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Abraão Abulafia e a Doutrina da Kabalah Profética ou Do Misticismo Prático A partir do ano de 1.200, os cabalistas começaram a surgir como um grupo místico à parte, o qual, embora numericamente ainda inexpressivo, obtivera já destaques consideráveis em muitas partes da Espanha e no Sul da França. As principais tendências do novo movimento são claramente definidas, e o estudioso pode sem dificuldade traçar seu desenvolvimento, desde os primeiros momentos por volta de 1.200 até a Idade de Ouro da Kabalah na Espanha, ao final do século XIII e inicio do XIV. Uma extensa literatura preservou o essencial do pensamento e das personalidades que dominavam o novo misticismo, o qual durante cinco ou seis gerações deveria exercer uma influência cada vez mais ampla sobre a vida judaica. Alguns das cabeças exponenciais se apresentam apenas levemente esboçados, e não há dados suficientes para obter um retrato claro de cada um deles; mas a pesquisa dos últimos trinta anos trouxe uma espantosa colheita de fatos reveladores. Tampouco deve-se esquecer que cada uma das figuras principais oferece uma fisionomia espiritual tão claramente definida, que está excluída a possibilidade de haver uma vaga idéia, capaz de levar à confusão de identidades. As mesmas linhas nítidas de demarcação aplicam-se também às tendências, cada uma das quais pode ser distinguida tanto pela terminologia quanto, pela nuança própria a seu pensamento místico. A regra era ensinar oralmente e através de implicações de preferência a asserções. As numerosas alusões encontradas neste campo da literatura, tais como "não posso dizer mais", "já o expliquei oralmente", isto é só para os iniciados no saber secreto, não representam meros vôos de retórica. Esta incerteza é a verdadeira razão pela qual, muitas passagens permaneceram obscuras até hoje. Em muitos casos, cochichos e insinuações esotéricas eram o único meio de transmissão. Não é de surpreender, portanto, que tais métodos conduzissem a inovações, algumas delas espantosas, e que surgissem divergências entre as várias escolas. Mesmo o discípulo mais dedicado, que se ativesse rigorosamente à tradição de seu mestre, encontraria à sua frente um vasto campo para interpretações e desenvolvimentos, se possuísse a inclinação para tanto. Tampouco devemos esquecer que nem sempre a fonte original de uma tal "tradição" era um mero mortal. A iluminação sobrenatural também desempenha seu papel na Kabalah, e se fizeram inovações não só com base em novas interpretações de materiais antigos, mas como resultado de uma inspiração ou revelação momentânea, ou mesmo de um sonho. Uma frase de Isaac Hacohen de Soria (por volta de 1270) ilustra as duas fontes gêmeas que os Cabalistas reconheciam como autorizadas: "Em nossa geração há poucos, aqui e ali, que receberam a tradição dos antigos ou que receberam a graça da Inspiração divina". Tradição e intuição estão acopladas, e isto explica por que a Kabalah podia ser profundamente conservadora e intensamente revolucionária. Mesmo os "tradicionalistas" não recuam diante de inovações, às vezes de largo alcance, que são confiantemente apresentadas como

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  • Abrao Abulafia e a

    Doutrina da Kabalah Proftica ou

    Do Misticismo Prtico

    A partir do ano de 1.200, os cabalistas comearam a surgir como um grupo mstico parte, o qual, embora numericamente ainda inexpressivo, obtivera j destaques considerveis em muitas partes da Espanha e no Sul da Frana. As principais tendncias do novo movimento so claramente definidas, e o estudioso pode sem dificuldade traar seu desenvolvimento, desde os primeiros momentos por volta de 1.200 at a Idade de Ouro da Kabalah na Espanha, ao final do sculo XIII e inicio do XIV. Uma extensa literatura preservou o essencial do pensamento e das personalidades que dominavam o novo misticismo, o qual durante cinco ou seis geraes deveria exercer uma influncia cada vez mais ampla sobre a vida judaica. Alguns das cabeas exponenciais se apresentam apenas levemente esboados, e no h dados suficientes para obter um retrato claro de cada um deles; mas a pesquisa dos ltimos trinta anos trouxe uma espantosa colheita de fatos reveladores. Tampouco deve-se esquecer que cada uma das figuras principais oferece uma fisionomia espiritual to claramente definida, que est excluda a possibilidade de haver uma vaga idia, capaz de levar confuso de identidades. As mesmas linhas ntidas de demarcao aplicam-se tambm s tendncias, cada uma das quais pode ser distinguida tanto pela terminologia quanto, pela nuana prpria a seu pensamento mstico.

    A regra era ensinar oralmente e atravs de implicaes de preferncia a asseres. As numerosas aluses encontradas neste campo da literatura, tais como "no posso dizer mais", "j o expliquei oralmente", isto s para os iniciados no saber secreto, no representam meros vos de retrica. Esta incerteza a verdadeira razo pela qual, muitas passagens permaneceram obscuras at hoje. Em muitos casos, cochichos e insinuaes esotricas eram o nico meio de transmisso. No de surpreender, portanto, que tais mtodos conduzissem a inovaes, algumas delas espantosas, e que surgissem divergncias entre as vrias escolas. Mesmo o discpulo mais dedicado, que se ativesse rigorosamente tradio de seu mestre, encontraria sua frente um vasto campo para interpretaes e desenvolvimentos, se possusse a inclinao para tanto. Tampouco devemos esquecer que nem sempre a fonte original de uma tal "tradio" era um mero mortal. A iluminao sobrenatural tambm desempenha seu papel na Kabalah, e se fizeram inovaes no s com base em novas interpretaes de materiais antigos, mas como resultado de uma inspirao ou revelao momentnea, ou mesmo de um sonho.

    Uma frase de Isaac Hacohen de Soria (por volta de 1270) ilustra as duas fontes gmeas que os Cabalistas reconheciam como autorizadas: "Em nossa gerao h poucos, aqui e ali, que receberam a tradio dos antigos ou que receberam a graa da Inspirao divina". Tradio e intuio esto acopladas, e isto explica por que a Kabalah podia ser profundamente conservadora e intensamente revolucionria. Mesmo os "tradicionalistas" no recuam diante de inovaes, s vezes de largo alcance, que so confiantemente apresentadas como

  • interpretaes dos antigos ou como revelaes de um mistrio que a Providncia houvera por bem esconder das geraes anteriores

    Esta dualidade caracteriza a literatura cabalstica, pelos cem anos subseqentes. H eruditos que so conservadores ferrenhos, e nada afirmam que no lhes tenha sido transmitido por seus mestres, mesmo que com enigmtica brevidade. Outros se deleitam abertamente com as inovaes baseadas em interpretaes pessoais, e temos a admisso de Iaakov bem-Scheschet de Gerona:

    "Se isto fosse o que meu corao encontrou

    Eu acreditaria que Moiss do Sinai o revelou."

    Um terceiro grupo prope suas idias, lacnicas ou extensamente, sem citar qualquer autoridade, enquanto um quarto, a que pertencem Iaakov Hacohen e Abrao Abulfia, apoiam-se abertamente na revelao divina. Mas no de surpreender que tantos cabalistas, apresentem reticncias das formas pseudo- epigrficas na literatura do perodo. Esta seudo-epigrafia estava baseada, em dois elementos: um psicolgico e outro histrico. O psicolgico provm da modstia e do sentimento de que um cabalista a quem fora concedido o Dom da inspirao deveria evitar a ostentao. O histrico, por outro lado, conectava-se com o desejo de influenciar os contemporneos do autor. Da a busca de continuidade histrica e a santificao da autoridade, e a tendncia para emprestar literatura cabalstica o brilho de grandes nomes dos templos bblicos ou talmdicos. O Zohar, ou "Livro do Esplendor", o exemplo mais famoso, mas de modo algum o nico, desta pseudo- epigrafia. Mas, felizmente para ns, nem todos os cabalistas preferiram o anonimato, e graas a eles que temos condies de situar os autores de escritos pseudo- epigrficos em seu respectivo quadro histrico. possvel resumir adequadamente a contribuio do cabalismo espanhol para o tesouro do misticismo judaico, caracterizando os dois mais destacados representantes das principais correntes, os estticos e iluminados tpicos de um lado, e, de outro lado, os mestres da pseudo-epigrafia.

    Os msticos judeus no gostam de falar com pormenores acerca dos processos mais secretos da vida religiosa, portanto da esfera de experincias geralmente descritas com xtase, unio mstica com Deus, etc. Experincias desta espcie esto na base de muitos escritos cabalsticos, embora, naturalmente no de todos. s vezes, porm, este fato nem sequer mencionado pelo autor.

    o caso de um in-folio, o livro do Rabi Mordehai Aschkenasi, (Eschel Avraham, Fuerth 1701). Foi provado que a obra foi escrita com base em relaes tidas pelo autor, graas ao seu caderno de notas, uma espcie de dirio mstico. Mas em vo pode ser procurado em todo o grosso volume uma nica aluso a esta fonte de suas idias.

    H cabalistas que ensinam de forma terica o caminho para a experincia mstica, sem que, no entanto exponham de modo algum sua prpria pessoa ou o que lhe ocorre. Mesmo escritos deste carter, porm se forem realmente manuais das etapas mais avanadas da prtica mstica e da sua tcnica, raramente foram ao prelo. A este grupo pertence, por exemplo, uma penetrante anlise de vrias espcies e fases do arrebatamento e xtase

  • mstico, escrito pelo Rabi Dov Ber (morto em 1827), filho do famoso Rabi Schnoier Zalman de Ladi, o fundador do hassidismo-Habad, em seu Huntras H-Hitpalut, ttulo que significa "Investigao sobre o xtase". (Publicado pela primeira vez em 1831. A melhor edio deste livro, apareceu em Varsvia 1868, sob o ttulo de Likutei Beiurim).

    Ou tome-se o caso do famoso cabalista, Rabi Haim Vital Calabrese (1543-1620), principal discpulo de Rabi Issac Luria, uma das figuras centrais do cabalismo posterior. Este mstico o autor de uma obra chamada Schaarei Kedusch, "As Portas da Santidade", que contm uma breve introduo, facilmente compreensvel, ao estilo de vida mstico, comeando com uma descrio de certas qualidades morais indispensveis e terminando por um verdadeiro compndio de tica cabalstica. Os trs primeiros captulos deste livro, foram impressos muitas vezes. Mas Vital acrescentou um quarto captulo, em que expe com pormenores as vrias maneiras de imbuir a alma com o esprito sagrado e o conhecimento proftico, e que, em virtude de suas copiosas citaes de autores anteriores na verdade uma antologia dos ensinamentos dos antigos cabalistas sobre a tcnica do xtase. Debalde, procurar-se-, porm, esta parte em qualquer das edies impressas do livro; em seu lugar, foram inseridas as seguintes palavras: "Assim diz o impressor; esta quarta parte no ser impressa, porque toda ela consiste em nomes sagrados e mistrios secretos que no seria aconselhvel publicar". E na verdade este captulo altamente interessante sobreviveu apenas em alguns exemplares manuscritos. (Ms. Museu Britnico 749, ff. 10-28; Guenzburg 691 (antes Coronel 129)). O mesmo ou quase o mesmo aconteceu com outros escritos que comunicam experincias extticas de se preparar para elas.

    Ainda mais notvel o fato de que, mesmo quando procuramos manuscritos inditos de msticos judeus, descobrimos que a experincia exttica no desempenha o papel supremo que poderamos esperar. verdade que a posio um pouco diferente, nos textos dos msticos que viveram antes do desenvolvimento do cabalismo e cujas idias foram esboadas na Segunda Conferncia. Em lugar da teoria comum do misticismo, encontramos nestes documentos do gnosticismo judaico, pr-cabalstico, os assim chamados escritos das Hehalot, descries entusisticas da ascenso da alma ao Trono celeste e dos objetos que ela a contempla; ficamos sabendo dos hinos e cnticos que os anjos conhecem, com os quais louvam seu Criador e, a tudo isto acresce a tcnica de produzir este estado de esprito exttico, descrita em detalhe. Na literatura cabalstica ulterior, estes aspectos tendem cada vez mais a ser relegados. A ascenso da alma no desaparece subitamente. O elemento visionrio do misticismo, que corresponde a uma certa disposio psicolgica, vem tona repetidamente. Mas de maneira geral a meditao e a contemplao cabalstica assumem um carter mais interior e espiritualizado. Alm disto, permanece o fato de que, mesmo deixando de lado a distino entre documentos antigos e recentes do misticismo judaico, apenas em casos extremamente raros que o xtase significa unio real com Deus, em que a individualidade humana se perde inteiramente e submerge indistinta na torrente da Divindade. Mesmo no xtase, o mstico judeu quase sempre retm o senso da distncia entre o Criador e Sua criatura. Esta se liga quele, e o ponto onde ambos se tocam do mximo interesse para o mstico, mas ele no chega extravagncia de consider-lo uma identificao entre Criador e Criatura.

