ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial brasileira

Upload: fernando-carmo-viana

Post on 10-Apr-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    1/27

    Ao Afirmativa e aRediscusso do Mito daDemocracia Racial no Brasil*

    Joaze Bernardino

    Resumo

    O texto discute o significado das propostas de ao afirmativa nocontexto brasileiro de relaes raciais, marcado pela popularizao dacrena tanto no mito da democracia racial quanto no ideal de em bran-quecimento. Como conseqncia prtica dessas duas crenas, tem-se,por um lado, a dificuldade de uma autoclassificao positiva e, por ou-tro, uma alterclassificao negativa de quem negro no Brasil. Uti li zan-do entrevistas com militantes negros, chegamos concluso de que as re-feridas propostas procuram alm de minimizar as desigualdades ra-ciais redefinir o modelo brasileiro de relaes raciais a partir de umarevalorizao da identidade negra. Para que esse de siderato seja cum pri-

    do, requer-se o desenvolvimento do sentimento de pertencimento a umgrupo racial, assim como um auto e alter reconhecimento positivo dequem negro no Brasil. A partir da, seriam construdas condies parase rediscutir, qui superar, o mito da democracia racial.

    Palavras-chave: mito da democracia racial, ideal de embranquecimento,ao afirmativa, militante negro, grupo social, identidade negra, re co-nhecimento.

    Estudos Afro-Asiticos, Ano 24, n 2, 2002, pp. 247-273

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

    * Agradeo os comentrios e crticas de Sales Augustos dos Santos, Osmundo Pinho, AlexRatts e do parecerista annimo da re vis taEstudos Afro-Asiticos.

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    2/27

    Abstract

    Affirmative Action and the Re-discussion of the Brazilian RacialDemocracy Myth

    This ar ticle discusses the meaning of the affirmative actionproposals in the Brazilian racial relations context, which is marked bythe popular belief in the racial democracy myth, as well as in the ideal ofwhitening. As a consequence of both beliefs, there is on one hand, adifficulty toward a positive self-classification, and on the other, anegative alter-classification of who is Negro in Brazil. By usinginterviews with Negro militants, we come to a conclusion that theabove-mentioned proposals besides minimizing the racial inequality, tryto redefine the Brazilian model of social relations revalorizing the Negro

    identity. To fulfill this wish, it is required to develop a sense of belongingto a racial group, as well as a self and a alter positive recognize of who isNegro in Brazil. Starting from this, it would be possible to re-discuss andeven overcome the racial democracy myth.Keywords: racial democracy myth, ideal of whitening, affirmativeaction, Negro identity.

    Rsum

    Action Affirmative et Rdiscussion du Mythe de la DmocratieRaciale au Brsil

    Cet article analyse le sens des propositions daction affirmativedans le contexte brsilien des relations raciales, marqu par la croyance,trs populaire, tant au mythe de la dmocratie raciale quant celle dunidal de blanchiment. Comme consquence pratiques des ces deux cro-yances on trouve, dun ct, la difficult avoir une autoclassificationpo sitive, dautre, une alterclassification ngative de tous ceux qui sontNoirs au Brsil. En utilisant des interviews avec des militants noirs, noussommes arrivs la conclusion que ces proposi tions daction af firma ti-ves essaient en plus de minimiser les ingalits raciales de rdefinir lemodle brsilien de relations raciales partir de la rvalorisation delidentit noire. Pour que ce souhait soit accompli, il faut dvelopper lesentiment dappartenir un groupe social, aussi bien quune auto et al terreconnaissance positive dans les populations noires au Brsil. partir decela, on pourrait crer les conditions pour dfinir, et dpasser peut-tre,le mythe de la dmocratie raciale.

    Mots-cls : mythe de la dmocratie raciale, idal de blanchiment, actionaffirmative, militant noir, groupe social, iden tit noire, reconnaissance.

    Joaze Bernardino

    248

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    3/27

    Aconstruo da nao brasileira est estruturada dentre ou-tras coisas a partir do mito da democracia racial. Uma par-cela expressiva da sociedade brasileira compartilha a crena de ter

    construdo uma nao diferentemente dos Estados Unidos e dafrica do Sul, por exemplo no caracterizada por conflitos ra-ciais abertos. Alm disso, imagina-se que em nosso pas as as cen-ses sociais do negro e do mulato nunca estiveram bloqueadas porprincpios legais tais como os conheci dosJim Crow e oApartheiddos referidos pases. Para os que imaginam e advogam a singu lari-dade paradisaca brasileira, isto significa dizer que o critrio racialjamais foi relevante para definir as chances de qualquer pessoa noBrasil. Em outras palavras, ainda fortemente difundida no Brasila crena de que a cultura brasileira antecipa a possibilidade de ummundo sem ra as. Numa nao imaginada como democrtica na

    questo racial, e erigida a partir desta crena, o que significa proporaes afirmativas para a populao negra?Este artigo tem, nesta per-gunta, o seu eixo central.

    A primeira parte ter por escopo apresentar o que en ten de-mos como caractersticas centrais da socieda de brasileira quandose trata de relaes raciais: o mito da democracia racial e o ideal deembranquecimento. De conscincia dessas idias que t m for ma-do o Brasil torna-se inevitvel conforme acreditamos co lo-car o problema norteador deste artigo. Na segunda parte apre sen-taremos as propostas de ao afirmativa; ao abord-las, faz-se ne-cessrio uma aproximao, mesmo que rpida, com o contextonorte-americano, que nos tem servido de comparao. No ter ce i ro

    e ltimo tpico deste artigo, apresento o significado das polticasde ao afirmativa no Brasil, a saber, a rediscusso do mito da de-mocracia racial a partir do desenvolvimento de um sentimento depertencimento a um grupo racial e, conseqentemente, a cons tru-o de identidades negras.

    249

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    4/27

    Democracia Racial e o Ideal de Embranquecimento: Desafios

    para a Implementao de Aes Afirmativas no Brasil

    A crena no mito da democracia racial estruturante do sen-timento de nacionalidade brasileiro, a ponto de operar uma raraconcordncia valorativa entre as diferentes camadas sociais queformam a sociedade nacional. A ttulo de exemplo, em pesquisarealizada no Distrito Federal, acerca do perfil valorativo de bra si le-iros agregados a partir da renda familiar, nvel de escolaridade e lo-cal de moradia, Souza (1997) consta tou que entre os brasileirosque compem a camada/classe mdia e os que formam a ca ma-da/classe ba ixa existe uma clara linha demarcatria em relao aopreconceito contra a mulher, ao pobre, ao nordestino e aos ho mos-

    sexuais; de tal forma que entre os primeiros essas formas de pre-conceito apresentam um baixo ndice, enquanto entre os ltimosapresentam um alto ndice. A concluso da pesquisa que o pre-conceito em relao mulher, ao pobre, ao nordestino e aos ho-mossexuais inversamente proporcional ao rendimento, ao graude escolaridade e qualidade de vida proporcionada pelo local demoradia. Porm, o interessante vem no que segue: enquanto nasreferidas formas de preconceito h uma ntida separao entreclasse mdia alta e classe baixa, o mesmo no se aplica quando seinvestiga o preconceito racial. Em vez da separao valorativa, en-contramos uma concordncia entre esses dois segmentos na con-

    denao do preconceito racial e na valorizao da miscigenao. Areferida pesquisa constatou que tanto entre classe mdia alta quan-to entre a classe baixa o ndice de discordncia em relao s se-guintes perguntas eram significativamente altos: o negro s bom em msica e esporte? e alguns cientistas afirmam que osbrancos so mais in t eli gen tes que os negros (Souza,1997:117-143). Obviamente, a concluso a que podemos chegarno que no existe preconceito racial no Brasil, mas que o brasi-leiro tem preconceito de no ter preconceito, como assinalouFlorestan Fernandes (1972:23-26). Da, ento, a necessidade deno confundir o ato de responder a um questionrio, quando fre-qentemente todos os entrevistados expressam muito mais um de-

    sejo, com a prtica que muitos destes entrevistados possam ter. O useja, necessrio estar atento distncia que existe entre a falaconsciente, no caso daqueles que esto respondendo a um questi o-nrio, e a prtica e a fala cotidiana que muitas vezes no so ava lia-das pela conscincia.

