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Fernando Passos Victorino ABORTO: CRIME OU LIBERDADE DE ESCOLHA? Centro Universitário Unitoledo Araçatuba SP 2017

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Fernando Passos Victorino

ABORTO: CRIME OU LIBERDADE DE ESCOLHA?

Centro Universitário Unitoledo

Araçatuba – SP

2017

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Fernando Passos Victorino

ABORTO: CRIME OU LIBERDADE DE ESCOLHA?

Monografia apresentada no curso de graduação em

Direito, sob a orientação do professor Dr. Pedro Luís

Piedade Novaes, como requisito para a colação de grau.

Centro Universitário Unitoledo

Araçatuba – SP

2017

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BANCA EXAMINADORA

________________________________

Professor (...)

________________________________

Professor (...)

________________________________

Professor (...)

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À minha família, por todo o apoio que sempre

me deram, por todas as alegrias e por serem

meu porto seguro. Muito do que sou hoje devo

a vocês. Meus mais sinceros agradecimentos

por todo o amor e confiança que sempre

depositaram em mim. Vocês são os maiores

presentes que recebi de Deus.

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RESUMO

O presente trabalho visa trazer uma visão ampla e geral sobre o assunto,

explicando seu conceito, suas modalidades, opiniões e como o tema vem sendo tratado

no Brasil, em especial pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um tema complexo e

comporta análise sob os aspectos científicos, religiosos, éticos, morais, históricos e,

principalmente, sob o aspecto jurídico. Existem vários pontos de vista sobre o tema e

até hoje não há consenso de como o assunto deve ser tratado frente a um caso prático.

Dessa forma, este trabalho estará voltado a informar mais sobre o assunto,

buscando encontrar uma forma de efetivar o direito à vida, o direito à saúde e à

dignidade da pessoa humana, de modo a garanti-los igualmente.

Palavras-chave: ABORTO, DIREITO À VIDA, BRASIL.

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ABSTRACT

The present work aims to bring a broad and general view on the subject,

explaining its concept, its modalities, opinions and how the theme has been treated in

Brazil, specially by the Federal Court of Justice. It is a complex subject and involves

analysis under the aspects of science, religion, ethics, moral, history and, above all, the

legal aspects. There are several points of view on the subject and until now there is no

consensus about how the matter should be dealt with in a pratical case.

In this way, this work will be aimed at informing more about the subject,

seeking to find a way to realize the right of life, the right to health and the dignity of the

human person, so as to guarantee them equally.

Key-Words: ABORTION, RIGHT TO LIFE, BRAZIL.

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LISTA DE ABREVIATURAS

ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

Art. – Artigo

STF – Supremo Tribunal Federal

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................9

I – ABORTO..................................................................................................................11

1.1 Conceito ............................................................................................................................. 11

1.2 Classificação ....................................................................................................................... 11

1.3 Métodos de execução do aborto ......................................................................................... 13

II – ABORTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS..............................................................15

2.1 Consequências Físicas ........................................................................................................ 15

2.2 Consequências Psicológicas ............................................................................................... 16

III – ABORTO E A RELIGIÃO..................................................................................18

3.1 Igreja Católica..................................................................................................................... 18

3.2 Igrejas Protestantes ............................................................................................................. 20

3.3 Espiritismo .......................................................................................................................... 22

IV – ABORTO À LUZ DO DIREITO.........................................................................25

4.1 Direito à vida ...................................................................................................................... 25

4.2 Personalidade Civil do Nascituro ...................................................................................... 30

4.3 Aborto no Código Penal Brasileiro .................................................................................... 34

4.4 Posicionamentos do Supremo Tribunal Federal ................................................................. 42

CONCLUSÃO................................................................................................................52

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................54

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INTRODUÇÃO

O aborto é, de fato, uma interminável polêmica. Afinal, quando a discussão entra

nos parâmetros da vida e a morte torna-se cada vez mais difícil de se chegar a um

consenso.

Não bastasse isso, o tema é abrangido por várias ciências além do Direito,

havendo também relação com a Psicologia, Filosofia, Sociologia, Religião, entre outras.

Logo, visualiza-se facilmente a complexidade do tema em meio a incontáveis opiniões

vindas das mais diversas áreas.

Abordar o tema envolve inúmeros questionamentos como: Descriminalizar o

aborto é a solução? Descriminalizar o aborto seria inconstitucional? Devemos zelar pela

liberdade de escolha da gestante ou pelo direito à vida do feto?

No Brasil e no mundo o assunto vem ganhando cada vez mais repercussão,

tendo de um lado o grupo de pessoas pró-escolha, defensores da liberdade de escolha

das mulheres em manter ou não a gravidez, e de outro o grupo pró-vida, que se

posicionam em defesa da vida humana.

Nos últimos anos a discussão vem crescendo a discussão no Brasil

principalmente pelos posicionamentos tomados pela Suprema Corte, ao decidir em

2012, no julgamento da ADPF 54, que o aborto de fetos anencéfalos constitui fato

atípico e, mais recentemente, em 2016, no julgamento do Habeas Corpus 124.306, ao

decidir que o aborto praticado nos três primeiros meses da gestação não é crime. Com

os mencionados entendimentos surge o questionamento: As decisões foram acertadas?

Assim sendo, o presente estudo tem como finalidade analisar as questões éticas

e, principalmente, jurídicas sobre o aborto, mostrando a forma como o assunto é tratado

pelo Direito Brasileiro através do Código Penal, Código Civil e pela Constituição

Federal.

No primeiro capítulo será abordado uma explicação sobre os aspectos gerais

aborto, explicando seu conceito, sua classificação e os seus diferentes métodos de ser

praticado.

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No segundo capítulo será exposto quais as consequências que a prática abortiva

pode causar, explicando as consequências físicas e as psicológicas.

No terceiro capítulo será abordado o aborto dentro do aspecto religioso, ou seja,

como as principais religiões dentro do Brasil enxergam e tratam o assunto.

No quarto e último capítulo o tema será tratado especificamente dentro do

ordenamento jurídico brasileiro, explicando a personalidade civil do nascituro, a vida

como um direito fundamental, a tipificação do aborto no Código Penal e, por último, os

mais recentes posicionamentos do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto.

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I – ABORTO

1.1 Conceito

Do latim abortus, o dicionário Michaelis define o aborto como a interrupção do

desenvolvimento do feto durante o período da gravidez, resultando em sua morte, desde

que anteceda o período de 20 semanas da gestação.

Há dois tipos de aborto: o espontâneo e o induzido. Aborto espontâneo consiste

na expulsão não intencional do feto, ou seja, quando ocorre por causas naturais. Já o

aborto induzido, por sua vez, consiste na interrupção voluntária da gravidez. Ambos

serão tratados e melhor explicados adiante.

Na medicina faz-se a distinção do termo “aborto” de “abortamento”. Segundo a

medicina, o abortamento consiste no processo de perda do produto conceptual, ao passo

que o aborto é o próprio produto da concepção.

Vale ressaltar que o produto da concepção também podem ser as membranas

amnióticas, o cordão umbilical e a placenta, não se limitando apenas ao feto.

Nucci (2009, p. 629) define que aborto é “a cessação da gravidez, cujo início se

dá com a nidação, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião”

Para Mirabete (2008, p. 62) "Aborto é a interrupção da gravidez com a

destruição do produto da concepção".

1.2 Classificação

Como já mencionado, o aborto é dividido entre o aborto espontâneo e o aborto

induzido.

Maria Tereza Verardo (1996, p. 23) explica que o aborto espontâneo, também

conhecido como aborto natural, ocorre quando há uma interrupção espontânea e não

voluntária da gravidez. As causas que o provocam são intrínsecas, ou seja, sem

interferência externa. Pode ocorrer causas como a má-formação do feto, defeitos

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uterinos, problemas psicológicos, entre vários outros. Não há vontade da gestante e

ocorre por fatores psicológicos, biológicos e sociais.

Já o aborto induzido, também conhecido como aborto provocado, Maria Tereza

Verardo (1996, p.24) explica que é aquele que ocorre por influência externa, causada

por uma ação humana deliberada, com alguma interferência humana e química. Keith

Leon Moore (2008, p.23) explica que para o conceito médico este tipo de aborto ocorre

com a expulsão de um feto ou de um embrião antes de completadas 20 semanas de

gestação.

O Direito Penal considera o aborto induzido como a interrupção do processo de

gestação entre o período de concepção e do parto, gerada por uma ação dolosa humana e

que resultará na morte do feto. Aqui não é requisito temporal ou biológico, levando em

consideração apenas a conduta dolosa do agente a fim de interromper a gravidez.

Além do aborto espontâneo e do aborto induzido, nosso ordenamento jurídico

também possui outras classificações, sendo algumas delas:

a) Acidental: Para Maria Helena Diniz (2001, p. 32) é aquele decorrente de um

acidente ou qualquer interferência involuntária externa.

b) Humanitário: Também conhecido como aborto sentimental, Maria Tereza

Verardo (1996, p. 25) explica que é aquele que ocorre em razão da gravidez

resultada de um estupro e que há o consentimento da gestante ou de seu

representante legal.

c) Eugênico: Maria Tereza Verardo (1996, p. 25) explica que o aborto

eugênico é aquele que ocorre quando há o risco de que o feto possua

anomalias físicas e mentais irreversíveis, ou que apresente doença

transmitida por um dos genitores.

d) Terapêutico: Para Maria Tereza Verardo (1996, p. 24), o aborto terapêutico

é aquele que ocorre quando a gestante corre risco de vida e não é possível

salvá-la de outra forma.

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1.3 Métodos de execução do aborto

O aborto pode ser praticado de diversas maneiras, podendo ser por ação ou

omissão, uma vez que se trata de um crime de ação livre. Segundo Magalhães Noronha

(1998, p.56) os métodos de execução do aborto por ação são os seguintes:

a) Químico: Com a utilização de substâncias orgânicas ou inorgânicas. Tais

substâncias não possuem finalidade abortiva e atuam por via de intoxicação

da vítima.

b) Processos físicos: Utilização de mecanismos diretos ou indiretos, térmicos e

elétricos.

c) Processos Psíquicos: Aqueles que atuam pelo psicológico da gestante, a

exemplo do susto, shock moral, terror, sugestão, entre outros.

Segundo Pierangeli (2005, p.113) independente do meio utilizado, a

caracterização do crime pressupõe a existência de uma relação de causa e efeito, em

outras palavras, que o resultado morte do feto tenha decorrido da ação e do meio

utilizado. Noronha (1998, p.56) também ressalta que não há que se falar em crime de

aborto, nem mesmo em sua forma tentada, nos casos de práticas supersticiosas, a

exemplo de rezas e despachos.

Alguns autores defendem também ser possível a prática do aborto por omissão,

como no caso em que o médico, parteiro ou enfermeiro, ante uma situação de iminente

aborto espontâneo, não tomam as medidas necessárias a fim de evitá-lo, caracterizando

o crime pela prática omissiva (CAPEZ, 2012, p. 131).

Rogério Sanches Cunha (2016, p. 98) explica que o aborto se dá como

consumado com a interrupção da gravidez e, consequentemente, pela morte do feto ou a

destruição do produto da concepção, uma vez que se trata de um crime material, e que

indispensavelmente ocorra através de manobras abortivas. No mesmo sentido,

Magalhães Noronha (2003, p. 54) esclarece:

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Carece de razão Logoz quando escreve que „o delito está consumado pela

expulsão do foetus‟. Não é esse o momento consumativo. Pode haver

expulsão sem existir aborto, quando, no parto acelerado, o feto continua a

viver, embora com vida precária ou deficiente; pode ser expulso, já tendo,

entretanto, sido morto no ventre materno; pode ser morto aí e não se dar a

expulsão, e pode ser morto juntamente com a mãe, sem ser expulso. Em todas

essas hipóteses, é a morte do feto que caracteriza o momento consumativo.

Rogério Sanches Cunha (2016, p. 98) também esclarece que havendo

nascimento com vida e posterior morte do recém-nascido em razão de uma ação ou

omissão do agente, não há que se falar em aborto, devendo a ação ou omissão ter

tipificação diversa.