    Parece-me que nada exprime melhor este senso de distncia entre Deus e o homem do que o termo hebraico usado geralmente para o que se costumava chamar unio mystica.

  • Referimo-nos a palavra Dveikut, que significa literalmente "adeso", ou "estar unido" a Deus. Para o cabalista, este o topo da escada dos valores religiosos que o homem deve concretizar. Dveikut pode ser o xtase, mas seu significado bem mais amplo. um perptuo estar-com-Deus, uma unio ntima, uma conformidade das vontades humanas e divinas.

    Mas at mesmo as arrebatadas descries de uma tal communio com Deus, que abundam na literatura hassdica, retm um resto de distncia. Muitos autores deliberadamente colocam a Dveikut acima de qualquer forma de xtase que busca a extino do mundo e do eu na unificao com Deus. (Cf. os artigos sobre communio nas antologias hassdica, Leschon Hassidim, Lemberg (1876), f. 15 e ss., e Derech Hassidim, Lemberg (1876), f.24 e ss.).

    No pode-se negar que tambm houve no judasmo tendncias do tipo oposto; (Pinkhas de Koretz d, em diche, uma parfrase muito esclarecedora deste conceito. El "traduz" a sentena hebraica "O homem deve aderir a Deus", por Er mus sich areim gein in H-schem,

    "Ele precisa entrar no Nome"; cf. seus Likutei Schschanim (1876), p. 14.) temos inclusive uma excelente descrio do pendor para o pantesmo puro, ou melhor, acosmismo, em um conhecido romance diche, Haim Grawitzer, d F.Schneerson (Publicado pela primeira vez em Berlim, em 1922. Uma traduo alem, feita por Berthold Feiwel, apareceu na Schocken-Buecherei, Berlim (1937). e pelo menos um dos chefes do hassidismo lituano, Rabi Aaro Levi de Starosselje, pode ser classificado entre os acosmistas. Mas cumpre afirmar que tais tendncias no so caractersticas do misticismo judeu. fato significativo que a obra de maior repercusso e influncia da literatura cabalstica, o Zohar, tenha pouco uso para o xtase; o papel que este desempenha tanto nas descries quanto nas teorias desta obra inteiramente secundrio. H aluses a ele, (A descrio da experincia do Sumo-Sacerdote, ao entrar no Sancta Sanctorum, no Dia da Expiao, tem um carter exttico similar. Cf. Zohar III, 67a e 102a; Zohar Hadasch (1885), 19a e 21).

    Mas obvio que outras questes da vida mstica tocam mais de perto o interesse do autor. Talvez seja precisamente esta atitude de reserva, esta acentuao de outros aspectos da vida religiosa que, indo de encontro a uma disposio da alma judaica, tenha contribudo para alar o Zohar ao grau de livro sagrado.

    Considerando todos estes fatos, no de admirar que o mais destacado representante, e terico da Kabalah exttica, tenha sido o menos popular de todos os grandes cabalistas: Abrao Abulfia. Por uma curiosa coincidncia, os trabalhos mais importantes de Abulafia e o Zohar foram escritos quase simultaneamente. No exagero dizer que tanto um quanto outro assinalaram as expresses clssicas no desenvolvimento de duas escolas opostas no seio do cabalismo espanhol, escolas que so denominadas de "exttica" e "teosfica". Apesar de todas as suas diferenas, as duas correntes formam um todo, e para obter um quadro completo das realizaes do cabalismo em sua florescncia espanhola, necessrio compreender bem ambas.

    Infelizmente, nenhum dos numerosos e volumosos tratados de Abulfia foi levado ao prelo pelos prprios cabalistas, enquanto que o Zohar alcanou cerca de oitenta edies. Somemte Jellinek, um dos poucos eruditos judeus do sculo XIX que se esforou para obter

  • uma compreenso mais profunda do misticismo judeu, publicou trs das obras menores de Abulfia e alguns extratos de seus escritos. Isto tanto mais notvel quanto Abulfia era um escritor sobremaneira prolfico, que em certa passagem se declara autor de vinte e seis tratados cabalsticos e vinte e duas obras profticas. Dos primeiros, muitos se conservaram; e fato que alguns dentre eles, ainda hoje, gozam de extraordinria reputao entre os cabalistas.

    Embora vrios dos cabalistas de pendor mais ortodoxo, como o Rabi Iehud Haiat (1500), tenham atacado Abulfia com veemncia e tenham prevenido seus leitores contra ele, (Iehud Haiat, no prefcio a seu comentrio Minkhat Iehud sobre o livro Maarehet H-Elohut, Mntua (1558), tais advertncias parecem ter alcanado pouco eco, (Moiss Cordovero e Haim Vital citam-no mais de uma vez como uma grande autoridade, para no mencionar cabalistas menos importantes. Eliezer Eilenburg, um cabalista alemo de 1555 diz do Imrei Schefer de Abulfia, em prosa rimada: "Quem nega o Imrei Schefer um tolo ou um hertico". (Ms. New York, JThS 891, f. 101

    De qualquer forma, a influncia de Abulfia como um dos guias na via mstica, continuou sendo extraordinariamente grande. Isto se deve notvel combinao de agudeza lgica, claro poder de representao, profunda intuio e manifesta abstrusidade que caracteriza seus escritos. Uma vez que, como veremos mais adiante, ele estava convencido de ter achado o caminho da inspirao proftica, e da para o verdadeiro conhecimento de Deus, Abulfia preocupou-se em usar um estilo simples e claro para que todo leitor atento pudesse segui-lo, se o desejasse, para tentar o mesmo praticamente. Ele chegou a incluir entre suas obras toda uma srie que poderamos chamar de manuais, que no s desenvolvem sua nova teoria, mas oferecem explicaes na ao. Na verdade, elas se aplicam em tal medida que ultrapassam de longe as intenes do prprio Abulfia. No s um judeu ortodoxo pode execut-las, ainda que Abulfia nunca tivesse pensado sair fora do domnio do judasmo rabnico, mas so ensinamentos que em essncia qualquer pessoa pode levar prtica. Esta , provavelmente, uma das razes pelas quais os cabalistas hesitaram em imprimir tais livros. Ficaram possivelmente temerosos de que se esta tcnica de meditao, de natureza bastante geral, fosse publicada, seu uso poderia tornar-se acessvel a mentalidades pouco propensas ortodoxia. Certamente o perigo de um conflito entre a revelao que concedida ao mstico e a do Monte Sinai est sempre porta. Assim, toda a escola do misticismo prtico, que o prprio Abulfia chamou de "Kabalah Proftica" continuou a levar vida subterrnea. Ao impedir o pblico de tomar conhecimento dos seus escritos, os cabalistas sem dvida procuravam evitar que toda e qualquer pessoa, em cujo poder viessem cair tais escritos, pudesse empreender aventuras extticas sem a preparao necessria e arrumar inspiraes cujas exigncias poderiam facilmente tornar-se perigosas em mos incompetentes.

    De uma forma geral, as iluminaes msticas dos incultos sempre foram em quase todas as religies fonte de riscos e heresias. O misticismo judaico tambm procurou evitar este perigo estipulando em princpio que a entrada no jardim da especulao e da prtica mstica fosse reservada apenas a eruditos rabnicos, (os cabalistas costumavam citar todo tipo de variao sobre a sentena que Maimnides pronuncia em sua grande obra de Halah: S aquele que saciou devidamente o corpo com po e carne digno de dar-se tambm ao paraso da especulao mstica; cf. Mischn Tor, Hilkhot Iessodei H-Tor IV. 13). Na

  • realidade, porm, no faltaram msticos que, ou no possuam qualquer instruo, ou no tinham a plena e necessria formao rabnica. Encarando pois o judasmo com olhos inteiramente novos e s vezes no deformados, a viso destes homens freqentemente sobremaneira importante e interessante. Assim, ao lado da Kabalah erudita dos rabinos, corre na realidade uma tradio de tais iluminados profticos e visionrios. O elemento entusiasta original da elevao exttica nem sempre aceitou a cobertura da pesada cortina da escolstica rabnica, e, apesar de toda a sua disposio de chegar a um compromisso, por vezes entrou em conflito com ela, Cumpre no esquecer neste contexto que durante o perodo clssico do cabalismo, isto , at 1.300, e diferentemente de outros perodos, a mstica encarnou-se raramente em homens reconhecidos outrossim como autoridades halhicas importantes. Foram raros os grandes cabalistas, como Moiss bem-Nachman ou Salomo bem-Adret, que, afora os escritos msticos tambm deixaram contribuies puramente rabnicas. No entanto, os cabalistas eram, em sua grande maioria, homens de formao rabnica. Mas precisamente Abulfia, o expoente clssico da Kabalah de inspirao, constitui exceo, tendo tido pouco contato com a erudio talmdica. Em contrapartida, seu conhecimento da literatura filosfica de sua poca era extenso; e seus escritos, especialmente os de carter sistemtico, demonstram que ele foi, pelos padres de seu tempo, um homem extremamente culto..

    Sobre a vida e a pessoa de Abulfia, sabemos quase exclusivamente atravs de suas prprias obras, (o relato que se segue, sobre a biografia de Abulfia, baseado principalmente no fragmento de sua obra Otzar Eden Ganuz, publicado por Jellinek em Beit H-Midrasch, vol. III, pp. XL e ss. da Introduo. Muitos outros detalhes biogrficos encontram-se nos comentrios de seus prprios escritos profticos; cf. a anlise de Steischneider do ms. Munique 285 em seu Katalog der hebraeischen Handschriften in Mnchen 1895, pp. 142-146.).

    Abrao bem-Samuel Abulfia nasceu em Saragoa em 1.240, e passou sua juventude em Tudela, na provncia de Navarra. Seu pai ensinou-lhe a Bblia e os comentrios, bem como a gramtica e um pouco de Mischn e Talmud. Aos dezoito anos, morreu o pai. Dois anos depois, deixou a Espanha e viajou para o Oriente mdio, a fim de, descobrir o lendrio Rio Sambation, alm do qual se supunha que as Dez Tribos perdidas vivessem. Em conseqncia da luta entre francos e sarracenos na Sria e na Palestina logo voltou de Acre para a Europa e permaneceu cerca de dez anos na Grcia e na Itlia. Uma admirao que iria acompanh-lo por toda a vida. Para ele, havia oposio entre o misticismo e a doutrina do Rambam. Considerava, ao contrrio, sua teoria mstica como a conseqncia final das pressuposies e doutrinas do Guia dos Perplexos, obra sobre a qual escreveu um curioso comentrio mstico. Esta afinidade entre o mstico e o grande racionalista tem seu paralelo impressionante como a pesquisa recente demostrou na relao do grande mstico cristo Mestre Eckhart para com Maimnides, por quem parece ter sido muito mais influenciado que durante estes anos de vida errante, devotou-se acima de tudo Filosofia, e passou a dedicar a Maimnides qualquer escolstico antes dele.