    Joaze Bernardino

    250

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    5/27

    O mito da democracia racial ganhou sua elaborao aca d-

    mica e alcanou o seu clmax por meio de Gilberto Freyre em seuCasa Grande & Senzala(1933), uma obra que viria a moldar a ima-gem do Brasil. Embora Freyre destaque o carter sadomasoquistada cultura brasileira, o sadismo da casa-grande personificado nosenhor de engenho e o masoquismo da senzala materializado na fi-gura do escravo, o tom da sua obra de otimismo em relao a umambiente social gestado durante a fase colonial brasileira que fa vo-rece e propcio ascenso social do mulato, tipo que tenderia acaracterizar num futuro prximo o Brasil. No mulato vi su a liza ra-mos o que Gilberto Freyre chamou de processo de equilbrio de an-tagonismos, a saber, a fuso harmoniosa de tradies diversas, ouantes antagnicas, de cultura. O resultado desse equilbrio de an-tagonismos, que se materializa, sobretudo, na figura do mulato, que no se pode acusar de rgido, nem de falta de mobilidade ver-tical o regime brasileiro, em vrios sentidos sociais um dos maisdemocrticos, flexveis e plsticos (Freyre, 1992:52).

    O mito da democracia racial no nasceu em 1933, com a pu-blicao de Casa-Grande & Senzala, mas ganhou, atravs dessaobra, sistematizao e status cientfico para os critrios de ci en-tificidade da poca. Tal mito tem o seu nascimento quando se es ta-belece uma ordem, pelo menos do ponto de vista do direito, livre eminimamente igualitria. Assim, tanto a Abolio quanto a pro-clamao da Repblica foram condies indispensveis para o es-

    tabelecimento do referido mito, sem esses dois aconteci mentosno se poderia falar em igualdade entre bran cos e negros no Brasil:tal mito no possuiria sentido na sociedade escravocrata e senho-rial [...]. Que igualdade poderia haver entre o senhor, o escravo eo liberto? (Fernandes, 1965:199). Alm dessa condio legal, foide suma importncia para a construo do mito da democracia ra-cial o dilogo entre abolicionistas brasileiros e norte-americanos,no sculo XIX, em que se identificava a sociedade brasileira comoparadisaca frente ao inferno racial que era a sociedade nor-te-americana:

    Duvido que tenha jamais existido um povo mais tiranizado, mais de sa-

    vergonhadamente pisado e impiedosamente usado, do que as pessoas li-vres de cor destes Estados Unidos. Mesmo um pas catlico como o Bra-sil [...] no t rata as suas pessoas de cor, livres ou escravas, do modo in jus-to, brbaro e escandaloso como ns as tratamos [...]. A Amrica de mo-crtica e protestante faria bem em aprender a lio de justia e liberdadevinda do Brasil catlico e desptico. (Dou glasapudAzevedo, 1996:155)

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    251

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    6/27

    O mito da democracia racial apoiava-se, e ainda se apia, na

    ge neralizao de casos de ascenso social do mulato; este, nas pa la-vras de Carl Degler, encontrara uma sada de emergncia, o quesignifica dizer que se desenvolveu um reconhecimento social domestio no Brasil. Todavia, a assimilao e reconhecimento socialdo mestio ocorria custa da depreciao dos negros. O que estpor t rs deste mecanismo brasileiro de ascenso social a con cor-dncia da pessoa negra em negar sua ancestralidade africana, pos toque est socialmente carregada de signifi cado negativo. Iro ni ca-mente, dentro deste contexto da sada de emergncia, os casos deascenso social de pessoas de cor no enriqueciam o grupo socialdos negros, uma vez que as pessoas de cor que ascendiam eram en-caradas como negros de alma branca (Fernandes, 1965).

    A sada de emergncia do mestio um fato que no temanalogia com o modelo de relaes raciais que se desenvolveu nosEstados Unidos. A diferena entre estas duas naes no residiriana presena e na ausncia de relaes sexuais entre os grupos ra-ciais, seno na classificao social. Embora se encontrem mulatosnos Estados Unidos, estes no so reconhecidos em uma categoria parte, uma vez que o modelo de classificao racial daquele passe baseia na regra da hipodescendncia.1 Por volta de 1860, porexemplo, a populao negra desse pas era forma da por 11% demulatos e, em 1910, esse ndice correspondia a 21% (Marx,1996:15; Skidmore,1976: 87). Do ponto de vista classificatrio,

    portanto so cial, o que se tem , por um lado, uma nao cindidaem duas categorias raciais e, por outro, uma nao que reconheceuo meio-termo, logo composta de um sistema classificatrio ml ti-plo: a presena do mulato no apenas espalha as pessoas de cor nasociedade, mas ela literalmente borra e, portanto, suaviza a linhaentre preto e o branco (Degler, 1971:233). O ra, inegvel que omulato tenha encontrado essa sada de emergncia, da a mul tipli-cidade classificatria que tem caracterizado o Brasil. O problemafoi identificar isso com uma ordem democrtica a fazer inveja aomundo, uma vez que, conforme se acreditava, o paraso era aqui.Todavia, se o paraso era aqui, era apenas para aqueles que con se-guiram ser assimilados, via miscigenao, pela sociedade brasile i-

    ra, no o sendo para o negro que tinha que enfrentar os dramas daexcluso na mesma sociedade. O mito da democracia racial im pli-cava um ideal de homogeneidade racial, o que significa que os ra-cialmente diferentes no so bem vistos, posto que desafiam esteideal brasileiro.

    Joaze Bernardino

    252

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    7/27

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    8/27

    lo osmtistenham desaparecido do Brasil. Isso coincidir com a extinoparalela da raa negra em nosso meio. (apudSkidmore, 1976:83)

    Tanto o mito da democracia racial quanto o ideal de bran-queamento ganham uma leitura popular, compartilhada pelamaioria dos brasileiros por toda a extenso geogrfica do pas. Apartir de uma rpida aluso a Benedict Anderson (1983), po de ra-mos dizer que a comunidade que denominamos Brasil se imagina,entre outras coisas, a partir dos referidos ideais.

    No constitui nenhuma novidade dizer que uma sig nificati-va maioria dos brasileiros reconhece-se como misturados, assimcomo valorizam essa mistura. O que ocorre quando se ressalta evaloriza essa mestiagem que h uma confuso da mistura racial

    no plano biolgico com as interrelaes raciais no sentido so ci ol-gico. Supondo que a primeira ocorreu sem conflito [...] sugeremque as ltimas tambm existiram sem conflito (Hasenbalg,1995:358).

    Quanto ao ideal de branqueamento, ele incorporado pelapopulao e se apresenta atravs de uma desvalorizao da estticanegra e, em contrapartida, uma valorizao da esttica branca.Alm disso, esse ideal apresenta-se como uma tentativa de me lho-rar a raa atravs de casamentos mistos. Sendo que quando o fi-lho do casal misto nasce branco, tambm se diz que o casal tevesorte; quando nasce escuro, a impresso de pesar (Nogueira,1985:84).

    O mito da democracia racial, juntamente com o mito do se-nhor benevolente e a poltica de branqueamento desenvolvida nopas teve algumas conseqncias prticas.

