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ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o Estado: Marx e o momento maquiaveliano. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998. I) NOTAS DO AUTOR O autor pretende fazer uma releitura de Marx que se afaste das leituras tradicionais feitas pelo marxismo, por considerar que essa corrente não foi capaz de absorver o real sentido político presente em seus escritos originais. Nesse sentido Abensour retoma os primeiros escritos sobre política de Marx entre os anos de 1842 e 1844. O autor acolhe Marx em sua indagação sobre a natureza da política e procura explorar uma contradição entre democracia e Estado e que se encontra contemporaneamente aparentemente resolvida na expressão: “Estado democrático”. “Mas a democracia reduzir-se-ia, poderia ser reduzida a modalidades de poder do Estado, por assim dizer, a um método?” (ABENSOUR, 1998, p. 16). Ao mesmo tempo em que rejeita a ideia de que democracia e Estado são dois conceitos que se reforçam mutuamente, o autor ainda rejeita a hipótese de que a democracia é um atributo do Estado, de modo que a destruição deste seria também a daquela. Abensour acredita que as preocupações de Marx são similares no sentido em que transitam de um pensamento sobre o ser político até chegar ao pensamento revolucionário sobre política, emancipação e democracia. II) INTRODUÇÃO A constituição de uma ciência política nova, a que faz apelo Tocqueville, não visa reprimir, tentar corrigir “os instintos selvagens da democracia” a fim de tornar essa revolução útil, de submetê-la à civilização, ao invés de deixá-la erguer-se

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Page 1: Abensour, M. - Democracia Contra o Estado

ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o Estado: Marx e o momento

maquiaveliano. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998.

I) NOTAS DO AUTOR

O autor pretende fazer uma releitura de Marx que se afaste das leituras tradicionais

feitas pelo marxismo, por considerar que essa corrente não foi capaz de absorver o real

sentido político presente em seus escritos originais. Nesse sentido Abensour retoma os

primeiros escritos sobre política de Marx entre os anos de 1842 e 1844. O autor acolhe

Marx em sua indagação sobre a natureza da política e procura explorar uma contradição

entre democracia e Estado e que se encontra contemporaneamente aparentemente

resolvida na expressão: “Estado democrático”. “Mas a democracia reduzir-se-ia, poderia

ser reduzida a modalidades de poder do Estado, por assim dizer, a um método?”

(ABENSOUR, 1998, p. 16). Ao mesmo tempo em que rejeita a ideia de que democracia

e Estado são dois conceitos que se reforçam mutuamente, o autor ainda rejeita a

hipótese de que a democracia é um atributo do Estado, de modo que a destruição deste

seria também a daquela. Abensour acredita que as preocupações de Marx são similares

no sentido em que transitam de um pensamento sobre o ser político até chegar ao

pensamento revolucionário sobre política, emancipação e democracia.

II) INTRODUÇÃO

A constituição de uma ciência política nova, a que faz apelo Tocqueville, não visa reprimir, tentar corrigir “os instintos selvagens da democracia” a fim de tornar essa revolução útil, de submetê-la à civilização, ao invés de deixá-la erguer-se livremente, anarquicamente contra esta? Doravante, para Tocqueville, a alternativa não é mais entre sociedade aristocrática ou sociedade democrática, mas entre uma democracia submetida à ordem e à moralidade e uma democracia “desordenada”, “depravada”, “entregue a furores frenéticos”.A expressão “Estado democrático”, que aparece desde a introdução da sua obra, não exprimiria muito bem o projeto de Tocqueville, como se se tratasse de fazer entrar a onda tumultuosa da democracia no leito do Estado? Associando a democracia ao Estado, não se trata para Toocqueville, de dissociá-la da revolução?[...]Assim, a democracia que repousa sobre o princípio da soberania do povo, está, entretanto, sujeita a criar uma forma de despotismo inédita, difícil de se nomear, poder tutelar mais que tirânico, que introduz uma nova espécie de servidão “regulada, amena e tranquila”. Assim, a revolução democrática, longe de continuar sendo um movimento revolucionário permanente, está destinada a estancar as paixões revolucionárias, substituindo-lhe novas paixões, que têm mais a ver com a manutenção do que já é, do que com a subversão. (ABENSOUR, 1998, p. 19-20).

Logo na introdução de sua obra, Abensour justifica a inserção de Marx dentro do

momento maquiaveliano (o que pode causar incômodos), ao dizer que Marx não é

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simplesmente um Maquiavel da classe operária, mas que ele é um pensador que está

inserido na crítica da filosofia política clássica. Marx estaria assim inscrito em uma série

de preocupações da filosofia política moderna inaugurada por Maquiavel, sem, no

entanto, se resumir a um discípulo deste.

Na verdade, Marx, em um artigo de julho de 1842, reconhece o quanto a filosofia política contemporânea – o pensamento da emancipação – se constitui a partir de uma relação com a tradição. A ideia de Estado, o que Marx chama de “a autonomia do conceito de Estado”, longe de ser uma invenção fantasista das doutrinas políticas mais recentes, parece ser, observando-se bem, o fruto de uma relação viva com uma tradição multissecular, inaugurada por Maquiavel e Campanella, através da instituição maquiaveliana da filosofia política moderna. (ABENSOUR, 1998, p. 24).

Para inserir as preocupações de Marx de forma apropriada no momento maquiaveliano,

é preciso uma requalificação mais ampla desse termo (ou período do pensamento

político). Concordando com J. G. A. Pocock, Abensour se afasta da “apresentação

clássica da filosofia da política moderna, até então inteiramente dominada pelo modelo

jurídico-liberal, revelando a “face oculta” deste, isto é, a existência de um outro modelo,

o paradigma cívico, humanista e republicano.” (ABENSOUR, 1998, p.24). Essa nova

caracterização do momento maquiaveliano seria composta por três elementos distintos:

a) a reativação da vida política (cívica) em oposição à vida contemplativa e imutável da

ordem medieval que carrega em si o germe da possibilidade constante de mudança

social; b) a república como forma de satisfazer a necessidade política do Homem que

reforça a crítica à atemporalidade das formas imperiais e monárquicas e está ligada ao

incessante “agir humano que, desdobrando-se no tempo, trabalha efetivamente para

separar a ordem política da ordem natural” (ABENSOUR, 1998, p.26); c) a forma-

república como ela mesma uma realidade histórica específica que deve sobreviver às

provas do tempo. Marx se insere nesse esforço de oposição às sobrevivências do

teológico-político, mas Abensour se questiona se podemos limitá-lo a isso (um

discípulo de Maquiavel) e de todas as concepções de política subsequentes, entre elas a

ideia de autonomia do conceito de Estado ou da irredutibilidade do domínio político.

É justamente no âmbito de responder a esses questionamentos que Abensour faz sua

escolha dos conjuntos de textos de Marx a serem estudados, a saber, os textos entre

1842 e 1844, fazendo uma separação no pensamento marxiano em 1843, entendendo

que a crise fez necessária uma reavaliação crítica de Marx em relação aos primeiros

textos de 1842.

Nesse sentido, os textos de 1842:

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[...] colocam-se sob o signo, não tanto da emancipação política, mas da emancipação do político em relação ao teológico, do complexo do Estado cristão. Se essa afirmação essencial da autonomia do político se traduz por uma tentativa de importar para o mundo germânico a idéia republicana, ela leva, mais ainda, a uma verdadeira redescoberta do político; o lugar político é pensado como irredutível, como possuindo uma consistência própria e, na lógica dessa autonomia, considerado como determinante. (ABENSOUR, 1998, p.28).

Por outro lado:

[...] os textos de 1843 inauguram um questionamento desse poder determinante do político, pelo menos na figura do Estado. A crítica do Estado moderno, na forma de um relacionamento com a autonomia da sociedade civil, abre caminha a um descentramento de um novo tipo do político em relação a ele mesmo. (ABENSOUR, 1998, p.28)

Esse segundo momento de Marx pode resultar em duas interpretações diferentes: a

subordinação final do político enquanto superestrutura subordinada a infraestrutura

econômica (consagrando o materialismo histórico e uma morte de seu momento

maquiaveliano) ou o nascimento de novos questionamentos e direções (sendo assim um

desvio no momento maquiaveliano) nas quais reaparecem as discussões sobre a

democracia verdadeira e o fim do Estado. Abensour parte na busca dessa segunda

interpretação que reflete um conflito interno à Marx e à sociedade contemporânea em

sua busca por emancipação dentro de uma modernidade incompleta (especialmente em

relação à liberdade e igualdade).

III) A UTOPIA DO ESTADO RACIONAL

Abensour, ao procurar demonstrar um corte entre os escritos marxianos pré-1943 e os

pós-1943, inicia sua análise pelos textos de 1842 e início de 1843 – textos publicados

enquanto Marx estava vinculado a Gazeta Renana. O autor os interpreta como:

[...] uma expressão acabada e coerente da teoria do Estado racional e democrático, espécie de epítome da luta prática das correntes democráticas, durante a Revolução Francesa e da luta teórica dos filósofos alemães, na esteira do que W. Benjamin descreveu como os “alemães de 1789”. (ABENSOUR, 1998, p. 33)

Esse momento é o de crítica às concepções de Kant e ao idealismo especulativo da

formulação da filosofia do direito de Hegel, e de saudação das concepções mais

materialistas e de ordem prática de Bauer e Feuerbach. Apesar de não possuir o

aprofundamento teórico que Marx posteriormente vai conceder a essa crítica ela “[...]

apresenta-se como a unidade da vontade e do pensamento e se propõe a substituir uma

filosofia da vontade e da ação a uma filosofia do espírito” (ABENSOUR, 1998, p. 34).

Compreendamos que, para Marx redator da Gazeta Renana, tratava-se de importar para a Alemanha o modelo francês do Estado revolucionário, de construir o Estado da razão, de fazer seus compatriotas, ainda mergulhados

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no reino animal do espírito, se elevarem à modernidade política, isto é, de transformá-los em um povo de cidadãos. (ABENSOUR, 1998, p. 34)

As contribuições de Marx, jornalista político, podem, pois, em um primeiro nível, ser analisadas como uma conjunção harmoniosa do jacobinismo e do hegelianismo de esquerda. Essas contribuições manifestam, ao mesmo tempo, uma vontade de emancipar o Estado da religião, pela criação de uma comunidade política secular, e uma vontade de destruir as formas políticas do Antigo Regime – estruturas hierárquicas, reino dos privilégios, para a elas substituir uma república democrática, repousando sobre a igualdade política. (ABENSOUR, 1998, p. 35)

Essa visão, no entanto, não pode se limitar somente a termos puramente políticos, ou

como simplesmente a uma luta em “oposição ao Estado cristão e às formas políticas do

Antigo Regime”. Ela funda-se, e de certa forma repete, um “fenômeno de outra

amplitude [...] que Claude Lefort soube descobrir, como condicionando a emergência de

uma concepção racionalista e universalista da política, na circunstância, o caso do

humanismo florentino" (ABENSOUR, 1998, p. 35). Trata-se aqui de reconhecer que

essa mudança pretende produzir não somente um novo discurso político, mas inaugurar

categorias que implicam em uma nova determinação do real – especialmente ao discutir

as relações do filósofo com o político –; uma forma de restituir o lugar da política

separada da teologia; o que está em jogo é uma nova concepção de política, de ordem

do real e de seu movimento (tomado agora como movimento político), uma nova visão

do ser social.

Para estabelecer a legitimidade dessa leitura “maximal”, apreender a constituição do momento maquiaveliano, reteremos dois textos, um de Feuerbach, outro de Marx, que mostram melhor como discurso político em “francês moderno”, proferido no cenário alemão de 1841 a 1843 é, sem dúvida, o efeito derivado de um discurso fundador sobre a política, sobre o lugar da política, voltado inteiramente para uma reconquista da dimensão política, dimensão constitutiva da humanidade. (ABENSOUR, 1998, p. 36)

Na formulação de Feuerbach, o novo período da história da humanidade demanda a

negação do cristianismo e a afirmação da política enquanto atividade humana essencial.

É justamente essa mudança – que faz com que os homens voltem seus olhos do céu para

a terra – é que demanda uma mudança interna da filosofia; que orienta a formulação de

uma nova filosofia. Esta, por sua vez, cessaria de ser puramente especulativa para

tornar-se plenamente materialista e transformar a política naquilo que move não

somente a cabeça dos homens, mas também seus corações – tornando-se, assim, uma

espécie de nova religião.