    Enquanto os grandes escolsticos, como Toms de Aquino ou Alberto Magno, apesar de terem aprendido e inclusive aceito muito de Maimnides, freqentemente se lhe opem, o Rabi , para o grande mstico cristo, uma autoridade literria somente suplantada por Santo Agostinho, como Joseph Koch provou, (Joseph Koch, "Meister Eckhart und die

  • Jdische Religiosphilosophie im Mittelalters" em Jahresbericht der schlsischen Gesellschaft fr vaterlaendische Kultur 1928, p. 15, da separata.) Da mesma forma, Abulfia tenta ligar, do ponto de vista lgico, as suas teorias s do Rambam. Segundo ele, somente o Guia e o Livro da Criao representam a verdadeira teoria do Cabalismo, (Segundo o Otzar Eden Ganuz, ms, Oxford, Neubauer, 1580. F. 17). Simultaneamente com estes estudos, ele parece ter-se ocupado com intensidade das doutrinas cabalsticas, especificamente teosficas de seu tempo, sem entretanto satisfazer-se particularmente com esta Kabalah rabnica.

    Por volta de 1270, regressou Espanha, onde passou trs ou quatro anos, durante os quais imergiu completamente na pesquisa mstica. Em Barcelona, comeou a estudar o Livro Ietzir e doze comentrios a seu respeito, que apresentavam tendncia tanto cabalstica quanto filosfica, (a lista destes comentrios est impressa em Beit H-Midrasch, vol. III, p. XLII). Tambm aqui ele parece haver entrado em contato com os membros de um conventculo, que acreditavam poder ter acesso aos mais profundos segredos da teologia e cosmologia mstica "pelos trs mtodos da Kabalah, a saber: Guematria, Notarikon e Temur". Abulfia menciona especialmente um certo Baruch Togarmi, como seu mestre, que o iniciou no verdadeiro significado do Sefer Ietzir. Conhece-se um tratado deste cabalista, as Chaves da Kabalah, sobre os mistrios do Livro Ietzir, (Maftehot H-Cabal, ms. Paris 770 e, em parte em New York, JThS 835). Segundo afirma, no se sentiu no direito de public-los, nem mesmo de registr-los. "Quero anot-los, e no devo, no quero anot-los e no consigo desistir inteiramente da idia; assim, escrevo e paro, e volto referencialmente ao assunto em outra passagem, e este o meu processo", (Encontram-se tambm sentenas deste teor em outros escritos cabalsticos, que derivam do livro de Baruch Togarmi.).

    O prprio Abulfia escreveu desta maneira to tpica da literatura mstica. Ao imbuir-se da tcnica mstica do mestre, encontrou seu prprio caminho. Foi aos 31 anos, em Barcelona, que ele foi tomado pelo esprito proftico. Obteve o conhecimento do verdadeiro nome de Deus, e teve vises, das quais ele prprio afirma porm, em 1285, que foram enviadas em parte pelos demnios para confundi-lo, de tal forma que "durante quinze anos andou como um cego, com Sat sua direita". Mas por outro lado, estava inteiramente convencido da verdade de seu conhecimento proftico. Viajou por algum tempo pela Espanha, expondo sua nova doutrina, mas em 1274 abandonou o pas pela segunda e ltima vez, e da por diante levou uma vida errante na Itlia e Grcia. Foi ainda na Espanha que exerceu profunda influncia sobre o jovem Iossef Gikatila, que veio a ser um dos mais eminentes cabalistas espanhis. Tambm na Itlia encontrou discpulos em vrios lugares e ensinou-lhes o novo caminho, em parte como prosseguimento filosofia de Maimnides. O rpido entusiasmo pelos discpulos transformou-se no menos rapidamente em desapontamento, e Abulfia externou queixas amargas no tocante a alguns discpulos indignos a quem ensinara em Cpua, (Em 1279, ele elogia muito estes discpulos; cf. a passagem em Jellinek, Auswahl Habbalistischer Mystik, parte alem, p. 17, nota 4 . Em 1282, escreve de maneira um tanto fria sobre eles; cf. ms. Munique 285, f. 21b e, em 1285 diz amargamente: "Eles se tornaram renegados, pois eram jovens ignorantes e eu os abandonei "; Beit H-Midrasch, vol. III. P. XLI.

  • Abulfia comeou a compor obras profticas, em que prefere designar-se a si prprio por nomes com o mesmo valor numrico do seu nome original Abrao. Gosta de chamar a si mesmo Raziel ou Zehari. Somente no nono ano depois de suas vises profticas foi que comeou, como ele mesmo diz, a redigir obras de carter declaradamente proftico, embora houvesse escrito antes outros tratados sobre diversos campos da cincia, entre os quais "obras sobre os mistrios da Kabalah", (Fragmentos de um destes trabalhos mais antigos, Maftehot Raaion, subsistem ainda no manuscrito hebraico Vaticano 291. Partes do livro Get H-Schmot Encontram-se no ms. Oxford, Neubauer 1658.) No ano de 1280, inspirado por sua misso, empreendeu uma tarefa bastante arriscada e inexplicvel: foi a Roma a fim de apresentar-se ao Papa e conferenciar com ele "em nome dos judeus". Parece que nesta poca acalentava idias messinicas. bem possvel que tenha lido sobre esta misso do Messias ao Papa num relato hebraico ento bastante difundido, (SILVER, A H. A History of Messianic Speculation in Israek 1827, p. 146, foi o primeiro a ver esta relao). Este falava da disputa entre o famoso cabalista Moiss bem-Nachman e o apstata Pablo Christiani, no ano de 1263. L dizia Nachmnides: "Ao chegarem os tempos finais, o Messias ir Ter, por ordem de Deus, com o Papa, e exigir dele a liberao do seu povo, e s ento se considerar que o Messias chegou, mas no antes". (O Papa, e no um rei mundano, assume aqui, na libertao messinica, o lugar que Fara teve na libertao do Egito).

    O prprio Abulfia relata que o Papa havia dado ordens para "prender Raziel, quando viesse a Roma conferenciar com ele em nome dos judeus, e no admiti-lo sua presena, mas lev-lo para fora da cidade e ali queim-lo". Mas Abulfia, embora informado do risco, no se importou com o fato, entregando-se antes a suas meditaes e preparaes msticas e no ardor das vises escreveu um livro a que mais tarde chamou "O Livro do Testemunho", em memria de sua miraculosa salvao. Pois, enquanto se preparava para ver o Papa, "duas bocas", como obscuramente exprime, nasceram nele, e quando entrou na cidade, soube que o Papa tratava-se de Nicolau III falecera subitamente durante a noite. Abulfia foi encerrado no Colgio dos Franciscanos por 28 dias, mas por fim puseram-no em liberdade.

    Abulfia perambulou ento pela Itlia por alguns anos. Destes, parece Ter passado vrios na Siclia, onde permaneceu por mais tempo do que em qualquer outro lugar. Quase todos os seus livros preservados foram escritos nesta poca, particularmente entre os anos 1279 e 1291. Quanto ao seu destino depois de 1291, nada se sabe. De seus numerosos livros inspirados por espritos profticos, quase todos se perderam; restou apenas seu apocalipse, Sefer H-Ot, o "Livro do Sinal", um livro notvel e no totalmente compreensvel, que foi publicado por Jellinek, (O Sefer H-Ot foi publicado por Jellinek em Jubelschrifte zum 70. Geburtstage des Prof. H. Graetz, 1887, pp. 65-85.) Em compensao, como j disse, chegaram at ns a maioria de seus escritos em que desenvolve suas teorias e doutrinas.

    Sua pretenso iluminao proftica e todo o seu procedimento atraram-lhe, ao que parece, muitos inimigos. Com freqncia, ele mesmo se queixa das perseguies a que estava exposto, e muitos de seus escritos so apologia contra tais agresses. Menciona denncia feitas por judeus a autoridades crists, (MGWJ, vol. XXXVI, p. 558. ZINBERG, Geschichte fun der Literatur bai Ido, vol.III 1931, p. 52, cita um poema de um admirador de Abulfia que se queixa acerbamente destas perseguies. Salomo bem-Adret o atacou

  • violentamente por suas atividades na Siclia como profeta e pseudo-Messias), o que talvez esteja ligado ao fato de ele se apresentar como profeta tambm perante os cristos. Escreve que entre eles encontrou alguns que acreditavam em Deus mais do que os judeus, a quem o Senhor o enviara primeiro, (Sefer H-Ot, p. 76). Em duas passagens, Abulfia fala de suas relaes com msticos no-judeus, (Em seu comentrio ao Gnesis, Mafteach H-Hochmot, ms. Parma Derossi 141, ff. 16b e 28b.) Certa vez, contra ele, discutiu com eles sobre os trs mtodos de interpretao da Tor- literal, alegrico e mstico, e verificou sua mtua concordncia ao conversarem entre si particularmente: "e eu vi que eles pertenciam categoria dos justos das naes" (que alcanam, segundo a religio judaica, a eterna bem-aventurana), e que as palavras dos tolos de qualquer religio no merecem ser levadas em conta, pois a Tor foi entregue aos mestres do verdadeiro conhecimento. Em outras passagem, conta de uma discusso com um sbio cristo, com quem fizera amizade, e em cujo esprito implantara o desejo de conhecer o nome de Deus. "E no necessrio dizer mais sobre isto".

    Estas relaes, entretanto, no comprovam em Abulfia uma inclinao especial para idias crists, como pretenderam alguns investigadores, (Cf. Landauer em Literaturblatt des Orients, vol. VI 1845, vol. 473. Ele chega a falar de Abulfia como um "racionalista cristo", Ibid. col. 590. S. Bernfeld comete o mesmo erro). Ao contrrio, sua oposio ao cristianismo intensa e declarada, (Cf. Sefer H-Ot, p. 71. Os manuscritos dos livros de Abulfia esto cheios de polmicas anticrists; cf. especialmente o Gan Naul, ms. Munique 58, boa parte do qual est incorporado ao Sefer Peli e por isso mesmo chegou a ser impresso, Koretz 1784, pp. 50-56.). verdade que, s vezes, ele faz uso, entre muitas outras associaes, de frmulas que parecem inteiramente trinitrias, mas imediatamente lhes atribui um contedo que nada tem a ver com a idia trinitria de Deus, (Cf. o Sefer H-Ot, loc. cit. Ele aborda amplamente tais idias "trinitrias", especialmente em um de seus escritos profticos, o Sefer Melitz, usando a terminologia crist do Pai, Filho e Esprito Santo para os trs aspectos do intelecto, que so explicados em outros escritos, com metforas completamente diferentes e menos paradoxais. Cf. as passagens citadas na nota 75. No Sefer H-Heschek, ms. Enelow Memorial Coll. 858 do JThS, f. 26b, ele diz: "Se algum afirmar que a Divindade trinitria, responda: Invencionice. Pois a palavra trs em hebraico tem o mesmo valor numrico que invencionice").

    Mas sua predileo pelo paradoxo, bem como suas pretenses profticas, afastavam dele os cabalistas de seu tempo e seu simbolismo, na medida em que este no se alicera em uma experincia mstica individual, (Cf. Jellinek, Auswarhl kabbalistischer Mystik, parte hebraica, p. 19; do mesmo, Fhilosophie und Kabbala, p. 38. Um dos tratados de Abulfia, Matzref La-Kessef Ve-Kur La-Zahav, em ms. Sassoon 56, dirige-se expressamente contra "os ensinamentos errneos de um dos seus discpulos, que acreditava em tudo o que fosse possvel saber a respeito das Sefirot, mesmo sua multiforme nomenclatura, sem que se pudesse ligar a isso alguma representao objetiva"). Por outro lado, alguns de seus escritos so dedicados refutao dos ataques que os cabalistas "ortodoxos" lhe dirigiram. Mas a "pobreza, o exlio e o calabouo" no foram capazes de afastar Abulfia, um carter sem dvida altivo e intransigente, do ponto de vista a que sua experincia pessoal das coisas divinas o havia conduzido.

