberta de que a essncia da razo ocidental est nela mesma enquanto vontade do poder. E a vontade do poder o ser dos entes no seu todo. Mas o que de crtico, o que de diferente h nessa to badalada vontade do poder? No ela seno a exacerbao cada vez mais desenfreada do envolvimento da razo ocidental consigo mesma enquanto metafsica? Esse transcender da vontade do poder no mais para fora, mas para dentro de si, esse assumir sempre de novo a responsabilidade de ter que ser cada vez si mesma, realmente uma passagem para o radicalmente novo? Ou no antes apenas um autoengano da razo ocidental que se tem por vontade do poder, mas por no possuir mais uma referncia fora de si, volta-se sobre si, com o mesmo jeito da transcendncia para o infinito do alm, apenas agora aprisionada dentro do prprio movimento, apenas como um movimento circular de realejo? Um girar vazio, portanto, mas com a pretenso de ser o movimento centripetal do olho do furaco da tempestade, sem contudo conseguir afundar e sucumbir para dentro de si, por no ter mais, nesse tempo de indigncia do nihilismo europeu, o suficiente caos para poder gerar estrelas a partir de si? O que h de diferente pois no movimento do eterno retorno da vontade do poder, diferente do movimento circular da ao projetiva do sujeito-homem? A vontade do poder, no ela a exacerbao desse processamento da objetivao do homem sujeito?

Nesse processamento da objetivao do homem-sujeito como um movimento de contnua superao de si para dentro de si, nada se encontra ali que lhe pudesse servir de fonte e fim da conservao e escalao do prprio vigor do retorno. Tudo comea a se desgastar num esvaziamento total do sentido do ser, restando cada vez mais apenas a exigncia e necessidade de girar, girar sem cessar no vazio. No vazio nadificante, onde todos os entes so apenas funes, isto , objetos liquefeitos, rarefeitos como momentos fugidios de clculo, na indiferena da pura ocorrncia, sem vida, sem alma. A vontade do poder, o olho do suposto furaco da Everso de todos os valores e do surgimento do princpio de nova valorizao, parece ser exatamente o vir fala da nihilidade nadificante que aniquila o prprio nada, reduzindo tudo a fluxos indiferentes de funes, numa entropia do ser, onde jamais poder nascer, brotar e crescer, sequer uma iluso do erro, sequer uma dor, um desespero ou sofrimento.

No entanto, por outro lado, nas prprias palavras insistentes de Nietzsche, a vontade do poder, o novo ser dos entes no seu todo, um anncio inaudito da nova jovialidade de ser. a Boa-Nova da Vida plena, da renovao contnua da coragem de ser, livre de toda e qualquer vindicncia alheia a si, a no ser a exigncia nica, radical de ter que ser o vigor nascivo dela mesma. E nas palavras de Nietzsche no Assim falou Zarathustra (Also sprach Zarathustra) a terceira e a ltima transformao do ser-homem, descrita como inocncia, criana, um esquecer, um novo incio, um jogo, uma roda que gira a partir de si, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim! Entrementes, na terra, livre da amarra do cu da metafsica, aumentam os sofrimentos e as dores dos filhos dos homens: as interminveis guerras fratricidas, os absurdos da crueldade humana, os massacres dos inocentes, as brutalidades das limpezas tnicas, a desertificao do nihilismo europeu, as derrocadas e o esvaziamento do sentido de todos os ideais da Terra, a planificao do universo numa mobilizao planetria destruidora de toda diferena que no seja correspondente interpelao produtiva do autoasseguramento da subjetividade do sujeito-homem! vontade do poder!? A alegria de viver, a partir de si, para e por si, na valncia da valentia de ser em assumindo a mortalidade e finitude da terra dos homens?! No soa tudo isso, estranhamente alienado e alienante? Herico? Trgico ou cnico-eufrico, esttico-tresloucado?

Na obra Alm do bem e do mal (Jenseits von Gut und Boese), aforismo 150 (1886), escrita no tempo em que se ocupava com o pensamento, em planejando a sua obra principal A vontade do poder, escreve Nietzsche: Ao redor dos heris, tudo se torna tragdia; ao redor do semi-deus tudo se torna jogo de Stiro; e ao redor de Deus tudo se torna como? Talvez mundo?

Ao redor de Deus, tudo se torna... mundo?! O mundo, o Tudo, ao redor de Deus da morte de Deus, do Deus Vindouro do nihilismo europeu?! O que pois e como este Novo Mundo?

No fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (38[12]) responde Nietzsche:

E tambm vs, sabeis vs o que o mundo para mim? Devo mostr-lo a vs no meu espelho? Este mundo: um monstro de fora, sem comeo, sem fim, uma imensido, imensido de foras, firme e brnzea, grandeza que no se torna maior nem menor; grandeza que no se desgasta, apenas se transforma. Como todo, imutvel: uma economia sem gasto nem perda, mas tambm igualmente, sem acrscimo nem entrada; imensido cercada pelo nada, como por sua totalidade; no entanto nada de vazio, nada de esbanjado, nada de infinito-estendido; mas sim, como fora determinada, inserida num determinado espao, e no num espao que fosse de algum modo vazio; antes cheio como fora em toda a parte, como jogo de foras e como foras-ondas, simultaneamente um e muito; aqui crescendo, e ao mesmo tempo l diminuindo; um mar de foras, se lanando e fluindo para dentro de si; eternamente se transformando, eternamente se refluindo, com anos incrveis de retorno, a mar alta e baixa dos perfis dos entes na dinmica da expanso, a partir do mais simples para os mais complexo, a partir do mais quieto; do mais teso, do mais glido para o mais abrasado, o mais selvagem, para o mais autocontradio, e ento de novo, da plenitude, retornando para o simples, retornando do jogo das contradies, de volta para o prazer da sintonia, afirmando-se a si mesmo, mesmo ainda nessa igualdade de suas pistas e seus anos, abenoando-se a si mesmo como o que deve retornar eternamente, como um devir, que no conhece nenhuma saturao, nenhuma superfluidade, nenhum cansao : este meu mundo dionisaco do criar-se a si mesmo eternamente, do destruir-se a si mesmo eternamente, este mistrio-mundo de dupla volpia, este meu alm do bem e do mal, sem meta, se no jaz uma meta na fortuna do crculo; sem vontade, se um anel no tem para si mesmo boa vontade, quereis vs um nome, um nome para este mundo? Uma soluo para todos os seus enigmas? Uma luz tambm para vs, vs, os mais ocultos, vs os mais fortes, os mais intrpidos, os mais noturnos da meia-noite? Este mundo a vontade do poder e nada mais! E tambm vs sois esta vontade do poder e nada mais!