É pois a necessidade política, à qual se reconhece o estatuto de necessidade de um novo período da história humana, que comanda e exige a reforma da filosofia. Observaremos, além disso, o verdadeiro retorno, que efetuou Feuerbach, através de um procedimento tipicamente dialético, pois que a

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negação da religião é colocada como condição de possibilidade da reapropriação do político: o desmembramento do político e do teológico, a emancipação do político em relação ao religioso valem como momento preparatório a uma transformação da filosofia em religião, pela intervenção da filosofia. Muito mais, essa nova sacralização da política informa, em toda sua extensão, o conceito de Estado, tal como é construído por Feuerbach.Do ponto de vista de sua gênese, seguindo-se Feuerbach, o Estado se deduz da negação da religião: é quando o elo religioso se quebra ou se dissolve que pode surgir a comunidade política, é quando a relação com Deus se apaga que pode se instaurar o ele inter-humano. Esse é o trabalho do novo princípio supremo, sob sua forma negativa, a saber, o ateísmo.[...] É somente o desaparecimento do laço religioso, momento da separação, que torna possível a constituição do laço político, momento da nova reunião. Ao se considerar a gênese subjetiva do Estado, surge uma relação entre a dissolução do religioso e a formação do Estado. (ABENSOUR, 1998, p. 37)

A partir da negação das crenças é que os seres humanos passam a lidar diretamente,

segundo Feuerbach, com o desafio de olhar uns para os outros e estabelecer um laço de

união. Disso decorre:

A saída do teológico-político se opera, pois, em um movimento de ruptura e de reunião, de desligamento e de ligamento que, ao mesmo tempo em que devolve aos sujeitos humanos à sua finitude, abre uma nova sequência ascensional, abre caminho ao surgimento de um novo sujeito infinito, que levanta sue vôo do terreno da incompletude dos sujeitos finitos. São notáveis os caracteres atribuídos a esse novo sujeito que emerge da relação humana voltada sobre si mesma. O Estado é colocado como um ser infinito, como uma totalidade, como atividade pura, como autodeterminação, enfim, como dotado de todos os atributos da divindade. (ABENSOUR, 1998, p. 38)

Abensour destaca que este é o clima intelectual no qual se insere o jovem Marx em seus

primeiros escritos ainda na Gazeta Renana. É a partir desse enaltecimento do político

que todo o horizonte crítico e categorial político de Marx se constrói. De fato, é nesse

sentido, que os primeiros escritos de cunho jornalístico de Marx devem ser

interpretados: como uma defesa da filosofia em tratar dos assuntos político tendo como

base a razão, não somente na esfera privada, mas definitivamente na esfera pública (no

caso, no jornal).

De Spinoza Marx retém, pois, não somente a tesa central do Tractatus Theologico-Policitus, favorável à liberdade de filosofar, mas a ideia de que, para fundar a Res publica, convém destruir o nexus teológico-político, esse misto impuro de fé, de crença e de discurso convidando à submissão, essa aliança particular do teológico e do político (como o Estado cristão contemporâneo de Marx) na qual, pela invocação da autoridade divina, o teológico invade a cidade, reduz a comunidade política à escravidão, pior ainda, desequilibra totalmente a ordem, sobrepondo à lógica própria uma lógica vinda de outra ordem. (ABENSOUR, 1998, p. 40)

Uma linha de continuidade aparece nitidamente, indo de Maquiavel a Marx, passando por Spinoza, e que consiste em liberar a comunidade política do despotismo teológico, a fim de devolver ao político sua consistência própria e de permitir assim o advento de um Estado racional [...].(ABENSOUR, 1998, p. 40)

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Não se trata por isso, da parte de Marx, de ocupar simplesmente uma posição estratégica, mas, sobretudo, de articular sua própria interpretação da história da filosofia política, de definir o que constitui, segundo ele, a contribuição própria da modernidade ao pensamento político. [...] o propósito de Marx, é, na verdade, circunscrever o inititum a partir do qual é possível, doravante, pensar as coisas políticas. (ABENSOUR, 1998, p. 40-41)

Para Marx, nesse momento:

A legitimidade do questionamento filosófico sobre o político repousa sobre a autonomia do político. Inversamente, a autonomia do conceito de Estado é um trabalho crítico relacionado com a filosofia, a seu movimento de emancipação, que permitiu a constituição de um sabe mundano do político, centrado em si mesmo. [...] Assim, Marx insere a descoberta do sistema político em um movimento geral de emancipação das ciências, em relação à revelação e à fé [...].(ABENSOUR, 1998, p. 41)

No entanto, é necessário observar que mesmo ressaltando esse movimento próprio da

modernidade, sua constante referência ao pensamento clássico, o afasta da maior parte

das tendências empiristas próprias de seu tempo – e que o afasta sistematicamente de

autores como Hobbes e Kant (que apesar de divergências explicam o Estado a partir de

um empirismo do tipo sócio-piscológico, ou seja, de instintos, da ambição ou, quando

muito, de uma razão puramente individual). Nesse sentido, Marx adere a filosofia que

lhe é contemporânea – em especial Hegel – que volta-se para um “conceito especulativo

do político”.

Considerar o Estado com olhos humanos, descobrir a lei de gravitação do Estado, afirmar que o centro de gravidade do Estado reside em si mesmo são proposições diretrizes que é preciso compreender em dois sentidos, a saber: 1. para apreender a lógica do Estado é necessário libertar-se do teológico; 2. essa emancipação não é apenas uma liberação sob a forma de separação, de negação, mas deve se elevar ao nível de uma posição, de uma liberdade afirmativa e isto significa que, uma vez conquistada a autonomia, é preciso evitar remeter a lógica da política a outras ordens que não a política, e de modo a liberar uma gênese empírica do Estado, sob pena de ocultar, de imediato, a dimensão que o pensamento acaba de recobrar. (ABENSOUR, 1998, p. 42)

Recordando que no referimos aqui aos escritos de Marx que antecedem à crítica da

filosofia do direito de Hegel, Abensour comenta essa adesão de Marx ao conceito

especulativo de Estado.

O Estado é concebido por Marx como uma totalidade orgânica, como um “sendo” cujo modo de ser específico é o sistema. Assim, a unificação do múltiplo que realiza o sistema Estado, ou o Estado como sistema, não deve ser pensada como uma unidade-resultado, que proviria de uma associação ou de uma ligação do múltiplo, seja harmoniosa, seja conflituosa (ponto de vista empirista), mas segundo o modelo de uma unidade de caráter orgânico. A ideia de Estado mais ideal, entendamos, especulativa, é construída partindo da ideia do Todo, escreve Marx, ou ainda da “razão da sociedade”. Outro efeito dessa concepção especulativa do Estado: todo pensamento de uma separação, de uma exterioridade, entre o indivíduo-cidadão e a universalidade do Estado é recusada em proveito de uma integração da singularidade à

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unidade orgânica, ou mais exatamente, do reconhecimento de uma adequação perfeita entre a razão individual e a razão da instituição estatal, ela mesma uma elaboração da razão humana. Essa filiação a um pensamento especulativo do Estado merece ser ressaltada, pois assim se mede mais de perto a dimensão a que se deve remeter a ideia de autonomia. Convém compreender a ideia de autonomia do conceito de Estado, segundo uma dupla acepção. Negativamente, afirmar a autonomia implica recusar uma gênese empírica, tanto quanto recusar o modelo do contrato ou de um gênese, a partir do concurso das razões individuais. Positivamente, pensar o Estado, segundo seu conceito, como forma primeira, como forma integradora, organizadora, exige pensar a autonomia no seu registro mais intenso, fazer esse conceito produzir todas as suas implicações, a ponto de reconhecer, na comunidade política, o poder instituidor do social. Afirmar do Estado que ele é o “grande organismo”, defini-lo como não derivado é, ao mesmo tempo, aceitar sua primazia e instalá-lo no lugar próprio da instituição do social. (ABENSOUR, 1998, p. 42-43)

IV) A INTELIGÊNCIA POLÍTICA

Mantendo ainda essa perspectiva especulativa do Estado, Marx faz uma sensível

contribuição ao momento maquiaveliano ao formular a ideia de inteligência política em

sua reflexão sobre a imprensa.

Se o Estado se fez devido à razão, só o ponto de vista da razão constitui a perspectiva legítima, a partir da qual se pode articular um pensamento do Estado. Isto significa que, nos textos do jovem Marx, uma crítica política esta na dependência de uma crítica filosófica, que a crítica do interesse privado está na dependência da crítica do empirismo. [...] A inteligência política indica a operação do espírito pela qual os fatos da experiência sensível são interpretados, regulados e organizados. Ou ainda, um fato da experiência não pode adquirir um sentido senão na e pela operação da inteligência política. Se ele está à altura da visão moderna do mundo, o legislador, longe de acolher os fatos na sua imediatez, de maneira empírica, deve apreendê-los com as lentes do Estado, dar-lhe sentido, transportando-os para o terreno espiritual do Estado. (ABENSOUR, 1998, p. 44)

A inteligência política, redutora de toda exterioridade, órgão de totalização, é o que permite ao espírito, na e pela forma Estado, a volta a si mesmo. (ABENSOUR, 1998, p. 45)

[...] a regra imposta para a propriedade – a inteligência política deve criticar e dominar a propriedade – vale para todo elemento que pretendesse isentar-se de sua exterioridade, para escapar ao processo de totalização e de universalização. Em oposição à lógica do interesse privado, Marx vai definir uma lógica do Estado como esfera da organização consciente, ou mais exatamente, instaura um corte entre o ponto de vista do interesse privado e o do Estado. A esfera do Estado é uma esfera autônoma, luminosa, grandiosa mesmo, que não poderia, de modo algum, ser reduzida aos limites estreitos, às dimensões mesquinhas do interesse ou da propriedade privada, sob pena de perder sua dignidade, sua identidade, seu modo de ser específico. [...] De acordo com essa independência do Estado, quanto às determinações exercidas pelos interesses que constituem a sociedade civil, de acordo com essa heterogeneidade do Estado, Marx definiu a modernidade política como a época do direito público. (ABENSOUR, 1998, p. 45)

Nos textos de 1842, Marx, teórico do idealismo político, da elevação política, adere sempre às soluções políticas, isto é, àquelas que, em presença de conflitos materiais, sabem elevar-se acima da esfera onde apareceram esses

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conflitos e fazer prevalecer o ponto de vista racional da totalidade. (ABENSOUR, 1998, p. 46)

A operação que Marx opera entre o interesse privado e a lógica estatal não se reduz a

uma simples dominação desta sobre aquela. É antes um conflito de duas lógicas

diferentes de modo que, sendo a lógica estatal essencialmente superior, opera-se uma

“transubstanciação política”, ou seja, uma transformação na substância de um dos polos

que o conduz ao outro:

Assim, por sua inserção na esfera do Estado, o interesse privado, ao invés de ser subordinado ou dominado, sofre uma transformação, uma espiritualização, que reduz de uma só vez sua exterioridade. Não se trata tanto de comprimir, de abafar o interesse, como faria uma intervenção estatal, mas de considerar o interesse privado à luz do Estado, para fazê-lo sair do fundo obscuro da sociedade civil. Tomado no círculo espiritual do Estado, o interesse privado se despoja de sua pele prosaica, de sua aparência bruta de interesse privado, para cobrir-se com a vestimenta estatal. (ABENSOUR, 1998, p. 46)

O fenômeno da transubstanciação política seria

[...] uma verdadeira reconstrução estatista, ou regeneração política, de modo a desfazer a materialidade, a passividade, a dependência, submetendo os elementos do Estado a um percurso ascendente que os leva a uma esfera onde, girando doravante em torno do sol da liberdade e da justiça, ele conhecerão uma irresistível metamorfose. (ABENSOUR, 1998, p. 47)

Toda essa formulação conduz ao apogeu da concepção de autonomia do Estado – não só

em sua gênese, mas também em sua própria natureza e movimento – que está ligado

essencialmente a uma visão especulativa do político. Tal como o percurso percorrido

pelas ciências naturais que elevaram a consciência “da primeira percepção sensível à

percepção racional da vida orgânica da natureza” (ABENSOUR, 1998, p. 47-48), da

mesma forma:

Um pensamento adulto, entenda-se, um pensamento especulativo, consegue distinguir, longe da diversidade do caos dos interesses, o espírito de uma unidade viva; ele consegue compreender o processo próprio do Estado, segundo o qual o particular gira em torno do geral. (ABENSOUR, 1998, p. 48).

Dessa forma, ao Estado são concedidas todas as características próprias de uma

totalidade orgânica: o Estado não é um simples envoltório de diversas partes

heterogêneas, mas opera nelas uma transformação essencial ao unificá-las em um tecido

único; a vida no Estado é um processo complexo de diferenciação-unificação (são

diferenças da unidade e não unidades de diferença que interagem em direção à unidade);

a própria estrutura interna do Estado é tida como orgânica, como um organismo vivo e

dinâmico; o movimento do Estado é, dessa forma, um processo contínuo de autocriação,

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que mistura metamorfoseando toda materialidade, todo o passado e toda necessidade em

uma “recriação cotidiana de um tecido nervoso unificador”. “Esse é o fundamento

especulativo a partir do qual pode-se apreender o processo de transubstanciação que, no

Estado moderno, transforma as partes materiais em órgãos do todo espiritual”

(ABENSOUR, 1998, p. 48). Ao Estado é concedida a posição de sujeito, incluindo aí

uma subjetividade própria (vontades, racionalidades, inteligências, etc.).

