abre especial prisões final

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rafael godoi fabio mallart

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A produtividade da priso: vidas matveis, morte em vida e morte de fatoFbio Mallart e Rafael Godoi

13 de agosto de 2015, 23h09, municpio de Barueri, regio metropolitana de So Paulo. Trs homens encapuzados chegam em um carro prata. Com as armas em punho, rendem os clientes de um bar cerca de 10 homens e os direcionam para o fundo do estabelecimento, fazendo com que estes coloquem as mos sobre a cabea. Em seguida, ordenam todos os corpos em fila indiana. Os encapuzados, ento, partem para a seleo daqueles que sero executados. Em primeiro lugar, perguntam se algum possui drogas, questionamento respondido por todos negativamente. Em um segundo momento, questionam se algum dos ali presentes possui passagem, critrio decisivo na gesto da vida e da morte. Aps um breve silncio, dois rapazes respondem positivamente, entre eles, J.P., que possui antecedentes criminais por roubo e tentativa de homicdio. Os dois so prontamente destacados do resto do grupo e, em seguida, friamente executados. Os matadores, com calma e tranquilidade, saem do bar atirando e vo embora.Tal episdio no pode ser qualificado como um fato isolado, o procedimento tpico. Segundo relatrio elaborado pelo International Human Rights Clinic, de Harvard, em parceria com a ONG Justia Global divulgado em 2011 um nmero expressivo de vtimas com antecedentes criminais figura entre as dezenas e dezenas de mortos em chacinas e em supostos confrontos com a fora policial, que se espalharam pelo estado de So Paulo, em maio de 2006, durante os chamados ataques do PCC. O relatrio revela que, em alguns casos, momentos antes da morte ou do desaparecimento, a ficha criminal da vtima foi consultada por policiais, via rdio; revela ainda que, na seleo dos possveis mortos, os executores tambm se valiam de outros indcios de passagem, principalmente as tpicas tatuagens monocromticas produzidas nas prises.Para os matadores encapuzados a passagem pelo sistema de justia criminal, e mais especificamente, pelo sistema carcerrio, opera como um critrio privilegiado de seleo, linha demarcatria entre aqueles que devem morrer e aqueles que podem viver. O mesmo critrio, e no se trata de mera coincidncia, opera nas mortes provocadas por policiais militares em servio. Nesse ponto, o Massacre do Carandiru emblemtico. A execuo de ao menos 111 pessoas rendidas e desarmadas na extinta Casa de Deteno de So Paulo foi por muito tempo e em grande medida ainda vista por autoridades do governo e da justia como decorrncia do estrito cumprimento do dever legal. Como mostram os estudos recm-publicados de Marta Machado e Mara Machado, da Faculdade de Direito da Fundao Getlio Vargas, foi com base nesse entendimento que, em 2006, o Tribunal de Justia de So Paulo reformou a deciso do Tribunal do Jri que, em 2001, havia condenado o Coronel Ubiratan Guimares, comandante direto da operao, a mais de 600 anos de priso. Ao identificar contradies na deciso dos jurados, ao invs de anular e remarcar o julgamento, os desembargadores optaram pela absolvio do ru, numa manobra jurdica, no mnimo, heterodoxa. Ainda segundo as pesquisadoras, mesmo aps os julgamentos de 2013 e 2014, durante os quais dezenas de policiais militares foram condenados em primeira instncia, mais de vinte anos depois, o processo do Carandiru permanece em aberto: a responsabilidade das autoridades administrativas e judiciais diretamente implicadas no caso por ao ou omisso nunca foi apurada; as medidas de reparao aos familiares das vtimas so irrisrias; por sua vez, os rgos oficiais de segurana pblica e administrao penitenciria sequer reconhecem que no dia 02 de outubro de 1992 houve um massacre. bem verdade que, depois de tal acontecimento, policiais j no entram nas prises atirando a esmo. Porm, ainda hoje, a lgica perversa que autoriza e promove o assassinato de pessoas qualificadas como bandidos permanece em vigor nas ruas da cidade. No pode ser outra a constatao diante das imagens de policiais abordando suspeitos, executando-os e, em seguida, forjando a cena de um confronto, como ocorrido em novembro de 2012, no Campo Limpo, e em setembro de 2015, no Butant. O uso deliberado, excessivo e desproporcional de fora letal caracteriza o modus operandi da polcia militar, como mostram as cenas exibidas ao vivo, em junho de 2015, na Rede Record e na TV Bandeirantes, de um policial desferindo seguidos disparos em dois suspeitos rendidos e desarmados, cados ao cho, aps perseguio. Ressalta-se ainda as ressonncias que tal modo de operao encontra nos veculos de comunicao da grande imprensa mas tambm em grande parte da populao cujas execues so justificadas pela lgica do tinha passagem ou do quem no reagiu est vivo. So mltiplos os discursos que fortalecem a viso do bandido e, em particular, do ex-presidirio, como figuras preferencialmente matveis. Na grande imprensa, quando se noticia que a polcia matou um suspeito, logo se justifica o ato evocando os antecedentes