Mas o que este mundo dionisaco da vontade do poder, essa absoluta e incondicional afirmao da Vida na sua imensido, profundidade e criatividade? O que significa e tambm vs mesmos sois esta vontade do poder e nada mais?

Ns mesmos, a razo ocidental na morte de Deus, ns mesmos como a crtica da prpria razo ocidental, esse ns mesmos somos a vontade do poder, e nada mais.

Esse ns mesmos como a concreo, como o vir fala da vontade do poder, recebe em Nietzsche um estranho titulo, a saber, Humano, demasiadamente Humano. Assim num fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (36[37]) nos ensina Nietzsche:

Humano demasiadamente Humano: com esse ttulo est insinuada a vontade para uma grande libertao, a tentativa de um singular livrar-se de todo e qualquer preconceito que fala em favor do homem; e ir todos os caminhos, os quais conduzem suficientemente para o alto, para, por um instante que seja ao menos, olhar sobre o homem de cima para baixo. No para desprezar o desprezvel, mas sim para questionar at o fim para dentro dos ltimos fundos, se ali no ficou ainda algo para desprezar, mesmo ainda no mais alto e no melhor e no todo, acerca do qual o homem de at agora estava orgulhoso; se ainda ficou algo para desprezar, mesmo neste orgulho e na inocente e superficial confiana na sua avaliao de valor: esta tarefa no menos questionvel era um meio entre todos os meios, para os quais me obrigou uma tarefa maior, uma tarefa de maior envergadura. Quer algum ir comigo estes caminhos? Eu a ningum aconselho a isso. Mas vs o quereis? Ento eia, vamos pois!

Essa tarefa maior, essa tarefa de maior envergadura, a tarefa de sucumbir, de ir ao fundo, at aos abismos os mais profundos dos entes na sua totalidade, no zelo, na diligncia da fidelidade, de no deixar de p nada que no seja o lmpido, o puro, o expedito salto da boa vontade da vontade do poder o grande enigma de Nietzsche, de Nietzsche e da crtica da razo ocidental. A essncia da Metafsica de Nietzsche, essncia como do Nietzsche e a crtica da razo ocidental, portanto a essncia da vontade do poder sucumbe no profundo silncio da escurido da No-razo. Crepsculo dos dolos (Goetzen-Daemmerung, Sprueche und Pfeile 11), obra escrita por Nietzsche em 1888, terminada segundo o prefcio do livro no dia em que o primeiro livro da everso de todos os valores chegou ao fim, diz: Pode um jumento ser trgico? Que sucumba sob uma carga a qual no pode nem carregar, nem jogar fora?... O caso do filsofo.

O que vale a verdade da vontade do poder como a verdade suprema no tempo de indigncia da morte de Deus jamais poderemos saber de Nietzsche. No entanto, a prpria Metafsica de Nietzsche, em percorrendo todos os momentos principais da sua constituio como o nihilismo europeu, a everso de todos os valores, a vontade do poder e o eterno retorno do igual, na tentativa de divisar o fundo abissal do Destinar-se do Ocidente, portanto mesmo a prpria metafsica de Nietzsche como crtica da razo ocidental, no ela a prpria busca apaixonada do Ocidente, do animal racional? Uma busca, atravs de todos os nveis dos abismos dos sofrimentos e das dores da terra dos Homens, atravs da aridez e secura da crescente desertificao da terra. Da terra, onde aos poucos nada mais resta a no ser a pura estruturao formal lgica, neutra e indiferente da objetivao calculada do autoasseguramento ciberntico de no-se-sabe-o-qu. A busca apaixonada do radical-outro de ns mesmos que talvez no resida no alm mundo da metafsica, mas sim, silencioso no fundo, bem no fundo, no pro-fundo da nossa razo vespertina do Ocidente, como escurido e demncia, como sofrimento e dor... como pura loucura? Ou... como a pura espera do inesperado... a espera de um Deus-vindouro, o puro incio, o Ueber-Mensch: um no-homem, um aqum-homem, um homem-Deus, cuja divindade aqui to diferente, cuja alteridade to outra que recebe o nome de non-aliud (Cusano), o mais prximo de ns mesmos, o mais ntimo de ns mesmos do que ns a ns mesmos?

No dia 3 de janeiro de 1889, em Turin, na Piazza Carlo Alberto, um cocheiro surrava brutalmente o seu cavalo. Em lgrimas e lamentos Nietzsche se lana ao pescoo do animal, abraa-o e desmaia. Iniciava a total escurido da loucura. Num bilhete com o carimbo do correio de Turin, assinalando a data de 04.01.89, enviado ao seu amigo dinamarqus Georg Brandes que no ano de 1888 anunciou as primeiras prelees pblicas sobre Nietzsche e seus pensamentos, escreveu Nietzsche:

Turin, 04.01.89.

Ao amigo Georg!

Depois que Tu me descobristes, no era nenhuma maestria me encontrar: a dificuldade , agora, a de me perder...

O Crucificado.

RefernciasBOUDOT, Pierre, Lontologie de Nietzsche. Paris: Press Universitaires de France, 1971.

Teologia fundamental, Nietzsche e o cristianismo. Concilium 165-1981/5: Vozes, 1981.