O Estado é sujeito, e é enquanto tal, que é pensado como atividade pura, como Espírito, como totalidade integradora, como redução da exterioridade, como desejo da coincidência a si, como lugar em que se efetua e se cumpre o retorno do espírito para si mesmo. (ABENSOUR, 1998, p. 49)

Marx segue de perto o pensamento especulativo hegeliano, mas já se distingue deste no

qual a esfera política permanece relativizada; subordinada ao saber do espírito absoluto.

Para Marx, e aqui se revela seu alinhamento com os hegelianos de esquerda, a esfera

política é um absoluto. Alinhamento com o projeto Jovem-Hegeliano que pretendia

transformar a práxis social e substituir uma fenomenologia do espírito por uma

fenomenologia da vontade; a vida política em sua supremacia universal.

A contribuição de Marx ao momento maquiaveliano está à altura do que nele vale como fundação desse momento; ela é a prática, sem falha, do novo pensamento do político, que se afirmou na dupla crítica ao Antigo Regime e ao Estado cristão. (ABENSOUR, 1998, p. 50)

O jovem Marx, levando ao extremo as concepções especulativas do Estado, teria

declarado sua autonomia não somente em relação à religião como também em relação a

todas as outras esferas do mundo material.

É por haver pensado o Estado como um grande organismo, sob o signo do pensamento moderno do sistema, é por haver pensado o Estado como uma esfera autônoma, mas ainda, como uma esfera heterogênea, uma esfera espiritual, ideal e, nesse sentido, plenamente ativa, capaz de superar os antagonismos e de criar, suprimindo as divisões do social, uma comunidade. (ABENSOUR, 1998, p. 50)

A redescoberta do elemento político, guiado pelo pensamento especulativo, leva Marx a

centrar no Estado e nas suas leis de funcionamento a elevação, a transfiguração das

questões materiais a sua forma universal, plena, unitária. No entanto, cabe a questão:

[...] Marx, por ter pensado a autonomia do político até sua absolutização, não chegaria, do mesmo modo, a fazer da política nossa religião? Marx, “entusiasta da política” (segundo seus próprios termos), embriagado, levada pela tonalidade religiosa de seu entusiasmo, não abandonaria, ao mesmo tempo, o terreno da política? Esta, na verdade, só conserva, talvez, sua identidade, abstendo-se de ocupar o “ponto sublime”, condenado por Merleau-Ponty, como lugar ilusório, onde se resolveriam e se aboliriam todas as oposições. (ABENSOUR, 1998, p. 51)

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V) DA CRISE DE 1843 À CRÍTICA DA POLÍTICA

Na passagem da crise à crítica, efetuar-se-ia uma metamorfose do momento maquiaveliano? Se examinarmos agora a crise de 1843, podemos, de imediato considera-la como uma tentativa de dessacralização do Estado, e em um duplo sentido. Como se, a princípios, Marx deixasse de conceber o Estado como modelo de sujeito infinito, se autodeterminando, integrando toda exterioridade, coincidindo consigo mesmo. (ABENSOUR, 1998, p. 52)

Essa dupla dessacralização diz respeito à crítica do ressurgimento de uma estrutura

política pautada no sagrado e, ao mesmo tempo, a crítica de uma estrutura dualista e

vertical entre uma base (vida profana) e o cume (o Estado). Uma das formas de olhar a

crise de 1843 seria

[...] investigar o aparecimento, no pensamento de Marx, de uma cena política centrada em um sujeito que, com um foco plural, se espraia em múltiplas direções, o que Marx chama de a “verdadeira democracia”. (ABENSOUR, 1998, p. 52)

A crise de 1843 é, antes de tudo, uma crise política. Além da ruptura com a utopia jovem-hegeliana do Estado racional partilhada por Marx em 1842, a meditação de Kreuznach produz uma constelação notável de textos que, a despeito de suas diferenças, convergem para um ponto central: a denúncia da revolução política, em benefício de uma forma radical de revolução. (ABENSOUR, 1998, p. 53)

Marx tira de sua experiência alemã uma conclusão que vale para o conjunto da sociedade moderna: trata-se doravante de criticar a emancipação política, forma de emancipação que a classe burguesa, enquanto classe revolucionária, trouxa para o mundo. Forma limitada de libertação, entretanto, já que uma determinada classe pensa a emancipação geral, a partir das condições, do conteúdo estreito que caracterizam sua situação histórica particular. (ABENSOUR, 1998, p. 53)

Em relação ao político, Marx altera sensivelmente sua posição em relação a 1842. Não

se trata de um recuo em relação à temática do político, mas de uma alteração sensível

que pretende aprofundar e radicalizar o processo de emancipação desse próprio político.

É como se se produzisse, no caminho de Marx, um movimento de recuo em relação a 1842, como se sucedesse, a um superinvestimento do político, levando a uma redescoberta do político, não tanto um desinvestimento, mas uma outra maneira de investir o político. [...] É melhor tentar retomar a complexidade desse procedimento, pelo qual Marx, ao invés de queimar o que adorou, age de maneira a prevenir uma excrescência do político para, de alguma forma, salvá-lo, prescrevendo-lhe, assinalando-lhe limites. (ABENSOUR, 1998, p. 53)

A crítica do político passa então pela crítica do Estado em dois níveis, um sócio-

histórico e outro filosófico. No primeiro temos uma dupla crítica: tanto ao

funcionamento abaixo do próprio potencial do Estado moderno dado por determinadas

reminiscências do Antigo Regime quanto ao novo problema posto pela relação do poder

político e do novo poder econômico. No plano filosófico temos a crítica de que o

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Estado, na verdade, reproduz em formato profano, a mesma alienação originalmente

religiosa entre produto e produtor (a constituição de uma verdadeira “estadolatria”).

Reapropriação das potências humanas, esbanjadas no céu da política, dessacralização do Estado, reorientação da emancipação, ainda com ajuda do modelo copernicano: que o homem não gravite mais em volta do Estado, sol ilusório, mas que gravite em torno de si mesmo, tais são as direções que essa nova fase da crítica abre. (ABENSOUR, 1998, p. 54)

[...] criticando a teoria hegeliana, Marx reprova, pelo mesmo movimento, a abstração da concepção alemã do Estado – que é apenas uma expressão particular da própria abstração do Estado moderno – e o fenômeno social histórico da alienação política. (ABENSOUR, 1998, p. 54)

Mas, se com ajuda da carta-programa dirigida a Ruge, em setembro de 1843, observa-se o método pelo qual Marx conduz sua crítica, percebe-se que o entusiasmo da emancipação não anula absolutamente o entusiasmo da política, mas, ao contrário, o inclui como momento necessário e, em um certo sentido, inapagável. (ABENSOUR, 1998, p. 54)

De acordo com a carta de setembro de 1843, o trabalho crítico consistiria, pois, em reconhecer, em cada forma particular da realidade existente, quer se trata de uma forma da consciência teórica, quer de uma forma da consciência prática, a realidade efetiva para a qual ela tende; tratar-se-ia de levar cada forma da realidade a estar de acordo com o movimento que a produziu. Isto significa que se trata de incitar a realidade a dar livre curso ao que a sustenta, à forma superior in statu nascendi da qual ela só representa uma expressão imperfeita e inacabada; por exemplo, de provocar a monarquia constitucional a reconhecer a verdade do princípio que a mantém, o princípio político, na democracia. [...] Assim, não se trata, para essa crítica de orientação muito claramente historicista, de desertar o terreno da revolução política, para investir no campo da revolução social, tanto mais que a primeira, na medida em que se saiba interpretá-la, assinala em direção à segunda. (ABENSOUR, 1998, p. 55)1

Refletindo ainda sobre a carta de setembro de 1843, Abensour destaca que a postura

crítica proposta por Marx não implica em uma refutação das questões da política que

são, no fundo, nossas próprias questões que devem ser analisadas pela própria crítica; o

objeto da crítica, sendo a própria consciência dos homens e de suas práticas, deve,

portanto, incluir as coisas da política, sem, no entanto, assumir o “distanciamento

dogmático”.

[...] basta-nos notar que o trabalho, feito aqui por Marx, é muito mais da ordem da auto interpretação, pela humanidade, de suas próprias lutas e deus próprias produções, que da ordem de uma crítica das ideologias. Observa-se, especialmente, a recusa de um distanciamento dogmático, que instalaria o crítico em uma posição de exterioridade em relação ao mundo que ele submete a seu julgamento. (ABENSOUR, 1998, p. 56)2

1 Nessa passagem Abensour faz uma citação direta da carta de Marx a Ruge que, apesar de suprimida da citação, acredito ser essencial para a compreensão da passagem: “O crítico pode, pois, (...) extrair, partindo das próprias formas da realidade existente, a verdadeira realidade, como sua exigência e seu fim último” (ABENSOUR, 1998, p. 55)2 Novamente, entre as duas citações, existe uma transcrição da carta de Marx a Ruge. Essa transcrição é de suma importância para projetos futuros, de modo que a deixarei aqui registrada: “Nossa divisa será

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Essa posição implica, relativamente à política, que o crítico, contrariamente aos “socialistas extremos”, que só têm desprezo por essa esfera, não deve voltar as costas às questões políticas mas, ao contrário, curvar-se sobre elas, para revelar-lhes, por seu trabalho de interpretação, os desafios da verdadeira significação. (ABENSOUR, 1998, p. 56)

O caminho que leva a uma forma superior de crítica passa necessariamente pela crítica da política, em razão mesmo da natureza particular do Estado moderno. O estado moderno é, com efeito, o lugar de uma contradição permanente entre sua intenção de universalidade, suas exigências racionais e suas pressuposições reais. Isto significa que a crítica da política deve jogar com essa contradição, isto é, que ela deve, ao mesmo tempo, levar o Estado a sério, acreditar em sua vocação e desmascarar sua mentira. Tratar-se-ia, de certo modo, de fazer com que a ilusão política, a tensão do idealismo político produzissem efeitos que ultrapassassem os limites do Estado político. Assim, o Estado, na medida em que abre uma cena político onde afloram, onde se expressam os conflitos, é o lugar de eleição para o trabalho do intérprete, levado por um interesse emancipatório. “É por isso que, partindo desse conflito do Estado político consigo mesmo, podemos detectar, em toda parte, a verdade social”. (ABENSOUR, 1998, p. 57)

Mas, mais profundamente, pareceria que, para Marx, o Estado político, por seu objetivo, pela própria intencionalidade que o constitui, fosse a presa de uma sobre-significação, como se estivesse obsedado por um horizonte insuspeitado, situando-se além do Estado. [...] poderíamos dizer da inteligência política “que ela pensa mais do que pensa”, o Estado político sendo atravessado por um princípio implícito, de maneira a fazê-lo sair dos seus limites, a leva-lo para além dos seus próprios limites. Assim, o Estado político é, para a crítica, um objeto duplamente privilegiado, enquanto cena de expressão de conflitos e enquanto lugar trabalhado por um movimento intencional que o ultrapassa, que é pleno de um a mais e que, atravessando-o, provoca a vinda a si de um princípio, o princípio político. (ABENSOUR, 1998, p. 57)

[...] a crítica da política [...] tem por tarefa jogar com a tensão interna do Estado, praticar esse excesso do Estado sobre si mesmo, ou ainda seguir mais de perto a trajetória desse movimento de sobre-significação, de iluminação que atravesso o Estado político, orientando-se em direção ao telos que persegue volens nolens o Estado: o pleno desenvolvimento do princípio político. (ABENSOUR, 1998, p. 58)

Se o enigma está longe de ser explicitamente resolvido, entrevê-se melhor, entretanto, como o Estado político, reconhecendo seus limites, pode reconhecer, ao mesmo tempo, o horizonte para o qual o leva o movimento que o excede, e pode designar o termo dessa passagem dramática da forma política à forma geral, com o nome de “verdadeira democracia”. (ABENSOUR, 1998, p. 58)

Não se trata tanto de escolher a República como forma estável, destinada a responder à fragilidade das coisas humanas, mas de buscar a comunidade política suscetível de uma maior abertura, no sentido de que nela se podem manifestar melhor o “mais” que leva o Estado para além de si mesmo, e as formas de emancipação que, em lugar de ser a liquidação da política, introduzem esta nova questão: como denominar as figuras da emancipação universalmente humana?

pois: reforma da consciência, não pelos dogmas, mas pela análise da consciência mística, obscura em si mesma, quer se manifesta na religião ou na política (...). Perceberemos que não se trata de traçar uma grande linha suspensiva entre o passado e o futuro, mas de cumprir as ideias do passado. Veremos, enfim, que a humanidade não começa por uma obra nova, mas que realiza sua obra antiga com consciência” (ABENSOUR, 1998, p. 56)

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Se a resposta que suscita essa crise é a direcionar-se para a questão da emancipação humana, o exercício da crítica da política, que depende de um modelo hermenêutico, longe de levar a uma rejeição da emancipação política, submete-se à interpretação, para obriga-la a reconhecer a sobre-significação da qual está plena e circunscrever este lugar, difícil de se discernir, além do Estado moderno, ali onde a democracia pode realizar-se, na sua verdade. (ABENSOUR, 1998, p. 59)