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II – ABORTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

2.1 Consequências Físicas

O processo abortivo pode implicar em uma série de consequências físicas no

corpo da gestante. Para Hardy e Alves (1992, p. 454) cada uma delas dependerá muito

do método escolhido, do período da gestação no momento da prática e também da

perícia de quem irá realiza-lo. Segundo Barros, Lima e Magalhães (2010) esses fatores

podem tornar o processo mais ou menos perigoso, podendo implicar no risco de

esterilidade e até mesmo à vida da gestante.

Vera Jacubowski (2015) explica que os métodos abortivos físicos, como já

explicado, são os que atingem diretamente o organismo da mãe e, por essa razão, são os

mais letais. Os métodos abortivos psíquicos, por visar apenas o psiquismo da gestante,

atingem o corpo da mulher apenas de maneira indireta.

Vera Jacubowski (2015) também esclarece que por possuírem formação

profissional e disporem de instrumentos mais adequados, médicos e enfermeiros

acabam por serem melhor sucedidos na consumação do processo abortivo do que as

gestantes e parteiras, pois, além de praticarem o ato de maneira clandestina, se utilizam

de meios rústicos, inapropriados e ambientes de má higiene para a prática, o que resulta

em riscos maiores e sequelas ainda mais graves. Se realizado até ao terceiro mês da

gestação, os riscos serão menores do que em gestações de período mais avançado.

Sheila Sedicias (2016) relaciona algumas dessas consequências que podem

acontecer, sendo elas: perfuração do útero, tétano (pela utilização de objetos

contaminados), esterilidade, inflamações na trompa e no útero e retenção de restos na

placenta, que podem causar infecção uterina.

Eliseu Florentino Mota Júnior (1995, p. 121) explica que as consequências

físicas do aborto são divididas entre duas categorias, sendo elas:

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a) Imediatas: Dentre as consequências imediatas podemos destacar a grave

hemorragia, perfurações e infecções da vagina, do útero, das trompas e dos

ovários da gestante, que pode resultar na esterilidade ou até mesmo na morte.

b) Mediatas: Envolvem lesões intestinais e estomacais, além da necessidade de

procedimentos cirúrgicos reparadores da região gástrica e do aparelho genital

feminino.

2.2 Consequências Psicológicas

Além das consequências físicas, a mulher que pratica aborto pode vir a enfrentar

uma série de consequências psicológicas e emocionais que podem se manifestar a curto,

médio e longo prazo. Para alguns médicos, esse conjunto sintomas psíquicos e

emocionais é de chamado Síndrome pós-aborto (ARAGUAIA, 2017). Porém, tal

síndrome ainda é uma questão controversa e não há unanimidade entre os médicos.

Vera Jacubowski (2015), nesse sentido, explica:

Entre as causas das anomalias psíquicas, o remorso assume especial

relevância, porque, ao contrário do arrependimento, que é o primeiro passo

para a reabilitação diante de um erro cometido, aquele provoca o complexo

de culpa, levando a pessoa que eventualmente tenha errado a crises nervosas,

chegando mesmo à loucura.

Psicólogos e psiquiatras apontam alguns sintomas como mais recorrentes, sendo

eles: culpa, depressão, flashbacks do ato praticado, constantes pesadelos, reações

negativas relativas à data do aborto ou à data prevista para o nascimento da criança,

pensamentos e tendências suicidas, dificuldade em ter contato com crianças, alcoolismo

e abuso de outras drogas, dificuldades de concentração e ansiedade (ARAGUAIA,

2017).

Rebouça e Dutra (2011) destacam, porém, que a prática abortiva não implica

necessariamente em sequelas psicológicas. Muitas das mulheres que optam por abortar

apresentam uma intensidade de emoções positivas, podendo reagir com sentimento de

alívio, libertação e bem-estar.

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De um lado, há médicos que afirmam que o ato em si de se retirar um feto, de

forma induzida, já é por si só um trauma que poderá desencadear, independentemente

do histórico psiquiátrico da paciente, distúrbios como síndrome do pânico e depressão.

Por outro lado, há outros médicos que afirmam que a gravidez indesejada por si só pode

ocasionar em perturbações, tanto na gestante quanto no filho, e que apenas os abortos

praticados de forma clandestina é que deixam sequelas, tanto físicas quanto

psicológicas.

É destacado por Rebouça e Dutra (2011) que há uma variedade de razões que

podem levar à mulher à prática abortiva:

As razões para realizar um aborto são variadas, a saber: situação

socioeconômica, incluindo pobreza, falta de suporte do parceiro e

desemprego; preferências de constituição familiar, como postergar a

maternidade ou deixar um espaço saudável entre as gravidezes; problemas de

relacionamento com o marido ou parceiro; risco à saúde da mãe ou do bebê;

estupro ou incesto.

Logo, as consequências psíquicas da gestante que abortar dependerá muito do

contexto e das razões que a motivou a praticar o ato. Levando tudo isso em

consideração, fica demonstrado que os abortos clandestinos fatalmente trarão prejuízos

psicológicos muito maiores do que os abortos clínicos.

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III – O ABORTO E A RELIGIÃO

3.1 Igreja Católica

Em sua história, a Igreja Católica sempre foi, sem dúvida, a mais rígida em

relação ao aborto.

Desde o século IV a Igreja tem como posicionamento oficial a reprovação do

aborto, independente do estágio da gestação e de suas circunstâncias, uma vez que ela

entende que a vida tem início a partir da concepção. Nesse sentido, o Catecismo da

Igreja Católica diz:

A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir

do momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua existência, o

ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o

direito inviolável de todo ser inocente à vida. (CIC, §2270).

Vale ressaltar que esse posicionamento é único, contundente e independente, ou

seja, não se vincula às regras e posicionamentos dos Estados. Logo, a Igreja condena e

reprova o aborto ainda que seja praticado em um país que não o criminalize.

O Código de Direito Canônico, no Cânon 1398, tipifica o aborto como crime:

"Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae

sententiae". Logo, visualiza-se que a punição da Igreja para quem pratica o aborto é a

excomunhão. Padre Paulo Ricardo (2011) esclarece que "a excomunhão latae sententiae

significa que, no momento em que o aborto é cometido, um juiz superior (Deus) julga,

condena e executa a pena. Não necessita de declaração posterior de quem quer que

seja".

Em 1917, a Igreja declarou que tanto a mulher quanto todos aqueles que forem

partícipes da prática abortiva deverão ser penalizados com a excomunhão. Nesse

sentido, o Catecismo da Igreja Católica acrescenta:

A cooperação formal para um aborto constitui uma falta grave. A Igreja

sanciona com uma pena canônica de excomunhão este delito contra a vida

humana. “Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em

excomunhão latae sententiae” “pelo próprio fato de cometer o delito” e nas

condições previstas pelo Direito. Com isso, a Igreja não quer restringir o

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campo da misericórdia. Manifesta, sim, a gravidade do crime cometido, o

prejuízo irreparável causado ao „inocente morto, a seus pais e a toda a

sociedade. (CIC, §2272).

Em 1930, Papa Pio XI promulgou a encíclica Casti Connubii (ou "Casamento

Casto"), onde ele trata da santidade e dos deveres do matrimônio. Nessa encíclica foi

decretado que a vida do feto possui o mesmo valor da vida gestante, declarando

moralmente ilícita a interrupção da gestação pelo aborto, assim como a utilização de

qualquer método anticoncepcional. Em suas palavras, Papa Pio XI (1930) decretou:

Mas, para tratarmos agora, Veneráveis Irmãos, de cada um dos pontos que se

opõem aos diversos bens do matrimônio, falemos primeiro da prole, que

muitos ousam chamar molesto encargo do casamento e afirmam dever ser

evitada cuidadosamente pelos cônjuges, não pela honesta continência

(permitida até no matrimônio, pelo consentimento de ambos os cônjuges),

mas viciando o ato natural. Alguns reclamam para si esta liberdade

criminosa, porque, aborrecendo os cuidados da prole, desejam somente

satisfazer a sua voluptuosidade, sem nenhum encargo; outros porque, dizem,

não podem observar a continência nem permitir a prole, por causa das

dificuldades quer pessoais, quer da mãe, quer da economia doméstica.

E completou, ainda:

Mas nenhuma razão, sem dúvida, embora gravíssima, pode tornar conforme

com à natureza e honesto aquilo que intrinsecamente é contra a natureza.

Sendo o ato conjugal, por sua própria natureza, destinado à geração da prole,

aqueles que, exercendo-a, deliberadamente o destituem da sua força e da sua

eficácia natural procedem contra a natureza e praticam um ato torpe e

intrinsecamente desonesto.

Em 1968, foi promulgada pelo Papa Paulo VI a encíclica Humanae Vitae (ou

"Da Vida Humana"), onde há uma abordagem do posicionamento da Igreja Católica

especificamente em relação ao aborto e demais medidas que possuam relação com a

vida sexual humana. Essa encíclica veio para reiterar a reprovabilidade do aborto e da

utilização de quaisquer métodos anticoncepcionais, como dito por Papa Paulo VI

(1968):

Em conformidade com estes pontos essenciais da visão humana e cristã do

matrimônio, devemos, uma vez mais, declarar que é absolutamente de

excluir, como via legítima para a regulação dos nascimentos, a interrupção

direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o aborto querido

diretamente e procurado, mesmo por razões terapêuticas. É de excluir de

igual modo, como o Magistério da Igreja repetidamente declarou, a

esterilização direta, quer perpétua quer temporária, tanto do homem como da

mulher. É, ainda, de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal,

ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas

consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar

impossível a procriação.

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Porém, destaca-se que na mencionada encíclica foi dito que a Igreja Católica não

punirá cegamente aqueles que se utilizarem do aborto e dos métodos anticoncepcionais

para fins terapêuticos, ou seja, se for pura e simplesmente para tratar de eventuais

enfermidades no corpo, como Papa Paulo VI (1968) também esclarece:

A Igreja, por outro lado, não considera ilícito o recurso aos meios

terapêuticos, verdadeiramente necessários para curar doenças do organismo,

ainda que daí venha a resultar um impedimento, mesmo previsto, à

procriação, desde que tal impedimento não seja, por motivo nenhum, querido

diretamente.

Para o padre Paulo Ricardo (2011) aqueles que praticam o aborto ou que

concorram de alguma forma para o seu acontecimento não serão automaticamente

punidos e, consequentemente, excomungados. Para que os agentes venham a ser

realmente condenados, é necessário que eles tenham conhecimento da existência do

crime e de sua pena. Se houver desconhecimento dos agentes, não há que se falar em

punição. A regra também é aplicada aos legisladores católicos que posiciona-se votando

a favor da descriminalização do aborto ou de meios que o facilitem.

Na Igreja Católica apenas bispos ou confidentes especiais de maior hierarquia

poderiam perdoar o aborto. Porém, em 2016, o Papa Francisco autorizou em caráter

definitivo que todos os padres da Igreja Católica possam perdoar o aborto. Essa decisão

teve como fundamento facilitar "o pedido de reconciliação e o perdão de Deus". O

principal impacto dessa decisão é que o católico que praticar o aborto, seja a gestante ou

o médico, não mais será excomungado pela Igreja. Essa decisão do Papa Francisco pode

representar o início de uma mudança na postura da própria Igreja, podendo esta estar

tornando-se mais maleável com o assunto.

3.2 Igrejas Protestantes

Assim como a Igreja Católica, as Igrejas Protestantes também posicionam-se de

maneira contrária ao aborto. Porém, a postura do protestantismo não é tão contundente e

severa quanto a do catolicismo, portanto, há um maior grau de flexibilidade. Essa

postura deve-se ao fato de que o protestantismo também dar muito enfoque à vida

gestante e não apenas à vida do feto.

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Por haverem diversas Igrejas Protestantes (a exemplo das igrejas batista,

luterana, metodista, presbiteriana, dentre outras) e pelo próprio protestantismo possuir

mais de uma ramificação, o aborto não é tratado de maneira homogênea. Por esse

motivo, algumas igrejas acabam sendo mais flexíveis do que outras.