  • No prefcio de um de seus livros, de que se perdeu a maior parte, ele compara sua misso e seu lugar entre os contemporneos com os do profeta Isaas. Conta como certo dia o chamou duas vezes "Abrao, Abrao", e, continua, "Eu disse: eis-me aqui! Ento ele me instruiu sobre escrever algo novo. Nada houve de semelhante em meus dias". Percebeu claramente que seu evangelho lhe traria inimigos entre os lderes judeus. No obstante, conformou-se com isto e "obriguei minha vontade e ousei atingir coisas alm do meu alcance. Chamaram-me hertico e incrdulo porque eu resolvera adorar a Deus na verdade e no como aqueles que caminham por entre as trevas. Imersos no abismo, elesteriam se deliciado em arrastar-me s suas verdades e suas aes obscuras. Mas Deus me proibiu de trocar o caminho da verdade pelo caminho do erro", (Ms. Enelow Memorial Coll. No JThS, no 702, f. 22b. Sua carta a um amigo de Barcelona, ed. Jellink, em Auswahl kabbalistischer Mystik, pp. 13-28, uma de suas refutaes a ataques pessoais. Aqui tambm diz: "Nenhuma outra pessoa comps antes de mim escritos pormenorizados sobre a Kabalah em seus dois aspectos, que se referem doutrina das Sefirot e dos sagrados Nomes".

    Mas sua orgulhosa conscincia, sua iluminao proftica e seu conhecimento do grande Nome de Deus no impediam que seu temperamento fosse, em outras circunstncias, suave e pacfico. Como Jellinek j apontara corretamente, seu carter moral deve ser colocado bem alto. Para a iniciao de jovens em sua Kabalah ele estipula requisitos extraordinariamente grandes quanto elevao moral e firmeza de carter e podemos concluir de seus escritos, mesmo nas partes extticas, que ele prprio possua muitas das qualidades que exigia dos outros, (Cf. o texto impresso por Jellinek, em Fhilosophie und Kabbala, p. 44. Aquele que atinge o mais profundo conhecimento adquire ao mesmo tempo a mais profunda modstia e humildade.

    um dos muitos erros curiosos da histria da moderna pesquisa sobre o Cabalismo que, entre todos os homens, precisamente Abulfia tenha sido considerado como o autor do Zohar.. Esta hiptese, que ainda hoje encontra adeptos, foi aventada pela primeira vez por M. H. Landauer, h cem anos. Diz ele: "Descobri um homem notvel, em cujas obras o contedo do Zohar coincide nos mnimos detalhes. Esta fato me impressionou imediatamente, com o primeiro texto seu que me veio s mos. Mas agora que li muitos de seus livros e vim a saber muito sobre sua vida, seus princpios e seu carter, no pode mais existir a menor dvida de que na verdade encontramos o autor do Zohar", (Literaturblatt des Orients, vol.VI, col. 345. S. Bernfeld, em sua histria hebraica da filosofia da religio judaica, Daat Elohim, e Guenzig aceitaram a teoria de Landauer sem um trabalho de investigao pessoal). Isto parece ser um extraordinrio exemplo de como um juzo, proclamado com a convico ntima de ser verdadeiro, pode no obstante ser errado em todos os pontos. Na realidade no h duas coisas mais diferentes que o esprito reinante nas duas obras, do Zohar e a de Abulfia.

    Cumpre dar agora uma descrio breve e sinttica dos fundamentos da teoria mstica de Abulfia, de sua concepo da busca do xtase e da inspirao proftica. Seus princpios bsicos foram retomados, com pequenas modificaes, por todos os msticos judeus que se sentiram interiormente aparentados com Abulfia. Sua mistura caracterstica, de racionalismo e emocionalismo, colocam seu selo, sobre uma das principais tendncias do pensamento cabalstico.

  • O objetivo de Abulfia, como ele prprio o exprime, "libertar a alma, desatar ao laos que a prendem", (Ele fala no Auswahl kabbalistischer Mystik, p. 18, e, mais vezes, nos seus escritos inditos, do "desatamento dos ns junto aos selos"). "Todas as foras interiores e as almas ocultas no homem esto distribudas e diferenciadas nos corpos. Toda fora, quando seus laos so desatados, retornam sua origem, que uma, sem qualquer dualidade, e que compreende a infinita multiplicidade". O "desatamento" pois retorno da multiplicidade e separao em direo unidade original. Como um smbolo da grande libertao mstica da alma das cadeias da sensualidade, o "desatar laos" ocorre tambm na teosofia do budismo. Recentemente um sbio francs publicou uma obra didtica tibetana, cujo ttulo pode ser traduzido como "Livro sobre o Desatamento dos Ns", ("Samdhi- Nirmocana Sutra ou Sutra dtachant les noeuds", ed. Lamotte, Paris 1935)

    Que significa este smbolo na terminologia de Abulfia?

    Significa que h certas barreiras que separam a existncia pessoal da alma humana do fluxo da vida csmica, personificada para ele no Intellectus Agens dos filsofos, que permeia a totalidade da Criao. H um dique que conserva a alma confinada nos limites da existncia normal e natural e a protege contra o dilvio da corrente divina, que flui debaixo ou ao redor dela; mas o mesmo dique tambm impede a alma de tomar conhecimento do divino. Os "selos" impressos na alma impedem uma tal inundao e garantem sua funo normal. Por que a alma como que selada? Simplesmente porque, responde Abulfia, a vida diria dos seres humanos, suas percepes do mundo sensvel, invadem e impregnam a mente com uma multido de formas ou imagens sensveis (chamadas, na linguagem dos filsofos medievais, "formas naturais"). A mente, ao perceber todos os tipos de objetos naturais e ao admitir suas imagens conscincia, cria para si mesma, por esta funo natural, um certo modo de existncia que traz o selo da finitude. A vida normal da alma, em outras palavras, mantida dentro dos limites determinados por nossas percepes sensrias e por nossas emoes, e enquanto ela estiver cheia destas, ser-lhe- extremamente difcil perceber a existncia de formas puramente espirituais e coisas divinas.

    Se quisermos deixar que a vida divina irrompa na alma atravs das fronteiras da vida natural e no entanto no a destrua, preciso procurar um caminho onde uma tal passagem possa efetuar-se com segurana. Este caminho situa-se na direo sugerida pelo velho adgio: "Quem est todo cheio de si mesmo, no tem lugar para Deus". Tudo aquilo que ocupa o eu natural dos homens, deve ou desaparecer ou ser transformado, de modo a permitir que transpaream os delicados contornos da espiritualidade interior atravs do invlucro das coisas naturais. Abulfia, lana os olhos em torno, buscando formas mais altas de percepo, que, ao invs de bloquear o caminho para as regies mais profundas da alma, facilitem o acesso a elas e as libertem. Ele quer que a alma se concentre na contemplao de algo altamente espiritual, que no entanto no estorve no processo da purificao da alma. Se, por exemplo, se observar uma flor, um passarinho, ou qualquer outra coisa, e puser a pensar a seu respeito, o objeto da minha reflexo tem por si prprio um significado, em suma: um sentido. Estou pensando nesta flor, neste pssaro determinado. Mas, como pode a alma aprender a ver o divino com o auxlio de objetos cuja natureza tal que captam a ateno do espectador e a desviam do seu objetivo?

  • O mstico judeu no sabe de um objeto de contemplao em que a alma imerge at o xtase, como o da meditao sobre a Paixo no misticismo cristo.

    Abrao Abulfia, portanto, procura antes um objeto absoluto para uma tal meditao; isto , um objeto capaz de estimular o surgimento de uma vida profunda da alma e esvazi-la das formas naturais, que possa pois assumir a mxima importncia, sem possuir, todavia, por si mesmo, nenhuma importncia. Ele pensa haver encontrado semelhante objeto no alfabeto hebraico, nas letras. Trata-se de um objeto no intuitivo, abstrato, com que a alma deve ocupar-se, pois tudo o que perceptvel tem um sentido e um significado prprio. No basta, que a alma se ocupe com a meditao de verdades abstratas, pois mesmo aqui ela permanece atada a seus significados especficos. O objetivo de Abulfia antes apresentar-lhe algo no apenas abstrato, mas tambm indeterminado, pois todas as coisas assim determinadas tm uma importncia e uma individualidade prprias. Assim, baseando-se na natureza abstrata e incorprea da escrita, ele desenvolveu uma teoria da contemplao mstica de letras e suas combinaes, enquanto constitudas do nome de Deus. Pois este o objeto real e, o sentido judaico, de uma tal contemplao mstica. O nome de Deus, que algo absoluto, reflete o sentido oculto e a totalidade da existncia; o nome atravs do qual todo o resto adquire significado, e que no entanto no possui, para a mente humana, qualquer significado prprio. E assim argumenta Abulfia, quem conseguir fazer este grande Nome de Deus, a coisa menos concreta e perceptvel do mundo, objeto de meditao, est no verdadeiro caminho em que se abre a vida oculta da alma.

    A partir deste conceito, Abulfia expe uma disciplina, que ele denomina Hochmat H-Tzeruf, "a cincia de combinar as letras". Esta descrita como um guia metdico para a meditao, com o auxlio de letras e suas combinaes. As letras individuais ou suas composies no precisam como tais ter um "significado" no sentido ordinrio; uma vantagem, que muitas vezes paream vazias de sentido, pois neste caso h menos probabilidades de que nos distraiam. verdade que, elas no so realmente desprovidas de nexo, pois ele aceita a doutrina cabalstica da linguagem divina como a substncia da realidade. Segundo esta doutrina, todas as coisas existem somente em virtude do seu grau de participao no grande nome de Deus, que se manifesta atravs de toda a Criao. H uma linguagem que exprime o puro pensamento de Deus, e as letras desta linguagem espiritual so ao mesmo tempo elementos da mais profunda realidade espiritual e do conhecimento mais profundo. O misticismo de Abulfia representa um curso sobre a linguagem divina.

    O objetivo desta disciplina, gerar, com o auxlio da meditao, um estado especial de vida nova na alma humana, algo como um movimento harmnico do puro pensamento, que se desprendeu de todo objeto sensvel. O prprio Abulfia comparou corretamente esta disciplina com a msica. Realmente, a prtica sistemtica da meditao tal como ele a recomenda, produz uma sensao bastante parecida com a que experimentamos ao ouvir harmonias musicais. A cincia da combinao uma msica do pensamento puro, em que o alfabeto toma o lugar da escala musical. Todo o sistema apresenta uma semelhana bastante estreita com os princpios musicais, aplicados no ao som, mas ao pensamento que medita. Encontram-se aqui composies e modificaes de motivos, e sua combinao em todas as variaes possveis. Isto o que o prprio Abulfia diz em um de seus livros: "Sabe que o

  • mtodo do Tzeruf comparvel msica; pois o ouvido escuta sons e os sons combinam-se, segundo a natureza da melodia e dos instrumentos.

    Assim, dois instrumentos diferentes podem formar uma combinao e se os sons se casam, o ouvido do que escuta registra uma sensao agradvel ao reconhecer sua diferena. As cordas tocadas vibram, e o som doce ao ouvido. E do ouvido a sensao vai ao corao, e do corao ao brao, centro da emoo, e a apreciao da diversidade de novas melodias produz sempre mais prazer. impossvel produzir este sem a combinao dos sons, e o mesmo se aplica combinao das letras. Ela toca a primeira corda, que comparvel primeira letra, e caminha para a segunda, terceira, quarta e quinta, enquanto os vrios sons se combinam. E os segredos que se produzem nestas combinaes deleitam o corao, que reconhece seu Deus e tomado sempre por uma nova alegria", (Gan Naul, ms. Munique 58, f. 323b. O texto da passagem est impresso no Sefer Peli 1784, pp. 52d-53)

    A atividade dirigida do adepto empenhado em combinar e separar as letras em sua meditao, compondo motivos inteiros em grupos separados, combinando diversos grupos entre si, e apreciando suas combinaes em todos os sentidos, no para Abulfia, portanto, mais absurda ou incompreensvel que a do compositor. Assim, o msico expressa "mais uma vez" o mundo em sons sem palavras, e sobe a alturas infinitas e desce a infinitos abismos, tambm o mstico faz o mesmo: para ele, as portas fechadas da alma abrem-se na msica do pensamento puro, que no est mais limitado ao "sentido", e no xtase das profundas harmonias que se originam no movimento das letras do grande Nome, abrem o caminho que conduz a Deus.