    Primeira con seqncia: desenvolveu-se a crena de que noexistem raas no Brasil, uma vez que por raa se entende agru pa-mentos humanos que compartilham certas caractersticas he re di-trias que no so partilhadas por nenhum outro agrupamento hu-mano, tais como cor da pele, tipo de cabelo, formato do nariz, por-te fsico. Assim, a inexistncia de raas no Brasil decorreria do pro-cesso de miscigenao que diluiu as supostas essn cias naturaisoriginais das trs raas que fundaram a populao brasileira. Talinterpretao supe uma essncia biolgica possvel de ser en con-

    trada em outras partes, mas no no Brasil. Neste sentido, ima gi-na-se que o Brasil inaugura a possibilidade de um mundo sem ra-as (Gilroy, 2001:9). Este excepcionalismo faz do brasileiro orgu-lhoso de si mesmo, a ponto de querer ensinar lies s na es ain damarcadas pelo racis mo.

    Joaze Bernardino

    254

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    9/27

    Entretanto, essa recusa de reconhecer raas no Brasil uma re-

    cusa estratgica que ocorre somente em momentos de concedereventuais benefcios queles que so identificados como membrosdo grupo de me nor status. A no separao de raas do ponto de vis-ta biolgico tampouco significa que elas no estejam separadas, doponto de vista social, da concesso de privilgios e distribuio depunies morais, econmicas e judiciais. Neste sentido, contra ri an-do a interpretao racial hegemnica no Brasil e respaldado nos di-versos estudos realizados no campo das relaes raciais, desde pelomenos os estudos da Unesco, advogamos que a raa existe, nocomo uma categoria biolgica, mas como uma categoria social.

    Segunda conseqncia: em lugar da raa, admite-se que existeno Brasil apenas uma classificao baseada na cor, que pretende ser

    encarada como uma mera descrio objetiva da realidade sem im-plicaes poltico-econmico-sociais, tais como discriminaes epreconceitos.

    Aqui somos levados a desconstruir a noo de cor luz dascontribuies de Guimares (1999). Para este autor, a cor fun ci o-na como uma imagem figurada da raa. Ao se utilizar o termo corpara classificar as pessoas reporta-se no a uma descrio objetivada realidade, mas a uma hieraquia classificatria em que aquelesnomeados de branco so concebidos como melhores, enquantoaqueles nomeados de preto so concebidos como piores. Para quealgum possa ser classificado pela cor necessrio que a cor tenhaalgum significado:

    De fato, no h nada espontaneamente visvel na cor da pele, no formatodo nariz, na espessura dos lbios ou dos cabelos, ou mais fcil de ser dis-criminado nesses traos do que em outros, como o tamanho dos ps, a al-tura, a cor dos olhos ou a largura dos ombros. Tais traos s tm sig nifi-cado no interior de uma ideologia preexistente, e apenas por causa dissofuncionam como critrios e marcas classificatrias. Em suma, algum spode ter cor e ser classificado num grupo de cor se existir uma ideologiaem que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto , as pessoas tmcor apenas no interior de ideologias raciais. (Guimares, 1999:44)

    Terceira conseqncia: qualquer tentativa de falar em raa ne-gra vista como uma imitao de idias estrangeiras, uma vez que

    no existem raas no Brasil, conforme se acredita. Logo, aquelesque falam de polticas sociais para negros so acusados de racistas.A maneira brasileira de encarar o problema racial define como ra-cista aquele que separa, no o que nega a humanidade de outrem(ibidem:57).

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    255

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    10/27

    A partir dessa maneira de encarar a realidade, em que se de fi-

    ne como racista aquele que separa, evitou-se, do ponto de vista ofi-cial, reconhecer o tratamento diferenciado de brasileiros em de-corrncia da raa, mesmo se este reconhecimento pudesse sig ni fi-car uma oportunidade para a correo de desigualdades. Assim,por exemplo, o movimento social dos negros acusado de racista,uma vez que diferencia os negros dos brancos.

    Em outras palavras, a regra no que diz respeito ao en fren ta-mento das desigualdades raciais no Brasil ser uma disposiopara esquecer o passado e deixar que as coisas se resolvam por simesmas (Fernandes, 1972:25), uma vez que, conforme acre di-tam, no existem raas no Brasil. E, conseqentemente, como noexistem raas, no cabe falar de populao negra.

    Diante desta realidade social estruturada pelo mito da de-mocracia racial e pelo ideal de branqueamento, manteve-se in tac-to o padro de relaes raciais brasileiro, no sendo posto em pr ti-ca nenhum tipo de poltica que pudesse corrigir as desigualdadesraciais. Isto aconteceu desta forma simplesmente porque a in ter-pretao hegemnica acerca das relaes raciais brasileira, at mes-mo entre setores progressistas, no identificava nenhum problemade justia racial. Estava vedada, portanto, a possibilidade de in ter-veno organizada na realidade, restando populao de cor a viada infiltrao pessoal, que obviamente no possui alcance co leti-vo.

    Assim, o mito da democracia racial e o ideal de em bran que-

    cimento deram origem a uma realidade social em que a discussosobre a situao da populao negra foi identificada como indese-jvel e, at mesmo, perigosa. A recusa de reconhecer a realidade dacategoria raa, tanto num sentido analtico quanto de intervenopblica, fez do regime de relaes raciais brasileiro um dos maisnefastos e estveis do mundo ocidental.

    Frente a este contexto em que as preocupaes com as ques-tes raciais so concebidas como falso problema, propomo-nos aanalisar o significado da ao afirmativa para a populao negra.

    Propostas de Ao Afirmativa no Brasil

    Aes afirmativas so entendidas como polticas pblicasque pretendem corrigir desigualdades socioeconmicas pro ce den-tes de discriminao, atual ou histrica, sofrida por algum grupode pessoas. Para tanto, concedem-se vantagens competitivas para

    Joaze Bernardino

    256

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    11/27

    membros de certos grupos que vivenciam uma situao de inferio-

    ridade a fim de que, num futuro estipulado, esta situao seja re-vertida. Assim, as polticas de ao afirmativa buscam, por meio deum tratamento temporariamente diferenciado, promover a eqi-dade entre os grupos que compem a sociedade.

    As maneiras pelas quais as polticas de ao afirmativa po-dem atuar so vrias: desde as polticas sensveis ao critrio racial,em que a raa um dos critrios ao lado de outros,2 at as polticasde cotas, em que se reser va um percentual de vagas para minoriaspolticas e culturais; neste ltimo caso a raa passa a ser consi dera-da um critrio absoluto para a seleo da pessoa. Embora qualifi-quemos cotas e polticas sensveis raa apenas como t ipos di fe-rentes de ao afirmativa, h aqueles que procuram tratar cotas e

    aes afirmativas como polticas pblicas diferentes:Em primeiro lugar, h um esforo, consciente, das Cortes [americanas]para separar ao afirmativa de cotas. Isso porque tal equivalnciacriaria, sem dvida, problemas para um senso de justia republicano eindividualista. Tal equivalncia, ao contrrio, tem sido usada pelos con-servadores e oposicionistas da ao afirmativa, que querem ca racte ri-z-la como uma poltica redistributiva, baseada em grupos. (Guimares,1999:157)

    O debate em torno da equivalncia ou no de cotas e aoafirmativa (entendida neste contexto como poltica sensvel raa)decorre do fato de as cotas contrariarem o princpio do mrito. To-

    davia, ao meu ver, esta tentativa de identificar ou separar um tipode poltica do outro ocorre unicamente por razes estratgicas.Advogo que ambas so formas de ao afirmativa, porm execu ta-das de maneira diferente, uma vez que so polticas pblicas quepretendem corrigir desigualdades sociais provenientes de tra ta-mento discriminatrio no passado e/ou no presente baseados naraa.