Assim como os católicos, os protestantes acreditam que o direito à vida surge a

partir da fecundação, pois é esse o momento que alma é infundida ao corpo. Sua postura

contrária a contracepção tem como fundamento única e exclusivamente a Bíblia, por

entenderem que essa é a única autoridade de fé por ser a palavra de Deus. Embora a

Bíblia não faça nenhuma menção específica à questão do aborto, suas escrituras dizem

que Deus reconhece a vida a partir de sua concepção, como dito em Jeremias 1:5: "antes

que te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei; às

nações te dei por profeta".

No Brasil há uma forte militância por parte das igrejas em combate ao aborto,

em especial por parte das igrejas evangélicas. Um dos mais conhecidos pastores do país,

ligado à Assembleia de Deus, Silas Malafaia é um dos que trata o tema com mais

severidade. Em suas palavras, Malafaia (2013) diz:

Para aqueles que defendem o aborto com base na alegação de que a mulher

tem o direito de pôr fim à gestação de um filho indesejado porque ela é

senhora do seu próprio corpo, eu gostaria de lembrar que o feto não é uma

extensão da mãe. Embora precise do útero dela e tenha uma relação

simbiótica com ela, o feto é um ser independente. Logo, ela não tem o direito

de tirar-lhe a vida.

E completa, ainda:

E não é só isso! Sou contra o aborto, pois trata-se de violência dos poderosos

contra os indefesos. Como um embrião ou um feto indefeso pode defender-se

de um aborto praticado por uma mulher que não o ama e deseja e de um

médico que jurou defender a vida, mas pratica a morte?

Porém, até mesmo entre as igrejas evangélicas há divergências de opiniões sobre

o aborto. O bispo Edir Macedo, fundador e líder espiritual da Igreja Universal do Reino

de Deus, não segue a mesma linha de pensamento das demais igrejas evangélicas do

país, uma vez que o mesmo é declaradamente favorável à descriminalização do aborto.

No entender o bispo, o aborto não é, em si, o problema, mas sim o resultado de um

grande problema social que é visível principalmente nas classes mais baixas. Segundo o

bispo Macedo (2010):

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Eu sempre digo que sou a favor do aborto, não indiscriminadamente, mas em

determinadas circunstâncias. Não faço isso para declarar guerra a nenhuma

religião ou à parcela da sociedade que é contra o procedimento. Tenho esta

opinião principalmente porque a fé que eu professo me impede de exaltar a

hipocrisia. O aborto não é a causa do problema, é o efeito. O problema

começa antes, na falta de informação, principalmente às camadas

financeiramente menos favorecidas; na falta de ações preventivas; nas

inúmeras questões sociais que têm levado à destruição de lares e à

banalização da família.

Logo, pela variedade de ramificações, cada uma com suas diferentes

características, vislumbra-se que a questão ainda é tratada com uma grande divergência

de opiniões entre as igrejas protestantes, não havendo um consenso certo entre elas,

embora a grande maioria convirja em manter-se contra.

3.3 Espiritismo

Assim como no catolicismo e no protestantismo, como demonstrado

anteriormente, o espiritismo posiciona-se contrário ao aborto e de maneira contundente

e bem definida. Para os espíritas, o aborto consiste em uma recusa ao que foi designado

por Deus. Para a doutrina espírita, o aborto não será reprovável apenas quando houver

risco iminente à vida da mãe, pois entende-se que a vida da pessoa já existente (no caso,

a vida da mãe) deverá ser priorizada em relação à vida da pessoa que ainda viria a

existir (vida do feto).

Na doutrina espírita pouco importa o período da gestação, pois sempre será

considerado reprovável e criminoso, como esclarece Allan Kardec (2004, p. 252):

Há crime sempre que transgredis a lei de Deus. Uma mãe, ou quem quer que

seja, cometerá crime sempre que tirar a vida a uma criança antes do seu

nascimento, por isso que impede uma alma de passar pelas provas a que

serviria de instrumento o corpo que se estava formando.

Vale destacar que para o espiritismo o aborto não é necessariamente uma morte

do ser em si. Para eles, o espírito sempre existiu e o corpo é apenas uma fase transitória

na Terra. Logo, a morte carnal não implica na morte do espírito. Sob essa perspectiva,

vislumbra-se que para os espíritas o aborto não é a morte de um ser, mas sim a

frustração de um espírito em reencarnar em um corpo e quanto piores forem as causas

que justificarem o aborto, piores serão as consequências que o espírito frustrado sofrerá.

No caso do aborto natural, o espírito retorna à espiritualidade sem consequências.

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Segundo Allan Kardec (2004, p. 248) inicia-se na concepção a união da alma ao

corpo e essa união é definitiva. Esse vínculo se mantém através de um laço fluídico que

é apertado conforme o dia do nascimento da criança se aproxima.

Para Rossit (2016) a mulher que pratica o aborto sob o argumento dela ser dona

de seu próprio corpo está se utilizando de um sofisma materialista, pois ele diz que

nossos corpos são empréstimos concedidos por Deus a fim de que possamos realizar

nossa jornada na Terra. Rossit também destaca que temos deveres com nossos corpos,

sendo o primeiro de preservá-lo, de forma disciplinada, agindo com consciência de

todas as suas necessidades, e o segundo de preservar e respeitar a vida gerada dentro

deles, pois esse é um desígnio de Deus e apenas Ele é quem pode decidir sobre os

rumos das criaturas.

Mesmo em casos de estupro a doutrina espírita posiciona-se contrária ao aborto,

pois o feto não foi o responsável pelo crime e por entenderem que o direito do espírito

de reencarnar, ou seja, o direito à vida, sempre estará acima do estado e das

consequências psicológicas da gestante.

O posicionamento é o mesmo também nos casos de má formação do feto ou que

vá apresentar deficiência intelectual. Alan Kardec (2004, p. 258) diz que os espíritos

presentes nesses corpos portadores de deficiência são aqueles que estão sujeitos a uma

punição. Especificamente sobre a questão da anencefalia, Nobre (2004) explica:

Se somos espíritas, a explicação para os fetos anencéfalos é muito mais

lógica e racional. Não podemos nos esquecer de que só o Espírito tem

capacidade de agregar matéria. Se não tivesse um Espírito no comando, o

anencéfalo não poderia formar os seus próprios órgãos - e o fazem a tal ponto

que eles são cogitados para transplantes -, não cumpriria o seu metabolismo

basal, e não teria preservadas as suas funções vitais.

E em seguida, completa:

O Espírito expressa-se através do perispírito ou do corpo espiritual e este, por

sua vez, modela o corpo físico. Se há erros ou deficiências na modelagem,

isto significa que o Espírito deformou o seu perispírito por problemas

cármicos ou faltas cometidas em outras vidas. Assim como podem ocorrer

deficiências nos mais variados órgãos, a questão não é diferente em relação

ao cérebro.

Por fim, o espiritismo também faz uma severa crítica a quem pratica o aborto

sob o argumento de evitar que a criança viva em condições precárias pela falta de

recursos da gestante para poder sustentá-lo e também sob um argumento de

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superpopulação. Nesse sentido, Kardec (2004, p. 409) diz que Deus sempre provê

equilíbrio e que nada do que faz é inútil. Para ele, o homem não compreende nem pode

querer ter controle sobre a Natureza e o conjunto da obra de Deus.

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IV – ABORTO À LUZ DO DIREITO

4.1 Direito à vida

Sem qualquer dúvida, a vida é o maior de todos os direitos fundamentais. Afinal,

a vida é o principal requisito da existência e sem ela não há que se falar em outros

direitos. Mas eis o questionamento: o que é a vida? Como ela pode ser conceituada?

Essa não é uma tarefa fácil e até nos dias de hoje não há um consenso sobre uma

definição certa, uma vez que envolve aspectos biológicos, filosóficos, religiosos,

jurídicos, dentre outros.

De maneira simplificada, Moore e Persaud (2004), explicam que vida (vinda do latim

vita) é o período entre a concepção e a morte, ou, em outras palavras, a condição de um

organismo que nasceu e ainda não morreu.

Entender o conceito de vida, porém, não é o suficiente. É necessário que se

responda outro questionamento: a partir de que momento a vida se inicia? Mais uma

vez, é uma questão que não há consenso. Para responder essa questão, foram criadas

algumas teorias e para cada uma delas a vida tem início em um determinado período.

Segundo Castro (2014) as principais teorias são: teoria concepcionista, teoria da

nidação, teoria da gastrulação, teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso

central, teoria natalista e a teoria da personalidade formal.

Pela teoria concepcionista, como o próprio nome esclarece, entende-se que a

vida tem o início na concepção. Essa teoria, como demonstrado anteriormente, é a aceita

e adotada pelas religiões cristãs, pois acreditam que é a partir da fecundação que a alma

cria ligação com o feto (CASTRO, 2014). Por esta teoria, entende-se que o aborto será

um crime em qualquer período da gestação, uma vez que a partir do momento que

ocorre a fecundação já haverá vida. Maria Helena Diniz (2012, p. 222) é adepta a essa

teoria, pois segundo ela:

Entendemos que o início legal da personalidade jurídica é o momento da

penetração do espermatozoide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher,

pois os direitos da personalidade, como o direito à vida, à integridade física e

à saúde, independem do nascimento com vida.

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Fernando Capez (2012, p. 129) também entende que a teoria concepcionista é a

mais acertada, pois segundo ele:

A lei não faz distinção entre o óvulo fecundado (3 primeiras semanas de

gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses), pois em

qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer,

entre a concepção e início do parto, pois após o início do parto poderemos

estar diante do delito de infanticídio ou homicídio.

Paulo Gustavo Gonet Branco (2010, p. 445) também é adepto dessa teoria, como

ele explica:

O elemento decisivo para se reconhecer e se proteger o direito à vida é a

verificação de que existe vida humana desde a concepção, quer ela ocorra

naturalmente, que in vitro. O nascimento é um ser humano. Trata-se,

indisputavelmente, de um ser vivo, distinto da mãe que o gerou, pertencente à

espécie biológica do homo sapiens. Isso é bastante para que seja titular do

direito à vida – apanágio de todo ser que surge do fenômeno da fecundação

humana.

Vale destacar também que o Pacto de São José da Costa Rica, da qual o Brasil é

signatário, adotou essa teoria ao dizer em seu art. 4º que "toda pessoa tem o direito de

que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o

momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente".

Pela teoria da nidação, o próprio nome já deixa claro que para ela o marco inicial

da vida é a partir do momento em que ocorre a nidação. A nidação é o momento em que

o embrião é fixado na parede do útero e a partir disso começa o processo de

desenvolvimento (CASTRO, 2014). O argumento dessa teoria consiste em dizer que

apenas com a nidação começa a haver atividades celulares e, consequentemente, a

formação dos órgãos, então só a partir desse momento que pode se dizer que há vida.

Júlio Fabbrini Mirabete (2008, p. 63) é adepto desta teoria, pois segundo ele:

O objeto material do delito é o produto da fecundação (ovo, embrião ou feto).

Segundo a doutrina, a vida intrauterina se inicia com a fecundação ou

constituição do ovo, ou seja, a concepção. Já se tem apontado, porém, como

início da gravidez, a implantação do óvulo no útero materno

(nidação). Considerando que é permitida a venda do DIU e pílulas

anticoncepcionais cujo o efeito é acelerar a passagem do ovo pela trompa, de

modo que atinja ele o útero sem condições de implantar-se, ou transformar o

endométrio para criar nele condições adversas para a implantação do óvulo,

forçoso é concluir-se que se deve aceitar a segunda posição, tendo em vista a

lei penal. Caso contrário, dever-se-á incriminar como aborto o resultado da

ação de pílulas e dos dispositivos intrauterinos que atuam após a fecundação.

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O constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de

Moraes (2003, p. 88) também é adepto desta teoria, pois segundo ele:

O início dessa preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo,

cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, e, “do ponto

de vista biológico, não há dúvida de que a vida se inicia com a fecundação do

óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto. Assim o

demonstram os argumentos colhidos na Biologia. A vida viável começa,

porém, com a nidação, quando se inicia a gravidez...e assegura, ninguém

pode ser privado arbitrariamente de sua vida. Esse direito, que é o primeiro

da pessoa humana, tem em sua concepção atual conflitos com a pena de

morte, as práticas abortivas e a eutanásia como posteriormente analisados.