    Esta cincia da multivariedade da composio de letras e a prtica da meditao controlada para Abulfia nada menos que a "lgica mstica", que corresponde harmonia interna do pensamento em seu caminho para Deus, (No trecho impresso em Pholosophie und Kabbala, p. 15, Abulfia fala de sua arte combinatria como Hochmat h higaion h-penimi h- elion.). O mundo das letras, que se revela nesta disciplina, o verdadeiro mundo da felicidade, (Em seu Imrei Schefer, ms. Munique 285, p. 75b). Cada letra representa um universo inteiro para o mstico que se abandona sua contemplao, (No seu Sefer Melitz, no mesmo manuscrito, diz ele "Cada consoante representa na Kabalah um mundo"). Todas as lnguas faladas, no s o hebraico, so passveis de transformarem-se por meio desta combinatria mstica em lngua sagrada e em nomes sagrados. E como todas as lnguas provm de uma corrupo da lngua original, o hebraico, todas permanecem aparentadas a ela.

    Em todos os seus livros, Abulfia gosta de jogar com palavras gregas, latinas e italianas para apoiar suas idias. Pois, em ltima anlise, toda palavra pronunciada consiste de letras sagradas, e sua combinao, separao e reunio revelam profundos mistrios ao cabalista, e desentranham para ele o segredo da relao de todas as lnguas com a lngua sagrada, (Cf. Sefer H-O, p 71, Philosophie und Kabbala, p. 20, onde ele diz: "E preciso fundir todas as lnguas na lngua sagrada, at que parea como se toda palavra pronunciada fosse composta pelas sagradas letras, que so as vinte e duas letras hebraicas". Em seus escritos, menciona que o termo hebraico para as "setenta lnguas" (que significa em hebraico a totalidade das lnguas) tem o mesmo valor numrico que o termo hebraico "combinao das letras").

  • O Sefer H-Tzeruf encontra-se em Paris, Bibl. Nat., 774). so guias sistemticos para a prtica deste contraponto mstico. Atravs de exerccios metdicos, a alma se acostuma percepo das formas superiores, em que ela vai aos poucos se embebendo. Abulfia expe um processo que vai da pronuncia sua anotao e contemplao dos sinais escritos, e finalmente da escrita ao pensamento e meditao puros de todos estes objetos da "lgica mstica".

    Pronunciao, mivt; anotao, michtav, e pensamento, machschav, formam assim trs camadas superpostas de meditao. As letras so o elemento comum a todas, elementos que se manifestam em formas sempre mais espirituais. Dos movimentos das letras resultam as verdades da razo. Mas o mstico no pra aqui. Ele distingue ainda entre matria e forma das letras, para aproximar-se mais do seu ncleo espiritual; ele mergulha na combinao das formas puras das letras, que agora, sendo formas puramente espirituais, se imprimem na alma. Ele procura compreender as relaes entre as letras e os nomes formados pelos mtodos cabalsticos de exegese, (Cf. Philosophie und Kabbala, pp. 18-20). O valor numrico das palavras, a Guematria, aqui de importncia especial.

    A isto cumpre acrescentar um outro ponto: o leitor moderno destes textos ficar bastante surpreendido ao deparar com a descrio detalhada de um mtodo que Abulfia e seus discpulos denominam Dilug e Kefitz, "salto" ou "pulo" de uma concepo a outra. Na verdade, isto no mais que um mtodo bastante notvel de usar associaes como um mtodo de meditao. No se trata do "jogo livre das associaes" utilizando pela Psicanlise, mas antes de um mtodo de passar de uma associao a outra, conforme regras determinadas que so todavia bastante flexveis. Cada "salto" abre nova esfera, definida por certas caractersticas formais, no materiais. Dentro desta esfera o esprito pode associar livremente. O "saltar", portanto, une elementos de associao livre mas dirigida, e diz-se que assegura resultados extraordinrios no tocante "ampliao da conscincia" do iniciado O "salto" traz luz processos ocultos do pensamento, "liberta-nos da priso da esfera natural e nos conduz s fronteiras de esfera divina". Todos os outros mtodos, mais simples, de meditao, servem apenas de preparo para este grau supremo, que contm e supera todos os outros, (Uma elaborao completa da tcnica de associao foi publicada por mim com base no Sulam H-Ali de Iehud Albottini ou antes Al-Buttaini, em Kiriat Sefer, vol. XXII 1945, pp. 161-171.).

    Abulfia descreve em vrios lugares os preparativos para a meditao e para o xtase, bem como o que acontece ao adepto no pice do arrebatamento. O relato de um discpulo seu, confirma suas afirmaes. O prprio Abulfia afirma, numa passagem: (Jellinek, em Philosophie und Kabbala, a partir do Haie Olam H-B: "Prepara-te para teu Deus, Israelita! Prepara-te para dirigir teu corao a Deus somente. Limpa teu corpo e escolhe uma vivenda isolada onde ser algum escute a tua voz. Ssenta em teu cubculo e no reveles a homem nenhum o teu segredo. Se puderes, f-lo de dia na casa, mas prefervel que o completes durante a noite. No momento em que te preparares para falar com teu Criador, desejando que Ele te revele o Seu poder, tem cuidado para abstrair teu pensamento das vaidades deste mundo. Cobre-te com teu xale de oraes e pe telifim em tua cabea e tuas mos, para que possas imbuir-te de temor pela Schehin que est prxima a ti, limpa tuas roupas, e, se possvel, que todos os teus trajes sejam brancos, pois estas coisas so teis para dirigir o corao ao amor e ao temor de Deus. Se for noite, acende muitas velas, para

  • que tudo esteja claro. Pe ento pena, tinta e uma mesa junto a ti e lembra-te de que vais servir a Deus com alegria no corao. Comea a combinar muitas ou algumas letras, a permut-las e combin-las at que se aquea teu corao. Presta ateno aos seus movimentos e ao que podes produzir ao mov-las. E quando sentires que teu corao j se aqueceu, e vires que, pela combinao das letras, podes perceber coisas novas, que no poderias conhecer pela tradio humana nem por ti mesmo, e quando estiveres assim preparado para receber o influxo de fora divina, volta ento todas as tuas representaes verdadeiras para representar o Nome de Deus e seus gloriosos anjos em teu corao, como se fossem seres humanos sentados ou em p ao teu redor. E senta-te como um embaixador a quem o rei e seus ministros vo enviar em misso, e que espera para ouvir de seus lbios algo sobre a misso, seja do prprio rei, seja de seus servos".

    "Tendo imaginado isto, volta todo o teu esprito para compreender com teus pensamentos as inmeras coisas que ho de penetrar em teu corao atravs das letras imaginadas. Pesa-as como um todo e a cada qual individualmente, como algum que escuta uma parbola ou um sonho, ou que medita num problema de um livro cientfico, e tenta assim interpretar aquilo que ouvires da maneira que mais razovel te parecer. E isto tudo ir suceder depois que afastares pena e pergaminho, ou depois que eles se tiverem afastado de ti pela fora do teu pensamento. E sabe que quanto mais forte for o influxo intelectual dentro de ti, tanto mais fracas se tornaro tuas partes internas e externas. Todo o teu corpo ser possudo de um tremor muito intenso, de tal maneira que pensars estares morte, pois tua alma, demasiado contente pelo seu conhecimento, deixar o corpo. E prepara-te para escolher conscientemente a morte neste momento, e ento sabers que avanaste o suficiente para receber o influxo. E ento, desejando honrar o Nome glorioso, servindo-o com a vida de teu corpo e tua alma, cobre tua face e tem medo de olhar para Deus. Regressa ento s coisas corporais, levanta-te e come e bebe um pouco, ou refresca-te com um perfume agradvel, e devolve teu esprito ao seu invlucro at a prxima vez, e alegra-te por teu quinho, e sabe que Deus te ama".

    Se a alma viver inteiramente neste mundo, no qual se afasta de todas as imagens externas e estiver empenhada apenas na contemplao do nome de Deus, ela adquire com isto o devido preparo para a derradeira ruptura. Os selos que a encarceram em seu estado normal e lhe vedam a luz divina so afrouxados, e podem ser ao fim totalmente dissolvidos. A fonte oculta da vida divina irrompe na obra ou desaba sobre ela. Mas agora que ela foi assim preparada metodicamente para isto, esta irrupo no mais sufoca toda conscincia pessoal nem a esmaga, ou a tira a um estado de confuso e auto-abandono. Pelo contrrio, tendo galgado o stimo e ltimo degrau da escala mstica, (Estes sete estgios so descritos pormenorizadamente por Abulfia em sua missiva, que Jellinek publicou em Philosophie und Kabbala, pp. 1-4). e alcanado o seu topo, o homem v-se plenamente cnscio no mundo da luz divina, cujo esplendor ilumina seus pensamentos e cura seu corao. Este o estgio da viso proftica, em que os mistrios inefveis do Nome divino e toda a glria do seu reino se revelam ao iluminado. O profeta fala deles em palavras que exaltam a grandeza de Deus e trazem em si o seu reflexo.

    O xtase, que Abulfia considera o prmio mais alto de contemplao mstica, no deve ser confundido, com delrio inconsciente ou aniquilao completa do eu. Ele trata com certo desdm estas formas incontroladas do xtase, que o homem procura sem preparo suficiente

  • e chega a consider-las muito perigosas. Sem dvida, o xtase racionalmente preparado sobrevm subitamente, (Cf. o livro citado p. 25, na nota 54) e no pode ser forado; mas quando os ferrolhos so removidos e os selos retirados, a alma j est preparada para a "luz do intelecto" que a penetra. Abulfia adverte, mais de uma vez, contra os perigos mentais e mesmo fsicos da meditao no-sistemtica e prticas similares. Ao combinar as letras, cada uma das quais, segundo o Livro Ietzir, est coordenada com um membro especial do corpo, "deve-se tomar muito cuidado para no modificar a posio de uma vogal ou consoante, pois se ele (o adepto) errar ao ler a letra que comanda um certo membro, este membro pode ser arrancado, ou trocar de lugar, ou alterar sua natureza, sendo transformado imediatamente em outra forma, de modo que a pessoa pode ficar aleijada", (Em seu Imrei Schefer, diz Abulfia: "Uma torrente de fogo sai de Deus e quem se exercita na arte da combinao deve precaver-se e atender honra de seu Nome, para que no lhe fuja todo o sangue e ele prprio no destrua a sua prpria vida. Deve antes, quando seu corao se exaltar, regressar imediatamente a seu lugar, pois a chave para o Nome divino est em suas mos".) O discpulo de Abulfia menciona tambm contraes espasmdicas da face.

    Abulfia coloca grande nfase na novidade e singularidade de sua profecia. "Sabei que muito da viso que Raziel viu baseado no Nome de Deus e em sua Gnose, e tambm na sua nova revelao, que teve lugar na Terra em seus dias, e que nada houve de semelhante a ela desde os dias de Ado", (No seu Sefer Edut ms. Munique 285, f. 37b.) Os profetas que bebem da fonte do conhecimento do verdadeiro Nome so ao mesmo tempo, segundo ele, os verdadeiros amantes. A identidade da profecia com o amor a Deus encontra sua prova tambm na mstica dos nmeros, e aquele que serve a Deus por puro amor est no caminho certo que leva profecia, (Numa passagem oriunda do Haie H-Nefesch, que Jellinek imprimiu no fim de sua edio do Sefer HaOt, p,85.) por isto que os cabalistas, com quem o puro temor a Deus se converte em amor, so para ele os verdadeiros discpulos dos profetas, (Haie H-Nefesch, ms. Munique 408. fa .).

    Na opinio de Abulfia, a doutrina do xtase proftico no em ltima anlise mais do que a doutrina da profecia proposta pelos filsofos judeus, especialmente por Maimnides, que tambm v na profecia, uma unio temporria do intelecto divino com o humano, provocada atravs da preparao sistemtica. A faculdade proftica, segundo sua doutrina, representa a unio do intelecto humano, na fase mais elevada do seu desenvolvimento com uma influncia csmica, normalmente situada no mundo inteligvel, o assim chamado intellectus agens. O influxo deste intelecto ativo sobre a alma manifesta-se como viso proftica. Abulfia procura provar a identidade substancial de sua teoria da via da meditao com a doutrina da profecia amplamente reconhecida na Idade Mdia e outorgar-lhe, um estrito carter racionalista, (Especialmente em seus comentrios ao Mor Nevuhim, de Maimnides.). Seu comentrio ao "Guia dos Perplexos" de Maimnides, vai longe neste sentido.