FINK, Eugen, Nietzsches Philosophie. Stuttgart: W. Kohlhammer-Verlag,

FRENZEL, Ivo, Nietzsche. Rowohlt, 1966.

HEIDEGGER, Martin, Nietzsche (Vol. I e II). Neske 1961; in: Holzwege, Nietzsches Wort Gott ist tot, 193-247, Frankfurt, a.M.: Vittorio Klostermann, 1950; in: Vortraege und Aufsaetze, Wer ist Nietzsches Zarathustra, 101-126, Pfullingen, 1954.

JAPERS, Karl. Nietzsche. Traduo do original alemo Einfuehrung in das Verstaendnis seines Philosophierens. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1963.

II CAMELO, LEO E CRIANA

Na primeira parte do livro Assim falou Zaratustra, ao iniciar Os discursos de Zaratustra, Nietzsche fala de Trs Transformaes.

A seguir, sem a pretenso de atingir essencialmente o pensamento de Nietzsche, vamos tentar uma rpida interpretao do texto.

O textoEis, o que eu vos anuncio: trs transformaes do Esprito, como o Esprito se transformou em Camelo, o Camelo em Leo e o Leo, por fim, em Criana.

H muitas coisas pesadas para o Esprito, para o Esprito forte, carregador, no qual habita a reverncia: a sua fora anela o que de peso, sempre mais, o que de mximo peso.

O que pesado? assim perguntou o Esprito-Carregador, e se ajoelhou, qual um Camelo: ele quer que o carreguem bem.

O que o mais pesado? vs heris? assim pergunta o Esprito-Carregador: que eu o possa assumir e me regozijar do meu vigor!

O mais pesado?! no isto? a saber: rebaixar-se para fazer padecer o seu orgulho? Deixar brilhar a sua insensatez para zombar da sua prpria sabedoria? Ou ser isto? a saber: separar-nos da nossa causa, justamente quando ela celebra a sua vitria? Escalar altas montanhas, para tentar o tentador? Ou isto?: sustentar-se com bolotas e capim do conhecimento e no anelo verdade sofrer a fome na alma? Ou isto?: ser enfermo e despedir os consoladores, e travar amizade com os surdos, que jamais ouvem o que tu queres? Ou isto?: imergir na gua suja se ela for a gua da verdade e no rejeitar de si as rs frias e os quentes sapos? Ou isto?: amar os que nos desprezam e estender a mo ao fantasma, quando nos quer assustar?

Tudo isto, o mais pesado, toma sobre si o Esprito-Carregador, qual o Camelo que corre para o deserto. Assim se apressa para o seu deserto o Esprito forte, carregador.

Mas no mais solitrio dos desertos acontece a segunda transformao: aqui, o Esprito se torna Leo. Liberdade quer ele para si arrebatar e no seu prprio deserto quer ser ele o Senhor. Aqui busca ele o seu ltimo Senhor: inimigo deseja ser ao seu ltimo Senhor e a seu ltimo Deus; pela vitria quer ele lutar, disputar com o grande Drago.

Qual o grande Drago, o qual o Esprito no mais suporta chamar de Senhor e Deus?

Tu deves, assim se chama o grande Drago. Mas o Esprito do Leo diz: Eu quero!

Tu deves lhe atravessa o caminho, fulgurante em ureo esplendor, um animal escamoso! E em cada uma das suas escamas fulgura em ouro: Tu deves. Valores milenares brilham nessas escamas e assim fala o mais vigoroso de todos os drages: Todo o valor dos entes! ei-lo, que brilha em mim. Todo o valor era j criado; e todo o valor criado ei-lo, sou eu. Verdadeiramente, no mais dever haver um eu quero. Assim fala o Drago.

Meus irmos! para que se faz mister o Leo no Esprito? No basta o Animal de Carga que abdica e sabe reverenciar?

Criar novos valores isto ainda no pode o Leo. Mas, criar para si a Liberdade para o novo criar isto pode o poder do Leo.

Criar para si a Liberdade e um no Sagrado tambm ante o dever. Para isso, meus irmos, se necessita de Leo.

Assumir-se o direito para novos valores isto a mais terrvel das apropriaes para um Esprito-Carregador e respeitoso. Verdadeiramente, isto lhe uma rapina, o prprio de um animal rapace. Como o mais santo amou outrora o Tu deves. Agora deve encontrar iluso e arbitrariedade at ainda no valor mais santo, para que arrebate do seu amor a Liberdade. Para essa rapina necessrio o Leo.

Mas dizei-me meus irmos, o que pode ainda mais a Criana que esteja acima do poder do Leo? Por que deve o Leo rapace tornar-se ainda Criana?

A Criana a inocncia, o esquecer, um novo incio, um brincar, uma roda que rola a partir de si, um primeiro movimento originrio, uma Santa Afirmao.

Sim, para o jogo da Criana, meus irmos, necessrio um sagrado Dizer-Sim: a sua vontade quer, pois, o Esprito, o seu mundo conquista para si aquele que perdeu o mundo.

Trs transformaes do Esprito vos mencionei: como Esprito se tornou Camelo, o Camelo, Leo e o Leo por fim Criana (Nietzsche, 1960, p. 293-4; traduo do autor).

Interpretao

O que se segue so apenas sugestes como esboo de uma interpretao.

Logo primeira leitura, nos saltam aos olhos alguns termos, como p. ex. Esprito, Camelo, Leo, Criana, transformao, forte, carregador, reverncia, peso, vigor, assumir, liberdade, luta contra o Senhor e Deus, Drago, Tu-deves, Eu-quero, criar, o No Sagrado, rapina, arbitrariedade, valor, inocncia, o novo incio, brincar, jogo, roda, originrio, afirmao.

Esses termos se agrupam em trs constelaes, tendo cada qual como o seu conceito-ncleo: Camelo, Leo, Criana. Temos assim os agrupamentos:

- Camelo: forte, vigor, carregador, assumir, peso, reverncia;

- Leo: liberdade, luta contra o Senhor e Deus, inimigo, Eu-quero, criar, o No Sagrado (Negao), rapina, arbitrariedade, Senhor, Deus, Tu-deves, valor;

- Criana: inocncia, novo incio, criao, brincar, jogo, roda, originrio, afirmao.