    O passo decisivo para que a discusso sobre aes afirmati vasconquistasse projeo poltica e acadmica, para alm dos in te-grantes do movimento negro brasileiro, foi o reconhecimento p-blico do presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso,3

    na abertura do se min rioMulticulturalismo e Racismo, realizado

    em 1996, em Braslia, de que o pas era racista. Alm disso, o pre si-dente da Repblica estimulou a discusso sobre as aes afir ma ti-vas quando, ao divulgar o Plano Nacional dos Direitos Humanos,tambm em 1996, incluiu como um dos seus objetivos o de senvol-vimento de aes afirmativas para o acesso dos negros aos cursos

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    257

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    12/27

    profissionalizantes, universidade e s reas de tecnologia de pon-

    ta. E ainda foi mais claro, firmando o compromisso de de senvol-ver polticas compensatrias que promovam social e economica-mente a comunidade negra (PND H, 1996:30-1). Outra ao doExecutivo foi a criao, em 1996, do Grupo de Trabalho Inter mi-nisterial (GTI) Para a Valorizao da Populao Negra e do Gru pode Trabalho para a Eliminao da Discriminao no Emprego e naOcupao GTDEO. O GTI teria por objetivo desenvolver po-lticas para a valorizao da populao negra, prioritariamente nasreas de educao, trabalho e comunicao (GTI, 1996). OGTDEO, por sua vez, teria por objetivo definir um programa deaes e propor estratgias de combate discriminao no empregoe na ocupao, conforme os princpios da conveno 111,4 que

    fora assinada em 1968 (PNDH,1996). Com essas aes, pareciaque pela primeira vez na histria o negro deixaria de ser assuntoapenas do Ministrio da Cul tura, e passaria a integrar o rol de pre-ocupaes de outros Ministrios, principalmente do Ministriodo Trabalho.

    Ao mesmo tempo em que essas medidas foram tomadas noplano Executivo, o Legislativo, na figura da ento se nadora Be ne-dita da Silva e do senador Abdias do Nascimento, apresentava pro-jetos decisi vos para o desenvolvimento do debate no Brasil.5

    A senadora Benedita da Silva, em 1995, apresentou o Pro je-to de Lei n 14 que dispe sobre a instituio de cota m ni ma para

    os setores etno-raciais, socialmente discriminados, em ins ti tuiesde ensino superior. O artigo 1 diz:

    Fica instituda a cota mnima de 10% (dez por cento) de vagas existentespara os setores etnorraciais socialmente discriminados em instituiesde ensino superior pblicas e particulares, federal, estadual e municipal.(Benedita da Silva, 1997)

    A justificativa que a senadora apresentou a este Projeto deLei, que estipulava um nmero de vagas no representativo da po-pulao, foi a de que a garantia da cota mnima no resolveria oproblema estrutural, mas criaria um precedente para minimizar a

    injustia e a excluso social.O senador Abdias do Nascimento apresentou o Projeto deLei n 75, de 1997, que dispunha sobre medidas de ao com pensa-tria para implementao do princpio da isonomia social do negro.Os artigos primeiro e segundo deste Projeto de Lei dizem:

    Joaze Bernardino

    258

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    13/27

    Todos os rgos da administrao pblica direta e indireta, as empresaspblicas e as sociedades de economia mista so obrigadas a manter nosseus respectivos quadros de servidores, 20% (vinte por cento) de ho mensnegros e 20% (vinte por cento) de mulheres negras, em todos os posto detrabalho e direo e Toda empresa privada ou estabelecimento de ser-vio so obrigados a executar medidas de ao compensatria com vistasa atingir, no prazo de cinco anos, a participao de ao menos 20% (vintepor cento) de homens negros e 20% (vinte por cen to) de mulheres ne grasem todos os nveis de seu quadro de emprego e remunerao. (Projeto deLei, n 75)

    A apresentao destes projetos pelos dois parlamentares foium reflexo da percepo e discurso poltico do movimento negrobrasileiro desde pelo menos a criao do Movimento Negro Uni fi-cado MNU em 1978. A partir daquele momento as organi zaesnegras assumiram um discurso em que se buscava mobilizar a po-pulao negra contra a discriminao e a desigualdade racial(Andrews, 1998:302). Ao lado disso, celebrava-se a diferena apartir do discurso do orgulho negro. Essa nova postura do movi-mento negro brasileiro interpretada por vrios autores comouma sintonia entre este e o mo vimento negro internacional, so-bretudo os movimentos de independncia na frica Portuguesa eos movimentos dos direitos civis e o Black Power. A partir destasexperincias internacionais positivas, especialmente as polticasde ao afirmativa nos Estados Unidos, os afro-brasileiros jovenscomearam a pensar se seria possvel imitar suas conquistas no

    Brasil (ibidem:300-1).Assim, o seminrioMulticulturalismo e Racismo e a divulga-o do Plano Naci onal dos Direitos Humanos, no mbito do Go-verno Executivo, e a apresentao dos dois supracitados Projetosde Lei foram encarados como uma oportunidade nica para umadiscusso franca e pblica acerca da questo racial.

    Decisivo para que a discusso sobre aes afirmativas ga-nhasse espao no Brasil, como ficou claro no j referido seminrio,foi a experincia positiva destas polticas nos Estados Unidos.

    As aes afirmativas foram implementadas nos Estados Uni-dos na dcada de 60, aps a declarao dos Direitos Civis de 1964.O conceito de ao afirmativa, porm, de 1961, uma vez que j

    estava contida na Ordem Executiva de 6/3/ 61, assinada pelo pre si-dente Kennedy, que estabelecia a Comisso Presidencial sobreIgualdade no Emprego (Walters, 1995:130). Todavia, somentecom o presidente Lyndon Johnson que o drama humano do ne-gro americano foi atacado vigorosamente. Em 1965, na Howard

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    259

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    14/27

    University, o presidente Lyndon Johnson apresentou sua justi fi-

    cativa para se ir alm de uma poltica no discriminatria rumo auma poltica que de fato promovesse oportunidades para os ame ri-canos negros:

    Voc no pega uma pessoa que por anos esteve preso por correntes e a li-berta, trazendo-a ao ponto de par tida de uma corrida e, ento, diz. vocest livre para competir com todos os outros, e continua acreditandoque foi completamente justo (Lyndon John son apud Bowen & Bok,1998:6).

    Logo aps esse discurso, o Office of Federal Contract Com-pliance (OFCC) e a Equal Employment Opportunity Comission(EEOC) solicitaram s empresas que tinham contratos com o Go-

    verno Federal a elaborao de planos que inclussem metas e cro-nogramas para compor uma fora de trabalho que refletisse a pre-sena de negros em relevantes reas do mercado de trabalho (Bo-wen & Bok, 1998:6; Walters, 1995:130).

    Nos anos seguintes, essas diretrizes foram adotadas por uni-versidades que reconheceram que elas tinham um papel a de sem-penhar na educao de estudantes provenientes de minorias cul tu-rais e/ou polticas. Esses esforos em breve deram frutos: a por-centagem de estudantes negros matriculados nas universidadesclassificadas comoIvy League cresceu de 2.3 em 1967 para 6.3 em1976, enquanto a porcentagem em outras universidades prestigi a-das cresceu de 1.7 para 4.8 (Bowen & Bok, 1998:7). Consi deran-

    do um perodo de tempo maior, de 1960 a 1995, a porcentagem deestudantes negros graduados cresceu de 5,4% para 15,4%. Nestemesmo perodo, a porcentagem de negros matriculados em Fa cul-dades de Direito cresceu de aproximadamente 1% em1960 para7,5% em 1995. Igualmente, a porcentagem de estudantes negrosde medicina cresceu de 2,2% em 1964 para 8,1% em 1995 (ibi-dem:9-10).