    Estas racionalizaes, no podem esconder o fato de que seus ensinamentos representam uma verso judaizada de uma antiga tcnica espiritual, que encontrou sua expresso clssica nas prticas dos msticos hindus que seguem o sistema conhecido como Ioga. Para citar apenas um exemplo entre muitos, uma parte importante do sistema de Abulfia consiste na tcnica respiratria; (Exemplos disto encontram-se no Catlogo dos Manuscritos de Jerusalm, pp. 27-29; em Jellinek, Philosophie und Kabbala, pp. 40-41,

  • bem como no Pardess Rimonim, de Moiss Cordovero, cap. XXI, sec. 1, que cita a partir de um escrito de Abulfia), esta tcnica encontrou seu desenvolvimento mximo na Ioga Hindu, onde considerada o instrumento mais importante da disciplina mental. Alm disso, Abulfia prescreve com preciso certas regras de postura, certas combinaes correspondentes de vogais e consoantes, certas formas de recitao, e em particular algumas passagens de seu livro "A Luz do Intelecto" do a impresso de um tratado judaico sobre Ioga. A semelhana chega a alguns aspectos da doutrina da viso exttica, enquanto precedida e provocada por estas prticas.

    Qual a recompensa do discpulo ao atingir-se este estgio supremo da viso?

    Abulfia afirma que o discpulo percebe a imagem de seu mentor espiritual, visto como um jovem ou um ancio, que ele no s v como tambm escuta (Cf. a passagem publicada no Catlogo dos Manuscritos de Jerusalm, p. 27.) Diz Abulfia: "O corpo requer o mdico do corpo, a alma os mdicos da alma, a saber os estudiosos da Tor, mas o intelecto (o poder mais alto da alma) requer um movedor externo, que tenha recebido a Kabalah e os mistrios da Tor, e um movedor interno, meorer pnimi, que abre as portas fechadas sua frente", (Abulfia, em seu comentrio ao Quarto Livro de Moiss, Mafteach H-Sefirot, ms. Mailand, Ambrosiana 53, f. 157b.). Em outros textos, ele diferencia tambm entre o mestre humano e o divino. Se necessrio, pode-se passar sem o primeiro; Abulfia supe que seus prprios escritos possam eventualmente substituir um contato imediato entre o discpulo e o mestre, (Cf. Imrei Schefer, ms. Munique 285, f. 90a: "Quem tiver as qualidades acima indicadas, ser digno de ser iniciado na Kabalah, tal como ele , e um homem assim no precisa de mestre que lhea transmita, mas o que ele achar neste livro lhe bastar... Mas se ele puder encontrar um mestre, tanto melhor; do contrrio poder passar com o que achar neste livro".), mas de forma alguma se pode dispensar o mestre espiritual que confronta o homem nos portes secretos de sua alma. Este mestre espiritual, o guru, personifica o intellectus agens sob a figura mtica do anjo Metatron, mas tambm, segundo certas passagens, o prprio Deus como Schadai, (No Sefer Edut, ms. Munique 285, f. 39b., Abulfia cita sua prpria profecia, a voz divina que lhe fala, e d sua prpria interpretao: "Dou-lhe o Nome de Schadai segundo meu prprio nome e Ele eu, e eu sou Ele", ao que Abulfia observa ser impossvel explicar este mistrio"!

    Na literatura mstica de todas as religies so freqentes tais frmulas de identificao mstica. O Talmud diz: sobre Metatron, que "seu nome como o nome do seu Senhor", (Sanhedrin 38 As palavras Metatron e Schadai tm em hebraico o mesmo valor numrico: 314.), significando a palavra hebraica para "senhor" tambm "mestre". Abulfia aplica esta afirmao relao entre o visionrio e o seu guru, seu mestre espiritual. Sua importncia parece residir no fato de que no estado de xtase, o homem se apercebe de sua relao intrnseca com Deus. Embora o mstico seja aparentemente confrontado com seu mestre, na verdade este , de alguma forma idntico a ele. O estado de xtase, representa algo como uma transfigurao mstica do indivduo. Esta experincia da identificao com o mestre, e indiretamente com Deus, mencionada diversas vezes por Abulfia, mas em parte alguma ele se pronuncia a este respeito com franqueza total, (Cf. a passagem do Sefer H-Ot, pp. 70-71, e no Catlogo dos Manuscritos Hebraicos de Jerusalm, p. 25). A passagem seguinte, procede de um fragmento indito chamado "O Conhecimento do Messias e o Significado do Redentor".

  • "Esta cincia (da Combinao Mstica) um instrumento que conduz mais perto da profecia do que qualquer outro ramo do conhecimento. Um homem que chega a entender a essncia da realidade, graas ao que estudou dos livros, chamado haham, sbio. Se ele o consegue por meio da Kabalah, isto , de algum que por sua vez o obteve atravs da contemplao dos nomes divinos ou da boca de outro cabalista, ele chamado mevin, aquele que compreende; mas se seu entendimento deriva do seu prprio corao, das deliberaes a que chega consigo mesmo sobre o que ele conhece da realidade, ento chamado daatan, "conhecedor" isto , um gnstico.

    Neste estado supremo, o homem e a Tor se tornam um. Abulfia exprime isto quando complementa o velho ditado da "tica dos Pais" sobre a Tor: "Deves vir-la e tornar a vir-la, pois tudo est nela" com as palavras: "pois ela est inteiramente em ti e tu ests inteiramente nela", (Mafteach H-Sefirot, ms. Ambrosiana 53, f. 164b.).

    Verifica-se certa identificao do homem com seu Senhor, sem que uma identidade total seja alcanada ou mesmo almejada por Abulfia. No obstante, temos aqui uma das mais extremas interpretaes do significado da experincia exttica a que algum jamais se atreveu a descrever. E na realidade a maioria dos cabalistas, que seguiu as pegadas de Abulfia, recuou precisamente diante desta notvel doutrina da identificao exttica. Por exemplo, o pequeno e interessante tratado Sulam H-Ali, "A Escada da Ascenso", isto , a ascenso para Deus, escrito em Jerusalm por Rabi Iehud Albottini ou Albuttaini. Este livro contm uma concisa exposio da doutrina de Abulfia, e seu captulo dcimo, descreve os "caminhos da solido e os preparativos para adeso (dveikut)"; em outras palavras, a teoria do xtase, (Publicado como anexo ao Catlogo dos Manuscritos cabalsticos de Jerusalm, pp. 225-230.) Mas no faz a menor referncia quelas conseqncias radicais dos mtodos de Abulfia e das imagens que ele emprega, embora quanto ao resto sua descrio seja bastante interessante e completa.

    No xtase proftico o homem encontra seu prprio eu que o confronta e lhe fala. Esta experincia oculta era considerada superior s vises de luz que normalmente acompanham o xtase, (Cf. artigo Eine Kabbalistische Deutung der Prophetie als Selbstbegegnung, MGWJ, vol. LXXIV 1930, pp. 285-290.). O Midrasch diz das descries antropomrficas dos profetas: "Grande a fora daqueles profetas que assimilam a forma do formador", isto , daqueles que comparam o homem a Deus. Alguns cabalistas da escola de Abulfia, interpretam esta sentena de maneira diferente . A forma que comparada ao seu criador, isto , que possui natureza divina, o puro eu espiritual do homem que o extravasa na profecia.

    A interessante passagem abaixo foi preservada por um velho coletor de tradies cabalsticas: "Sabei que o segredo completo da profecia consiste, para o profeta, em que ele subitamente v a forma do seu eu em p diante dele, e esquece seu eu, e libertado dele, e v o seu eu postado sua frente, falando-lhe e predizendo o futuro, e deste segredo disseram nossos mestres: Grande a fora dos profetas que comparam a forma (que lhes aparece) quele que a formou. Diz Rabi Abro ibn Ezra: "Na profecia, o que fala um ser humano e o que ouve um ser humano!... (Esta afirmao aparece no comentrio de Ibn Ezra a Daniel 10:21.) E outro sbio escreve: "Sei e compreendo com certeza absoluta que no sou profeta, nem filho de um profeta, que o esprito sagrado no est em mim e que no

  • tenho poder sobre a "voz celeste"; pois no fui julgado digno de todas estas coisas, pois no tirei minha roupa nem lavei meus ps e no entanto tomo o cu e a terra por testemunhas de que um dia sentei-me e escrevi um segredo cabalstico: de repente vi a forma do meu eu de p em frente de mim e libertada de mim, e tive que parar de escrever!" Esta explicao do carter oculto da profecia como autoconfrontao soa como uma interpretao mstica do velho preceito platnico: "Conhece-te a ti mesmo" como "Contempla o teu eu".

    O estado de xtase descrito por Abulfia, traz consigo uma redeno antecipada. O iluminado sente-se no s possudo por um fogo celeste, mas tambm como se fosse da cabea aos ps ungido com leo sagrado e miraculoso. Ele se torna, como Abulfia o coloca, jogando o significado duplo da palavra hebraica Maschiach, o "Ungido do Senhor", (Sobre a sensao exttica da uno, cf. a citao de Abulfia em Schaar H-Heschek, de Johanan Alemanno, ed. Halberstadt, 31a, bem como o Catlogo dos Manuscritos Jerosolimitas, p. 228.). Ele , seu prprio Messias, pelo menos durante seu breve perodo de experincia exttica.

    Abulfia denomina seu mtodo de conhecimento mstico "O Caminho dos Nomes", em contraste com os cabalistas de seu tempo, que contemplam e realizam os atributos de Deus atravs de "O Caminho das Sefirot". O complexo da Kabalah composto pelas duas correntes, sendo o caminho das Sefirot a Kabalah "rabnica" e o caminho dos Nomes a Kabalah "proftica". O estudioso da Kabalah deve comear pela contemplao das dez Sefitot. Na verdade, durante a meditao, estas devem transformar-se em objetos da imaginao, mais do que em objetos de conhecimento externo, adquirido pelo simples aprendizado de seus nomes como atributos ou mesmo smbolos de Deus, (Cf. na citada passagem do Gan Naul. O intellectus agens , em Abulfia, identificado com o "brilho da Schehin". Pois, segundo Abulfia, tambm nas Sefirot se revelam as "profundezas do intellectus agens", aquela fora csmica que, para o mstico, coincide com o brilho da Schehin, (As Sefirot so "profundezas do intelecto ativo" na passagem do Gan Naul (nota 85). O "divino esplendor", o Ziv H-Schehin, o Sehel H-Poel, o intellectus agens, ms. Jerusalm 8o 540, f. 13b.) Somente depois disto que ele deve passar s 22 letras, que representam uma etapa mais avanada de penetrao.

    Para o que ele chama "o caminho dos Nomes", os antigos gnsticos judeus, empregavam um outro termo, Maasei Mercab, literalmente "as obras da Carruagem", ou seja, a carruagem celeste que se supunha transportar o trono de Deus. Abulfia, apresenta sua nova doutrina como sendo o verdadeiro Maasei Mercab, usando uma outra acepo de Mercab, que pode significar tambm "composio". A teoria da composio das letras e dos Nomes de Deus, eis a verdadeira viso da Mercab, (Philosophie und Kabbala, p. 11.). verdade que ao descrever as sete fases do conhecimento da Tor, da investigao do sentido literal da escritura at a fase da profecia, Abulfia estabelece uma distino entre o cabalismo proftico, que a sexta etapa, e o Santo dos Santos, para o qual aquele constitui mero preparo. A substncia deste estgio final, em que "a linguagem que vem do intelecto ativo" compreendida, no deveria ser transmitida, mesmo se se conseguisse p-la em palavras. Mas como vimos, o prprio Abulfia, apesar de seu voto solene, levantou uma ponta do vu.