VI) UMA HIPÓTESE DE LEITURA

Nessa seção o autor sugere uma nova leitura do texto de 1843 que questionaria até

mesmo a própria interpretação de Marx em seu olhar retrospectivo sobre a obra. Assim,

Abensour levanta o questionamento:

Melhor do que optar pela leitura científica – que vê no texto crítico da filosofia do direito de Hegel os primeiros elementos de uma crítica materialista da sociedade e do Estado – não se poderia detectar aí a procra apaixonada e difícil de uma filosofia política anti-hegeliana que se edificaria sobre a experiência política da liberdade moderna, tal qual ela se manifestou no movimento revolucionário? (ABENSOUR, 1998, p. 60)

Se levarmos em conta a auto-interpretação que Marx nos dá, em 1859, de suas pesquisas de 1843, podemos concluir por uma inversão do ponto de vista de 1842 e pelo nascimento de uma nova ciência crítica. A lei da gravitação do Estado não deveria mais ser procurada por si mesma, mas nas condições materiais da vida, da sociedade civil, na estrutura econômica da sociedade. Essa transferência do político para uma outra ordem está vem presente no texto de 1843. Ela poderia até mesmo ser o efeito do método transformativo de Feuerbach, aplicado à teoria da política. Ora, essa referência deve nos alertar, pois situa o trabalho crítico de Marx em um contexto isento de uma abordagem científica, mesmo se tratando de uma sociologia crítica. (ABENSOUR, 1998, p. 60)

Em sua crítica Marx parte, primeiramente, da antinomia não resolvida entre duas determinações do Estado, segundo Hegel: de um lado, em relação à sociedade civil burguesa e à família, o Estado estaria em uma relação de necessidade exterior, de outro, ele seria seu fim imanente. Antinomia não resolvida, de tal maneira que o Estado apresentaria uma face dupla: do lado da necessidade exterior, haveria dependência e subordinação; o ser autônomo da sociedade civil e da família estaria subordinado do exterior ao Estado; a identidade seria somente externa, pois obtida em uma relação não isenta de violência; do lado do fim imanente, não haveria nem dependência nem subordinação, mas identidade harmoniosa, identidade interna, já que família e sociedade civil não seriam senão momentos da ascensão em direção à Ideia, em direção à universalidade objetiva do Estado. (ABENSOUR, 1998, p. 61)

Marx não somente aponta essa antinomia não resolvida como, talvez em uma aplicação

direta do método transformativo feuerbachiano, faz a inversão entre sujeito e predicado

e assenta o Estado nas relações reais na sociedade civil e na família; coloca o Estado “na

dependência das esferas onde ele emerge”.

Para o Marx da crítica de 1843, o ponto de gravidade do Estado reside fora dele mesmo, do lado das “instâncias atuantes”, que são a família e a sociedade civil-burguesa. Em um primeiro nível, portanto, estamos autorizados a ver uma inversão da tópica de 1842. Teremos aí uma primeira resposta ao problema capital dos Tempos modernos, que Marx definiu como

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sendo o da relação da indústria, do mundo da riqueza com o mundo da política. Sem dúvida o caminho parece aberto para incluir o político numa análise dialética da totalidade social. Mas – e esse ponto é essencial – o passo não foi dado; não basta que um caminho esteja aberto para ser necessariamente utilizado. Na realidade estaríamos verdadeiramente autorizados a ver nesse texto os primeiros esboços de uma concepção “científica” das relações entre o Estado e a sociedade civil? Seria esse o objeto do texto? Seria esse o objetivo que perseguia Marx? Bastaria lembrar o caráter inacabado desse texto, em 1843. Na verdade, se o passo não foi dado, é porque, nesse momento de seu itinerário, Marx não se comprometia, de maneira unívoca, na direção, aparentemente soberana, que, retrospectivamente, pensara conferir ao manuscrito não publicado de 1843, dando-lhe publicamente um sentido e apenas um, desprezando tensões e virtualidade múltiplas, que atravessam esse texto inacabado. [...] Uma outra leitura é legítima e, em certo sentido, fecunda. (ABENSOUR, 1998, p. 62-63)

Essa segunda leitura opõe-se a uma interpretação dita sociológica pelo autor, na qual a

sociedade civil e a família, em seu movimento, substituem o Estado como determinantes

das relações sociais na história.

Mas se tentarmos apreender o texto no seu movimento e na sua contemporaneidade, a crítica que ele pratica parece situar-se exatamente na conjunção de duas linhas: uma crítica filosófica e uma crítica política. Crítica política, na medida em que Marx obedece a uma vontade política, que consiste em opor, a um modo de pensar burocrático da política e do mundo político, um modo de pensar democrático da política e, fazendo isso, elaborar ao mesmo tempo um pensamento da democracia e um pensamento da política, em harmonia com a lógica da democracia. Marx luta contra o saber burocrático de Hegel, segundo ele, marcado pelo esoterismo e pelo formalismo. [...] Mas, para além da denúncia de insipidez e de empirismo hegeliano, Marx elege, como objeto de sua crítica, a própria especificidade do modo de pensar burocrático. (ABENSOUR, 1998, p. 63)

Na realidade, a Filosofia do Direito, de Hegel, seu aparelho conceptual, revela uma representação burocrática do mundo e da totalidade social, que considera o Estado como uma entidade separada, autônoma e lhe atribui, consequentemente, o privilégio exorbitante de ser o único agente, o lugar único da atividade na sociedade. Esse é, segundo Marx, o caráter distintivo da representação burocrática do mundo que atribui, com o registro da passividade, todo elemento exterior à burocracia. Ou, mais exatamente, a hipertrofia da burocracia tem como efeito necessário ocultar aos olhos dos próprios burocratas a mínima fonte de atividade, que nasceria espontaneamente no seio da sociedade. (ABENSOUR, 1998, p. 63-64)

É, pois, uma vontade política que anima Marx e o impele a pensar de maneira diferente a política; é um impulso antiburocrático que orienta seu olhar para a autonomia das esferas materiais e espirituais e o incita a unir uma vontade de emancipação real a um pensamento novo da história, sob o signo da democracia, de tal forma que intervenha um deslocamento dos polos da atividade e da passividade. Daí a troca notável que se efetua no seu pensamento entre o método transformativo e a vontade revolucionária. Se a revolução pode ser definida como a execução do método transformativo no campo da prática, de maneira inversa, o método transformativo se constitui em intervenção revolucionária no campo da teoria. (ABENSOUR, 1998, p. 64)

Promover essa inversão impõe a questão da origem; impõe a busca do sujeito

verdadeiramente originário e que ilumina a história moderna, busca essa que, conforme

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defende Abensour, não cessa nas unidades da família e da sociedade civil burguesa, mas

aprofunda-se e vai além:

[...] Marx desvia, primeiramente a atenção do Estado, para orientá-lo em direção à sociedade civil e à família, longe de deter-se nesse estágio, ele continua sua análise, até poder relacionar sociedade civil, família – que, nessa perspectiva, aparecem como derivadas – com um sujeito, foco de atividade originário, o dêmos ou mais, exatamente, o dêmos total. (ABENSOUR, 1998, p. 66)

Se destacarmos o princípio filosófico de Marx, enunciado, nitidamente, na crítica de 1843 – O que é preciso é partir do sujeito real e considerar sua objetivação – podemos afirmar com razão que, segundo ele, há uma adequação perfeita entre a democracia como autodeterminação do povo e o princípio filosófico que lhe é próprio, já que, com o dêmos, o sujeito real, “raiz” da história na modernidade, passa a existir na sua verdade. (ABENSOUR, 1998, p. 66)

A democracia figuraria, pois, como a prática, no campo político, do método transformativo; da mesma forma, o método transformativo figuraria como a efetivação, no campo da teoria, do princípio democrático. A interpretação da crítica da política como uma hermenêutica emancipadora vem confirmar essa hipótese de leitura. Não se trata de relacionar o universo político e suas formas com instâncias da totalidade social, que permitiriam explicar, sociologicamente, o político. Dizer que o ponto de gravidade do Estado reside fora dele mesmo indica, aliás, que é preciso relacionar o Estado com esse movimento que o excede, que o coloca fora de seu eixo; relacioná-lo a essa sobre-significação que o atravessa e cujo sujeito real não é outro senão a vida ativa do dêmos. Em outras palavras, o povo real detém o segredo da sobre-significação que obseda o Estado moderno. Em outras palavras, o foco de sentido do Estado moderno, o que – sob a forma de um horizonte implícito – dá sentido ao Estado político (e ao mesmo tempo o relativiza), é a vida plural, maciça, polimorfa do dêmos. (ABENSOUR, 1998, p. 66)

Uma vez apreendido o movimento de Marx; uma vez assim nomeado o sujeito originário, percebe-se o objeto de Marx na crítica a Hegel: pensar a essência do político – e esse ponto tem uma importância capital – em relação ao sujeito real, que é o dêmos, e não mais, como quer Hegel, em relação à compreensão da Ideia como sujeito. (ABENSOUR, 1998, p. 66-67)

Nesse contexto, em Hegel não encontramos uma essência política, que será buscada por

Marx a partir de sua crítica a Hegel. O que encontramos na filosofia do direito de Hegel

é uma simples derivação lógica do político. Dessa forma, por exemplo, as diferenças

dos poderes constitucionais não possuem uma essência política, mas são meras

derivações da própria Ideia abstrata.

As proposições de Hegel são válidas, tanto para o organismo animal, quanto para o organismo político. A ideia lógica funciona de forma semelhante, tanto em relação ao Estado, quanto em relação à natureza. A Hegel falta a essência do político e a essência política de cada poder em particular, já que os diferentes poderes são determinados pela natureza do conceito e não pela própria natureza. A filosofia do direito de Hegel não oferece, pois, senão a aparência falsa de um saber real do político. (ABENSOUR, 1998, p. 68)

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Diante dessa crítica a Hegel que de fato não teria explicado o Estado nem o poder

político (justamente por não ter identificado sua differentia specifica), Abensour destaca

a nova postura marxiana:

Retomando os termos de Marx, o trabalho filosófico consiste nesse caso, em permitir ao pensar concretizar-se nas determinações política. Fazer surgir o que o próprio Marx designa como “a lógica do corpo político” implica desvendar o eidos das coisas políticas, em uma espécie de confronto permanente entre o próprio “elemento político” e o eidos das instâncias, em seu próprio jogo complexo e diferenciado – a energia teórica sendo própria do poder legislativo; a energia prática do poder governamental –, constituem o Estado moderno, em sua diferença com relação à cidade antiga e à Idade Média. (ABENSOUR, 1998, p. 69)

Trata-se, pois, de reconhecer que, em certo sentido, a análise de Marx, onde polêmica e afirmação não param de se imbricar, está totalmente voltada para a vontade de responder à pergunta: qual é a differentia specifica do organismo político, uma vez que o filósofo está determinado a pensar o mundo político, não mais a partir da ideia lógica de organismo, mas fazendo plenamente justiça à particularidade do “elemento político”? (ABENSOUR, 1998, p. 69)

O que acontece com a ideia de organismo, relacionada a esse sujeito particular, ao mesmo tempo energia teórica e energia prática que é o dêmos? Poder-se-ia ver aqui um outro modo de totalização, em ruptura com uma lógica de identidade?Em resumo, a ideia de sistema é mantida, apesar da mudança do sujeito ou a mudança do sujeito teria como efeito prejudicar a própria ideia do sistema?Para responder a essa questão convém colocar-se no lugar da “verdadeira democracia” que, nesse texto, figura como uma espécie de ponto limite, onde está em jogo a lógica da coisa política. (ABENSOUR, 1998, p. 69)

Para Abensour essa leitura não faz um afastamento do momento maquiaveliano, mas

sim uma aproximação com este, uma vez que aprofunda os questionamentos acerca da

essência do político e a coloca como uma questão terrena, dos homens reais, que nega

qualquer prévia determinação filosófica.

VII) OS QUATRO CARACTERES DA VERDADEIRA DEMOCRACIA

Partindo da famosa frase de Marx acerca dos franceses, da verdade contida em toda

constituição e o desaparecimento do Estado3, Abensour destaca que “[...] Marx nos

incita a pensarem uma situação paradoxal, em que o desaparecimento do Estado político

só pode intervir dentro e através da plena consciência de si de uma comunidade política

acedendo à sua verdade” (ABENSOUR, 1998, p. 71). Ao desaparecimento do Estado

coincide com o surgimento de uma forma política superior, mais perfeita. Aparece,

neste momento, pela primeira vez, um contraste entre Estado e democracia; temática

essa que não abandona os escritos posteriores de Marx.

3 “Os franceses da época moderna entenderam que, na verdadeira democracia, o Estado político desapareceria. Isto é certo para o Estado político enquanto constituição, mas não é mais válido para o todo”, escreveu Marx na Crítica da filosofia do direito de Hegel.