Antes de examinar a significao unitria desses termos-ncleos, vamos fazer rapidamente a ausculta fenomenolgica desses grupos conceituais.

A ausculta fenomenolgica da inteno dos grupos conceptuais:

Camelo: animal resistente, capacitado ao deserto, animal terra-a-terra, tem o poder de agentar-no-duro, animal de carga, suporta a falta de gua no deserto. Deserto e falta de gua significam a ausncia da vida, do ser, do frescor, da vivacidade: a negatividade. Tem a fibra para carregar as realidades macias, secas, vazias, pesadas. Enfrenta suportando, vence, deixando-se ocupar, assumindo a negatividade. O seu No, a sua resistncia dizer conscientemente, calculadamente Sim, para ver at onde se agenta.

A sua libertao a encarnao, a determinao, o assumir, ser feito: fiat. Carregar como o Camelo no sucumbir. O poder carregador tem a elasticidade, o vigor; no cai sob o peso, mas se torna prenhe de peso, substancioso. a plenitude que o regozijar-se de si mesmo como o peso: o homem de peso, o homem de carter.

Uma fora tranqila, assentada em si. Passividade dinmica, vigor interno: sua vitria assimilar, aniquilar, assumindo, transformando.

Portanto: peso, negatividade, carga como substncia, como o contedo da consistncia interna da fora. Camelo o quilate da resistncia. nesse sentido que o Camelo suporta e enfrenta a tempestade do deserto, agachando-se, deixando-a vir sobre si.

Leo: o rei dos animais. A sua realeza consiste em no tolerar ningum que seja dominador acima ou ao lado dele. Uma intransigncia absoluta pela supremacia, contestao radical contra tudo quanto limite a gratuidade autntica do Eu-quero. O Leo luta para abrir caminhos, rasgar espaos para tornar-se o Senhor ab-soluto e nico do deserto, luta para criar seu campo. rapina em relao ao poder j existente. Pois, rouba do Senhor e Deus o poder, assume a autodeterminao absoluta de tudo o que , de tudo o que faz. No aceita, portanto, nenhuma imposio, nenhuma sobrevenincia de fora. Todo o valor, toda a norma que no venham da autodeterminao criativa, do eu-quero so inimigos.

Leo a autodeterminao pela negao da heterodeterminao. Como tal, no pode criar novos valores. Mas na sua contestao contra o Tu-deves, abre a possibilidade para novos valores, cria Liberdade para o novo criar.

Criana: o vigor da Criana a pura autodeterminao positiva. vigor pela pura e absoluta afirmao. No h mais inimigos. Tudo dela. Tudo parte dela, com facilidade. No portanto luta de libertao, mas jogo. A luta se tornou to potente e intensiva que se transformou em jogo. brincar. um incio absolutamente novo, sem predeterminao e pr-ocupao. o transbordamento livre da fora fontal. A dinmica e o processo da fonte transbordante.

O jogo, o brincar no , no entanto, uma brincadeira, nem uma veleidade idlica, mas sim, o dar-se todo no arriscar, no jogar tudo, colocar tudo numa cartada, no salto absoluto da generosidade, da f.

Retomando o que acima insinuamos, vamos aprofundar a intencionalidade desses trs agrupamentos, Camelo, Leo e Criana, busca da unidade ontolgica da experincia originria do texto. De que se trata afinal de contas? De transformaes do Esprito.

Mas o que tm a ver as figuras Camelo, Leo e Criana com o Esprito? Trata-se de figuras? alegorias? smbolos? sinais? comparaes?

Podem ser assim interpretadas. Ns, porm, as tomamos como estruturas. Estrutura o que tambm chamamos de dimenso. A estrutura ou a dimenso o campo significativo vital da unidade operativo-vivencial que se processa, que concresce em ns no interrelacionamento funcional de vrios aspectos do fenmeno.

Camelo, Leo e Criana so trs diferentes momentos de uma nica realidade, chamada Esprito. Aqui Nietzsche nos diz concretamente como se estrutura o Esprito: o Esprito essencialmente Camelo, Leo e Criana.

O Esprito Camelo: a saber, a dinmica passiva de aceitao, na qual se manifesta a viscosidade, a resistncia, a flexibilidade, a fibra, o quilate do material que constitui o Esprito, denominado carregador. Camelo a matria do Esprito! Essa fibra que faz o Esprito pesado, de peso, substancioso, pois, ele assume tudo como seu corpo, sua carne, seu osso. O Esprito somente esprito, se encarnado. O Esprito esprito, somente, se tem a capacidade de carregar. Esse pelo substancioso como que o aumento receptivo de energia, a consistncia da finitude. Aqui no a crtica nem a libertao nem a luta, a forma adequada da dinmica. A dinmica aqui se manifesta na capacidade de assimilao, de adaptao, de afirmao da negatividade. Somente, quando o Esprito se torna prenhe nessa recepo carregadora, que se processa a libertao da dinmica no sentido da luta, que pode alguma coisa. Quando o Esprito, por assim dizer, assumiu tudo, ento que desencadeia, a partir dessa absoro, a transformao de todos os valores. O esvaziamento da fora interna das normas e dos valores que vem de fora como imposio, algo como o empalidecer do valor diante de um outro valor mais poderoso e profundo.

O Esprito assim carregado capaz de reverncia e respeito. Reverncia no texto insinua aquela capacidade do homem que se sujeita, aceita, recebe ordens, sem se escravizar, sem se submeter, pois aceita, a partir de um poder e vigor interior que assimila em cheio o outro como igual, como o outro que o ntimo do meu ntimo.

Exemplos do Esprito carregador temos p. ex. no mtodo tradicional do Zen para a aceitao incondicional do mestre com reverncia, a imitao perfeita, formalista, sem a iniciativa das novidades, um crescimento a partir da prenhez-reverncia. Ou num escultor como Rodin, ou no artesanato medieval.