    Da implantao das aes afirmativas nos Estados Unidosresultou, sobretudo, ganhos em termos de representatividade dosne gros em ocupaes influentes e lucrativas, tais como: exe cu ti-vos, gerentes e adminis tradores, mdicos, advogados, enge nhei-ros, representantes no Congresso (ibidem:10).

    luz da experincia norte-americana, no se tinha motivopara que as propostas de ao afirmativa no fossem cativantespara a militncia negra brasileira. Todavia, a diferena entre asduas naes residia no fato de que no momento de implementaodas aes afirmativas nos Estados Unidos tinha-se uma clara dis-

    Joaze Bernardino

    260

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    15/27

    tino de quem era negro e quem era branco, uma vez que l no ti-

    nha se constitudo a sada de emergncia do mulato como noBrasil.Aqui, ao contrrio, no temos como ponto de partida para a

    adoo de polticas de ao afirmativa uma clara distino entrebrancos e negros sobretudo quando est em questo a distri bu i-o de vantagens para os ltimos.

    Assim, tornam-se claras as diferenas de adoo de polticasde ao afirmativa no Brasil e nos Estados Unidos. Neste ltimo,as aes afirmativas no objetivavam construir nenhuma dife ren-a, ao contrrio, procuravam alcanar uma sociedade cega s corespor meio de medidas temporrias (Kymlicka, 1989:141; Taylor,1994:40). J no Brasil, o ponto de partida outro: parte-se de uma

    distino mope de quem seja negro para se chegar a uma distinoclara.A dificuldade classificatria no Brasil derivada da crena

    no mito da democracia racial, assim como da popularidade doideal de branqueamento reside no fato de que a classificao ra-cial no Brasil reconheceu socialmente o meio-termo, o hbrido,enquanto nos Estados Unidos, apesar de todas as atuais demandasdo movimento multicultural,6 se baseia no princpio monorracial.Isto significa dizer que a classificao racial brasileira depende docontexto de sua aplicao (Silva, 1994:70; Nogueira, 1985), ge-rando uma dissonncia entre a autoclassificao e a alterclassifi ca-o. Em termos concretos, so encontradas duas variveis que in-

    terferem significativamente tanto na auto quanto na alterclas sifi-cao dos indivduos: a escolaridade e o rendimento familiar.Assim, podemos dizer que uma verdade evidente que no s odinheiro embranquece, como, inversamente, a pobreza escurece(Silva, 1994). Essa ambigidade classificatria torna-se um ver da-deiro quebra-cabea, sobretudo quando se pretende desenvolverpolticas afirmativas para a populao negra no Brasil, uma vez queno temos um modelo baseado em fatores de hipodescendnciabiolgica que d origem a uma sociedade birracial. Diferen temen-te, o peso do contexto social tem dado origem a um sistema classi-ficatrio multirracial, em que se encontra um predomnio de au to-classificaes em torno das categorias branco, pardo, preto, mo re-

    no, claro, moreno-claro7

    (ibidem:72).Se no momento de definir vantagens para os brasileiros ne-gros, assim como num momento no conflituoso, como a rea liza-o de um questionrio, existem os supracitados problemas declassificao, estes problemas se dissipam quando se trata de dis tri-

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    261

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    16/27

    buir punies sim blicas ou de fato. Todos sabem a quem se di ri-

    gem os insultos negro safado, negro nojento, s podia ser ne-gro etc., assim como a polcia tambm sabe quem negro. Oli vei-ra, interpretando dados de pesquisa do Datafolha e do MNDH(Movimento Nacional dos Direitos Humanos) chega seguinteconcluso:

    [...] a cor/ raa da vtima uma das variveis determinantes da violnciapolicial, e o bitipo negro o alvo predileto e, ao que tudo indica, defcil identificao pela polcia. Fica evidente que os negros e seus des cen-dentes no Brasil so assassinados pela polcia trs vezes mais que os bran-cos, ou seja, se no plano biolgico, o da mistura racial, no fcil saberquem negro no Brasil, no plano das relaes raciais, ou sociolgico, aidentificao parece ser simples e, na maioria das vezes, fatal para os ne-gros [...] ela a categoria social de homicdio. (Oliveira, 1998:50)

    Assim, o que se tem percebido no Brasil que ter sangue ne-gro no distingue, uma vez que nos sa nacionalidade se funda naidia da miscigenao das raas. Da o fato de sempre se verificarum ndice alto de brasileiros se reconhecendo como afro des cen-dentes. Todavia, se assim o so no plano biolgico, no o so noplano social. Isto ocorre porque raa no um conceito biolgico,seno social. Logo, este conceito s faz sentido e encontra lugardentro de um sistema classificatrio racial, que no somenteopem, mas hierarquiza as raas.

    Esta confuso em torno da auto e da alterclassificao de-ve-se, em parte, ausncia de grupos sociais relativos a raa no Bra-sil. A partir disso teramos a chave para explicar tal ambigidadeque nos caracteriza, isto , entenderamos porque negativamentereconhecemos quem negro, mas positivamente no. Da ser ne-gro ou no, pode se tornar uma questo fluida, que depende docontexto.

    Ao Afirmativa e a Construo de um Grupo Social e daIdentidade Negra: Rediscutindo o Mito da Democracia Racial

    As discusses entre ativistas negros sobre as propostas deao afirmativa que se seguiram divulgao do Plano Nacional

    dos Direitos Humanos e dos Projetos de Leis da senadora Bene ditada Silva e do senador Abdias do Nascimento, estavam in trinseca-mente ligadas a um projeto de relaes raciais para o pas. De umamaneira sinttica podemos dizer que nesse projeto de relaes ra ci-ais estava contido (a) a construo de um grupo social calcado na

    Joaze Bernardino

    262

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    17/27

    idia de raa; (b) conseqentemente, a construo de uma iden ti-

    dade negra a ser compartilhada pela populao preta e parda bra si-leira, e no somente pelos militantes negros; (c) e, finalmente, asuperao do mito da democracia racial.

    O argumento a ser desenvolvido aqui no nega que as aesafirmativas pretendem corrigir problemas relacionados justiaredistributiva experimentados pela populao preta e parda, so-bretudo no que diz respeito desracializao da elite econmica eintelectual brasileira. Ao contrrio, as aes afirmativas so con ce-bidas como instrumentos eficazes de correo de problemas re la ti-vos redistribuio de bens econmicos e cargos de poder a curto emdio prazo. Sem estas polticas estaremos adiando a modificaoda composio da elite brasileira para as futuras geraes. Por ou-

    tro lado, defender a implantao de aes afirmativas tambm nosignifica que elas no devam ser conjugadas com polticas pblicasuniversalistas, tais como: ampliao do acesso da populao bra si-leira em geral educao pblica, assistncia mdica, ao mer cadode trabalho, habitao, enfim, ao desenvolvimento social.

    Todavia, o que quero enfatizar nesta parte deste artigo queas polticas de ao afirmativa so concebidas como um ins tru-mento de racializao positiva das rela es sociais no Brasil.Em outras palavras, as aes afirmativas so meios eficazes de cor-reo do reconhecimento distorcido, do preconceito e da estig ma-tizao, a saber, problemas relacionados no somente justia re-distributiva, mas justia simblica, onde o correto re co nheci-mento da dife rena desempenha um importante papel (Fraser,1997).

    Neste sentido, a adoo de polti cas pblicas racializadaspermite entrever a atribuio de um valor positivo classificaosocial negro, por exemplo. A partir da surge a oportunidade in di-ta para alm da militncia negra stricto sensu de um au to-re-conhecimento positivo em ser negro no Brasil, isto , cria-se aoportunidade de construir identidades negras no Brasil para almdos mili tantes.