  • Abulfia est longe de menosprezar o conhecimento filosfico. Ele chega a dizer numa passagem que tanto a filosofia como a Kabalah devem sua existncia ao contato com o intelecto ativo, com a diferena de que o cabalismo encerra uma participao mais profunda no intelecto ativo e se exerce sobre uma regio mais espiritual do que qualquer outro saber, (Cf. Mafteach H-Hochmot, ms. Parma Derossi 141, f. 19). Ao mesmo tempo, est firmemente convicto de que certos problemas filosficos, servem apenas para dissuadir a pessoa de trilhar o seu verdadeiro caminho. Dignos de nota so neste sentido seus pronunciamentos sobre a questo de saber se o mundo existe eternamente ou se foi constitudo, reconhecidamente um dos problemas fundamentais da filosofia judaica em sua polmica contra o aristotelismo puro. O fato de a Tor no fornecer prova para nenhuma das duas suposies explicado por Abulfia com a observao de que, do ponto de vista do cabalismo proftico, em si mesmo a conquista mxima da Tor, toda a questo no tem sentido. "O profeta, afinal, no pede Tor seno o que o ajuda a atingir o estgio da profecia. Que diferena faz para ele que o mundo seja criado ou eterno, se sua eternidade no pode ajud-lo a avanar nem prejudic-lo? E o mesmo vale para a hiptese de que o mundo tenha vindo existncia em dado momento". S importante do ponto de vista religioso, o que contribui para a perfeio do homem, e isto sobre o "Caminho dos Nomes". Embora o prprio Abulfia negue a eternidade do mundo, (Abulfia foi atacado por defender a eternidade do mundo, conforme seu relato em Gan Naul, ms. Munique 58, f. 327b. Em outra passagem de seus escritos, sugere uma soluo prpria para o problema.), inclina-se mais para uma posio estritamente pragmtica e rejeita o problema como estril.

    Em suma, Abulfia antes de tudo o que se poderia chamar de um cabalista eminentemente prtico. "Cabalismo Prtico" significa simplesmente magia, embora praticada por meios no proibidos pela religio, ao contrrio da magia negra, que utiliza poderes demonacos e se aventura por regies sinistras. O fato, porm, que esta forma consagrada de magia, que apela para o tremendo poder dos Nomes, no est to afastada do mtodo de Abulfia; se as fontes histricas de onde ele derivou a sua nova Kabalah forem investigadas mais rigorosamente, verificar-se- que todas elas, judaicas ou no, esto na verdade estreitamente relacionadas com tradies e disciplinas mgicas. Isto se aplica tanto s idias dos hassidin alemes, que parecem t-lo impressionado bastante, (Cf. Jellinek, Auswahl kabbalisticher Mystik, parte alem, p. 20; Steinchneider, em Hebr. Bibliographie, vol.XIV, p. 8 e p. VII correes.), como tradio da Ioga, que por canais diferentes tambm veio a influenciar certos msticos muulmanos, com os quais Abulfia pode ter-se familiarizado durante suas viagens pelo Oriente. Mas no menos verdadeiro que o prprio Abulfia rejeitou decididamente a magia e condenou antecipadamente quaisquer esforo no sentido de utilizar a doutrina dos Nomes sagrados para fins mgicos. Em inmeras polmicas condena a magia como uma falsificao do misticismo. Admite, certo, uma magia dirigida para a alma interior, uma magia da interioridade, mas no aquela que almeja provocar resultados sensveis externamente, ainda que seja por meios interiores, permissveis e mesmo sagrados. Tal magia possvel, mas quem a pratica amaldioado. J em seu primeiro trabalho conhecido, Abulfia sustenta que a conjurao dos demnios, embora na verdade se baseie em fantasia absurda, serve exatamente para despertar na ral um saudvel terror pela religio, (Em sua obra de juventude Mafteach Raaion, ms. Vaticano 291. F. 29 a numa passagem bastante longa.). Em outro texto, adverte contra o uso do "Livro da Criao" com o propsito de criar para o mago, nas palavras do Talmud,

  • um "bezerro gordo". Os que desejam isto, diz ele abertamente, so eles prprios uns bezerros.

    Abulfia tomou resolutamente o caminho que conduz ao ntimo, mas este caminho margeia o limite entre o misticismo e a magia, e, apesar de toda a irreconcilivel diferena que parece existir entre ambos, sua inter-relao mais profunda do que se supe normalmente. H certos pontos em que a crena do mstico facilmente se converte na do mago, e a "magia da interioridade" de Abulfia, um deles. Embora ele prprio tenha evitado escorregar da contemplao meditativa dos Nomes sagrados para o seu uso mgico para fins prticos externos, muitos de seus sucessores caram na confuso e tenderam a obter do caminho interior o poder de modificar o mundo exterior. O sonho do mago, de poder e domnio sobre a Natureza atravs de simples palavras e do esforo tenso, encontrou quem o sonhasse no Gueto e entrou em muitas combinaes com os interesse tericos e prticos do misticismo stricto sensu. Do ponto de vista histrico, o cabalismo apresenta-se quase invariavelmente como uma combinao dos dois. A doutrina da combinao de Abulfia (Hochmat H-Tzeruf) veio a ser considerada pelas geraes posteriores no s como a chave dos mistrios da Divindade, mas tambm como uma iniciao dos poderes mgicos.

    Na literatura dos sculos XIV, XV e XVI sobre a Hochmat H-Tzeruf, encontramos todas as misturas possveis do cabalismo exttico com o teosfico. Assim, um texto desta natureza podia ser atribudo, por exemplo, at a Maimnides, que aparece aqui como mago prtico e taumaturgo, (Um trabalho assim, imputado a Maimnides, foi editado por Edelmann, em Hemd Genuza, 1856, pp. 42-45; cf. observaes publicadas em Tarbiz, vol. VI, n. 3, p. 94.). E assim instrues sobre a meditao dos vrios meios de pronunciar o Tetragrama so dadas no estranhssimo livro Brit Menuh, o "Pacto da Tranqilidade", que foi praticamente o nico destes livros a ser impresso, (A obra Brit Menuh, 1a ed., Amsterd 1648. Nos manuscritos cabalsticos, existe grande quantidade de outros trabalhos do gnero, incluindo alguns muito interessante no ms. Sassoon 290.). Estas instrues para a meditao descrevem as luzes que brilham no corao do devoto, mas ao mesmo tempo discutem um pouco as aplicaes mgicas dos nomes de Deus. E nos dois grandes trabalhos do cabalista Iossef ibn Saiach, compostos por volta de 1540 (em Jerusalm e Damasco), ambos os lados desta Ioga judaica so sistematizados at o excesso: a meditao, que procura revelar camadas cada vez mais profundas da alma e de suas luzes secretas, e a aplicao com objetivos mgicos destas foras da alma, reveladas pela meditao interior, (Estes dois livros so Even HSchoham, ms. Jerusalm 8* 416 cf. meu Catlogo, pp. 89-91 e Scheerit Iosef. Ms. Viena. Biblioteca da Comunidade Judaica 260, Catlogo Schwarz, pp. 203-204.

    Por fim cabe notar que nos escritos de alguns cabalistas o Grande Nome de Deus aparece como o objeto supremo de meditao no ltimo momento dos mrtires. Num discurso inflamado do grande mstico Abrao bem-Eliezer Halevi, de Jerusalm (morto em 1530), encontramos uma recomendao queles que enfrentam o martrio. Ele os aconselha a concentrarem-se, no momento da provao final, no Grande Nome de Deus; a imaginar suas letras radiosas entre seus olhos e a fixar nelas toda a ateno. Quem assim fizer, no sentir as chamas ou as torturas a que o submeterem. "E embora isto possa parecer improvvel razo humana, foi experimentado e transmitido pelos santos mrtires .

  • Um discpulo annimo de Abulfia escreveu em 1295 um livro, aparentemente na Palestina, em que apresentava as idias bsicas do cabalismo proftico. Discutindo os trs caminhos da "expanso", isto , o progresso do esprito da corporeidade para uma apreenso dos objetos cada vez mais pura, intercalou um relato autobiogrfico. Nele descreve de maneira bastante precisa e sem dvida autntica o seu prprio desenvolvimento, bem como suas experincias com Abulfia e com a sua Kabalah. Ele no designa Abulfia pelo nome, mas pela descrio que d e pelas idias que emprega no pode haver dvida sobre a quem alude. Este livro chama-se Schaarei Tzerek, os "Portes da Justia". Quatro manuscritos subsistem; mas apenas dois, (S o ms. Jerusalm contm o texto completo da autobiografia; no da Biblioteca da Universidade de Columbia X-893-Sh. 43 faltam agora vrias pginas que se perderam por acidente. Nos dois outros manuscritos, Leiden (Warner 24,2) e Gaster 954 (agora no Museu Britnico), falta a passagem toda, na medida em que encerra as anotaes autobiogrficas), contm este relato autobiogrfico, o qual nos outros dois, obviamente, foi eliminado, graas quela autocensura dos cabalistas, adversos a toda confisso de carter ntimo quanto a experincias msticas.

    Damos a seguir as partes principais deste relato:

    "Eu, Fulano de Tal, experimentei meu corao pelos caminhos da graa para obter a expanso espiritual, e descobri trs caminhos de progresso para a espiritualizao: o vulgar, o filosfico e o cabalstico. O caminho vulgar, conforme aprendi, praticado pelos ascetas muulmanos. Eles empregam toda sorte de artifcios para excluir de suas almas todas as "formas naturais", todas as imagens do mundo natural e familiar. Ento, dizem eles, quando uma figura espiritual, uma imagem do mundo espiritual, penetra em sua alma, ela isolada em sua imaginao e a intensifica a tal ponto que eles podem determinar de antemo o que nos vai acontecer. Ao investigar, soube que eles conjuram o Nome, Al, como se diz na linguagem de Ismael. Investiguei mais e aprendi que ao pronunciar estas letras, eles desviam o pensamento para longe de toda "forma natural" possvel, e as prprias letras Al e seus diversos poderes obram sobre eles. Sem saber como, pois no se instruram na Kabalah, caem em estado de transe. Este velamento da alma diante de todas as formas e imagens naturais por eles denominado "extino", (Hebr. Mehika. Este na verdade o termo sufita Mahw.).

    "O segundo caminho o filosfico, e o estudioso experimentar extrema dificuldade ao tentar expungi-lo de sua alma, devido grande doura que exerce sobre a razo humana, e a completude com que esta sabe abra-lo. Pois consiste em: que o estudioso forma uma noo de qualquer cincia, por exemplo a matemtica, e ento prossegue por analogia, para alguma cincia natural, e da para a teologia. Continua ento a girar em torno deste seu centro, devido doura que brota nele medida que avana nestes estudos. A doura deleita-o tanto, que no encontra porta ou passagem que lhe permita ultrapassar as noes j estabelecidas nele. Poder, no melhor dos casos, deliciar-se em continuar tramando seus pensamentos, e a isto ele se abandonar, retirando-se inteiramente do mundo, para que ningum possa perturbar seu pensamento at que este ultrapasse um pouco o mero filosofar e se converta na espada chamejante que gira em todas as direes. A verdadeira causa disto pode residir igualmente na sua contemplao das letras, por cuja mediao ele reconhece as coisas. O objeto de que sua razo humana se apoderou o domina e seu poder lhe parece grande em todas as cincias, ao ver que tal conhecimento lhe veio de maneira natural. Ele

  • constata e est convencido de que certas coisas lhe so reveladas por meios profticos, embora ele no perceba a verdadeira causa, pensando que isto lhe sucedeu simplesmente porque aplicou e aprofundou sua razo humana. Mas na verdade so as letras determinadas por imaginao e pensamento que o influenciam atravs de seu mavimento e que concentram seu pensamento em temas dificeis, sem que o perceba.

    "Mas se me propuseres a difcil pergunta: "Por que agora pronunciamos letras e as movemos e procuramos produzir efeitos com elas, sem no entanto constatar qualquer efeito que emane delas?" a resposta est, como hei de demostrar com o auxlio de Deus, no terceiro caminho para induzir a espiritualizao. E eu, o humilde Fulano de Tal, vou contar-vos o que experimentei quanto a isto.

    "Sabei, amigos, que desde o incio senti o desejo de estudar a Tor e assim aprendi um pouco de seu teor e do resto da Escritura. Mas no encontrei ningum que me guiasse no estudo do Talmud, no tanto pela falta de professores, mas antes porque sentia saudade de casa, e pelo meu amor a meus pais. Finalmente, porm, Deus deu-me foras para buscar a Tor; eu sa, busquei e achei, e por diversos anos permaneci no estrangeiro estudando o Talmud. Mas a chama da Tor continuo a arder dentro de mim, embora eu no o percebesse.