Há também a chamada teoria da Gastrulação. Karen Henrique (2016) explica

que gastrulação é "quando ocorre o desenvolvimento da gástrula que compreende a

conversão das células do embrioblasto para a formação do ectoderme, mesoderme e

endoderme". Castro (2014) também explica:

Segundo essa teoria, será considerado embrião o organismo formado ao final

dessa fase, na qual ocorre o desenvolvimento da gástrula que compreende a

conversão das células do embrioblasto para a formação do ectoderme,

mesoderme e endoderme – que são as três camadas germinais primitivas. Ao

se fixarem na parede uterina, estas camadas vão se transformar em

condutores de nutrientes da mãe para o feto. É nesta fase que se forma a placa

neural, a qual se invaginará, dando origem ao tubo neural e por intermédio

deste se desenvolve o sistema nervoso central. Salienta-se que este estágio é

concluído somente após o 18º dia de gestação.

Portanto, para esta teoria, não há que se falar em vida para o feto antes do 18°

dia da gestação.

Já a teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central é mais

contemporânea e defende que a vida se inicia a partir do momento que o feto

desenvolveu seu sistema nervoso central e, consequentemente, torna-se sensível. Uma

das justificativas dessa teoria é a morte cerebral. Se a morte ocorre com o fim das

atividades cerebrais, então a vida da mesma forma tem início a partir do momento em

que começa as atividades cerebrais. Nesse sentido, Stella Maris Martínez (1998, p. 87)

explica:

O conceito de morte cerebral, ao contrário, serve para avalizar a teoria da

formação dos rudimentos do sistema nervoso central, já que, se aceitamos

que um ser humano dotado de uma estrutura corporal na plenitude de seu

desenvolvimento – mas possuidor de um cérebro que não revela a existência

de impulsos elétricos – é um cadáver cujos órgãos podem ser extraídos e

implantados em outra pessoa, não podemos, simultaneamente, proclamar a

qualidade de pessoa, no sentido jurídico-penal do termo, de uma criatura

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vivente muito menos evoluída, que não possui ainda nem sequer os princípios

do órgão suscetível de emitir tais impulsos.

Logo, para esta teoria, o apenas poderia ser considerado vivo e gozar de proteção

jurídicas a partir do quarto mês da gestação.

Também há a teoria natalista. Essa teoria tem uma grande diferença de todas as

anteriores, uma vez que todas elas convergem que a vida tem início ainda no período da

gestação, apesar de divergirem em relação ao exato momento. A teoria natalista, por sua

vez, entende que a vida só tem início com o nascimento da criança. Portanto, aqui o

nascituro não pode ser considerado uma pessoa e, consequentemente, um sujeito de

direito, possuindo apenas uma expectativa de direito. O ex-Ministro do Supremo

Tribunal Federal, Ayres Britto (2008), ao julgar a ADI 3510, da qual foi relator, adotou

essa teoria. Em seu voto, o ex-Ministro explica:

Falo "pessoas físicas ou naturais", devo explicar, para abranger tão-somente

aquelas que sobrevivem ao parto feminino e por isso mesmo contempladas

com o atributo a que o art. 2° do Código Civil Brasileiro chama de

"personalidade civil", literis: "A personalidade civil da pessoa começa do

nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do

nascituro". Donde a interpretação de que é preciso vida pós-parto para o

ganho de uma personalidade perante o Direito (teoria "natalista", portanto,

em oposição às teorias da "personalidade condicional" e da

"concepcionista").

Por fim, há a teoria da personalidade formal (também conhecida como teoria da

personalidade condicional). Essa teoria possui uma mistura dos aspectos das teorias

concepcionista e natalista, ou seja, reconhece que a vida e a personalidade têm início a

partir de concepção, porém de maneira condicionada, ou seja, a partir da concepção já

adquire direito à vida, porém outros direitos, a exemplo dos direitos materiais, só serão

consolidados com o nascimento com vida. Nesse sentido, Ana Paula Asfor (2013)

explica:

A teoria da personalidade condicional traz em tela uma visão de

reconhecimento do início da personalidade jurídica da pessoa humana no

momento da concepção, entretanto, sendo esta de maneira condicional.

Segundo tal pensamento, a personalidade civil começa com o nascimento

com vida, mas os direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição

suspensiva, ou seja, são direitos eventuais.

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Carlos Roberto Gonçalves (2006, p. 77) é adepto dessa teoria e segundo ele:

Poder-se-ia até mesmo afirmar que na vida intrauterina tem o embrião,

concebido in vitro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos

personalíssimos, visto ter carga genética diferenciada desde a concepção, seja

ela in vivo ou in vitro, passando a ter personalidade jurídica material,

alcançando os direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial,

somente com o nascimento com vida. Se nascer com vida adquire

personalidade jurídica material, mas se tão não ocorrer nenhum direito

patrimonial terá.

Entender tais teorias é de suma importância, uma vez que cada uma delas

influencia na interpretação da lei e de seus direitos. Para uma teoria, por exemplo, o

aborto é crime em qualquer fase da gestação (teoria concepcionista) ao passo que para

outra só será crime após o 18º dia da gestação (teoria da gastrulação). Mas afinal, a

Constituição Federal adota qual teoria? Para essa pergunta não há resposta, uma vez que

a Constituição Federal não é expressa nesse sentido e não possui uma regra clara sobre a

partir de qual momento a vida tem início e proteção jurídica. Agora, o que é o direito à

vida?

A Constituição Federal de 1988, no seu art. 5.º, caput, expressa de forma

genérica que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do

direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Pedro Lenza

(2014, p. 1068) explica que o mencionado artigo "abrange tanto o direito de não ser

morto, de se não ser privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como

também o direito de ter uma vida digna".

O constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de

Moraes (2016, p. 34) conceitua o direito à vida:

A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,

à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais

fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à

existência e exercício de todos os demais direitos.

E completa, ainda, dizendo que "A Constituição Federal proclama, portanto, o

direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira

relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à

subsistência" (MORAES, 2016, p. 34).

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Paulo Gustavo Gonet Branco (2010, p. 441) também dá explicações acerca do

direito à vida:

A existência humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e

liberdades disposto na Constituição e que esses direitos têm nos marcos da

vida de cada indivíduo os limites máximos de sua extensão concreta. O

direito a vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não

faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio

direito estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital

relevância, é superior a todo outro interesse.

Portanto, entende-se por direito à vida não apenas o direito de nascer, mas

também abrangência de viver uma vida digna.

4.2 Personalidade Civil do Nascituro

Essa questão é abordada pelo Código Civil Brasileiro de 2002, que, em seu art.

2.º, diz que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei

põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Antes de tudo é necessário

trazer o conceito de nascituro. Segundo Humberto Theodoro Júnior (2010, p. 379)

"nascituro é o fruto da concepção humana que se acha vivendo no ventre materno,

vivendo, ainda, em subordinação umbilical". Logo, pode entender-se por nascituro

aquele que ainda está por nascer.

Aqui também há uma problemática, uma vez que artigo citado não é claro em

relação ao momento em que o nascituro começa a ser sujeito de direito e,

consequentemente, gozar de proteção jurídica. Portanto, há também divergência

doutrinária. A divergência aqui se encontra predominantemente entre os doutrinadores

adeptos das teorias concepcionista, natalista e da personalidade condicional.

A teoria natalista é a que mais tem prevalecido entre os doutrinadores civilistas

clássicos. Como já citado, essa teoria defende que apenas com o nascimento com vida o

nascituro poderá ser considerado uma pessoa e sujeito de direitos. Nesse sentido, Sérgio

Semião Abdala (2008, p.40) explica que "o nascituro é mera expectativa de pessoa, por

isso, tem meras expectativas de direito, e só é considerado como existente desde sua

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concepção para aquilo que lhe é juridicamente proveitoso". O autor completa, ainda,

dizendo:

Sustentam os natalistas que, caso os direitos do nascituro não fossem

taxativos, como entendem os concepcionistas, nenhuma razão existiria para

que o Código Civil declinasse, um por um, os seus direitos. Fosse ele pessoa,

todos os direitos subjetivos lhe seriam conferidos automaticamente, sem

necessidade de a lei declina-los um a um. Dessa forma, essa seria a

verdadeira interpretação sistemática que se deve dar ao Código Civil

Brasileiro.

Sílvio de Salvo Venosa (2013, p. 143) é adepto da teoria natalista, pois segundo

ele:

O fato de o nascituro ter proteção legal, podendo inclusive pedir alimentos,

não deve levar a imaginar que tenha ele personalidade tal como a concebe o

ordenamento. Ou, sob outros termos, o fato de ter ele capacidade para alguns

atos não significa que o ordenamento lhe atribuiu personalidade. Embora haja

quem sufrague o contrário, trata-se de uma situação que somente se aproxima

da personalidade, mas com esta não se equipara. A personalidade somente

advém do nascimento com vida.

Já citado anteriormente, destaca-se novamente que o ex-Ministro do Supremo

Tribunal Federal, Ayres Britto (2008) entendeu que a teoria natalista deve ser a aplicada

ao afirmar que a personalidade jurídica se aplica "tão-somente aquelas que sobrevivem

ao parto feminino".

Apesar de ser de tudo, a teoria natalista tem perdido força e também é alvo de

severas críticas, sob alegações de ser uma visão simplista e que anda em desacordo com

a visão constitucional, uma vez que interpreta a norma de maneira restritiva por não

considerar o nascituro uma pessoa, mas sim uma coisa, e, consequentemente, negar-lhe

direitos por isso, ao invés de interpretar de maneira ampliativa e trazer maior proteção.

Nesse sentido, entre os críticos da teoria natalista pode se destacar Flávio

Tartuce (2012, p. 72), pois o mesmo esclarece:

Do ponto de vista prático, a teoria natalista nega ao nascituro até mesmo os

seus direitos fundamentais, relacionados com a sua personalidade, caso do

direito à vida, à investigação de paternidade, aos alimentos, ao nome e até à

imagem. Com essa negativa, a teoria natalista esbarra em dispositivos do

Código Civil que consagram direitos àquele que foi concebido e não nasceu.

Essa negativa de direitos é mais um argumento forte para sustentar a total

superação dessa corrente doutrinária.

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Já no caso da teoria da personalidade condicional, como já explicado

anteriormente, reconhece o início da vida e da consequente personalidade jurídica no

momento da concepção, porém de uma maneira condicionada e essa condição,

claramente, é o nascimento com vida. Em outras palavras, o nascituro terá

reconhecimento de sua personalidade jurídica e de seus direitos se o mesmo nascer com

vida, retroagindo ao momento da concepção. Nesse sentido, Washington de Barros

Monteiro (1966, p. 70) explica:

Discute-se se o nascituro é pessoa virtual, cidadão em germe, homem in

spem. Seja qual for a conceituação, há para o feto uma expectativa de vida

humana, uma pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe

salvaguarda os eventuais direitos. Mas, para que estes se adquiram, preciso é

ocorra o nascimento com vida. Por assim dizer, o nascituro é pessoa

condicional; a aquisição da personalidade acha-se sob a dependência de

condição suspensiva, o nascimento com vida. A esta situação toda especial

chama PLANIOL de antecipação da personalidade.

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1981, p. 134) adotou essa teoria ao

conceituar o nascituro como "o concebido ao tempo em que se apura se alguém é titular

de um direito, pretensão, ação ou exceção, dependendo a existência de que nasça com

vida".

Como citado anteriormente, Carlos Roberto Gonçalves (2006, p. 82) entende que

a teoria da personalidade condicional é a mais acertada e, assim como Maria Helena

Diniz (2012, p. 222), faz distinção entre a personalidade jurídica formal e a

personalidade jurídica material, ou seja, desde a concepção o nascituro adquire a

personalidade jurídica formal, adquirindo proteção no que diz respeito aos seus direitos

personalíssimos, ao passo que o nascituro só irá adquirir a personalidade jurídica

material a partir do momento que nascer com vida, momento esse que receberá proteção

no que diz respeito aos seus direito patrimoniais.