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O projeto de Marx na crítica de 1843 é, como dizíamos, pensar a essência do político em relação ao sujeito real que é o dêmos. Isso quer dizer que a busca da essência do político e a busca da verdadeira democracia coincidem necessariamente, ou mesmo se confundem. Interrogar-se sobre a essência do político leva à questão da democracia; ressaltar a diferença específica da democracia em relação às outras formas de regime é o mesmo que se defrontar com a própria lógica da coisa política. [...] A verdadeira democracia – entendamos como democracia a que atinge sua verdade, enquanto forma de politéia – é a política por excelência, o desabrochar, a apoteose do princípio político. Donde se conclui que compreender a lógica da verdadeira democracia é atingir a lógica da coisa política. (ABENSOUR, 1998, p. 72)

Esse estudo não é, de forma alguma, simples e, justamente por sua complexidade, não

comporta uma simples negação do Estado. O autor dedica-se neste capítulo a tentativa

de elencar os principais caracteres da verdadeira democracia.

Em primeiro lugar, temos a oposição entre a soberania do monarca e a soberania do

povo. Marx, já na crítica de 1843 e opondo-se a Hegel, toma o partido desta última. Isso

ocorre devido a inversão do pensamento hegeliano anteriormente comentada, inversão

essa que faz com que o povo assuma o papel de Estado real. Dessa forma,

Ao invés de perceber a democracia como o sinal de um povo que permaneceu em um estado arbitrário e não orgânico, Marx, pelo contrário, considera a forma democrática como o coroamento da história moderna enquanto história da liberdade. Mais do que isso, faz da democracia o telos para o qual tende o conjunto das formas política modernas, quer se trate da monarquia constitucional ou da República. (ABENSOUR, 1998, p. 73)

De um ponto de vista teórico, conclui-se que a monarquia não pode se compreender a partir dela mesma, mas somente a partir do horizonte, ou seja, do princípio implícito que a move: o princípio democrático. Ora, se compreender a monarquia exige um descentramento, já que somente a lógica da democracia dá a chave da monarquia, em compensação, a democracia pode se autocompreender, se autoconhecer, recentrada sobre si mesma, em seu próprio nível, já que não depende de nenhuma forma superior, pois o sujeito real, o dêmos, nela se institui em uma relação plena. Melhor dizendo, é no lugar da democracia que o próprio princípio político se desvenda em sua perfeição. (ABENSOUR, 1998, p. 73)

Marx, nesse ponto, afasta-se de M. Hess, para quem a política era um sistema de

dominação entre senhor-escravo tal qual a religião, de forma que somente sua supressão

poderia fazer do homem um ser livre. Hess concordava com Hegel que a monarquia era

a apoteose das formas política justamente porque revelava (agora discordando de Hegel)

a essência mesma da política, ou seja, um sistema de dominação. Mesmo em sua forma

republicana, a política é vista como um sistema de dominação, dado a separação entre

governantes e governados. Hess caminha (e puxa Espinosa nessa direção) para o

anarquismo.

[...] se o político pode ser a condição de pensado com referência à relação dominação-servidão, o mal político, sendo a dominação do homem pelo homem, ele é, entretanto, pensado como irredutível apenas quanto à

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dominação, porque o que está em jogo, o que se torna questão no e pelo político é a prática dos homens de um viver-junto segundo as exigências da liberdade, da vontade livre. (ABENSOUR, 1998, p. 74)

Marx, contrariamente a Hess, ressalta o pensamento democrático de Espinosa, para

quem a democracia era o ponto culminante das formas políticas, sendo ela mesma a

forma política mais racional, natural e capaz de respeitas a liberdade dos indivíduos.

Dessa forma, a democracia aparece como realização da essência política.

[...] a democracia, sendo o regime mais racional e livre, é a comunidade política por excelência, sendo os regimes aristocrático e monárquico apenas formas derivadas e insuficientemente elaboradas da instituição política, já que, em última análise, toda soberania é de essência democrática. (ABENSOUR, 1998, p. 76)

[...] se, para Marx, a democracia é, como para Spinoza, o regime natural e figura como o paradigma da politéia, ou ainda, “ como o hiper-modelo da vida política verdadeira”, é precisamente na medida em que, para Marx, a essência da política não pode ser reduzida ao polo exclusivo da relação senhor-escravo mas, ao contrário, consiste na prática da união dos homens, na instituição sub specie rei publicae da um estar-junto orientado para a liberdade, ou, ainda, na prática do que Marx chama “o comércio humano”, ou a atividade mediadora dos homens. Nesse sentido, o elemento político é, na verdade apreendido por Marx, como um elo específico, irredutível a uma dialética das necessidades, ou a uma derivação da divisão do trabalho; como um momento que uma sociedade humana, destinada à liberdade, não pode dispensar, sob pena de cair novamente no mundo animal político (viver e multiplicar-se). Neste, e por este elemento, se destaca o lugar onde “O homem real”, enquanto povo, universalidade dos cidadãos, se expõe permanentemente à prova de universalização. (ABENSOUR, 1998, p. 76)

Percebe-se que a divergência entre Marx e Hess dá-se na própria essência do político

(enquanto dominação ou enquanto instituição de comunidade), divergência essa que

afeta também suas considerações divergentes sobre monarquia e democracia. Na crítica

de 1843, Marx procura não uma negação da política, mas a superação da visão

dogmática presente em Hegel em prol da procura da essência ética ou antropológica da

mesma.

Nesse sentido, Marx pode, como Moses Hess, colocar-se do lado dos ateístas políticos, com uma única diferença, mas de peso: enquanto Moses Hess tem uma relação unicamente negativa com a política, Marx chega a elaborar com esta tal relação crítica, que ele distingue o verdadeiro do falso, assim como pensa no desaparecimento do Estado, mas como advento da verdadeira democracia. (ABENSOUR, 1998, p. 77)

Em segundo lugar,

A relação entre a atividade do sujeito, o dêmos total e a objetivação constitucional na democracia é diferente do que se efetua nas outras formas de Estado, mesmo se a soberania, nestes casos, se revela ser igualmente de essência democrática, a despeito dessas formas. (ABENSOUR, 1998, p. 77)

Essa relação se traduz, na democracia, por uma outra articulação do todo e das partes, o que acarreta um efeito fundamental, que vale como critério

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distintivo da democracia, ou seja, que a objetivação constitucional, a objetivação do dêmos sob a forma de uma constituição, é aí objeto de uma redução. (ABENSOUR, 1998, p. 78)

Entendemos que, para continuar em conformidade com sua essência específica – a lei é a existência do homem –, a constituição é submetida a um processo de redução. Seria errado confundir essa redução com um apagamento ou um rebaixamento. [...] no sentido em que, processando-se esse retorno, feito esse reconhecimento, é conveniente reduzir a objetivação considerada naquilo que é – o momento de um processo mais global – determinar, pois, seus limites com muita exatidão, para melhor controlar a energia teórica e prática que se despende na esfera política. Assim, é na medida em que Marx tem uma alta ideia do que se passa, do que se efetua na constituição democrática, que ele conclui, precisamente, pela necessidade de uma redução, para não comprometer o desenvolvimento da operação efetiva. Ora, qual é essa operação efetiva? Voltemos à formula enunciada acima: a democracia, enquanto forma de Estado particular (e não apenas enquanto verdade de todas as formas de Estado), desvenda a essência de qualquer constituição política, quer dizer, o homem socializado. (ABENSOUR, 1998, p. 78)

Abensour chama a atenção para uma diferença essencial entre pensar a política a partir

do oikos e não da polis, na interpretação do que seria, no pensamento de Marx, o homem

socializado. Esclarecendo essa advertência:

Não estamos na presença de um problema de direito social, do tipo “a sociedade contra o Estado”, segundo a qual, com o advento do “homem socializado”, a constituição política desapareceria, porque teria se tornado caduca. Ao contrário, a problemática que Marx propõe é especificamente política, colocando em jogo, no nível político, uma teoria da soberania e, no nível filosófico, um pensamento da subjetividade. Contra Hegel que, preocupado em satisfazer o princípio moderno da subjetividade, faz do homem (a pessoa do príncipe) o Estado subjetivado, para Marx, trata-se de mostrar que, pelo contrário, na democracia, o homem como ser genérico, o povo, o dêmos (o recurso ao termo grego não é indiferente) chega, no e pelo Estado, à objetivação. (ABENSOUR, 1998, p. 79)

Nesse sentido, compreendemos que a essência do homem somente se realiza no

momento em que ele tem acesso à esfera política; possui também uma existência

política. Somente assim o homem realiza a sua generalidade de ser social.

Longe, pois, de pensar que o advento da societas torna inútil, obsoleta a civitas, é pelo acesso à civitas que se produz a emergência da societas. Ou ainda, não é porque o homem é um animal socialis que ele se dá uma constituição; mas é antes porque ele se dá uma constituição, porque ele é um Zôon politikon, que ele se revela ser efetivamente “o homem socializado”. Convém ir ainda mais longe. A essência política, o homem socializado, quando observado de perto, mostra na realidade, a essência do homem tal como pode se manifestar, na medida em que ela se liberte, se torne livre, precisamente dos limites da família e da sociedade civil e das determinadas que delas decorrem. Não é, pois, através das relações que se engendram na sociedade civil que o homem consegue cumprir seu destino social, mas é lutando contra elas, rejeitando-as politicamente, na qualidade de cidadão do Estado político, que ele pode conquistar sua essência de ser genérico. Assim, o modo de ser político se abre à experiência da verdadeira existência universal, à experiência essencial da comunidade, da unidade do homem com o homem. Subordinada ao princípio do prazer, a sociedade civil buguesa

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produz, certamente, elos; mas estes ficam afetados por uma irremediável contingência. Somente o “desligamento”, no nível da sociedade civil burguesa, permite a experiência de uma ligação genérica, pela entrada na esfera política. (ABENSOUR, 1998, p. 79)

A separação característica à ordem burguesa entre o social e o político se tornar, pois,

um impedimento a esse tipo de experiência, a esse tipo de identificação e de realização

do gênero humano, da política e da verdadeira democracia. Na política moderna o

indivíduo, a fim de relacionar-se com a esfera política, deve se despir de todas as suas

determinações reais consolidando a própria separação entre social e político. {Nesse

sentido, acredito que podemos concluir que a universalidade prometida pelo Estado é

completamente abstrata. Não existe identificação do indivíduo com o universal, mas

uma negação do indivíduo para o contato com um universal que é, dessa forma,

abstrato; e por ser abstrato, é incompleto. Essa abstração se funda e é necessária para a

manutenção, nunca é demais lembrar, de uma ordem social injusta}. Mesmo na

representação, o ato de constituição do político na ordem burguesa é contraditório:

Dois momento estão isolados nesse ato político, definido como uma total transubstanciação: o da colocação entre parênteses da sociedade civil, “é necessário que nele (no ato político) a sociedade civil burguesa se livre totalmente dela própria como sociedade civil burguesa enquanto estado privado”, e o da vinda a si do “homem socializado” no e pelo elemento político: é preciso que, nele, a sociedade civil “faça valer uma parte de sua essência que, além de não ter nada em comum com a existência civil-burguesa real de sua essência, ainda lhe é diretamente oposta”. O lugar do político se constitui, pois, como um lugar de mediação entre o homem e o homem e como um lugar de catharsis em relação a todos os laços não-essenciais que mantêm o homem à distância do homem. Chegamos, assim, ao paradoxo de que o homem faz a experiência do ser genérico, na medida em que se desvie do seu estar-aí social e que se afirme em seu ser de cidadão, ou antes, em seu dever-ser de cidadão. Poderíamos, parafraseando uma declaração posterior de Marx, dizer: o dêmos é político ou não é absolutamente nada. (ABENSOUR, 1998, p. 81)

Voltando a questão da redução da constituição:

Notemos, primeiramente, que é porque a democracia é “o enigma solucionado de todas as constituições”, “o homem socializado” e que ela sabe ser essa solução (o momento da consciência de si, e do conhecimento de si, próprio de uma filosofia da subjetividade) que ela conseguirá evitar que a objetivação constitucional degenere em alienação política. [...] Assim, retida ao fundamental, colocada em relação com a energia do sujeito, a constituição democrática não se reifica, não se cristaliza, não se constrói enquanto potência, forma estranha, acima do sujeito e contra ele. A resolução da constituição (o homem socializado) afasta o perigo de petrificação, pois acarreta uma redução da constituição, uma determinação de seus limites enquanto momento, pois ela lhe dá o estatuto de momento. (ABENSOUR, 1998, p. 81-82)

Além disso, é pela mesma razão que a constituição recolocada, reimersa no processo que a produz – e é aí, segundo Marx, o que é próprio da instituição democrática social – vai ultrapassar o nível da esfera propriamente política

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para se estender à totalidade das esferas, isto é, igualmente às esferas não-políticas. (ABENSOUR, 1998, p. 82)A redução, como uma determinação dos limites, parece ser a condição de possibilidade da extensão, como se o movimento de retorno a um sujeito originário tivesse como efeito tornar possível, liberar, uma retroação da atividade desse sujeito, em todos os domínios nos quais sua energia é chamada a atuar. (ABENSOUR, 1998, p. 82)

Na democracia, cada momento é realmente apenas um momento do dêmos total. A democracia é pensada como um sistema centrado em um sujeito unificante, cuja energia, tanto teórica quanto prática, constitui o princípio da unificação. (ABENSOUR, 1998, p. 82)

Abensour interpreta, dessa forma, a democracia como um movimento complexo que

poderia ser decomposto em vários outros momentos, todos eles, no entanto,

correspondendo a essência da democracia.