O Esprito carregador, o Camelo no conhece o conflito de dualismo: monoltico. Poderamos at dizer: o Camelo como Esprito de reverncia no tem a liberdade de escolha entre duas ou mais possibilidades. Seu poder um. Tudo sua necessidade. A sua libertao est no vigor que vem da no-liberdade, da finitude.

O Esprito Leo: a dinmica de absoro que assume tudo a afirmao radical do Tu-deves. a aceitao livre do outro no carregar. A intensificao mxima do assumir reverente s pode superar-se, aperfeioar-se, opondo-se quilo que constitui a essncia do Camelo que Tu-deves. A reverncia s pode se libertar para uma reverncia maior, tornando-se irreverente contra a supremacia da reverncia Tu-deves. pois a luta pelo maior, pela supremacia radical da autodeterminao.

A cristalizao milenar da reverncia Tu-deves so os valores, que assumiram e formaram o Ocidente. o Drago que se manifesta no Platonismo, na Metafsica, no Cristianismo, no Humanismo, Deus, Moral etc. A irreverncia contra Tu-deves ser pois a supremacia, a afirmao do homem. Mas afirmao que quer mais reverncia, maior afirmao. Essa afirmao que a libertao o dio que jorra da intensidade suprema do amor de reverncia. Suportando a dor da mais terrvel das apropriaes, impondo-se a si mesmo o dever de negar o que como o maior santo amou outrora, o Esprito deve soerguer todo o peso do passado, para arrebatar do seu amor a Liberdade, deve golpear o granito, forjado pelo valor milenar do Tu-deves, para lhe arrancar a fasca incendiria que purifique o criar para a novidade do Amor-Libertao.

O Esprito Criana: somente quando o Esprito consegue afirmar-se na irreverncia radical contra o que ele possui de supremo, contra o mais ntimo e sagrado, pode ele libertar-se para a pura energia da autodeterminao: a Nova Liberdade. E nessa Liberdade surge uma nova criatura: a Criana, que no tem mais o peso do Tu-deves, nem a re-ao do Eu-quero; a Criana que a pura essncia do Tu-deves e Eu-quero: o jogo, a espontaneidade, a Vida, o Amor redimido do esprito da vingana.

Aqui, na Criana, temos de novo a Unidade, desta vez, no como o monoltico do carter, da reverncia, mas sim como o frescor, como o vigor, como o alegre jogo de modulao da Vida em todas as coisas.

Camelo, Leo e Criana so modalidades ou variaes do Esprito, modalidades um do outro, como concretizaes. E nessa modificao, nessa transformao, est a essncia do Esprito. Cada momento dessa transformao tem o seu peso, o seu ncleo, a sua profundidade: Camelo, Leo e Criana so, portanto, categoria fundamentais que simbolizam experincias originrias da Profundidade da Vida.

Esquematizando ao redor das categorias fundamentais guisa de leques, outras categorias que dizem a mesma coisa, temos:

Camelo: = Peso: reverncia, interioridade, carter, firmeza, consistncia, substncia, compacto, tendncia para o endurecimento, introverso.

Leo: = Expanso: irreverncia-luta, desafio-ousadia, exterioridade, publicidade, grandiosidade, dinmica-expansiva, espacial, supremacia, poder, tendncia para a inflao-vazio, extroverso.

Criana: = Plenitude, meiguice-suavidade, naturalidade-espontaneidade, graa-charme, beleza, fora como vida, fonte: superabundncia da libertao da vida.

Vamos cristalizar o esquema acima traado em algumas categorias filosficas caractersticas:

Camelo: Peso, Carter, Dever, Substncia, Ser, Verdade.

Leo: Expanso, Liberdade, Vontade, Sujeito, Esprito, Idia.

Criana: Plenitude, Graa, Amor, Vida, Sentido (Significao).

Um exame rpido das categorias nos mostra que na perspectiva histrica:

O Camelo a estrutura da Idade-Mdia: Substncia, Ser, Verdade.

O Leo a estrutura da Idade-Moderna: Sujeito, Esprito, Idia.

A Criana a estrutura da Nossa-poca, o incio da Era vindoura: Gratuidade, Vida, Sentido, Significao.

Nas trs transformaes do Esprito, se esboa um movimento de superao. Superao, porm, no como uma evoluo linear que faz obsoleto o que passou, mas sim como o salto transformador da totalidade, atravs da radicalizao e intensificao energtica da totalidade.

No entanto, podemos dizer que a Vida que tem na Criana a modalidade da Plenitude-Amor est tambm presente no Leo, como a expanso da Libertao, e na dimenso do Camelo, como o vigor do Carter-Reverncia.

Camelo, Leo, Criana; Peso, Expanso, Plenitude; Carter, Liberdade, Amor; Dever, Vontade, Graa; Ser, Esprito, Vida; Verdade, Idia, Sentido... esses trs, na unidade da implicao mtua como a Profundidade da Vida, esta seja talvez a unidade ontolgica do texto de Nietzsche.

RefernciasNIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. In: Werke in drei Bnde. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1960.

III ANIMAL E SUPER-HOMEM

Introduo

No Prlogo do Assim falou Zarathustra, n. 4, Zarathustra anuncia:

O Homem uma corda, amarrada entre Animal e Super-Homem.

Uma corda sobre um abismo. Um arriscante Para-Alm, um arriscante A-Caminho, um arriscante Retrospectivo, um arriscante Estremecer e Parar.

O que grande no Homem isto, que ele uma Ponte e no um Fim: o que pode ser amado no Homem isto, que ele uma Passagem e um Ocaso.

... Eu amo aquele, cuja alma profunda tambm no ferimento, e que pode sucumbir numa pequena vivncia: assim ele vai de bom grado sobre a ponte (Nietzsche, 1960, p. 281; traduo livre do autor).