A teoria da personalidade condicional também é alvo de críticas. Nesse sentido,

Ana Paula Asfor (2013) explica:

A grande crítica que se faz ao citado posicionamento é o apego que o mesmo

externa a questões patrimoniais, não respondendo ao apelo de direitos

pessoais ou da personalidade a favor do nascituro. Em uma realidade que

prega a personalização do Direito Civil, bem como a sua

constitucionalização, uma tese essencialmente patrimonialista não deve

prevalecer. Os direitos da personalidade, por encontrarem amparo

constitucional, não podem estar sujeitos a qualquer condição, termo ou

encargo, como nos faz entender a presente corrente.

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E completa, ainda:

Ademais, embora afirme o contrário, essa linha de entendimento acaba por

negar os direitos do nascituro, não reconhecendo a este direitos efetivos a

partir do momento em que a condição suspensiva estabelecida faz nascer

apenas direitos eventuais, ou seja, mera expectativa de direitos. Assim, seria

correto afirmar que a teoria da personalidade condicionada é essencialmente

natalista, a medida em que tem como premissa a aquisição da personalidade

apenas com o nascimento com vida. Seria incorreto dizer, portanto, como

afirmam alguns autores, que esta teoria configura-se como mista.

Por fim, há os doutrinadores que entendem que a teoria concepcionista é a que

melhor se adequa à regra do art. 2.º do Código Civil. Como anteriormente explicado,

essa teoria reconhece o nascituro como pessoa e, consequentemente, sujeito de direitos

desde o momento da concepção e, por isso, já deverá ter seus direitos garantidos a partir

deste momento, sem a condição de nascimento com vida. Essa é a posição majoritária

entre os doutrinadores civilistas contemporâneos. Dentre os adeptos, pode-se destacar

uma das precursoras desse pensamento Silmara Juny Chinellato (2010, p. 28), a qual

explica:

O nascimento com vida apenas consolida o direito patrimonial,

aperfeiçoando-o. O nascimento sem vida atua, para a doação e a herança,

como condição resolutiva, problema que não se coloca em se tratando de

direitos não patrimoniais. De grande relevância, os direitos da personalidade

do nascituro, abarcados pela revisão não taxativa do art. 2º. Entre estes,

avulta o direito à vida, à integridade física, à honra e à imagem,

desenvolvendo-se cada vez mais a indenização de danos pré-natais, entre nós

com impulso maior depois dos Estudos de Bioética.

Logo, a autora esclarece que o tanto a vida quanto os direitos patrimoniais são

assegurados a partir da concepção (sem fazer a mesma distinção feita por Carlos

Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz) e que o nascimento com vida seria apenas o

momento em que os direitos patrimoniais seriam consolidados.

Apesar de distinguir os momentos de consolidação da personalidade jurídica

formal e da personalidade jurídica material, Maria Helena Diniz (2012, p. 222), como já

citada, é adepta desta teoria, uma vez que a mesma entende que o direito à vida já é

consolidado no momento da concepção, não havendo a condição do nascimento com

vida.

Rubens Limongi França (1999, p. 50) é mais um dos que entendem que a teoria

concepcionista é a mais coerente, pois o mesmo explica:

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Juridicamente, entram em perplexidade total aqueles que tentam afirmar a

impossibilidade de atribuir capacidade ao nascituro por este não ser pessoa. A

legislação de todos os povos civilizados é a primeira a desmenti-lo. Não há

nação que se preze (até a China) onde não se reconheça a necessidade de

proteger os direitos do nascituro (código Chinês, art. 7°). Ora, quem diz

direitos afirma capacidade. Quem afirma capacidade reconhece

personalidade.

Após essa análise sistemática e a ponderação de todas as teorias junto com seus

principais argumentos, o autor deste trabalho entende que a teoria concepcionista é a

mais acertada para a interpretação do mencionado art. 2.º do Código Civil. Portanto, o

autor entende que a personalidade jurídica do nascituro, tanto formal quanto material,

são consolidadas a partir da concepção.

4.3 Aborto no Código Penal Brasileiro

No Brasil, o aborto é considerado um crime. O Código Penal Brasileiro o coloca

na modalidade de crime contra a vida e trata do assunto nos seus artigos 124, 125, 126,

127 e 128. Destaca-se que aqui há a proteção da vida intrauterina, ou seja, enquanto o

fruto da gravidez ainda estiver ligado à mãe. Portanto, não há que se falar em aborto se

já houve o nascimento da criança.

O art. 124 do Código Penal diz: "Provocar aborto em si mesma ou consentir que

outrem lho provoque". Portanto, aqui trata-se do crime praticado pela gestante, onde ela

mesma pratica os atos abortivos ou consente para que terceiro o faça nela. A pena

prevista nesse artigo é a de detenção de um a três anos. Em razão da pena mínima ser de

um ano, é possível a utilização da suspensão condicional do processo, se houver todos

os demais requisitos (CUNHA, 2016, p. 96).

Há divergência doutrinária acerca da natureza deste crime. Para alguns, este é

um crime de mão própria, podendo ser praticado apenas pela gestante, e que os terceiros

que participarem não podem ser considerados coautores, devendo responder por artigo

diverso (no caso, o art. 126). Então, o sujeito ativo seria apenas a gestante. Nesse

sentido, Cezar Roberto Bitencourt (2015, p. 161) explica:

Trata-se, nas duas modalidades, de crime de mão própria, isto é, que somente

a gestante pode realizar. Mas, como qualquer crime de mão própria, admite a

participação, como atividade acessória, quando o partícipe se limita a

instigar, induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o autoaborto como a

consentir que terceiro lho provoque. Contudo, se o terceiro for além dessa

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mera atividade acessória, intervindo na realização propriamente dos atos

executórios, responderá não como coautor, que a natureza do crime não

permite, mas como autor do crime do art. 126.

No mesmo sentido, Cleber Masson (2014, p. 909) explica:

A gestante, nas modalidades tipificadas pelo art. 124 do Código Penal

(crimes próprios, e qualquer pessoa, nos demais casos (crimes comuns). Os

crimes previstos no art. 124 do Código Penal são de mão própria (somente a

gestante pode cometê-los). Admitem apenas participação, e são

incompatíveis com a coautoria, salvo se adotada, no tocante à autoria, a teoria

do domínio do fato.

Destaca-se que Fernando Capez (2012, p. 131), também entende que o crime

previsto no art. 124 é um crime de mão própria.

Porém, há outros que entendem que se trata de crime próprio, ou seja, admite a

participação de terceiros como coautores do delito. Nesse sentido, Rogério Sanches

Cunha (2016, p. 97) explica:

Para nós, o crime é próprio, admitindo o concurso de agentes, inclusive na

forma de coautoria (por exemplo, gestante e seu marido, juntos, realizam

manobras abortivas). É especial, no entanto, pois o coexecutor (marido) será

punido em tipo diverso (art. 126) e com pena independente, verdadeira

exceção pluralista à teoria monista (mesmo fenômeno que explica o corrupto

responder pelo art. 317 e o corruptor pelo art. 333, ambos do CP).

Prevalece o entendimento de que o aborto tipificado no art. 124 é crime de mão

própria, logo, o sujeito ativo neste caso será tão somente a gestante.

Os sujeitos passivos do delito são o fruto da concepção (óvulo, embrião ou feto)

e o Estado. Caso sejam vários fetos (a exemplo do caso da gravidez de gêmeos), haverá

o concurso formal de crimes (CUNHA, 2016, p. 97).

No que concerne o elemento subjetivo, o aborto só será considerado crime e

penalizado se for praticado a título de dolo, podendo ser o dolo direto ou dolo eventual.

Não há previsão deste crime na modalidade culposa, como explica Rogério Sanches

Cunha (2016, p. 98):

Não se pune a modalidade culposa. Caso provocado, culposamente, por

terceiro, responde este por lesão corporal gravíssima (caso a lesão corporal

seja dolosa e o abortamento culposo) ou lesão corporal culposa (se a lesão

causadora da interrupção da gravidez também derivar de culpa).

Quanto à consumação, por tratar-se de crime material, Cleber Masson (2014, p.

910) explica que "dá-se com a morte do feto, no útero materno ou depois da prematura

expulsão provocada pelo agente. É prescindível a expulsão do produto da concepção".

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Como já explicado anteriormente, havendo nascimento com vida da criança e essa

acabar morrendo posteriormente, não há que se falar em aborto. Aqui haverá tipificação

diversa, sendo esta a de homicídio ou infanticídio, uma vez que atingirá a vida

extrauterina (CUNHA, 2016, p. 98).

Uma vez que o aborto é um crime plurissubsistente, admite-se o crime na

modalidade tentada, como explica Cleber Masson (2014, p. 910):

É possível em todas as modalidades de aborto criminoso. Se a intenção do

agente era ferir a gestante o crime será de lesão corporal grave em face da

aceleração do parto (CP, art. 129, §1º, IV). Se o procedimento abortivo

acarretar na expulsão do feto com vida e, em seguida, o agente realizar nova

conduta contra o recém-nascido, para matá-lo, haverá concurso material entre

tentativa de aborto e homicídio (ou infanticídio, se presentes as elementares

do art. 123 do CP). Se o agente praticar a conduta abortiva e o feto for

expulso com vida, morrendo posteriormente em decorrência da manobra

realizada, o crime será de aborto consumado.

Por tratar-se de crime contra a vida, a competência para julgá-lo será do Tribunal

do Júri. A ação penal será a ação penal pública incondicionada.

No art. 125 do Código Penal é tipificado o aborto praticado por terceiro, sem o

consentimento da gestante. Essa é a forma mais grave do crime e, por isso, tem a maior

pena, sendo reclusão de três a dez anos. Pelo fato da pena mínima ser de três anos, não

há que se falar na aplicação dos benefícios previstos na lei 9.099/95 (CUNHA, 2016, p.

99). Sobre este crime, Cleber Masson (2014, p. 912) explica:

Duas situações possíveis: (a) não houve efetivamente o consentimento da

gestante; ou (b) houve consentimento, mas sem efeitos jurídicos válidos, pois

incide uma das situações indicadas pelo art. 126, parágrafo único, do Código

Penal.

Diferentemente da tipificação do artigo anterior, aqui trata-se de um crime

comum, ou seja, poderá ser praticado por qualquer pessoa e também admite-se o

concurso de agentes.

Como explica Cleber Masson (2014, p. 912) este é um crime de dupla

subjetividade passiva, portanto, haverá dois sujeitos passivos, sendo eles a gestante e o

feto, uma vez que ambos são vítimas da conduta criminosa.

Assim como no artigo anterior, o elemento subjetivo do crime é o dolo, ou seja,

intenção de interromper violenta e intencionalmente a gravidez, causando a morte do

feto (CUNHA, 2016, p. 99). Se for realizada todas as manobras abortivas na mulher que

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equivocadamente supõe-se grávida, será caso de crime impossível. (CUNHA, 2016, p.

99). Quanto ao dolo, Cezar Roberto Bitencourt (2015, p. 165) explica:

Matar mulher que sabe estar grávida configura também o crime de aborto,

verificando-se, no mínimo, dolo eventual; nessa hipótese, o agente responde,

em concurso formal, pelos crimes de homicídio e aborto. Se houver desígnios

autônomos, isto é, a intenção de praticar os dois crimes, o concurso formal

será impróprio, aplicando-se cumulativamente a pena dos dois crimes; caso

contrário, será próprio e o sistema de aplicação será o da exasperação.

O delito será consumado com a privação do nascimento do feto, ou seja, com a

destruição e consequente morte do produto da concepção, uma vez que trata-se de crime

material (CUNHA, 2016, p. 100). Se houver o consentimento da gestante e a mesma

acabar desistindo no meio da prática do crime (antes da interrupção de fato da gravidez)

e o terceiro insistir na prática e consumá-lo, ele responderá pelo art. 125 e não pelo art.