    Ao reconhecermos que as polticas de ao afirmativa con tri-buem para a ampliao do nmero de pessoas que compartilham a

    identidade negra, estamos frente a um fenmeno que contraria asbases de nossa nacionalidade, que historicamente em nome domito da democracia racial esteve calcada em polticas oficiaisavessas a qualquer tipo de racializao. Nesse sentido, as aes afir-mativas so mecanismos que tornam relevantes a classificao ra-

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    263

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    18/27

    cial no dia-a-dia atravs da atribuio de valores positivos clas si-

    ficao racial negro.Seria, todavia, um engano pensar que o ineditismo da ado-o de polticas de ao afirmativa estaria na racializao das re la-es sociais no Brasil, posto que j esto racializadas atravs, porexemplo, da alterclassificao negativa (ou racismo) direcionada populao preta e parda. Porm, o que h de singular nes ta si tua-o que o Estado, mediante suas polticas, estaria criando nos in-divduos classificados como pretos e pardos um senso de per ten ci-mento ao grupo racial negro pela via positiva. Com isso queremosdizer que as aes afirmativas no so a causa do uso de categoriasraciais ou de cor no Brasil, mas a conseqncia de atitudes nega ti-vas direcionadas populao preta e parda, j que so polticas vol-

    tadas para a correo do racismo.Se as aes afirmativas no so a causa do uso de categorias

    raciais no Brasil estas categorias j so ut ilizadas, por um lado,com um sentido negativo para o preto e o pardo e, por outro lado,com um sentido positivo para o branco , elas podem, entretan-to, ser pensadas como integrante de um conjunto de fatores eacontecimentos que tendem a criar um grupo social calcado naidia de raa e, conseqentemente, identidades negras no Brasil.8

    Em 1999, em Braslia, analisei algumas entrevistas de po lti-cos/militantes negros que acompanhavam de perto as discussessobre as propostas de ao afirmativa (Bernardino, 1999). Essesatores polticos tinham atuado, ou ainda atuavam, no movimentonegro institucionalizado: partidos polticos e entidades do movi-mento negro brasileiro. Nessas entrevistas procurei perceber qualera o projeto de relaes raciais proposto e endossado por eles.

    As idias de grupo social e de identidade, que esto em cons-truo por ocasio da discusso sobre polticas afirmativas, socomplementares, o que significa dizer que no podemos discutiruma delas sem a outra. Essas noes so indispensveis para se falarde um reconhecimento positivo do que vem a ser uma pessoa ne-gra. Assim, somente a partir da constituio de um grupo social oude um senso de pertencimento a um grupo social que podemosfalar de identidade negra no pas. Todavia, tanto a construo de

    um grupo social quanto a construo de uma identidade no se dno vcuo, seno a partir do dilogo com o outro significativo.Assim, de suma importncia o reconhecimento (Taylor, 1994).No desenvolvimento dos conceitos de grupo social, identidade ereconhecimento utilizaremos trechos das entrevistas feitas com os

    Joaze Bernardino

    264

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    19/27

    militantes negros, que funcionaro como subsdios empricos para

    a discusso terica.Entendemos por grupo socialuma coletividade de pessoas di-ferenciada de pelo menos outro grupo em decorrncia de prticasculturais e modos de vida prprios. Os membros do grupo pos-suem uma especfica afinidade uns com os outros em decorrnciade experincias similares, que os fazem se reconhecer como mem-bros do grupo em questo (cf. Young, 1990:43).

    o grupo soci al que dar ao ator social um senso de iden ti-dade. Por identidade compreendemos tanto o entendimento quea pessoa tem acerca de quem ela quanto o entendimento que ooutro significativo tem sobre ela. Portanto, supomos que a cons-truo da identidade envolve um processo dialgico tanto com os

    prprios negros quanto com os brasileiros autodefinidos comobrancos. Assim, essa discusso sobre identidade passa pela ne ces si-dade de um correto reconhecimento. O dado que se a pessoa re-cebe um correto reconhecimento, ela ter a sua auto-estima intac-ta, assim como se identificar positivamente com aquilo que o ou-tro enxergou nela. Porm, se houver um reconhecimento dis tor-cido ou a ausncia deste, esta pessoa ter a sua auto-estima afetada,o que equivale a condenar algum a um modo de vida reduzido. nesse sentido que se considera o correto reconhecimento nocomo uma cortesia, mas como uma necessidade humana vital(Taylor, 1994:25).

    A formao de identidades sociais tem sido encarada como

    um processo fluido. exatamente essa fluidez que a noo de di-logo no nos deixa perder de vista. Posto que por dilogo en ten de-mos a linguagem verbal e a linguagem corporal, que podem ser ex-pressas tanto pelas prticas formalmente polticas quanto pelasprticas culturais, sobretudo a msica.9 Nesse sentido percebemosas identidades como produto da vida social, mesmo que os por ta-dores dessas identidades as sintam como natural. Este carter flui-do das identidades no significa que elas sejam criadas e in venta-das ao bel-prazer dos atores sociais.

    Embora possa haver interpretaes10 que fundamentam aexistncia de grupos e identidades raciais em fatores biolgicos:cor da pele, tipo de cabelo, formato do nariz, etc., defendemos que

    estes traos fsicos somente tm um significado dentro de umaideologia construda socialmente que diferencia as pessoas a partirdestes traos e, conseqentemente as hierarquiza. Assim, o que determinante para a formao de um grupo racial e de uma iden ti-dade racial no so os fatores biolgicos nem, tampouco, a ex pe-

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    265

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    20/27

    rincia da subordinao em si, mas a interpretao logo o sig ni-

    ficado da subordinao social (Gilroy, 2001:237). A formaode um grupo racial e de uma identidade a partir de uma histria co-mum, da discriminao, do insulto e da subalternidade com par-tilhada por alguns dos entrevistados. Eles dizem:

    Essa uma pergunta que o Movimento se faz constantemente. Quem negro? e complicadssimo dizer quem negro no Brasil! Mas, no ge ral,o que as pessoas fazem para dizer quem ne gro? Primeiro, afro descen-dente [...] mas, a, voc vai falar o seguinte: , mas todos os brasileirostm mistura, e tal; ento, acabam sendo afrodescendentes, tambm, n?Alm de afrodescendente a gente fala, olha, que tem a pigmentao depele mais escura e tal, no tem cabelo liso. Mas, isso, no quer dizer nada.Eu acho que a definio para o Movimento Negro e, at para mim mes-mo, eu acho que a definio t sendo muito mais no sentido, no con ce i tode poltica mesmo, de voc assumir que negro.Ou ainda,Eu ouo pessoas negras dizerem, muitas vezes, que jamais fo ram dis cri-minadas. E o que aconteceu, na verdade, no que elas no tenham sidodiscriminadas. que elas no abraam a discriminao como algo abran-gente. O que eu quero dizer? Eu poderia passar, agora, sair daqui e passarali na esquina, e ver uma pessoa negra ser discriminada e achar: no co-migo. Quer dizer, entender que no comigo; isto equivocado na ver-dade. Porque ningum discrimina uma pessoa negra porque acha queaquela pes soa negra no merece crdito; na verdade um descrdito quese atribui a todo um segmento, a toda uma coletividade. Quando se diz:isto coisa de preto, no coisa de um preto ou de outro preto, isto coisa dos pretos e das pretas [...]. Todas as pessoas negras deste pas j fo-

    ram discriminadas, o problema que as pessoas no abraam a dis cri mi-nao, elas entendem que isto algo que deva ser individualizado.Ento, bvio que, neste sentido, muitas pessoas podem no ter tido atraumtica oportunidade de serem discriminadas, se for nessa di menso.Agora, se for na outra dimenso, de que a discriminao algo que co lo-ca todos os negros no mesmo barco, a a coisa diferente.