Na monarquia, mesmo que a soberania seja interpretada como de essência democrática,

temos uma relação defeituosa entre o todo e as partes: o todo está subordinado a uma de

sua partes – o monarca, ou a constituição monárquica – de modo que o povo está

“subsumido a uma de suas maneiras de ser”. Na democracia, a constituição seria

somente um momento do processo de autodeterminação do povo. Dessa forma, a

monarquia é mistificadora e paralisadora porque toma o determinando (o povo) como

determinado e o determinado (a constituição) como determinante.

Percebemos, assim, o quanto a crítica de 1843 é levado por uma luta generalizada contra qualquer visão, seja de inspiração monárquica ou burocrática, que tenha por efeito colocar o gênero humano, o povo, do lado da passividade, da minoria, escondendo do sujeito sua própria atividade e, ao mesmo tempo, inibindo-a. Na democracia fica clara, ao contrário, uma relação determinante-determinado, que é satisfatória no sentido em que está em harmonia com o que aí se efetua, o princípio político definido como uma emergência da unidade genérica na forma da constituição, com o nome de dêmos. (ABENSOUR, 1998, p. 83)

Com a democracia assistimos à constituição do povo, no sentido jurídico e meta-jurídico, recebendo o povo o tríplice estatuto de princípio, de sujeito e de fim. Nessa relação de si para si, que se executa na autoconstituição do povo, na autodeterminação, a constituição, o Estado político representa apenas um momento; certamente, um momento essencial, mas apenas um momento. O povo apresenta essa particularidade de ser um sujeito que é, ele mesmo, seu próprio fim. (ABENSOUR, 1998, p. 83)

É por isso que a democracia aparece, com razão, como o enigma resolvido de todas as constituições. Na verdade, o que está em causa, em todas as constituições, é exatamente a autodeterminação do povo. Mas, justamente, só se trata dela, e quando dela se trata, é na inconsciência, na mistificação ou mesmo na denegação. Ora, aquilo que está sendo apenas trabalhado nas outras formas de regime, a democracia tem por tarefa leva-la a termo, fazer dele sua obra. Ela faz dele sua obra porque ela sabe que o sujeito de qualquer sociedade política é a atividade, o poder energético do povo. Um enigma resolvido não apenas conhece a solução, mas se conhece e se reconhece como tal. (ABENSOUR, 1998, p. 84)

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O terceiro caráter:

Esse objetivo de uma autoconstituição do povo, de uma objetivação do comércio humano sob o modo político, que nunca se degradaria em alienação política, culmina em um pensamento da auto-instituição democrática do social, segundo o modelo de um auto-instituição, de uma autodeterminação continuada.De acordo com Marx, na sua essência, mas sobretudo na sua própria existência (uma democracia que não se realiza não é um democracia), “a constituição é continuamente reconduzida a seu fundamento real, o homem real, o povo real (..), ela é definida como sua própria obra”. Marx introduz aqui a questão da temporalidade democrática, concebida por ele como uma criação continuada, como uma plena adesão de si a si, entre o foco do poder, o fundamento (o povo real) e sua obra. Trata-se de uma coincidência continuada entre o sujeito e sua obra, ou melhor, entre o sujeito e seu “operar”, como se o tempo não devesse introduzir uma defasagem na prática desse poder. Na democracia, toda objetivação é, permanentemente, reportada a seu fundamento, a seu foco de atividade em uma espécie de presença total e de tal maneira que a relação entre o sujeito e sua obra não se distenda na temporalidade, não admita nenhuma passividade do lado tempo, não deixe abrir, no curso da prática política, nenhuma distância temporal, falha ou brecha pela qual possa se introduzir a heteronomia. Assim, por esse movimento constante de “retorno” à fonte, para-se o processo de petrificação, opõe-se uma barragem a um deslizamento da objetivação para a alienação, a fim de que a energia do dêmos mantenha intacta sua qualidade de força viva, sua mobilidade, sua plasticidade e sua fluidez.(ABENSOUR, 1998, p. 84-85)

Marx, na crítica de 1843 [defende que]: o povo tem, permanentemente, o direito incondicional de se dar uma nova constituição. “A constituição se tornou uma ilusão prática, assim que deixou de ser a expressão real da vontade do povo”. (ABENSOUR, 1998, p. 85)

Ao acentuar, assim, esse imperativo de plasticidade, de flexibilidade própria do viver-junto democrático, apreendemos, por outro caminho, a importância fundamental da redução. Graças a essa operação específica da democracia, evitamos que se instale uma confusão entre uma parte e o todo, confusão que teria, como efeito, acarretar uma excrescência ilegítima dessa parte e engendrar por sua vez uma pretensão exorbitante de regular, de maneira dominante, as outras esferas. Mas, além disso, graças à redução, o sujeito político controla a objetivação constitucional, do ponto de vista do tempo, isto é, consegue evitar a alienação, no próprio curso de sua realização no tempo. A redução satisfaz às exigências contidas na ideia de criação contínua, já que por essa via, o momento constitucional, em vez de se dobrar sobre si mesmo, abre-se sobre um nível fundamental, sobre a atividade instituinte, sobre a energia, sobre o foco originário que o produz. (ABENSOUR, 1998, p. 86)

Produzir-se-ia aí uma espécie de auto-interpretação, ligando-se a uma auto-radicalização da verdadeira democracia, atravessada permanentemente pela exigência de retomar a atividade produtora, de estar de acrodo com o sujeito agente. Nenhuma dúvida de que esse pensamento da democracia se elabore sob o signo da filosofia da ação [...].(ABENSOUR, 1998, p. 86)

Inspirado pela ideia de Moses Hess de auto-criação constante do espírito ativo que, por

isso mesmo, encontra-se com sua liberdade (a filosofia da ação como uma filosofia da

liberdade) e contrabalanceando a ideia feuerbachiana de temporalidade pensada sempre

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como um presente incessante de fundação continuada, temos o pensamento marxiano

acerca da temporalidade democrática que se apresenta com certa ambiguidade:

Mas nessa escolha da auto-instituição continuada, manifesta-se a ambiguidade de Marx. Ambiguidade, com efeito, porque, em um primeiro tempo, só podemos reconhecer nesse pensamento da temporalidade democrática, preocupada em conjurar, em expulsar a não-coincidência, que introduz necessariamente a efetuação no tempo, uma radicalização da ideia moderna de liberdade, da ideia de autonomia, a ponto de se confundir com a intenção de uma autofundação continuada. (ABENSOUR, 1998, p. 87)

Mas, se é verdade que o presente pode ser pensado como o modo fundamental do viver-junto democrático, orientado para a liberdade, se é verdade que a afirmação do presente é condição da liberdade, convém ainda acrescentar logo que a reabilitação do presente só vele enquanto o presente, próprio à instituição democrática, for colocado como ideal regulador, como ideal prática a ser realizada na história e não como existência, não como realidade objetiva. Ou, ainda, que a identidade, que suporta esse privilégio atribuído ao presente, seja colocada como dever-ser e não como ser. (ABENSOUR, 1998, p. 88)

A essa concepção de temporalidade democrática pode se erigir a crítica da falta de

finitude, a crítica do pensamento que se ergue sobre as bases metafísicas da infinidade

do ser:

Pensar a verdadeira democracia sob o signo da autofundação continuada implica pensar o povo segundo o modelo do sujeito infinito. Como se Marx, por ter rompido os elos do presente com outras dimensões do tempo, tivesse expulsado, por um caminho diferente do da estabilidade (mas não menos metafísico), o tempo da política, esquecido, nesse ponto, das teses de Feuerbach, que exigiam introduzir um princípio passivo na filosofia. (ABENSOUR, 1998, p. 88)

Mas o próprio autor em seguida adverte: “Mas não seria apressada uma condenação,

sem apelo, do Marx de 1843, em nome da finitude?” (ABENSOUR, 1998, p. 88). E

completa:

Uma dupla postulação parece reger esse pensamento de Marx: se, por um lado, dependente de uma ideia do sujeito como causa de si, esse pensamento oblitera, incontestavelmente, a finitude, por outro lado, na medida em que ele não para de insistir nessa vontade de auto-instituição continuada, ele declara volens nolens que essa identidade de si a si só pode existir reconquistada, permanentemente, ao desprendimento e à despossessão que, por sua vez, não cessa de introduzir o tempo. Assim a verdadeira democracia, regida pelo princípio de autofundação continuada não é pensada como realização definitiva, mas como uma unidade, fazendo-se e refazendo-se permanentemente, contra o surgimento sempre ameaçador da heteronomia; em resumo, levada pelo movimento da infinitude do querer. (ABENSOUR, 1998, p. 89)

Por fim, o quarto caráter, Abensour começa com uma retomada das principais

características estudadas anteriormente e que diferenciam a democracia e de outras

formas de Estado, desde a monarquia até a república. O autor faz isso retomando as

características da democracia que a tornam única, uma verdadeira exceção.

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A democracia se caracteriza por uma relação inédita entre o Estado político, ou a constituição, e o conjunto das outras esferas materiais ou espirituais, o que Marx designa, às vezes, como “o Estado não político”. O que caracteriza a democracia é que o todo, entendamos o todo da existência de um povo, nunca é organizado em função de uma parte, no caso, a constituição (o monarca, a monarquia constitucional, a esfera pública, a república, que permanecem formas alienadas ou que, enquanto formas, testemunham a alienação política). É justamente porque a democracia nunca permite advir uma confusão mistificadora entre uma parte e o todo – entre o Estado político e o dêmos – que ela deixará o terreno livre para a atividade instituidora do sujeito, que encontra sua finalidade em si mesmo. (ABENSOUR, 1998, p. 89)

Abensour então avança sobre um tema importante ao afirmar: “Somente o trabalho da

redução permite uma subsunção correta, que consiste em pensar um elemento particular,

o Estado político, como compreendido, incluído no todo, o dêmos total” (ABENSOUR,

1998, p. 89). O que de fato queremos dizer com redução – que não se resume ao

desaparecer – e mais, o que de fato desaparece nesse processo? Nesse sentido, o autor

reforça que a redução refere-se: a) o Estado político sofre redução ao voltar a sua

essência; ao que ele é de fato; a um momento; a um elemento e não mais que um

elemento; b) o Estado político é reduzido a sua existência enquanto parte do todo

(prevenindo-se a inversão entre o todo e suas partes); c) o Estado político reduzido não

atua como uma parte que determina o todo, ou seja, desfaz-se a inversão entre

determinante e determinado. Nas formas políticas que não sofreram a redução essas três

características encontram-se plenamente invertidas: o Estado político é tomado como

universal e, por isso, tomamos a parte pelo todo, engano este que vai permitir a esta

parte dominar e determinar as partes.

Ascensão, disfarce, dominação, tais são os três caracteres da ilusão política, que têm como efeito instaurar, consequentemente, um desiquilíbrio, através de uma relação hierárquica abusiva, entre esse momento particular e os outros elementos, entre o Estado político que adquire, ao mesmo tempo, o estatuto de forma organizadora, em relação às outras esferas, que continuam como simples momentos particulares. Precisemos que esse momento político, elevado indevidamente ao estatuto do universal, não se reporta às outras esferas, enquanto forma unificante, no modelo da razão, faculdade arquitetônica, mas se relaciona a elas, de acordo com as modalidades analíticas e separadoras do entendimento. O Estado político na monarquia (o príncipe) ou na república (a esfera pública que, exatamente enquanto dominante, deixa aqui de ser a constituição somente política) se apropria da função de dominante, sem dominar realmente, quer dizer, “sem que penetre materialmente no conteúdo das outras esferas não-políticas”. Essa forma organizadora funciona enquanto faculdade separadora, que se instala no dualismo entre o Estado político e o Estado não-político, mais ainda, faculdade que denuncia esse dualismo para melhor fazer valer sua universalidade imaginária, em relação às particularidades deixadas no seu estado anterior. (ABENSOUR, 1998, p. 90-91)

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Dessa forma particular de ser do Estado político moderno, que não sofreu a redução,

não devemos inferir, segundo Abensour, que a verdadeira democracia seja algo como a

superação do universal e do particular via uma razão unificante. Chegar a essa

conclusão é perder de vista o centro da crítica de 1843.