126. A gestante, por sua vez, em face do arrependimento ineficaz, ainda responderá pelo

art. 124 do Código Penal, junto com a circunstância atenuante prevista no art. 66

(CUNHA, 2016, p. 101). Porém, para Cleber Masson (2014, p. 913) no caso da gestante

ficará caracterizado como fato atípico.

Se for o caso de gravidez de gêmeos ou trigêmeos, haverá dois ou três crimes de

aborto em concurso formal impróprio ou imperfeito, salvo se essa condição for

desconhecida pelo agente. (MASSON, 2014, p. 913).

Por tratar-se também de delito plurissubsistente, admite-se a prática do crime em

sua forma tentada, caso o agente não consiga alcançar o resultado por circunstâncias

alheias à sua vontade (CUNHA, 2016, p. 100).

A ação também será ação penal pública incondicionada e a competência para

julgamento será do Tribunal do Júri.

No art. 126, assim como no artigo anterior, trata-se do crime de aborto praticado

por terceiro, porém dessa vez com o consentimento da gestante. Sua pena será a de

reclusão de um a quatro anos. Em seu parágrafo único, o mencionado artigo prevê que

"aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou

é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave

ameaça ou violência".

Uma vez que sua pena mínima é de um ano, será possível a aplicação da

suspensão condicional do processo, se houver a presença dos demais requisitos

previstos no art. 89 da lei 9.099/95.

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Assim como na tipificação do artigo anterior, aqui trata-se de crime comum, ou

seja, poderá ser praticado por qualquer pessoa, sendo possível o concurso de agentes.

Aliás, este é o caso de concurso necessário por haver a necessidade de pelo menos dois

agentes, sendo a gestante (que responderá pelo art. 124) e o terceiro (que responderá

pelo art. 126). Nesse sentido, Cleber Masson (2014, p. 913) explica:

Também se trata de exceção à teoria monista ou unitária no concurso de

pessoas (art. 29, caput), respondendo a gestante pelo crime definido no art.

124, 2ª parte (consentimento para o aborto), e o terceiro pelo delito contido

no art. 126 (aborto consentido ou consensual), ambos do Código Penal. O

consentimento da gestante deve subsistir até a consumação do aborto – se,

durante o procedimento, ela solicitar ao terceiro a interrupção das manobras

letais, mas não for obedecida, para ela será o fato atípico, se o terceiro

responderá pelo crime delineado pelo art. 125 do Código Penal. Se o terceiro

cometer o fato por incidir em erro sobre o consentimento da gestante,

plenamente justificado pelas circunstâncias, a conduta deverá reputar-se

praticada com o seu consentimento. Admite participação, respondendo o

partícipe pelo art. 124 (conduta vinculada ao consentimento da gestante) ou

pelo art. 126 (conduta vinculada à do terceiro provocador do aborto).

Assim como nos artigos anteriores, por ser crime material, o delito será

consumado quando ocasionado, pela ação ou omissão, a destruição do produto da

concepção e consequente morte do feto, desde que haja a presença do consentimento

válido da gestante (CUNHA, 2016, p. 100).

Igualmente aos artigos anteriores, o elemento subjetivo do delito é o dolo de

praticar a conduta, porém com o consentimento da gestante.

Por também ser um delito plurissubsistente, é admissível a prática do crime em

sua forma tentada (CUNHA, 2016, p. 101).

Sua ação será a ação penal pública incondicionada e a competência para

julgamento também será do Tribunal do Júri.

Já no art. 127 do Código Penal, temos o crime de aborto qualificado. São duas as

hipóteses para esse caso, sendo elas o resultado de lesão corporal grave para a gestante e

o resultado morte. Vale ressaltar que a incidência dessas qualificadoras serão apenas

para os terceiros que praticam o crime, com ou sem o consentimento da gestante

(MASSON, 2014, p. 915). Essas hipóteses não se aplicam ao art. 124, uma vez que o

direito penal não pune a autolesão nem o ato de ceifar a própria vida. (CUNHA, 2016,

p. 101).

Aquele que colabora com o autoaborto (ou aquele que tão somente induziu a

gestante para que consentisse com o aborto praticado por terceiro) também não sofrerá

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os efeitos do art. 127, uma vez que este agente não participou diretamente da execução

das práticas abortivas (CUNHA, 2016, p. 102).

Ambas as hipóteses deste artigo são de crimes qualificados pelo resultado e são

de natureza preterdolosa (dolo no aborto, culpa na lesão corporal ou na morte). Nesse

sentido, Cleber Masson (2014, p. 915) explica:

São hipóteses de crimes qualificados pelo resultado, de natureza preterdolosa

(aborto doloso e lesão corporal ou morte culposos). Aplica-se o art. 19 do

Código Penal: "Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde

o agente que houver causado ao menos culposamente".

Porém, se a lesão corporal resultante da prática do delito for de natureza leve, o

terceiro somente responderá pelo aborto simples, com ou sem consentimento da

gestante, fazendo com que a lesão corporal seja absorvida pelo crime (MASSON, 2014,

p. 915).

Se o agente causador do crime possuir dolo tanto para o aborto quanto para a

lesão corporal ou o resultado morte, responderá em concurso (material ou formal

imperfeito) pelos crimes de aborto e lesão corporal grave ou homicídio doloso,

conforme for o caso. (MASSON, 2014, p. 915).

Se o agente do delito tiver a intenção de matar a mulher que sabe estar grávida,

este também responderá em concurso (material ou formal imperfeito) pelos crimes de

homicídio doloso e aborto, ainda que não possua a intenção de matar o feto, pois nesse

caso há pelo menos o dolo eventual em relação ao aborto (MASSON, 2014, p. 915).

Fernando Capez (2012, p. 122) esclarece que havendo o resultado morte da

gestante, porém sem a consumação do aborto, o agente deverá responder ainda pelo

aborto qualificado consumado, pois segundo ele:

Nessa hipótese, deve o sujeito responder por aborto qualificado consumado,

pouco importando que o abortamento não se tenha efetivado, aliás como

acontece no latrocínio, o qual se reputa consumado com a morte da vítima,

independentemente de o roubo consumar-se. Não cabe mesmo falar em

tentativa de crime preterdoloso, pois neste o resultado agravador não é

querido, sendo impossível ao agente tentar produzir algo que não quis: ou o

crime é preterdoloso consumado ou não é preterdoloso.

No mesmo sentido, Cleber Masson (2014, p. 915) diz que "incide o aumento

quando o aborto não se consuma, mas a gestante sofre lesão corporal de natureza grave

ou morre".

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Por fim, temos o art. 128 do Código Penal. Neste artigo temos as hipóteses de

aborto legal, ou seja, quando a prática do aborto não será considerada crime. Em ambas

as situações previstas a aplicação é apenas para o aborto praticado por médico. No

primeiro inciso do mencionado artigo temos a hipótese do aborto necessário (também

conhecido como aborto terapêutico), que é o caso de risco de vida da gestante. Para

Rogério Sanches Cunha (2016, p. 104), é necessário que sejam preenchidos três

requisitos para a aplicação desse inciso, sendo eles:

a) Aborto praticado por médico: Não há a exigência de que o médico seja

especialista na área da ginecologia. Se for praticado por pessoa sem

habilitação médica (a exemplo das parteiras), ainda será considerado como

fato atípico, pois neste caso o agente estará acobertado pelo estado de

necessidade previsto no art. 24 do Código Penal. A mesma situação será

aplicada à gestante que praticar o autoaborto visando salvar a própria vida.

b) Perigo de vida da gestante: O mero risco à saúde não é o suficiente, é

preciso que o risco seja contra a vida. Cleber Masson (2014, p. 917) explica

que caso o médico erroneamente pressuponha o risco de vida da gestante em

razão das particularidades do caso concreto, este ainda não será punido em

razão do art. 20, §1º, do Código Penal.

c) Impossibilidade da utilização de outro meio para salvá-la: O médico não

poderá escolher o método mais conveniente ou cômodo, pois é necessário

que o aborto seja o único meio possível de salvar a vida da gestante. Se

houver outra alternativa possível que não seja o aborto, então o médico não

poderá levar o aborto adiante.

Rogério Sanches Cunha (2016, p. 104) explica ainda que não é necessário que

haja o consentimento da gestante para que o médico pratique o aborto necessário,

bastando apenas que o profissional médico entenda ser necessário, e também independe

de autorização judicial. Cleber Masson (2014, p. 917) diz ainda que não haverá

responsabilização do médico em razão das eventuais lesões corporais que o

procedimento do aborto necessário possa vir a causar na gestante.

Já no segundo inciso do art. 128 temos a figura do aborto sentimental, ou seja, o

aborto em uma gravidez que decorreu de um estupro. Portanto, visualiza-se aqui que a

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preocupação não é em relação à vida da gestante, mas sim que não deve ser imposta a

ela a necessidade de levar adiante uma gravidez resultante de um momento traumático,

que teve seu corpo, sua honra e sua liberdade em um crime tão grave e que, em razão

disso, levar a gravidez adiante pode acarretar em ainda mais consequências psicológicas

para a mulher. Assim como no inciso anterior, Rogério Sanches Cunha (2016, p. 105)

explica que também é necessário o preenchimento de três requisitos:

a) Aborto praticado por médico: Diferentemente do inciso anterior, aqui tão

somente o médico poderá realizar. Por não haver o risco de vida da gestante,

não cabe a aplicação do estado de necessidade ou de qualquer outra causa

discriminante. Logo, se um terceiro que não for médico praticar o aborto

nesse caso, este responderá pelo aborto criminoso. Porém, no caso da

gestante que praticar o autoaborto, a depender das circunstâncias do caso

concreto, poderá ser caracterizada a inexigibilidade de conduta diversa, que é

uma causa supralegal de excludente de culpabilidade.

b) Gravidez resultante de estupro: Cleber Masson (2014, p. 917) explica que

não é necessário que haja sentença condenatória com trânsito em julgado

para caracterizar o crime estupro, bastando apenas que haja provas o

suficientes que comprovem a existência do crime. Explica também que pela

aplicação da analogia in bonam partem, também será permitido o aborto no

caso da ocorrência do crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A

do Código Penal. E completa, ainda, dizendo que também haverá a aplicação

do art. 128, II, em caso de gravidez resultante de atos libidinosos diversos da

conjunção carnal.

c) Consentimento da gestante ou de seu representante legal: É mais

indicado que esse consentimento tenha o maior nível de formalidade possível

(a exemplo do acompanhamento do boletim de ocorrência) e, se possível,

também o acompanhamento de testemunhas.

Atualmente temos também a atipicidade do aborto praticado em casos de fetos

anencéfalos. Porém essa questão não foi tratada no Código Penal e será vista adiante, ao

abordar as decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do aborto.

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4.4 Posicionamentos do Supremo Tribunal Federal

No que diz respeito ao aborto temos duas grandes decisões proferidas pelo

Supremo Tribunal Federal: a primeira da Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF) 54, onde ficou decidido que o aborto praticado nos casos de fetos

anencéfalos constitui fato atípico, ou seja, não se encaixa nos artigos 124, 126 e 128,

incisos I e II do Código Penal, e a segunda no Habeas Corpus 124.306, onde fixou-se o

entendimento que a interrupção da gravidez praticada até o terceiro mês da gestação não

será considerado crime.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 fora

ajuizada no Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores

na Saúde (CNTS), visando declarar a inconstitucionalidade da interpretação de que a

interrupção de gravidez de feto anencéfalo seria crime, conforme as tipificações

previstas nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal. Em 2012 foi

julgada procedente pela Suprema Corte e, por maioria de votos, ficou decidido que a

interrupção da gravidez em razão de feto anencéfalo é fato atípico e, portanto, não deve

haver responsabilização criminal. A votação final ficou em oito votos favoráveis e dois

votos contrários. Dentre os votos favoráveis ficaram os Ministros Marco Aurélio

(relator), Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar

Mendes e Celso de Mello. Os votos contrários foram proferidos pelos Ministros Ricardo

Lewandowski e Cezar Peluzo. Na época o Ministro Dias Toffoli declarou-se impedido

de participar do julgamento, uma vez fora Advogado-Geral da União e nessa época

participou da elaboração do parecer favorável da Advocacia-Geral da União em relação

à ADPF 54.