    "Retornei a minha terra natal e Deus permitiu encontrar um filsofo judeu com quem estudei o "Guia dos Perplexos", de Maimnides, o que apenas intensificou meu anseio. Adquiri um pouco da cincia da lgica, e um pouco as cincia natural, e isto me foi muito doce, pois, como sabeis, a "natureza atrai a natureza". E Deus minha testemunha: se eu no tivesse antes adquirido fortaleza na f pelo pouco que aprendera da Tor e do Talmud, o impulso de manter muitos mandamentos me teria abandonado, embora o fogo da pura inteno continuasse a arder em meu corao. Mas o que meu mestre me comunicou atravs da filosofia (sobre o significado dos mandamentos) no me foi suficiente, at que o Senhor me fez encontrar um santo homem, um cabalista que me ensinou as grandes letras da Kabalah. Entretanto, em virtude das minhas tinturas da cincia natural, o caminho da Kabalah me parecia impossvel. Foi ento que meu mestre me disse: "Meu filho, por que negas uma coisa que ainda no experimentaste? Convir-te-ia muito mais tent-la uma vez. Se ento achares que ele nada para ti, e se no fores bastante perfeito para dizer que o erro est em ti, ento poders dizer que ela nada vale". Mas, para fazer-me as coisas mais agradveis at que minha razo pudesse aceit-las e eu lograsse me aprofundar nelas com avidez, costumava explicar-me de uma maneira natural tudo aquilo em que me instrua. Assim pensei comigo mesmo: Aqui s pode haver ganhos, e nenhuma perda. Eu verei; se encontrar algo nisto tudo, ser timo; e se no, o que eu j consegui at agora continuar sendo meu. Assim, concordei, e ele me ensinou o mtodo da combinao e permutao de letras e o misticismo dos nmeros e o outro "caminhos do Livro Ietzir". Em cada "caminho" destes, ele me fez permanecer duas semanas, at que cada forma estivesse gravada no meu corao, e assim ele me conduziu durante cerca de quatro meses, e ento mandou que eu "extinguisse" tudo.

    Ele costumava dizer-me: "Meu filho, a inteno no de que venhas a parar numa dada forma finita, mesmo que seja da ordem mais alta. O "Caminho dos Nomes" antes o seguinte: quanto menos compreensveis eles so tanto mais alta a sua ordem, at que

  • alcances a atividade de uma fora que no mais est sob teu controle, mas sob cujo controle se acham tua razo e teu pensamento". Respondi-lhe: "Se assim (que todas as imagens mentais e sensoriais devem ser extintas, ento por que, Senhor, compondes livros em que os mtodos dos cientistas naturais esto combinados com a instruo sobre os santos Nomes?, (Esta descrio d uma ideia precisa do contedo dos principais trabalhos de Abulfia.). Respondeu-me: "Para ti e teus semelhantes que seguem a filosofia, a fim de iluminar vosso intelecto humano por meios naturais para que talvez esta atrao possa induzir-vos a conhecer o Santo Nome". E apresentou-me livros compostos de (combinaes de) letras e nomes e nmeros msticos (guematriot), dos quais pessoa alguma jamais poder compreender nada, pois nem sequer foram compostos para serem compreendidos Disse-me: "Este o (autntico) Caminho dos Nomes". E eu na verdade nada quis saber daquilo tudo, pois minha razo no o aceitava. Disse-me: "Foi muito tolo da minha parte ter-te mostrado isto".

    "Em suma, decorrido dois meses, quando meu pensamento j se desligara (de tudo o que material) e eu comeara a notar fenmenos estranhos ocorrendo em mim, pus-me certa noite a combinar as letras umas com as outras e a ponder-las em meditao filosfica, um pouco diferente da maneira em que o fao agora, e continuei a faz-lo por trs noites sem nada dizer a ele. Na terceira noite, aps a meia-noite, cabeceei um pouco, com a pena e o papel nos joelhos. Reparei ento que a vela estava prestes a apagar-se. Levantei-me para endireit-la, como s vezes acontece com as pessoas que acordam. Ento vi que a luz continuava. Fiquei surpreendido, quando, depois de um exame minucioso, descobri que ela provinha de mim mesmo. Disse comigo mesmo: "Nisto no acredito". Andei para c e para l por toda a casa, e vede: a luz estava comigo o tempo todo. Disse eu: "Na verdade, o que aprendi constitui um sinal importante e um novo fenmeno".

    "Na manh seguinte comuniquei-o a meu mestre e trouxe-lhe as folhas que havia coberto com combinaes de letras. Ele cumprimentou-me e disse: "Meu filho, se te dedicares a combinar Nomes Sagrados, coisas ainda maiores ho de suceder-te. E agora, meu filho, admite que no podes deixar de combinar (letras). D metade a isto e metade quilo, isto , combina durante metade da noite e permuta durante a outra metade". Pratiquei este mtodo por uma semana.

    Na Segunda semana, o poder de meditao se tornara to forte em mim que eu no conseguia escrever as combinaes de letras (que automaticamente jorravam da minha pena), e se houvesse dez pessoas presentes no teriam conseguido anotar todas as combinaes que me vinham durante o influxo. Quando cheguei noite em que este poder me foi conferido, e a meia-noite quando este poder se expande especialmente e ganha fora, enquanto o corpo se enfraquece havia passado, dispus-me a construir o Grande Nome de Deus, que consiste de setenta e dois nomes, combinando-os e permutando-os, (Este Nome de Deus, base de setenta e dois nomes, constitudo pelas consoantes dos trs versculos do xodo 14:19-21, cada um dos quais consiste de setenta e duas consoantes; cf. BLAU, Das altjdische Zauzerwesen, 1898, p. 129. A maior parte do Haie Olam H-B um guia para a meditao sobre estes setenta e dois nomes, cujas componentes e combinaes esto inscritas em muitos crculos, cada qual servindo para uma meditao especial). Mas depois de eu me dedicar a isto por algum tempo, vede: as letras tomaram a meus olhos a forma de grandes montanhas, um forte tremor se apoderou de mim, eu no

  • pude mais acalmar-me, meu cabelo ficou em p, e foi como se eu no estivesse neste mundo. Ca ao cho imediatamente, pois no sentia a menor fora em meus membros. E vede: algo semelhante fala brotou do meu corao e subiu-me aos lbios e os forou a moverem-se . Pensei, bem possvel Deus no o queira que um esprito de loucura se apossou de mim. Mas vede, eu o vi falando coisas sbias. Disse: " na verdade o esprito da sabedoria". Depois de certo tempo, minha fora natural retornou a mim, levantei-me muito impressionado e ainda no acreditava em mim mesmo. Tomei mais uma vez o Nome, procedi com ele como antes, e vede: isto teve exatamente o mesmo efeito sobre mim. No obstante, no acreditei, enquanto no o repeti por cinco ou seis vezes.

    "Ao acordar na manh seguinte contei tudo ao meu mestre. Ele me disse: "E quem te autorizou a tocar o Nome? No te disse eu para permutar somente letras?". E continuou: "O que te sucedeu representa na verdade um grau avanado nos graus profticos". Ele quis libertar-me disto, pois viu que meu rosto se tinha alterado. Mas eu lhe disse: "Em nome dos Cus, podeis talvez ensinar-me algum poder que me permita suportar esta fora que brota do meu corao e receber influxo dela?" Pois eu queria esta fora para mim, e receber seu influxo, porque ela se assemelha a uma fonte que enche de gua uma vasilha. Se um homem (no preparado adequadamente para isto) abrisse o dique, afogar-se-ia nas guas e sua alma o abandonaria. Ele me disse: "Meu filho, o Senhor que tem de te conferir semelhante poder, pois este poder no est no domnio da vontade do homem".

    "Na noite daquele Schabat o poder esteve novamente ativo em mim, da mesma forma que antes. Quando, aps duas noites insones, fiquei dia e noite meditando nas permutas e nos princpios essenciais ao reconhecimento da verdadeira realidade e ao aniquilamento de tudo o que pensamento estranho, me foram dados dois sinais que me indicaram estar na disposio receptiva adequada. Um sinal foi a intensificao do pensamento natural sobre questes profundas do saber, uma debilitao do corpo e um fortalecimento da alma at que, sentado ali meu fosse todo alma. O segundo sinal foi que a imaginao se fortaleceu dentro de mim e me parecia que a testa ia explodir. Ento eu soube que estava pronto para receber o Nome. Naquela noite de Schabat aventurei-me tambm ao grande e inefvel Nome de Deus (o nome IHWH). Mas assim que o toquei, uma voz saiu de mim e me disse: "Tu morrers e certamente no vivers! Quem te permitiu tocar o Grande Nome?" E vede, imediatamente ca de joelhos e implorei ao Senhor Deus dizendo: "Senhor do Universo! Penetrei neste lugar somente por amor ao Cu, como tua glria sabe. Qual o meu pecado, e qual a minha transgresso? Aqui entrei somente para conhecer-te, pois no disse j Davi a Salomo: "Conhece o Deus do teu pai e serve-o; e no nos revelou isto nosso mestre Moiss, a paz esteja com ele, na Tor, dizendo: Mostra-me agora o Teu caminho, para que eu possa conhecer-Te, para que eu possa encontrar graa aos teus olhos?" E vede: eu estava ainda falando, quando um leo como leo de ungir me ungiu da cabaa aos ps, e uma grande alegria me arrebatou, um jbilo que no posso descrever, por sua espiritualidade e pela doura do seu enlevo.

    "Tudo isto aconteceu ao vosso sevo em seu comeo. E eu, Deus no o permita, no relato isto por arrogncia, para que a multido me julgue grande, pois sei muito bem que a grandeza junto multido deficincia e inferioridade junto aos que buscam o posto mas elevado, que difere dela em gnero e espcie como a luz da escurido.

  • "Agora, se alguns dos nossos filsofos, filhos do nosso povo, que se sentem atrados pelo saber inteligente e cujo poder intelectual, quanto aos mistrios da Tor, muito fraco, ler isto, ele rir de mim e dir: Vede como le busca enevoar nossa razo com conversas e estrias sem fundamento, com fantasias caprichosas que perturbaram seu esprito, e que ele toma por seu valor aparente, devido sua pouca compreenso das cincias naturais. Se, porm, um adepto da Kabalah, daqueles que tm alguma noo do assunto, ou melhor ainda, daqueles que tiveram a revelao destas coisas por experincia prpria, ler isto, ele se alegrar e minhas palavras obtero o seu favor. Mas por outro lado iro aborrec-lo por eu haver divulgado tudo isto em pormenor. No obstante, Deus minha testemunha que o fiz somente para a maior glria de Deus e com o desejo apenas de que cada pessoa de nosso sagrado povo fosse nisto mais apto e mais puro do que eu. Talvez seria possvel ento revelar coisas que eu ainda no conheo... Quanto a mim, no posso evitar de transmitir aos outros aquilo que Deus me concedeu. Mas como para esta cincia no h prova natural, na medida em que suas premissas so to espirituais quanto suas inferncias, vi-me forado a contar esta estria sobre a experincia pela qual passei. Na verdade, no h nesta cincia outra prova, exceto a prpria experincia... por isso que eu digo, a quem contestar este caminho, que eu lhe posso dar uma prova experimental, a saber, minha prpria percepo dos resultados supraterrenos, minha experincia na cincia das letras, tal como consignada no Livro Ietzir. Certamente eu no experimentei os efeitos corpreos (mgicos de tais prticas); e mesmo concedendo a possibilidade de tal forma de experincia, de minha parte nada quero com ela, pois uma forma inferior, especialmente quando medida pela perfeio a que a alma pode atingir espiritualmente . Na verdade, parece-me que aquele que tenta obter estes efeitos (mgicos) blasfema contra o Nome de Deus, e a isto que nossos mestres aludem, ao dizer: "Desde que licena prevaleceu, o Nome de Deus foi ensinado somente aos sacerdotes mais discretos".

    "O terceiro o caminho cabalstico. C