A presente reflexo no pode nem pretende pensar o Grande Pensamento de Nietzsche. Deseja to-somente fazer algumas consideraes avulsas e diletantes acerca do citado discurso de Zarathustra.

1 Super-homem e superao

O termo Super-Homem conjura imediatamente um ser supra-humano. Algo como o produto selecionado da evoluo, filho e representante de uma raa superior, dotado de excepcionais faculdades, poderoso e autnomo no seu agir, dominador do Universo: o Homem-Senhor.

estranho que projetemos espontaneamente a figura do ser super-humano, diria, divino, todo-poderoso, onisciente e dominador, ao ouvirmos o nome Super-Homem.

Transformemos essa estranheza numa suspeita: No o Super-Homem uma das objectivaes daquele vigor que impulsiona e sustenta a nossa transcendncia? Super-Homem seria nesse caso a gestaltizao do horizonte dentro e a partir do qual somos, agimos, pro-gredimos e pro-duzimos. Seria, pois, como que a imagem projectada do inter-esse dominante do Homem, a figura da sua essncia.

Zarathustra, ao iniciar o seu discurso, diz: Eu vos ensino o Super-Homem. O Homem algo que deve ser superado (Prlogo, n.3).

Zarathustra quer nos ensinar o Super-Homem. A expectativa de ouvir algo sobre o Super-Homem. No anncio de Zarathustra, no entanto, nada se fala do Super-Homem. Fala-se constantemente do Homem.

A tendncia de imaginar o Super-Homem como ser supra-humano, j conhecido, desvia nossa ateno do Homem, fazendo-nos ao mesmo tempo surdos para ouvir o sentido que se oculta na preposio Super.

Admitamos a palavra Super-Homem literalmente.

Ela significa: para-alm do Homem, isto , aquele momento pertinente ao Homem que constitui a abertura de superao: o Homem algo que deve ser superado.

Quem o Homem que deve ser superado?

O Homem, cujo inter-esse dominante, cuja essncia se ob-jectiva na figura do Super-Homem todo-poderoso!

Caracterizemos rapidamente a essncia do Homem como o vigor pro-jectivo do e pro-jectado no Super-Homem: Ela o Poder de Dominao. Sujeitar todos os entes ao seu poder, manter e assegurar o seu imprio o el constitutivo do Homem. Esse lan se determina como o movimento expansionista que deve criar condies para a manuteno e o asseguramento do autodinamismo impulsionador.

O impulso se mantm como o desencadeamento frentico de um devir que relativiza todos os entes como funes e articulaes do Para-Alm, numa busca centrifugal do Ab-soluto. Esse Absoluto no entanto o Ideal do Autoasseguramento do Poder que constitui a prpria imanncia do Homem. Poder de Dominao e Dominao do Poder que para poder Ser ab-soluto se con-suma no Devir. E a transcendncia do Para-Alm como a busca do Fim a in-sistncia, o afundamento na prpria imanncia do Poder de Dominao: Um arriscante Para-Alm, um arriscante A-Caminho, um arriscante Retrospectivo, um arriscante Estremecer e Parar.

Em que consiste a essncia desse Poder? No o sabemos. Pois, o nosso prprio saber como o saber ob-jectivo est sob a dominao do Poder, serve ao auto-asseguramento do Homem em funo da verdade como da Certeza.

Certamente a vigncia dessa tendncia que nos dita o significado do Super como Para-Alm, fazendo nos olvidar que a superao, para ser verdadeiramente Para-Alm, deve se dar no prprio seio do vigor da Dominao.

Com outras palavras, superar, ir alm, no devem ser entendidos como prolongamento per-fectivo do Poder que constitui a essncia do Homem.

Mas como possvel a superao? Ela no possvel no horizonte da Dominao, isto , impossvel, se entendermos a possibilidade como a consumao da potncia ainda no atualizada. Ou melhor, ela se torna possvel to-somente, quando o horizonte do Poder esgotar a sua possibilidade e sucumbir, isto , entrar no ocaso em sua totalidade.

A afirmao tem ares de uma crtica humanista que indigita os males do tempo e apela para o desarmamento do Poder a favor e um Mundo mais humano e melhor.

A reao que se insinua num tal apelo talvez desconhea a possibilidade do Ocaso. Ocaso no significa em primeiro lugar e necessariamente uma queda, um fim catastrofal ou definhamento.

Significa antes a in-sistncia cada vez mais acentuada, a potencializao do Domnio, num crescente ritmo de auto-exacerbao. Essa escalao do Poder pode se manifestar como a Harmonia de uma organizao to perfeita e segura que continuamente se mantenha em equilbrio e se assegure num maravilhoso mecanismo de auto-regluao.

Mas por que uma tal con-sumao do Poder se chama Ocaso?

2 O homem, a passagemO ocaso o pr-do-sol. No nvel da ingenuidade cotidiana podemos dizer: quando sol se pe, vem a treva. O sol traz o dia. A treva, a noite. Ou melhor: o dia traz o sol, a noite, a treva. Aqui o sol e a treva so, por assim dizer, coisas dentro dos seus respectivos horizontes, do dia e da noite.

A treva vem depois do pr-do-sol. Uma coisa surge com o desaparecimento da outra. A passagem se processa daqui para l. Uma ponte entre o aqum e o alm.

Podemos dizer o mesmo em relao aos horizontes dia e noite? Onde est, como a passagem do dia para a noite? Temos tambm aqui duas coisas chamadas margens, ligadas por uma ponte?

O nosso saber ob-jectivo no consegue captar a passagem a no ser fixando-a, isto , assegurando-a como um ente entre dois entes. A passagem uma coisa chamada ligao, entre duas coisas que constituem os extremos dessa ligao.

Na impossibilidade de compreender a passagem enquanto Passagem, tentemos apenas insinuar o modo de ser da Passagem, por meio de uma descrio tosca e imaginada do relacionamento dia-e-noite.