O Ministro Marco Aurélio foi o relator e em seu voto argumentou em vários

pontos diferentes. Primeiro alegou que a expectativa de vida de um feto anencéfalo é

baixa, limitando-se a horas ou dias e, por esse motivo, não se poderá colocar o direito à

vida deste feto acima dos direitos da mulher. Em suas palavras, ele diz:

A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será

por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em

detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que se conceba o

direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível,

consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol

dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à

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autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde,

previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II,

III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República. (AURÉLIO, 2012, p. 38)

O relator ainda enfatiza que não há direito à vida para ser discutido pois "o

anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial,

mas de morte segura" (AURÉLIO, 2012, p. 15).

A Ministra Rosa Weber em seu voto acompanhou o mesmo raciocínio do relator,

apontando a questão de não haver expectativa de vida do feto anencéfalo, uma vez que

não pode fazer uma proteção da vida meramente orgânica, devendo também fazer uma

análise da possibilidade desse feto conseguir ter uma mínima possibilidade de convívio

social. Em suas palavras, a Ministra explica:

Essa situação indica que, para o Direito, o que importa não é o simples

funcionamento orgânico, mas a possibilidade de atividades psíquicas que

viabilizem que o indivíduo possa minimamente ser parte do convívio social.

Não há interesse em proteger a mera vida orgânica. Até porque, sabe-se: sem

o cérebro, o organismo não sobrevive por muito tempo e, ainda que

sobrevivesse, não teria característica subjetiva alguma a ser partilhada

intersubjetivamente. (WEBER, 2012, p. 108).

E completa seu voto dizendo que deve ser preservado a autonomia da mulher

para decidir se levará a gravidez adiante ou não. Em suas palavras:

Enfim, seja do ponto de vista epistemológico, seja por meio de análise

histórica, seja a partir da hermenêutica jurídica, e forte ainda nos direitos

reprodutivos da mulher, todos os caminhos levam ao reconhecimento da

autonomia da gestante para a escolha, em caso de comprovada anencefalia,

entre manter a gestação ou interrompê-la. (WEBER, 2012, p. 136).

Em seu voto, o Ministro Joaquim Barbosa também seguiu o entendimento do

relator, destacando que o que estava em julgamento não seria uma liberação plena do

aborto, mas tão somente no específico caso da anencefalia. Em suas palavras, explica:

Portanto, é importante frisar, não se discute a ampla possibilidade de se

interromper a gestação. A questão aqui se refere exclusivamente à

interrupção de uma gravidez que está fadada ao fracasso, pois seu resultado,

ainda que venham a ser envidados todos os esforços possíveis, será,

invariavelmente, a morte do feto. (BARBOSA, 2012, p. 147).

E sustenta o mesmo raciocínio de não haver expectativa de vida para o feto

anencéfalo:

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Em se tratando de feto com vida extrauterina inviável, a questão que se

coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver

fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a

qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será

invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. (BARBOSA, 2012, p.

149).

O Ministro também defendeu que não é justo priorizar uma vida que está fadada

a um fim rápido sobre a liberdade de escolha da mulher. Para o Ministro, é a gestante

que deverá decidir se o aborto condiz ou não com sua vontade e com seus valores

pessoais, como o mesmo explica:

Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez

poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque,

ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a

vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher,

entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve

prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor

representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu

sentimento pessoal. (BARBOSA, 2012, p. 149).

O Ministro Luiz Fux também votou favoravelmente por entender que "impedir a

interrupção da gravidez sob ameaça penal, efetivamente equivale a uma tortura vedada

pela Constituição Federal no art. 5º". (FUX, 2012, p. 162). O Ministro também fez a

seguinte ponderação:

Então, com base nesses dados colhidos, que foram aqui confirmados, é

possível chegar-se a três conclusões lastimáveis: a expectativa de vida do

anencéfalo fora do útero é absolutamente efêmera; o diagnóstico de

anencefalia pode ser feito, com razoável índice de precisão, a partir das

técnicas hodiernamente disponíveis; e as perspectivas de cura dessa

deficiência na formação do tubo neural são absolutamente inexistentes nos

dias atuais. Por isso que neonato anencefálico tem uma expectativa de vida

reduzidíssima. (FUX, 2012, p. 162).

A Ministra Cármen Lúcia Rocha deu seu voto favorável sob o mesmo raciocínio

do Ministro Luiz Fux. Para a Ministra "não há bem jurídico a ser tutelado como

sobrevalor, pela norma penal, que possa justificar a impossibilidade total de a mulher

fazer a escolha sobre a interrupção da gravidez". (ROCHA, 2012, p. 176). A mesma

ainda completa seu raciocínio:

Por tudo isso, senhor Presidente, considero que na democracia a vida impõe

respeito, e neste caso há um feto que não tem perspectiva de vida; e outras

vidas que dependem da decisão que possa ser tomada livremente por esta

família, por esta mulher, por este pai, exatamente no sentido de garantir a

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continuidade livre de uma vida digna precisam ser relevadas e terem sua

dignidade garantida. (ROCHA, 2012, p. 176).

O Ministro Ayres Britto em seu voto já foi um pouco mais além na explicação

de sua visão sobre o assunto, chegando a questionar como o aborto, no geral, pode ser

criminalizado sendo que a própria lei não consegue definir ao certo o início da vida

humana. Em suas palavras o Ministro explica:

Eu até me permito dizer que é meio estranho criminalizar o aborto, a

interrupção de uma gravidez humana, sem a definição de quando começa, de

quando se inicia essa vida humana. Parece que o próprio Código Penal

padece de um déficit de logicidade, de uma insuficiência conceitual: não

define quando se inicia a vida humana. A Constituição também não.

(BRITTO, 2012, p. 258).

O Ministro, agora atendo-se exclusivamente à questão em julgamento (aborto de

feto anencéfalo), explicou argumentou seu entendimento:

Se o produto da concepção não se traduzir em um ser a meio do caminho do

humano, mas, isto sim, em um ser que, de alguma forma, parou a meio

caminho do ciclo, do próprio ciclo do humano; ou seja, não há uma vida a

caminho de uma outra vida estalando de nova. O que existe é um organismo

incontornavelmente empacado ou sem nenhuma possibilidade de sobrevida

por lhe faltar as características todas da espécie humana. (BRITTO, 2012, p.

259).

O Ministro Gilmar Mendes também votou favorável à procedência da ADPF 54,

porém seu voto tem fundamentações diversas das apresentadas pelos demais Ministros.

Para Gilmar Mendes, o aborto de feto anencéfalo encaixa-se como uma das hipóteses do

Código Penal, como o mesmo explica:

Conforme asseverei, entendo que a regra do Código Penal Brasileiro é a

vedação do aborto, de forma que não se pode considerar atípica conduta

direcionada a provocar a solução de continuidade da gravidez de feto

anencéfalo, visto que este pode nascer com vida, gerando reflexos jurídicos e

psíquicos de vieses diversos e, assim, a abreviação dessa gravidez está

inserida, sim, no suposto fático da regra penal em exame. (MENDES, 2012,

p. 290).

Gilmar Mendes ainda compara a situação da gravidez de feto anencéfalo às

situações previstas nos incisos I e II do art. 128 do Código Penal. Primeiro ele compara

à hipótese do aborto necessário:

No aborto dos fetos anencéfalos, há o comprometimento da saúde física da

gestante, porém este não é tão grave quanto no aborto necessário. No entanto,

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existe um diagnóstico que confere certeza praticamente absoluta de que o

feto não sobreviverá mais do que algumas horas, se tanto, o que pode causar

grave dano psíquico à gestante. (MENDES, 2012, p. 294).

Em seguida, compara à hipótese do aborto humanitário:

Não é o caso de comparação entre os danos psíquicos causados pela

frustração proveniente de um diagnóstico de anencefalia e aquele oriundo de

uma gravidez resultante de estupro, porém, neste último caso, a legislação

não pune o aborto em que o feto é perfeitamente saudável, ao passo que a

mesma legislação ainda não disciplinou o aborto dos fetos anencéfalos, em

que também há o dano psíquico à gestante, aliado à inviabilidade quase certa

da vida extrauterina do feto. (MENDES, 2012, p. 294).

Com essas ponderações, Gilmar Mendes manteve-se favorável à procedência da

ADPF 54, porém reconhecendo a situação do feto anencéfalo em conformidade com as

excludentes previstas no art. 128 do Código Penal, e não declarando-a inconstitucional

com relação ao mencionado dispositivo.

Em seu voto, o Ministro Celso de Mello explica que em razão da anencefalia,

não há objeto material e, por isso, não há que se falar em crime nesse caso. Nesse

sentido, o Ministro explica:

Com efeito, evidencia-se, no caso, para efeitos criminais, a caracterização de

absoluta impropriedade do objeto, eis que inexistente organismo cuja

integridade deva ser protegida pela legislação penal, pois, segundo o

Conselho Federal de Medicina, o anencéfalo qualifica-se como “natimorto

cerebral”, vale dizer, o feto revela-se organismo destituído de viabilidade e

de autonomia existencial em ambiente extrauterino, ou seja, torna-se

lamentavelmente plena a certeza de letalidade, seja no curso de processo de

gestação, seja no momento do nascimento, seja, ainda, em alguns minutos,

horas ou dias após o parto. (MELLO, 2012, p. 356).

Ainda nesse raciocínio, o Ministro explica que essa seria uma hipótese onde

configura-se causa supralegal de exclusão da culpabilidade, caracterizando-se como a

inexigibilidade de conduta diversa (MELLO, 2012, p. 358).

Em sentido contrário, o Ministro Ricardo Lewandowski votou pela

improcedência da ADPF 54. Lewandowski argumenta que não cabe ao Supremo

Tribunal Federal decidir sobre essa matéria, uma vez que a competência seria tão

somente do Congresso Nacional, pois este é quem traduz a vontade do povo. Em suas

palavras, o Ministro diz:

Permito-me insistir nesse aspecto: caso o desejasse, o Congresso Nacional,

intérprete último da vontade soberana do povo, considerando o instrumental

científico que se acha há anos sob o domínio dos obstetras, poderia ter

alterado a legislação criminal vigente para incluir o aborto eugênico, dentre

as hipóteses de interrupção da gravidez isenta de punição. Mas até o presente

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momento, os parlamentares, legítimos representantes da soberania popular,

houveram por bem manter intacta a lei penal no tocante ao aborto, em

particular quanto às duas únicas hipóteses nas quais se admite a interferência

externa no curso regular da gestação, sem que a mãe ou um terceiro sejam

apenados. (LEWANDOWSKI, 2012, p. 241).

Ainda sob esse enfoque, o Ministro ainda explica que o Supremo Tribunal

Federal só pode exercer papel de legislador negativo, ou seja, limitando-se a retirar do

ordenamento jurídico as normas que não estiverem de acordo com a Constituição

Federal e ir além dessa atribuição seria usurpar os poderes do Poder Legislativo,

constituindo clara violação aos três poderes estabelecidos pela Constituição Federal

(LEWANDOWSKI, 2012, p. 245). E em um segundo aspecto, o Ministro ainda

reconhece que o feto anencéfalo ainda deve ter sua vida protegida e que descriminalizar

o aborto neste caso ainda é reprovável, pois "abriria as portas para a interrupção da

gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças,

genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida"

(LEWANDOWSKI, 2012, p. 247).

Por fim, também posicionando-se contrário à procedência da ADPF 54 temos o

voto do Ministro Cezar Peluso. O Ministro afirma que "é criminosa toda interrupção

dolosamente provocada do curso da vida intrauterina" (PELUSO, 2012, p. 382). Peluso

(2012, p. 383) ainda reconhece que o feto anencéfalo ainda é um detentor de vida e, por

isso, ainda deve ser protegido pelo nosso ordenamento, como o mesmo explica:

Não obstante vozes respeitáveis defendam que "o aborto pressupõe uma

potencialidade de vida" fora do útero, para que se possa ter por configurado o

aborto como crime basta, a meu juízo, a eliminação da vida, abstraída toda

especulação quanto a sua viabilidade futura ou extrauterina.