    Portanto, o que fundamental para a construo do sen ti-mento de pertencimento a um grupo racial e de uma identidade ra-cial no so simples mente fatores fsico-biolgicos, mas uma di-menso sociopoltica, que tem como ponto de partida o reconhe ci-mento da discriminao no como algo pessoal, mas coletivo. A par-tir da reconstruo de uma histria, que tem como ponto em co-

    mum a subordinao e o reconhecimento dis torcido efetuado pelooutro, se teria, segundo a expectativa dos entrevistados, a pos si bili-dade para a superao do dficit de identidade, que tem ca rac te riza-do os brasileiros de cor preta ou parda. Estes poderiam, aps im ple-mentao das aes afirmativas, se identificar como negros.

    Joaze Bernardino

    266

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    21/27

    Esse reconhecimento distorcido, projetado sobre os bra si lei-

    ros de cor preta ou parda, tem sido historicamente absorvido poreles mesmos. Evidncia maior da absoro dessa imagem negativa a tentativa de no se identificar como negro, procurando, sem prequando possvel, eufemismos de cor ou, at mesmo, se aproximardo tipo esttico branco. aqui que ironicamente deparamos compretos e pardos, estigmatizando os demais pretos e pardos mais es-curos.

    A histria de vida dos entrevistados marcada por esse re co-nhecimento distorcido. Seja um reconhecimento distorcido efe tu-ado pela polcia, em que se diz que a cor da pessoa suspeita; pelavizinha, que identifica a esposa com a empregada domstica; pelopatro, que humilha; pelos colegas de trabalho que passam o ex pe-

    diente fazendo piadas; pela mdia, que apresenta o negro como cri-minoso ou como subalterno. Essas experincias negati vas no sotomadas como casos isolados que somente alguns privilegiadostiveram a traumtica oportunidade de vivenciar, mas como ca sosilustrativos de um tipo de imagem projetado sobre a populao decor preta e parda.

    Essas experincias nega tivas via de regra operam como algoque enfatiza o local que est prescrito para a populao brasileirade cor preta e parda. Foi isso que, por longos anos, os livros di d ti-cos e os programas de televiso representaram:

    [...] antes se fazia livros com imagens estereotipadas do negro [...]. Quais

    eram as imagens? Quando o negro aparecia, ele nunca tinha famlia. Ouele era o mais bagunceiro ou estava sempre descalo ou era a empregadadomstica. Essas imagens eram reforadas pela televiso: [. ..] a t e le vi-so me passou a idia de que o negro ou era o picareta ou era bandido ou,no mximo, motorista de empregada domstica. Mas eu ficava in dig na-do com aquilo. Eu falava: no acredito que a gente s isso!

    Atravs desses tpicos exemplos do contexto racial brasile iro,visualizamos uma clara identificao negativa de quem de nomi-nado negro no Brasil. Em contrapartida, esses mesmos exemplosrevelam uma enorme dificuldade para uma identificao positivade quem negro. Nesse sentido, as aes afirmativas so per cebi-das no somente como um remdio capaz de corrigir aspectos eco-

    nmicos das relaes raciais brasileiras, mas como um mecanismocapaz de corrigir o reconhecimento distorcido e a estigmatizaoque tm sido projetados sobre a populao de cor preta e parda.Em outras palavras, as aes afirmativas apresentam-se como ca-pazes de converter a conotao negativa da cor preta e parda em

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    267

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    22/27

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    23/27

    econmica, significando a criao de um grupo social baseado na

    idia de raa e, tambm a revalorizao da identidade negra noBrasil, a saber, a criao da possibilidade de uma identificao po-sitiva de quem negro, algo que poderia ser compartilhado pelosbrasileiros de cor preta e parda que esto, por ora, ao largo do mo-vimento negro.

    Esta modificao simblica do que vem a ser negro no podeser encarada como de segunda importncia, como se justi a socialem sociedades democrticas se referisse somente a aspectos re dis-tributivos (Bernardino, 2000).

    A noo de justia social que vem se desenvolvendo con tem-poraneamente (Taylor, 1994; Young, 1990; H abermas; 1994;Honneth, 1996), tem dado ateno a uma correta considerao da

    diferena no porque se queira criar diferenas, mas simplesmenteporque elas j existem e, tambm, porque as pessoas se enxergamcomo diferentes.

    Devido s interpretaes hegemnicas (mito da democraciaracial e o ideal de branqueamento), raramente reconhecemos as di-ferenas relativas raa no nosso pas. Entretanto, isso no quer di-zer que elas no existam. Como procuramos demonstrar, todos sa-bemos quem so os negros no momento da distribuio de pu ni-es (identificao nega tiva), embora tenhamos dificuldade emidentificar quem so os negros no momento dos benefcios sociais(identificao positiva). Assim, as aes afirmativas para a po pu la-o negra, conforme a expectativa dos militantes negros, atuariam

    como remdio frente s dificuldades de um reconhecimento po si-tivo da diferena racial no Brasil.As dificuldades de se implementar as aes afirmativas pas-

    sam pelo fato de que tanto o mito da democracia racial quanto oideal de embraquecimento, fortemente estabelecidos no nossosenso comum, criam barreiras para a racializao das relaes so ci-ais. Essas barreiras frente racializao significam, por um lado, anegao do racismo como um problema brasileiro, crena que foifalseada pelo j clssico trabalho de Hasenbalg (1979:197-222).Por outro lado, significam que muitas vezes a racializao con-fundida com racismo, mesmo se proposta (como o episdio dasaes afirmativas nos permite ver) por negros (Guimares, 1999).

    Todavia, como tm demonstrado os nossos indicadores so ci-ais (Andrews, 1992), a recusa em pensar na raa que tem deixadodistante a possibilidade de justia social, tanto em termos dis tri bu-tivos quanto em termos simblicos, para os negros no Brasil.Enfim, como sugeriu o presidente Lyndon Jonhson, responsvel

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    269

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    24/27

    pela implementao das aes afirmativas nos Estados Unidos, em

    1965, Voc no pega uma pessoa que por anos esteve preso porcorrentes e a liberta, trazendo-a ao ponto de partida de uma cor ri-da e, ento, diz. voc est livre para competir com todos os ou-tros, e continua acreditando que foi completamente justo. O queo mito da democracia racial tem fe ito sustentado uma atitude deneutralidade racial no momento da elaborao de polticas p bli-cas no Brasil, fazendo pensar que com isso estamos construindouma nao justa.

    Para a realizao de uma sociedade justa, teremos de cons-truir um Estado que contemple a existncia de negros no Brasil, as-pecto esse no observado pela nao que se ergueu atravs do mitoda democracia racial. Esse um dos significados das propostas de

    ao afirmativa e do projeto de relaes raciais que as acompanha.

    Notas

    1. A regra da hipodescendncia definida por Vermeulen como umaficoda identi fi-cao monorracial que postula que uma pessoa racialmente mista pertence ao gruporacial de me nor status social. Assim, n os EUA, as pessoas com alguma quantidade desangue africano so classificadas como negras (cf. Vermeulen, 2000).

    2. Algumas universidades americanas pblicas e privadas que desenvolvem polticas deao afirmativa baseadas na raa levam em considerao outros fatores como: pontu-ao do SAT (Scholastic Achievement Test), notas do high school, recomendaes, qua-lidades pessoais, talento atltico, status socioeconmico, origem geogrfica, po tenci-

    al de liderana e composio da classe como um todo (cf. Bowen & Bok, 1998: xxxv)3. Antes do presidente Fernando Henrique Car doso,parece-me (enfatizo esta palavra)

    que a nica alta autoridade a reconhecer o drama humano da populao negra foi opresidente Jnio Quadros, em 1961. Esta surpreendente descoberta ocorreu-meatravs da leitura de Carl Degler, quando este diz: como alguns brasileiros negrosapontam, Jnio Quadros, presidente do Brasil em 1961, foi a primeira alta autori da-de do pas a admitir as dificuldades do negro. Sousa Dantas cita-o tendo dito: Desejooferecer ao negro brasileiro as condies que nu nca teve, as condies de uma in te-grao social e econmica efetiva, para lhe dar, finalmente, o papel que seu por dire-ito, tendo em mente sua contribuio para a nacionalidade (Degler, 1976:277).