A noite no comea l, onde o dia acaba. No possvel traar a linha divisria entre o fim do dia e o comeo da noite. Em vez de linha temos uma zona de transio. Essa zona, porm, no tanto uma faixa, maneira de uma linha ampliada na sua largura. Antes, a zona indica o modo de ser que poderamos chamar de mtua compenetrao.

Essa mtua compenetrao algo como a escala de coincidncia da presena e ausncia da claridade numa tabela que mostra os graus de tonalidade da luz a partir do branco at o preto e vice-versa.

O cinzento e as diferentes intensidades do cinzento no so propriamente misturas do branco e preto. No so tambm diferentes modalidades do branco e preto. O branco, cinzento e preto so antes diferentes graus da presena e ausncia da claridade.

Numa linguagem pouco rigorosa podemos dizer: a claridade o horizonte a partir do e no qual o branco, cinzento e preto recebem a tonalidade do seu vigor.

O horizonte da claridade, no entanto, no deve ser imaginado como o pano de fundo sobre o qual aparecem o branco, cinzento e preto. Ele a intensidade ou melhor a profundidade tonal da claridade que vem tona, conforme a permeabilidade do branco, cinzento e preto, dando-lhes a virtude da sua expresso, p. ex., numa obra de arte.

Nesse sentido, um branco pode ser vazio de profundidade da claridade, ao passo que um cinzento ou preto pode en-toar nitidamente a profundidade da claridade.

Aqui, a claridade no mais se mede segundo a quantidade do branco ou preto, mas sim conforme a presena ou audincia do vigor e da ressonncia da claridade, digamos, do tonus vital.

Se, em lugar de tonalidade visual, tomarmos o exemplo da tonalidade auditiva, temos o som e o silncio. O silncio pode ser interpretado como a estaca zero do som. Nesse caso, o silncio a privao do som, isto , uma das suas modalidades. O silncio, no entanto, pode ser aquilo que o som con-tm, vela e revela como a presena do tonus, isto , do vigor de ressonncia. Aqui, o barulho da praa pblica pode ter o mnimo de ressonncia, ao passo que um insignificante estalido na noite silenciosa pode toar intensamente.

Aplicando o que acima insinuamos ao dia e noite, podemos dizer: A passagem do dia para a noite no um movimento que parte de um espao chamado dia, avana, deixa-o para trs, para entrar num outro espao chamado noite. Uma tal passagem no nenhuma passagem, pois, entre o dia e a noite no vigora a diferena essencial: o dia uma modalidade da noite, uma modalidade do dia. Como modalidades, dia e noite so, operam e pro-gridem, no fundo, dentro de um mesmo espao, onde algo como oposio e comparao se tornam possveis.

Mas, ento, em que consiste a passagem? A passagem consiste em deixar-ser, libertar, em cada passo do dia e em cada passo da noite, a ambigidade do vigor que mantm o dia e a noite, como a abertura, onde e a partir da qual o dia est presente na noite e a noite no dia como diferentes tonalidades da presena e ausncia da claridade.

Mas isto no mesma coisa que dizer: a claridade o espao, onde se do o dia e a noite como duas modalidades de uma e mesma coisa? No, se entendermos o espao como o pano de fundo, como o fundamento ou como o horizonte comum. Sim, se conseguirmos ouvir no termo espao a racha do abismo que faz saltar, no o dia e a noite, mas sim a totalidade do horizonte que constitui o espao, onde o dia e a noite se tornam possveis como modalidades desse mesmo espao.

O abismo que faz saltar o horizonte o tempo do salto, o in-stante da Deciso, um arriscante Estremecer e Parar, no qual se revela e se decide a medida e o modo de ser da presena e ausncia da claridade em sua totalidade. Essa presena e ausncia o dom e a fatalidade do vigor e da luz, da fraqueza e da treva que fundam, determinam, alumiam e obscurecem o per-curso dos dias da Terra, isto , da ex-sistncia historial, enviando-a na aventureira errncia do Poder e do Pro-gresso, busca do alm, num esquecimento sempre mais insistente da origem do seu prprio impulso.

A passagem pois pr-se na fenda do abismo, um ocaso, um sucumbimento que se abre como o desvelamento da totalidade j decidida, dominante da ex-sistncia do Homem.

Esse desvelamento, no entanto, no se d como o fim de uma possibilidade e o incio esperanoso de um outro Mundo mais seguro e melhor, mas como a suspenso perigosa do ser-Homem em sua totalidade, na qual a totalidade em si perde o seu sentido, paira sobre o abismo da Deciso epocal, estremece e pra, numa espera silenciosa e na ausculta acolhedora do Dom de uma nova possibilidade, sobre cuja ambigidade o Homem no tem nem Poder nem Segurana.

A Passagem, o Super, o Para-Alm do Homem esse silncio, o nada acolhedor que, por assim dizer, se forma atrs do vigor de impulso errante do Poder, como o vcuo de suco.

Cada pro-gresso do impulso do Poder vela sob a segurana e a certeza dos seus passos um arriscante Para-Alm, um arriscante A-Caminho, uma arriscante Retomada retrospectiva.

Ser na fenda do abismo como a suspenso-sensibilidade da ausculta recolhedora, como o e, como o entre, como a Passagem e o Ocaso a essncia do Super-Homem, o in-stante da Liberdade.

Esse abandono do Poder, esse acolhimento a alma da vulnerabilidade. Vulnerabilidade, a vivncia que no conhece a defesa e a segurana da mediao projectiva ou objetica, que a disponibilidade da Liberdade como deixar-ser, um poder-ser-atingido, a ressonncia da profundidade e totalidade que vibra e sucumbe at o mago do seu ser mais insignificante e-vocao do ... Ser (?).

Somente assim, o Homem pode se tornar o elo de ligao entre Animal e Super-Homem.

3 Animal e super-homem

Por que Animal e Super-Homem?

A estranheza fala a partir do horizonte do Poder e do autoasseguramento.

Animal conota o Sentido, o Sensual, o Corpo, a Terra, em operao Razo, ao Intelectual, ao Esprito, ao Cu.