Diríamos melhor que é porque, na democracia, o momento político continua sendo o momento particular, porque ele não é elevado ao estatuto de forma organizadora, que o princípio político é capaz de ganhar as outras esferas. É, exatamente, à redução do Estado político a um momento, que devemos imputar o mérito de abrir a possibilidade de uma instituição democrática do conjunto das esferas. (ABENSOUR, 1998, p. 91)

Como pode uma redução permitir que a democracia se expanda a todas as esferas da

sociedade? A resposta é dupla: a redução ao impor os limites impede a transfiguração

do momento político em um universal abstrato que dominaria a totalidade e, ao mesmo

tempo, retorna o político a sua essência – a autodeterminação do dêmos – que passa a

poder irrigar, fluir para outras esferas da vida social.

Voltemos agora à questão principal desse quarto caráter e que parte, na verdade, da

descoberta moderna dos franceses, segundo a qual, na verdadeira democracia, o Estado

político despareceria. O que entender exatamente por esse desaparecimento?

Digamos, para afastar toda a simplificação abusiva e alertar o intérprete, que Marx saúda os franceses modernos por terem sabido compreender, na chegada da “verdadeira democracia”, o desaparecimento do Estado político, unicamente no sentido de uma forma organizadora e de uma esfera separada, o que, de nenhuma forma, significa a extinção ou o desaparecimento do político. O Estado político persiste, enquanto momento particular da vida do povo, mas é, sobretudo, com o advento da “verdadeira democracia” que o princípio político consegue sua realização, como se a redução, sobre a qual repousa a democracia, tivesse como efeito, pelo bloqueio que exerce, liberar paradoxalmente a sobre-significação que obseda o Estado, a ponto de permitir uma passagem para além do Estado político, através de uma instituição democrática da sociedade, de tal forma que o dêmos possa se manifestar e se reconhecer, enquanto dêmos, na totalidade das esferas, respeitando a especificidade de cada uma. (ABENSOUR, 1998, p. 93)

O advento da verdadeira democracia não deve ser confundido nem com a famosa noite em que todos os gatos são pardos, nem com um nascer do sol ofuscante a ponto de apagar todos os contornos. (ABENSOUR, 1998, p. 93)

Reforçando esse argumento o autor faz duas ponderações. Primeiramente deve-se

“evitar entender a simultaneidade do princípio formal e do princípio material [como] a

verdadeira unidade da democracia” (ABENSOUR, 1998, p. 93), ou seja, “a unidade que

engendra a democracia não tem nada a ver com a unificação, que decorreria da

imposição de uma forma unificadora a um conteúdo, sujeito à divisão” (ABENSOUR,

1998, p. 94). Ora, a crítica de Marx à monarquia é dupla, pois denuncia não somente a

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separação entre o Estado não-político e o político, como também a tentativa de

imposição de uma forma ao um conteúdo. Dessa forma, o autor alerta:

Não se trata, assim, de ter sucesso onde a monarquia fracassou, mudando somente de forma; trata-se, antes, de romper com a própria ideia de forma, seja ela organizadora, segundo o modo da separação ou segundo o modo da unificação. (ABENSOUR, 1998, p. 94)

Como segunda ponderação, Abensour reforça a ideia de que o desaparecimento do

Estado político não elimina o político enquanto existência particular de um povo.

O momento político, “destronado”, decaído da qualidade excepcional de ser a forma organizadora da existência do povo, não deixa, no entanto, de ser um elemento particular da existência do povo e que, na sua própria particularidade, permanece inapagável. (ABENSOUR, 1998, p. 94)

{Acredito que existe margem para um tipo de interpretação que, apesar de eu não achar

correta a partir dos escritos de Abensour, é possível de ser feita especialmente a partir

da complexidade da argumentação e das imprecisões do texto. Essa interpretação seria a

de que não existe nada de errado com a forma do Estado moderno, ou seja, que seria

possível operar o Estado moderno pelos princípios da verdadeira democracia. Esse

argumento parece até bastante idealista – como uma reforma da consciência que deixa

intacta a materialidade factual. Pois bem, é necessário demonstrar, com um pouco mais

de precisão, como a forma do Estado moderno (talvez a república), é uma forma na qual

a verdadeira democracia não pode se realizar, na qual ela é impedida de se realizar, e

mais, que a realização dessa verdadeira democracia exige a dissolução dessa forma de

particularidade política do vida social, sem negar, no entanto, como é o principal ponto

de Abensour, a existência de uma particularidade outra, bem mais orgânica e fluida, mas

que existe!}

Uma vez, pois que é colocado um final ao que Marx chamará, em 1844, “o exagero presunçoso do fator político”, poderíamos dizer que esse momento conhece, de alguma forma, um desdobramento revelador de sua complexidade: com efeito, submetido ao jogo da redução, o político permanece o que é, e não tende a se transformar de parte em todo, isto significa que ele não chega à categoria de elemento dominante, nem à categoria de elemento determinante: “na democracia, o Estado, enquanto particular, é somente particular”. Mas ele existe, além disso, enquanto universal: “enquanto universal ele é o universal real”. (ABENSOUR, 1998, p. 94-95)

Ou seja, o Estado não se coloca como uma universal formal, que pretende dar forma

universal ao conteúdo não-político, mas, por outro lado, é um universal real por ser um

momento da realização da essência libertada, em um primeiro momento, por sua própria

limitação; é um universal enquanto particularidade da realização de sua própria origem

(essência) do ser socializado, reencontrado com si mesmo. É justamente a redução que

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permite “[...] uma verdadeira conversão desse momento particular, de tal forma que ele

possa produzir uma universalidade efetiva” (ABENSOUR, 1998, p. 95).

Conversão, com efeito, que tem valor de abertura, porque poderíamos dizer desse momento que, restaurado em seu foco originário, ressurge para além da oposição reificada e reificante do conteúdo e da forma, realiza-se enquanto puro agir, enquanto puro operar. (ABENSOUR, 1998, p. 95)

A crítica da ideia de forma e valorização da ação são as duas condições da verdadeira democracia. O Estado político é “desformalizado”, ao mesmo tempo em que é generalizado ou, mais exatamente, é generalizado porque “desformalizado”, pois, graças à redução, conseguiu seguir uma via diferente daquela da universalidade formal. Trabalho da energia prática e teórica do povo, o Estado político, enquanto potência, tem acesso a uma dimensão essencialmente dinâmica; reconduzido a um foco originário ele reemerge enquanto atividade instituidora. (ABENSOUR, 1998, p. 96)

O enigma, ao qual nos confrontamos, é o da instituição democrática do social. Poderíamos compreender este processo de instituição como se se tratasse, para o povo de, autodeterminando-se e autoconstituindo-se, fazer advir também nas outras esferas, nas esferas não-políticas, o que se discute na esfera política: “o homem socializado”. Não sobre a forma da politização generalizada de todas as esferas; mas tratar-se-ia, antes, de fazer de maneira com que a questão, enunciada pelo político, no político, conhecesse uma ressonância em cada uma das esferas. Como se os diferentes momentos que constituem a existência plural do povo, sob o impulso do momento político, se remetessem uns aos outros, como tantos espelhos, a imagem do homem socializado, do homem como ser genérico. A “tendência” da verdadeira democracia poderia ser que o dêmos fosse a figura política, o nome sobre o qual adviesse, além da cisão entre um estar-aí político e um estar-aí social, um estar-aí humano. (ABENSOUR, 1998, p. 96)

{Farei a resenha das três próximas páginas de modo mais crítico. A partir do segundo

parágrafo da página 96, Abensour se envereda por um terreno arenoso. Começa

afirmando que o que Marx pretendia dizer, por desaparecimento do Estado, somente o

desaparecimento desse Estado político enquanto “pretendesse usurpar abusivamente a

função de uma instância de determinação ou a de uma forma organizadora”

(ABENSOUR, 1998, p. 96). Mas, como já vimos, o político permanece presente

enquanto particular da vida do povo. A partir daqui a argumentação se torna mais

problemática: Abensour afirma que “estamos tão longe do anarquismo, quanto do

comunismo, tão longe de uma espontaneidade social se auto-regulando, quanto da

emergência da comunidade genérica, para além do político, fora do político”

(ABENSOUR, 1998, p. 96). Afirmação complicada uma vez que o autor não oferece

nenhuma definição do que entende por anarquismo ou por comunismo além das poucas

palavras contidas na citação. Claramente existe aqui uma discordância entre a

argumentação de Abensour e aquela de Thamy Pogrebinschi – para quem a comunidade

é a realização plena da verdadeira democracia.

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As dificuldades não cessam por aí. O autor prossegue com a defesa de que o momento

político, reduzido a sua justa medida, é indispensável para a emancipação das outras

esferas da vida social. O problema aqui é que essa indispensabilidade, plenamente

justificada, transforma-se, logo em seguida, em uma espécie de superioridade ou uma

espécie de hierarquização entre os momentos emancipatórios em detrimento de uma

visão mais simultânea:

Existe, com efeito, para Marx, como que uma sublimidade do momento político. A elevação é própria da esfera política: em relação às outras esferas, ela representa um além. Ao político é, pois, legítimo reconhecer os caracteres da transcendência: uma situação para além das outras esferas, uma diferença de nível e uma solução de continuidade em relação às outras esferas, valorizada por Marx, quando acentua o caráter luminoso, o caráter extático do momento político. [...] No político e pelo político, o homem entra no elemento da razão universal e faz a experiência, enquanto povo, da unidade do homem com o homem. O estado político, a esfera constitucional, desdobra-se como elemento onde se efetua a epifania do povo, ali onde o povo se objetiva enquanto ser genérico, enquanto ser universal, ser livre e não limitado, ali onde o povo aparece, para ele mesmo, como ser absoluto, um ser divino. (ABENSOUR, 1998, p. 97)

Marx, insistindo na sublimidade do político, designa, ao mesmo tempo, o foco no qual pode intervir a transformação da objetivação em alienação. Esfera sublime, a política está exposta, por isso mesmo, aos perigos da excrescência ou, ainda, ela é afetada, em razão de sua relação com o sublime da vida genérica, por um tropismo em direção ao exagero presunçoso. Por isso, Marx considera que, relativamente aos diversos momentos da vida do povo, o Estado político era o mais difícil de se elaborar. (ABENSOUR, 1998, p. 97-98)

Nessa última citação, o autor parece sugerir que a esfera política, devido a sua

sublimidade, estaria mais exposta ao processo de alienação. Ora, uma alternativa um

tanto quanto suspeita aparece aqui: a alienação do político deve-se quase que por uma

condição do próprio político. Acredito que essa afirmação é demasiada a-histórica.

Acredito que o processo de alienação política segue de perto a instauração da sociedade

burguesa e lhe é própria, não devido a algum tipo de característica essencial ao político,

mas devido a especificidades do processo histórico de constituição e reprodução dessa

sociedade. Mesmo a complexidade do político, da compreensão do Estado político,

deve-se a essa construção, que é histórica, e que é primariamente determinada pela

esfera econômica e não pela política. Dessa forma a política possui determinações

externas a si (dentre as quais a econômica ganha prevalência) e internas a si, o que torna

sua análise complexa. Da forma como Abensour coloca, a redução do político seria

responsável por conter esse ímpeto dominador do político que lhe seria próprio.

Por fim, Abensour levanta a importante questão de que a emancipação política foi um

momento importante da História (motivo pelo qual Marx saúda os franceses), no

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entanto, utiliza-se da seguinte frase: “Essa abstração, que é o Estado somente político, é

um momento necessário, historicamente e teoricamente e que não poderíamos reprovar

aos franceses, porque, na falta dessa abstração, a passagem da natureza à cultura não

poderia se operar, nem se manifestar o princípio político” (ABENSOUR, 1998, p. 98).

As doses de “etapismo” dessa argumentação são consideráveis e, ao mesmo tempo, abre

espaço para argumentações reformistas acerca do Estado; apesar de, logo em seguida,

lembrar-nos que o movimento emancipatório não culmina na emancipação política via

Estado moderno: “Entretanto, essa não é a última palavra da vida do povo, nem a

derradeira figura da emancipação” (ABENSOUR, 1998, p. 98).

Considerados todos os elementos anteriormente levantados (e sua influência

devidamente isolada), chegamos ao final dessa crítica, concordando com a seguinte

posição do autor:

Em resumo, é conveniente converter a “cerimônia” do político em vida genérica desse ser rela e total que é o dêmos e que, enquanto dêmos, no seu ser-povo, participa, ao mesmo tempo, do princípio político e do princípio sensualista que, ser vivo e real, cabeça e coração, se dá, como meta, a realidade em sua totalidade. (ABENSOUR, 1998, p. 98)

Retomo agora a resenha em sua forma anterior}

O autor conclui esse capítulo dizendo que o caminho para entender o desaparecimento

do Estado político é estreito e espreme-se justamente entre a dissolução total do político

no social (permanecendo o político como uma particularidade do social – e até mesmo

como uma particularidade privilegiada de disputa entre autonomia e heteronomia; entre

a existência ou não do dêmos) e sua objetivação fetichizada, alienada, que conduz à sua

excrescência em detrimento das outras esferas sociais. {Existe nesse interstício uma

suposição, por parte do autor, de que a revolução húngara de 1956, seria um pequeno

esquema real da formulação teórica do Marx de 1843}.