criminais do morto; ou, pelo contrrio, mas com o mesmo efeito, quando se noticia que a polcia matou um inocente, um trabalhador, condena-se o fato dela no ter matado um bandido. Nesse sentido, constata-se - em carne e sangue - uma das dimenses de produtividade do dispositivo carcerrio: a produo de vidas matveis. Fora da priso, mas sem se desvincular dela, a gesto da vida e da morte pode se efetuar em questo de segundos. Dentro das muralhas, por sua vez, essa mesma gesto se d de forma lenta, dolorosa e gradual. Ritmos e intensidades variados, mas que tm como ponto de conexo a passagem pelo sistema. Do incio ao fim, a trajetria do sujeito pelas instncias da lei e da ordem se constitui no limiar entre a vida e a morte, a comear pelo ato da priso, no qual as arbitrariedades e as torturas so constitutivas do modo de operao policial como demonstra pesquisa do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania em parceria com a Pastoral Carcerria, divulgada em 2012. Enquanto aguardam julgamento, os presos provisrios so confinados por meses, s vezes anos, nas celas mais superlotadas do sistema: no Centro de Deteno Provisria (CDP) de Pinheiros II, por exemplo, em outubro de 2015, segundo dados da prpria Secretaria de Administrao Penitenciria (SAP), so 1.575 presos para 517 vagas. Muitos deles, quando condenados, j tero cumprido as suas penas. H outros que aps a condenao recebero penas alternativas e, portanto, no restritivas de liberdade, o que aponta para uma evidente incoerncia processual penal. Durante o perodo de encarceramento, marcado pela superlotao, o Estado no fornece vesturio completo, itens bsicos de higiene pessoal e nem suficientes produtos de limpeza, segundo dados extrados da Secretaria de Administrao Penitenciria pela Defensoria Pblica de So Paulo. O cio praticamente obrigatrio, uma vez que o acesso ao estudo e ao trabalho muito restrito. Quando h trabalho, visto pela administrao prisional como um prmio, este se caracteriza pelo salrio irrisrio, pelas condies insalubres e por atividades mecnicas como, por exemplo, a confeco de bolas, que no oferecem horizonte aps as grades. Dados compilados pelo Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN) mostram que, em dezembro de 2012, menos de 25% da populao carcerria do estado de So Paulo estava envolvida em atividades de trabalho.Em So Paulo, ademais, a alocao preferencial das penitencirias em regies distantes no interior do estado, o chamado fundo, dificulta a manuteno de vnculos entre os presos e seus familiares, geralmente habitantes de reas pobres e perifricas dos maiores centros urbanos. Vale salientar que os caminhes que transportam os presos, os bondes, por exemplo, para audincias judiciais, so verdadeiras mquinas de tortura. So comuns os relatos de que tais veculos so estacionados, por horas e horas, debaixo do sol, procedimento conhecido como micro-ondas devido s altas temperaturas. Soma-se a isso as narrativas de que bombas de gs lacrimognio so lanadas junto aos presos, em trajetos que podem durar cinco, sete e at dez horas de viagem. Todos e cada um desses fatores concorrem para fazer da priso um espao de morte em vida.A produtividade da priso: vida matvel, morte em vida e morte de fato. No se pode olvidar que o ambiente prisional adoece o corpo e a alma. A sade de ningum passa ilesa pelas pssimas condies de alimentao, pelo frio ou calor extremo que emana do concreto conforme a estao, pelos anos a fio dormindo no cho. Alm disso, contgios de tuberculose, doenas de pele, hepatite, etc. so frequentes e especialmente agudos numa priso sempre superlotada. O quadro se complica ainda mais quando num espao que leva ao adoecimento, a assistncia mdica praticamente inexistente. Como dizem os presos: se voc tem dor de barriga, te do paracetamol, se voc t vomitando, te do paracetamol, pra tudo te do paracetamol. A escassez de mdicos, enfermeiros, remdios e leitos adequados provoca em quem adoece na priso um efeito que quase o do homicdio doloso, e quando se considera as dimenses do sistema penitencirio, esse homicdio assume as propores de um verdadeiro massacre, ainda que de forma mais lenta, gradual e imperceptvel. No h uma unidade, um raio sequer no sistema prisional nos dias que correm em que no exista um ou (muitos) doentes graves aguardando h meses por um exame, uma consulta, um remdio, um mdico, um tratamento, uma cirurgia. A inexistncia de assistncia mdica adequada no interior de uma priso que adoece transforma enfermidades leves em doenas incurveis, sintomas em quadros irreversveis, esperas em bitos. verdade que o quadro do sistema pblico de sade mais ou menos o mesmo para a populao pobre e em liberdade, porm, no ambiente prisional, o descaso com a sade tem consequncias ainda mais mortferas, seja pela precariedade das condies de existncia, seja pela impossibilidade de o preso buscar autonomamente alternativas, ficando merc de um agente de segurana penitenciria ou de um diretor de disciplina. Ademais, pesam tambm as enfermidades da alma, que derivam da indiferena da justia, da violncia cotidiana, da