O Ministro ainda faz duras críticas a querer que a conduta seja descriminalizada

sob o pretexto de liberdade e autonomia da gestante, uma vez que na legislação não se

tem qualquer previsão de que isso seja excludente de ilicitude. Nesse sentido, o Ministro

explica:

E, a despeito dos esforços retóricos da autora, aparece, por conseguinte, de

todo inócuo o apelo para a liberdade e a autonomia pessoais, fundado na

pressuposição errônea de inexistência de proibição jurídico-normativa da

conduta. Não há como nem por onde cogitar, sem contraste ostensivo com o

ordenamento jurídico, de resguardo à autonomia da vontade, quando esta se

preordena ao indisfarçável cometimento de um crime. Não se concebe nem

entende, em termos técnico-jurídicos, únicos apropriados ao caso, direito

subjetivo de escolha, contra legem, de comportamento funestamente danoso à

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vida ou à incolumidade física alheia e, como tal, tido por criminoso. É coisa

abstrusa! (PELUSO, 2012, p. 383).

E acrescenta, ainda:

Estou de todo convicto da ofuscante tipicidade da conduta que, preconizada

pela arguente, se acomoda, com folga, à definição legal do crime de aborto.

A ação de eliminação intencional de vida intrauterina, suposto acometida esta

de anencefalia, corresponde ao tipo penal do aborto, não havendo

malabarismo hermenêutico ou ginástica de dialética capaz de conduzir a

conclusão diversa. (PELUSO, 2012, p. 386).

E também seguindo a mesma linha de raciocínio do Ministro Ricardo

Lewandowski, na conclusão de seu voto o Ministro Peluso (2012, p. 412) diz que o

Supremo Tribunal Federal não possui competência para tratar dessa matéria, sendo essa

apenas do Poder Legislativo, como explicado:

Não se pode tampouco [...] pedir a esta Corte que, atuando indevidamente

como legislador positivo, tenha a ousadia de criar hipótese de exclusão de

punibilidade do aborto, ou de desnaturar-lhe a tipicidade, quando carece de

legitimidade e competência constitucionais para tanto.

Agora, mais recentemente, tivemos uma nova decisão polêmica do Supremo

Tribunal Federal acerca do aborto. Trata-se do Habeas Corpus 124.306, o qual foi

julgado em 2016 pela Suprema Corte e foi decidido que o aborto não é considerado

crime se praticado até o terceiro mês da gestação. Nesse caso estava em análise a prisão

de cinco pessoas em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, que estavam presos

preventivamente sob a suspeita de praticarem os crimes de aborto com consentimento

da gestante e formação de quadrilha, pois estariam supostamente praticando os crimes

em uma clínica clandestina. Vale ressaltar que esse julgamento ocorreu pela 1ª Turma

do Supremo Tribunal Federal, que atualmente é composta pelos Ministros Luís Roberto

Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello. Isso implica em

dizer que essa decisão não descriminalizou o aborto, pois os efeitos dessa decisão

aplicam-se tão somente a esse Habeas Corpus. Destaca-se também que dos cinco

Ministros, apenas três se pronunciaram acerca da descriminalização do aborto, enquanto

os outros dois apenas se pronunciaram sobre a prisão dos acusados. Para que essa

questão, de fato, descriminaliza-se o aborto, seria necessário que o tema fosse levado ao

plenário da Suprema Corte, para que assim fosse julgado se haveria ou não a

repercussão geral (aplicação a todos os demais casos semelhantes).

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No que tange à prisão dos acusados, todos os Ministros convergiram e afastaram

a prisão preventiva de todos eles por unanimidade, por entenderem que não havia a

presença dos requisitos necessários para a manutenção da prisão preventiva. Agora no

que tange à descriminalização do aborto, o assunto foi abordado pelo Ministro Luís

Roberto Barroso, que teve seu voto acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Rosa

Weber. A análise dessa decisão será feita apenas no que diz respeito ao crime de aborto,

que é o que interessa para o presente trabalho.

Em seu voto-vista, o Ministro Barroso defendeu a inconstitucionalidade da

criminalização do aborto, pois segundo ele "a criminalização do aborto antes de

concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da

mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade"

(BARROSO, 2016, p. 6). No entender do Ministro, criminalizar o aborto é uma clara

violação aos direitos fundamentais das mulheres, uma vez que a gestante "não precisa

que o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente" (BARROSO,

2016, p. 8). Em sua análise, também é elencado quais direitos da mulher são violados,

sendo eles: a autonomia da mulher, direito à integridade física e psíquica, direitos

sexuais e reprodutivos, igualdade de gênero e que há uma discriminação social e um

impacto muito maior sobre as mulheres mais pobres.

É também abordado no voto-vista que a criminalização do aborto fere o

princípio da proporcionalidade, fazendo uma análise sobre três subprincípios da

proporcionalidade. Primeiro faz a análise acerca do subprincípio da adequação,

ponderando se a medida, de fato protege a vida do feto. Em suas palavras, o Ministro

explica:

Na prática [...] a criminalização do aborto é ineficaz para proteger o direito à

vida do feto. Do ponto de vista penal, ela constitui apenas uma reprovação

"simbólica" da conduta. Mas, do ponto de vista médico [...] há um efeito

perverso sobre as mulheres pobres, privadas de assistência. Deixe-se bem

claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer

que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de

defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a

possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido,

criminalizar a posição do outro. (BARROSO, 2016, p. 13).

Em seguida, a análise passa para o subprincípio da necessidade, verificando se

há uma alternativa à criminalização que consiga proteger a vida do feto e, ao mesmo

tempo, diminua a restrição aos direitos fundamentais das mulheres. Acerca disso, é

explicado:

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Uma política alternativa à criminalização implementada com sucesso em

diversos países desenvolvidos do mundo é a descriminalização do aborto em

seu estágio inicial (em regra, no primeiro trimestre), desde que se cumpram

alguns requisitos procedimentais que permitam que a gestante tome uma

decisão refletida. (BARROSO, 2016, p. 15).

Ainda dentro desse subprincípio, o Ministro aponta a questão das dificuldades

financeiras de muitas gestantes, em razão de estarem em estado de pobreza. Sobre esse

ponto, o Ministro comenta:

Nessas situações, é importante a existência de uma rede de apoio à grávida e

à sua família, como o acesso à creche e o direito à assistência social.

Ademais, parcela das gestações não programadas está relacionada à falta de

informação e de acesso a métodos contraceptivos. Isso pode ser revertido, por

exemplo, com programas de planejamento familiar, com a distribuição

gratuita de anticoncepcionais e assistência especializada à gestante e

educação sexual. Logo, a tutela penal também dificilmente seria aprovada no

teste da necessidade. (BARROSO, 2016, p. 15).

Por fim, há a análise do terceiro e último subprincípio, sendo este o da

proporcionalidade em sentido estrito. Aqui há o questionamento se essa restrição aos

direitos fundamentais das mulheres são ou não são compensadas com a proteção da vida

do feto. Sobre isso, o Ministro explica:

Em verdade, a criminalização confere uma proteção deficiente aos direitos

sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade psíquica e física, e à saúde

da mulher, com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto

desproporcional sobre as mulheres mais pobres. Além disso, criminalizar a

mulher que deseja abortar gera custos sociais e para o sistema de saúde, que

decorrem da necessidade de a mulher se submeter a procedimentos inseguros,

com aumento da morbidade e da letalidade. (BARROSO, 2016, p. 16).

Em seguida, diz que a criminalização não protege, de fato, a vida do feto,

conforme explica:

De outro lado, também se verificou que a criminalização do aborto promove

um grau reduzido (se algum) de proteção dos direitos do feto, uma vez que

não tem sido capaz de reduzir o índice de abortos. É preciso reconhecer,

porém, que o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo

com o estágio de seu desenvolvimento na gestação. O grau de proteção

constitucional ao feto é, assim, ampliado na medida em que a gestação

avança e que o feto adquire viabilidade extrauterina, adquirindo

progressivamente maior peso concreto. Sopesando-se os custos e benefícios

da criminalização, torna-se evidente a ilegitimidade constitucional da

tipificação penal da interrupção voluntária da gestação, por violar os direitos

fundamentais das mulheres e gerar custos sociais (e.g., problema de saúde

pública e mortes) muito superiores aos benefícios da criminalização.

(BARROSO, 2016, p. 16).

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E conclui, deixando a seguinte sugestão:

Nada obstante isso, para que não se confira uma proteção insuficiente nem

aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é possível reconhecer a

constitucionalidade da tipificação penal da cessação da gravidez que ocorre

quando o feto já esteja mais desenvolvido. (BARROSO, 2016, p. 17).

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CONCLUSÃO

Como visto, este não é um tema fácil e simples de lidar. Temos ponderações e

opiniões vindas de todos os ângulos e das mais diversas ciências. O assunto deve sim

ser discutido e sua discussão deve ser ampla, oportunizando um debate aberto e

democrático com toda a população. Seguindo essa premissa e após tudo que foi

mostrado neste trabalho, venho aqui deixar minha respeitosa crítica ao Supremo

Tribunal Federal pela forma como lidou com o tema.

Primeiramente, minha crítica é direcionada à falta de legitimidade da Suprema

Corte para tratar do assunto. Assim como já mostrado anteriormente na explicação dos

votos da ADPF 54 dos Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, entendo que a

Suprema Corte deve atuar tão somente como um legislador negativo, ou seja, não pode

criar excludentes de ilicitude, devendo limitar-se tão somente à análise da conformidade

dos dispositivos infraconstitucionais com relação à Constituição Federal. Essa postura

de agir como legislador positivo tem sido cada dia mais frequente pela Suprema Corte e

isso é, no mínimo, preocupante. A Constituição Federal foi clara ao estabelecer as

competências e limitações dos três poderes e o Supremo Tribunal Federal vem

extrapolando esses limites por diversas vezes. Quando se trata de discutir o aborto, essa

questão deve ser levada ao Congresso Nacional, pois, por natureza, é este que representa

a voz e a vontade popular. Não obstante, deve-se haver debate público de maneira

ampla e entendo que o plebiscito seria a maneira que melhor se adequa à essa situação.

Portanto, a discussão não pode restrita aos Ministros da Suprema Corte, deve ela ser

aberta à população para ser tratada minuciosamente e para que, por fim, o Parlamento

possa fazer uma lei cuidadosamente elaborada.

Por fim, deixo minha crítica ao conteúdo argumentativo de ambas as decisões

proferidas pela Suprema Corte. No meu entender, ambas as decisões feriram não só a

Constituição Federal, mas também o Código Civil, o Código Penal e o Pacto de São

José da Costa Rica. Feriu a Constituição Federal em seu art. 5º, primeiro por

desrespeitar o direito à vida e segundo por desrespeitar o princípio da igualdade, uma

vez que a Constituição veda que seja feita distinção de qualquer natureza (nos presentes

casos, inferiorizaram a proteção à vida do feto). Como dito anteriormente, entendo que

o Código Civil de 2002 adota a teoria concepcionista, portanto, sob essa ótica, a

Suprema Corte também viola o art. 2° Código Civil, pois o mencionado artigo é claro ao

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dizer que protege os direitos do nascituro a partir de sua concepção. Viola o Código

Penal, pois seu art. 128 não prevê nenhuma hipótese de atipicidade tanto para a questão

da anencefalia quanto para a questão do primeiro trimestre da gestação e, reiterando o

que já foi dito, o Supremo Tribunal Federal não possui legitimidade para ampliar esse

rol. E, finalmente, viola o art. 4º do Pacto de São José da Costa Rica, pois, como já

mostrado, este tratado expressamente adota a teoria concepcionista.

Por todos estes motivos, deixo minha reprovação às condutas adotadas pelo

Supremo Tribunal Federal no que diz respeito ao aborto. Tais condutas são

extremamente preocupantes, pois o Supremo é o responsável por proteger a

Constituição Federal e garantir que ela esteja sendo respeitada (por essa razão, carrega o

título de "Guardião da Constituição"). Portanto, acaba por ser contraditório, uma vez

que aquele que é responsável por proteger a Constituição Federal é o mesmo vem a

violando reiteradas vezes.

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