A superao do Animal o fim do Homem: o domnio moral dos instintos e das paixes, o controle das caticas impresses inexatas e imprevistas luz das idias claras e distintas da Razo, a destilao do Homem animal para criar o Homem clarificado e espiritual o Ideal do Homem: o Super-Homem.

A busca do Poder do autoasseguramento julga e decide a sorte do Animal como aquilo que deve ser superado no impulso pro-gressivo da Evoluo. Nesse julgamento fala o vigor da Dominao que rei-vindica o seu Poder e a sua Certeza sobre a ameaa da pujana animal, em funo do seu pro-jecto. Ob-jectivo que determina a definio do homem como animal Racional, cuja culminncia constitui o Super-Homem.

Assim, o Esprito do Poder como o Esprito de reivindicao vinga-se do Animal, reduzindo-o ao Bruto, Baixo, Perigoso, Sensual, custa do Racional.

A palavra animal no original alemo do discurso de Zarathustra Tier. Tier deriva da palavra germnica deuza. Esta provm do radical verbal indogermnico dheus, que significa: respirar, soprar. O Tier, o Anima diz portanto: o ser que respira, que tem o sopro da Vida. O sentido originrio do animal pois Vida.

O que Vida no sabemos, pois a pergunta o que ?, ao ser formulada, j opera a partir e dentro da vigncia da Dominao e do Asseguramento da Vida racional que constitui a interpretao da Vida como vida biolgica, vida social, vida espiritual, vida do alm, vida divina etc.

To-somente, no in-stante em que o Poder e a Dominao se libertarem do Esprito da Vingana, isto , da Vindicao, e se abrirem para a re-ferncia da Vida como o silncio suspenso sobre o abismo Ocaso e Passagem , a essncia do Homem como Animal se con-sumar, qual a morada recolhedora do sopro da Vida: poliforme e una, antiga e sempre nova, profunda na Dor, jubilosa no frescor da Nascividade, meiga e dura, leve a saltitante, terrvel e fascinante na Surpresa, apaixonada e vulnervel na Autenticidade.

Esse Homem que no rigor da sua Sobriedade todo Ouvido na ausculta gratuita ao Dom da Vida ao Esprito que sopra onde quer a Inocncia da Vida, o Habitante da Terra dos Homens na afirmao incondicional da Plenitude-Vida.

o homem finito, Homem-Homem, o Super-Homem que segundo Heidegger ser mais pobre, mais simples, mais meigo e duro, mais sereno e dadivoso e mais lento em suas decises e mais sbrio na sua fala (Heidegger, 19.., p.)

Concluso

Assim, diz o ltimo captulo do livro Assim falou Zarathustra:

Mas de manh, quando o sol nasceu, Zarathustra ouviu por cima de si o grito cortante da sua guia.

Eia! gritou para cima assim me agrada e me convm. Meus animais esto acordados, pois eu estou acordado... Faltam-me, porm, os meus verdadeiros homens... Mas eis que aconteceu: de repente se ouviu como o centro de uma multido de aves que enxameavam e revoavam ao seu redor. O farfalhar de tantas asas no entanto e o cerco ao redor da sua cabea era to grande que ele fechou os olhos. E em verdade, qual uma nuvem caiu sobre ele, qual uma nuvem de setas que se derrama sobre um novo inimigo. Mas, ei-la, aqui era uma nuvem do amor, e sobre um novo amigo.

Que me sucedeu?, pesou Zarathustra no seu corao admirado e lentamente deixou-se cair sobre a grande pedra que jazia sada da sua caverna. Mas, enquanto ele com as mos lutava para segurar em torno de si e por cima de si e por baixo de si e afastava as meigas aves, eis que lhe aconteceu algo ainda mais singular: a saber, ele agarrou, sem dar por isso, na farta e clida madeixa; simultaneamente, porm, ressoou diante dele um rugido um meigo prolongado rugido-leo.

Vem o Sinal!, falou Zarathustra e o seu corao se lhe transformou. E em verdade, quando se tornou lcido diante dele, ali lhe jazia aos ps um poderoso animal fulvo e aconchegava a cabea ao joelho de Zarathustra e no queria afastar-se dele, por amor, e se portava como um co que reencontrou o seu antigo senhor. As pombas, porm, no eram com o seu amor menos diligentes do que o leo; e cada vez que uma pomba lhe deslizava sobre o focinho, o leo sacudia a sua juba e se maravilhava e punha-se a rir (Nietzsche, 1960, p. 559; traduo livre do autor).

Leo e Pomba, no mais Serpente e Pomba: O Csar romano com a alma de Cristo (Nietzsche, Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre), eis o Homem, o Super-Homem.

Referncias

NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. In: Werke in drei Bnde. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1960.

NIETZSCHE, F. Aus dem Nachlass der AchtzigerjahreHEIDEGGER, M. Die Frage nach dem Ding. Tbingen: Max Niemeyer, 1962.

KANT, I. Prefcio para fundamentos metafsicos iniciais da cincia da natureza.

HEIDEGGER, M. Was heisst Denken? Tbingen: Max Niemayer, 1961.

IV FENOMENOLOGIA DO CORPO

Situao como existncia corporal guisa de uma fenomenologia da corporeidade

O presente esboo uma pequena tentativa de reflexo. Por isso o ttulo guisa de uma fenomenologia da corporeidade demasiadamente altissonante e comprometedor. No se pretende apresentar uma descrio fenomenolgica do corpo humano. Trata-se apenas de uma reflexo incompleta, tosca e certamente simplista, na tentativa de colocar uma questo.

1 Fenomenologia da corporeidade?O ponto de interrogao desse subttulo insinua um problema. Trata-se de uma fenomenologia sobre o corpo humano ou antes de uma fenomenologia a partir da corporeidade?

A compreenso usual pensa a fenomenologia como fenomenologia sobre: descrio de um objeto j existente, independente do sujeito conhecedor. Descrio minuciosa, objetiva, sob diferentes ngulos de vista, aproximao assintt