    4. A conveno 111, no artigo 2, estabelece seus objetivos, assim como o com pro mis sodo pas que a assinar: Qualquer membro para o qual a presente Conveno se en-contre em vigor compromete-se a formular e aplicar umapoltica nacional que tenha

    por fim promover, por mtodos adequados s circunstncias e aos usos nacionais, aigualdade de oportunidades e de tratamento em matria de emprego e profisso com

    o objetivo de eliminar toda discriminao nessa matria (Conveno 111, art. 2).O GTD EO entende que essas polticas nacionais assumiriam a forma de aes afir-mativas (cf.Brasil, Gnero e Raa, 1997).

    Joaze Bernardino

    270

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    25/27

    5. Aps este primeiro momento de discusso e apresentao de propostas de ao afir-mativa, o debate avanou bastante. Conseqentemente, outros projetos foram apre-sentados e algumas polticas foram adotadas. O professor Jos Jorge Carvalho apre-senta algumas aes afirmativas em andamento no Brasil. So elas: 1) o Ministrio daJustia, o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio e o Supremo Tribunal Federalaprovaram portaria em que prev cotas para afrodescendentes e concedem prefe rn-cia a empresas prestadoras de servio que comprovem a adoo de ao afirmativa; 2)o Ministrio da Educao criou um programa de implantao de cursinhos pre para-trios para o vestibular para jovens carente, denominado Diversidade na Un i versida-de; 3) a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadualdo Norte Fluminense (UENF) reservam 50% de suas vagas para alunos provenientesde escolas pblicas e 40% de negros; 4) o M inistrio das Relaes Exteriores con ce-der 20 bolsas-prmio de vocao para a diplomacia para que candidatos afro des-cendentes se preparem para o concurso do Instituto Rio Branco (cf. Carvalho & Se-gato, 2002:18-21).

    6. Vermeulen descreve a existncia e crescimento desse movimento nos Estados Uni-dos, que tem como principal bandeira a crtica ao modelo de classificao monorra-cial e a demanda de que a categoria multicultural seja includa no censo nor-te-americano (cf. Vermeulen, 2000:15-18).

    7. Nelson do Valle Silva, em anlise posterior das 135 auto-atribuies da histricaPNAD/1976, percebeu que 97% se concentravam nas categorias censitrias (bran-co, pardo, preto, amarela) e nas categorias moreno, claro e moreno-claro. D iz ele: ascategorias censitrias cobriram cerca de 57% das respostas espontneas, que, soma-das a outras trs respostas tradicionais tambm freqentes a saber, morena (34%),clara (3%) e morena-clara (3%) do cerca de 97% d as respostas espontneas (Sil-va, 1994:72).

    8. Entre os fatores que contribuem para a criao da identidade negra no Brasil po de-

    mos nos referir msica, ao Movimento dos Direitos Civis americano, ao Black Po-wer, ao processo de independncia das colnias portuguesas na frica e ao mo vi-mento negro internacional (cf. Gilroy, 2000; Andrews, 1998; H anchard, 1994).

    9. Exemplo da importncia da msica para a criao de identidades negras transa tln ti-ca pode ser encontrado no excelente livro de Gilroy (2001).

    10. Paul Gilroy, por exemplo, refere-se a uma perspectiva nomeada de essencialista queaborda o tema da subordinao racial dos negros norte-americano a partir de umaconcepo de grupo baseada entre outros fatores na idia de raa biolgica (cf. Gil-roy, 2001).

    Referncias Bibliogrficas

    ANDERSON, Benedict (1983). Imagined Communities: Reflexion on the Origin andSpread of Nationalism. London, Verso.

    AND REWS, Georg Reid (1992). Desigualdade Racial no Brasil e nos Estados Unidos:

    Uma Comparao Esta tsti ca.Estudos Afro-Asiticos, n 22, pp. 47-83.

    (1998).Negros e Brancos em So Paulo (1888-1988). So Carlos, EdUSC.

    Ao Afirmativa e a Rediscusso do Mit o da D emocracia Racial no Brasil

    271

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    26/27

    AZEVEDO , Clia Maria Marinho de (1996). O Abolicionismo Transatlntico e a Me-

    mria do Paraso Racial Brasileiro.Estudos Afro-Asiticos, n 30, pp. 151-62.

    BERNARDIN O, Joaze (2000). Ao Afirmativa no Brasil: A Constru o de uma Iden-tidade Ne gra?.In Caetano E. P. Ara jo et alii (orgs.), Poltica e Valores. Braslia, Ed.da UnB.

    (1999).Ao Afirmativa no Brasil: A Construo de uma Identidade Negra?. Bras-lia. Dissertao de Mestrado em Sociologia, Universidade de Braslia.

    BOWEN, William G. & BOK, Derek (1998). The Shape of the River: Long-term Con se-quences of Considering Race in College and University Admissions. New Jersey, Prince-ton University Press.

    CARVALHO , Jos Jorge & SEGATO , Rita Laura (2002). Uma Proposta de Cotas e Ou-vidoria para a Universidade de Braslia. Braslia, UnB, mimeo.

    CON VENO N 111/Discriminao no Emprego e Ocupao. (1997). Braslia, Mi-nistrio do Trabalho/Assessoria Internacional.

    DEGLER, Carl (1976).Nem Preto, Nem Branco: Escravido e Relaes Raciais no Brasil enos Estados Uni dos. Rio de Janeiro, Editorial Labor do Livro.

    FERNANDES, Florestan (1972). O Negro no Mundo do Branco. So Paulo, Difuso Eu-ropia do Livro.

    (1965).A Integrao do Negro na Sociedade de Classes. So Paulo, Dominus Edi to-ra/Ed. USP (vol. I).

    FREYRE, Gilberto (1992). Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Record.

    GILROY, Paul (2001). O Atlntico Negro. So Paulo/Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM.

    GTI/Populao Negra (1996). Braslia, Ministrio da Justia/Secretaria de Direitos daCidadania.

    GUIMARES, Antnio Srgio Alfredo (1999). Racismo e Anti-Racismo no Brasil. SoPaulo, Editora 34.

    HABERMAS, Jrgen (1994). Struggles for Recognition in the Democratic C ons titu ti-onal Sta te.In A. Gutmann (ed.),Multiculturalism. New Jersey, Princeton Uni ver-sity Press.

    HANCH ARD, Michael (1993). Orpheus and Power: The Movimento Negro of Rio de Ja-neiro and So Paulo, Brazil 1945-1988. Princeton, Princeton University Press.

    HASENBALG, Carlos (1997). O Contexto das Desigualdades Ra cia is.In J. Souza(org.),Multiculturalismo e Racismo: Uma Comparao Brasil-Estados Unidos. Bra s-lia, Paralelo 15.

    (1995). Entre o Mit o e os Fatos: Racismo e Relaes Raciais n o Bra sil.DadosRevista de Cincias Sociais, vol. 38, n 2, pp. 355-74.(1979).Discriminao e Desigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro, EdiesGraal.

    HONNETH, Axel (1996). The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social

    Conflicts. Cambridge, MA, The MIT Press.KYMLICKA, Will (1989).Liberalism, Community and Culture. O xford, Oxford Uni-

    versity Press.

    MARSHALL, Thomas Humphrey (1967). Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Ja ne-iro, Zahar.

    Joaze Bernardino

    272

    Revista Estudos Afro-Asiticos1 Reviso: 04.10.2002

    2 Reviso: 15.10.2002Cliente: Beth Cobra Produo: Textos & Formas

  • 8/8/2019 Ao Afirmativa e a Rediscusso do mito da democracia racial brasileira

    27/27