ausncia da famlia e de outras mazelas amplamente disseminadas e que, muitas vezes, desembocam no suicdio morte que, na priso, no pode deixar de ser tambm provocada. So essas condies degradantes que muitos presos e presas mobilizam para explicar o consumo de plulas psiquitricas, se referindo ao fato de que comearam a ingerir tais substncias porque, entre outros sintomas, no conseguem dormir, no conseguem comer, ficam ansiosos. No sistema prisional, sintomas decorrentes da prpria experincia do encarceramento em massa so objeto de medicalizao. No limite, as condies mortferas do sistema produzem efeitos que so geridos via plulas psiquitricas, lembrando que h unidades em que sequer h um psiquiatra. Nesse sentido, os medicamentos se constituem como mecanismo de administrao de corpos e mentes, mas tambm como tcnica de gesto da populao, gesto do espao superlotado. Curioso, pois se em muitas unidades nota-se a ausncia de medicamentos para diversas enfermidades, nesses mesmos espaos institucionais no se constata, na mesma proporo, a ausncia de plulas psiquitricas.Eis o circuito perverso onde se cogita inserir ainda mais cedo amplas parcelas da juventude negra, pobre e perifrica, ao se propor a reduo da maioridade penal, ou mesmo quando se anuncia o fechamento de inmeras escolas pblicas paralelamente expanso de unidades prisionais. Com efeito, o encarceramento vem se constituindo nos ltimos anos no s como uma das polticas pblicas mais constantes e longevas de nossos tempos, mas tambm como ponto de convergncia e indistino entre as foras poltico-partidrias que se digladiam em outras esferas do poder. Eis o aparato de produo de dor e sofrimento que legisladores e interesses escusos pretendem converter em fonte de lucro privado, com propostas de privatizao e de parceria pblico-privada (PPP). Eis o produto de cada deciso e trmite de um sistema de justia nobilirquico, mais ocupado com a elevao de seus rendimentos do que com a observncia da lei.A reverso desse estado de coisas se mostra to difcil quanto necessria. Outras formas de promover segurana, resolver conflitos e fazer justia devem ser promovidas e, no limite, construdas. Mesmo nos Estados Unidos, paradigma do encarceramento massivo, as estratgias da guerra ao crime e guerra s drogas vm sendo colocadas em dvida, como se evidencia em declaraes recentes do presidente Barack Obama. No Brasil, movimentos sociais e foras da sociedade civil organizada j se articulam nesse sentido. Em 2014, entidades como a Pastoral Carcerria, a Pastoral da Juventude, a Associao Nacional dos Defensores Pblicos Federais (ANADEF) e movimentos sociais como as Mes de Maio e a Rede 02 de Outubro, entre outros coletivos, lanaram a Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Nesse documento figura um conjunto de propostas, de aplicao imediata, que visa frear o processo inflacionrio do sistema prisional, bem como deter o crculo vicioso que articula priso e letalidade. Dentre as propostas, destaca-se: 1) a suspenso de qualquer verba destinada construo de novas unidades prisionais; 2) a construo de um plano de reduo da populao prisional e dos danos causados pela priso, que implique igualmente os poderes executivo, legislativo e judicirio; 3) a mxima limitao da aplicao de prises cautelares; 4) a descriminalizao do uso e comrcio de drogas; 5) a abertura dos crceres, das esferas de governo e dos rgos de segurana e justia ao monitoramento externo, independente e popular; e 6) a desmilitarizao das polcias e da gesto pblica. Em tempos de incerteza, de instabilidade institucional e de investidas contra o povo pobre, negro e perifrico, a sociedade civil organizada, as foras polticas progressistas e, sobretudo, os grupos sociais mais atingidos pelo encarceramento j no podem se limitar lgica eleitoreira do mal menor. Antes, se faz necessrio recusar o intolervel e, ao mesmo tempo, afirmar um novo horizonte de possibilidades. Fbio Mallart doutorando em Sociologia pela USP e autor do livro Cadeias dominadas: a Fundao CASA, suas dinmicas e as trajetrias de jovens internos. (Terceiro Nome/Fapesp, 2014). Rafael Godoi ps-doutorando em Sociologia pela USP. Ambos so agentes da Pastoral Carcerria e integrantes do Projeto Temtico Fapesp (2014-2018) - A gesto do conflito na produo da cidade contempornea: a experincia paulista.

IHRC-INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS CLINIC; JUSTIA GLOBAL. So Paulo sob achaque: corrupo, crime organizado e violncia institucional em maio de 2006. So Paulo: Human Rights Program at Harward School e Justia Global Brasil, 2011.

MACHADO, Mara R.; MACHADO, Marta R. A. (Orgs) Carandiru no coisa do passado: um balano sobre os processos, as instituies e as narrativas 23 anos aps o massacre. So Paulo: FGV, 2015.

ITTC Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; Pastoral Carcerria. Tecer justia: presas e presos provisrios da cidade de So Paulo. So Paulo: Open Society/Paulus, 2012.

Agenda completa disponvel em: http://carceraria.org.br/agenda-pelo-desencarceramento.html

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