Termina o capítulo retornando, de certa forma, o pensamento de Marx à Hegel –

marcando, assim, uma posição específica quanto a influência deste sobre aquele

(relativizando a influência feuerbachiana) e, ao mesmo tempo, relembrando a

especificidade do político que não está imediatamente ou totalmente subordinado (e,

portanto, derivado) do social; do sociológico:

Em relação à posição de 1842, torna-se claro, no texto de 1843, no interior mesmo da crítica de Hegel, uma retomada, de certo modo, do movimento hegeliano, mas que teria, como particularidade, ser transferido de uma filosofia do espírito para uma filosofia da ação. Enquanto em Hegel o caminho para a absolutização do político está barrado, porque o político está aí relativizado, em relação ao saber absoluto, no Marx de 1843, o político sofre um desnivelamento e, em consequência, uma relativização, mas, desta

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vez, face à atividade absoluta do sujeito que é o dêmos. Evidentemente, essa relativização do político na lógica de uma filosofia da ação, não poderia ser confundida com uma derivação do político, em relação a uma instância sociológica, que seria colocada como dominante e determinante. Se podemos notar, entre os textos de 1842 e a crítica de 1843, o deslocamento de uma absoluto político para um absoluto democrático, essa passagem, que é não indiferente, parece dever ser atribuída ao surgimento de um novo sujeito, sujeito real e total, o dêmos, ao mesmo tempo cabeça e coração, que substitui um sujeito com inteligência política, a um sujeito outrora somente cabeça, somente razão. (ABENSOUR, 1998, p. 99-100)

VIII) VERDADEIRA DEMOCRACIA E MODERNIDADE

Nesse último capítulo, Abensour se interroga sobre a possibilidade de incluir a análise

marxiana acerca da verdadeira democracia dentro da tradição de pensamento da

democracia moderna. {É curioso notar como as interpretações problemáticas destacadas

no final do último capítulo continuam a exercer sua influência na resposta a esta

pergunta}. O autor, por um lado, diz que a resposta a essa pergunta é afirmativa (no

sentido em que haveria um momento particular e superior contido na esfera política) e

por outro lado destaca uma resposta negativa (baseada na possibilidade de ser da

democracia para além da esfera política e que demanda uma reforma social ou invés de

sua reafirmação). Assim, ele começa retomando a problemática do desaparecimento do

Estado:

É entre esses dois polos antagonistas que se situa Marx: desaparecimento do Estado político, enquanto forma organizadora, mas, manutenção do político, do momento da vida do povo, de modo que a liberdade e universalidade possam estender-se ao conjunto das esferas para penetrá-las; tal é a escolha de Marx, com o nome de verdadeira democracia. (ABENSOUR, 1998, p. 101)

A essa recapitulação segue a resposta afirmativa à questão colocada inicialmente: a

verdadeira democracia responde positivamente a tradição da modernidade uma vez que

manteria a exigência de uma diferenciação das esferas da vida de um povo – sendo a

verdadeira democracia superior porque impede justamente que cada momento, cada

esfera não ultrapasse sua justa função. {Novamente notaremos certa tendência à

hierarquização revolucionária das esferas por parte de Abensour}.

Na democracia, nenhum dos momentos adquire uma significação que não lhe convenha – desse ponto de vista, a redução do momento político, é exemplar – e aquilo que vale para esse momento vale para os outros. Graças a essa redução, as esferas particulares, ouvindo o apelo da comunidade, sob o signo da liberdade, surgida no lugar do político, podem responder a ele e realizar-se conforme seu ser. Eletrizadas pela iluminação do político, as esferas particulares podem, por sua vez, brilhar com toda sua luz. A autoconstituição da verdadeira democracia – nem socialização, nem politização – mas advento do estar-aí genérico, do estar-aí humano, no e pela política, longe de apagar a diferenciação, tem antes como objeto elaborá-la, confrontando o respeito pela especificidade de cada esfera, com o imperativo de nela deixar aparecer,

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segundo modalidades próprias, a unidade do homem com o homem. (ABENSOUR, 1998, p. 102)

A verdadeira democracia é uma forma que ultrapassa a abstração do Estado moderno – sem no entanto negar a existência, nem a necessidade de uma esfera política – e que, conseguindo, como a Idade Média, adquirir uma identificação entre a vida do povo e a vida do Estado, concebe essa identificação, não como organicidade autoritária, mas como uma organicidade, submetida às exigências infinitas da liberdade moderna. O homem livre, o dêmos livre, não alienado, não limitado, é o princípio real dessa comunidade política. (ABENSOUR, 1998, p. 102)

A resposta negativa da verdadeira democracia ao momento moderno apoia-se em um

distanciamento de Marx em relação a outros autores da modernidade política, como

Maquiavel e Montesquieu, na medida em que defende a legitimidade do conflito social

que possui a força transformadora de toda a sociedade; para Marx, as diferenças sociais

não devem ser naturalizadas (indissociavelmente ligadas à constituição do social) ou

permitir o surgimento de uma política que apenas reflita essas desigualdades,

reproduzindo-as:

[...]é preciso ressaltar que Marx pensa a verdadeira democracia sob o signo da unidade, isto é, trabalhada permanentemente por uma vontade de coincidência com ela mesma, longe, pois, de um pensamento da democracia como forma da sociedade, cuja constituição se faz pela aceitação da divisão social, que se distingue por reconhecer a legitimidade do conflito na sociedade. (ABENSOUR, 1998, p. 102)

{No entanto, mesmo nessa resposta negativa, Abensour deixa interferir, como não

poderia deixar de ser, suas próprias interpretações do que Marx entendia pela unidade

provocada pela verdadeira democracia, confundindo-a com uma falta de conflitos: “Se é

verdade que Marx associa a verdadeira democracia ao desaparecimento do conflito,

convém acrescentar que ele não concebe essa unidade, nem baseado no modelo da

totalidade orgânica, nem no modelo do corpo” (ABENSOUR, 1998, p.103).

É porque ele relaciona a objetivação política com um sujeito elevado a uma posição de soberania, certamente compreendida no sentido político, mas sobretudo no sentido metafísico, como presença a si, que Marx pensa a democracia sem o conflito. Na economia especulativa de tal pensamento, favorecer a divisão seria prejudicar o próprio estatuto do dêmos total, tomado como centro e medida de todas as coisas, a partir do modelo da consciência de si, do conhecimento de si; seria introduzir uma distância prejudicial, abrir uma brecha, comprometendo, ao mesmo tempo, a obra continuada de recentramento, de totalização do dêmos que, cedendo à fascinação do mesmo, se autoconstitui no perfeito domínio de seu agir, na plena adequação de si a si. (ABENSOUR, 1998, p. 104)

Em resumo, a verdadeira democracia poderia se definir como um estado de adequação tão perfeito, entre o povo e suas objetivações, que seja conjurado o risco de uma deriva da objetivação para a alienação. (ABENSOUR, 1998, p. 104)

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O mais curioso, no entanto, é o que se segue.}

Abensour, após colocar essa interpretação dos escritos de Marx de 1843, faz uma crítica

ao pensamento marxiano dizendo que Marx teria deixado que a metafísica moderna (tão

criticada por ele) influenciar na sua própria acepção de dêmos e, portanto, da política. O

povo se apresenta como uma totalização e como uma ausência de passividade em

relação a sua obra que seria, pelo menos temporalmente, impossível. E propõe:

Não seria melhor voltar-se para os historiadores-filosóficos, como Michelet e Quinet, a fim de acedermos a um pensamento político do povo? Na verdade, ao invés de uma filosofia do sujeito, o povo, nesse caso, é marcado por uma identidade problemática, pois sempre diferida; em vez da presença a si, o povo está ou acima dele mesmo – o povo em seu estado heroico, que se revela na invenção da liberdade – ou abaixo dele mesmo, quando a experiência que o povo faz da liberdade é destinada a reverter-se em seu contrário, a servidão. Não coincidindo nunca consigo mesmo, nunca igual a si mesmo, o povo, ao mesmo tempo em que se manifesta, em que passa a existir, é submetido à prova de uma intransponível distância de si a si. Uma distância que não deveria considerar como uma fraqueza, pois é nesse déficit e em sua manutenção que se encontram as chances de uma cidade anti-autoritária. (ABENSOUR, 1998, p. 105)

Além disso, retomando uma questão de François Châtelet, a valorização de unidade na forma do dêmos de ignorar o conflito, não violentaria ela as coisas políticas, na medida em que superpõe o dêmos como figura do Uno, à pluralidade dos atores que circunscrevem o campo político, aos polloi? Marx deixaria lugar para a pluralidade de indivíduos singulares? Conseguiria ele realmente pensar a multidão, que, como vimos, ele considera o elemento primordial – no qual mergulhar família e sociedade civil, de maneira a ultrapassar a questão epistemológica do determinante –, para encontrar a questão da política da força atuante? (ABENSOUR, 1998, p. 105-106)

A resposta a essa pergunta Abensour destaca a complexidade do pensamento de Marx e

os perigos envolvendo uma resposta unívoca. Ressalta a crítica de Marx ao Uno único

que se sobrepõe a todos os outros (o caso do monarca), mas questiona: “O predicado, a

essência não esgotam nunca em um Uno as esferas de sua existência, mas em

numerosos Unos. Esse protesto valeria também para o Uno do povo? O dêmos conhece

essa mesma fragmentação?” (ABENSOUR, 1998, p. 106).

Mesmo não respondendo a essa indagação o autor afirma {perigosamente, acredito eu}

que “a presença de uma matriz especulativa prova suficientemente que o texto de 1843

contém um pensamento moderno da democracia” (ABENSOUR, 1998, p. 106).

Mas qualifica essa afirmação:

A crítica de Marx [...] se qualifica como um texto fundamental da modernidade democrática. Não no sentido segundo o qual o texto de Marx se definiria como um texto fundador ou um texto modelo, mas no sentido segundo o qual poder-se-ia ler nele, sobretudo na própria contenção de sua análise [...] as ambiguidades e as dificuldades da ideia moderna de democracia, presentes aqui, na medida em que o texto de Marx tem o mérito de introduzir uma oposição entre a democracia e o Estado político, entre a

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auto-instituição democrática do social e o formalismo do Estado moderno. (ABENSOUR, 1998, p. 106-107)

Abensour destaca ainda a própria tensão na crítica de Marx em 1843 entre o desejo da

autonomia e os riscos de, negando a alteridade ou pela falta de reconhecimento da

fragilidade e temporalidade do fazer humano, se produzir heteronomia. Como pode o

povo evitar este risco? Essa questão persiste, mesmo que Marx tenha tentado dar uma

resposta a ela apelando para o princípio da razão.

Abensour trata agora da questão da idealidade (nunca concretizada) do projeto político

democrático:

Observamos, por diversas vezes, que o povo é, ao mesmo tempo, princípio, sujeito e fim. Trata-se de reconhecer que a verdadeira democracia, repensada permanentemente como uma atividade do povo, resulta necessariamente em um elemento de idealidade. (ABENSOUR, 1998, p. 107)

Democracia e passagem à existência do povo são indissociáveis; a instituição democrática do social e o nascimento, a “invenção” do povo constituem um só e mesmo ato, um só e mesmo agir. Provando a sua inessencialidade, no confronto com o momento político, a sociedade não pode senão demonstrar sua existência problemática. Ambiguidade suplementar, que vem temperar nossas críticas anteriores, pois esse elemento de idealidade própria ao elemento político democrático, que contém uma vontade coletiva, em busca de sua identidade, permite recuperar uma parte de indeterminação, que o projeto de uma realização total suprimiria. (ABENSOUR, 1998, p. 108)

Tão logo a questão parece resolvida ela reaparece, sob nova forma, em 1844 na Crítica

da filosofia do direito de Hegel – Introdução:

Marx, designando o proletariado como o novo ator na cena da história, teria procurado fugir da idealidade e da indeterminação, que definem o povo, enquanto este faz parte do elemento político? [...] teria Marx procurado dar um rosto concreto, um nome – o de proletariado – a esse povo não identificável, e por isso mesmo, subtraí-lo à prova da indeterminação? Marx e Engels não escreverão na Santa Família, em 1845: “Pouco importa o que tal ou tal proletário, ou até todo o proletário imagine momentaneamente como objetivo. Só importa o que ele é e o que ele será historicamente obrigado a fazer, em conformidade com esse ser”.Poder-se-ia, então considerar que, quando Marx descobre “o ser proletariado”, ele estivesse saindo do momento maquiaveliano e afastando-se da lógica das coisas políticas? (ABENSOUR, 1998, p. 108)

Mas o autor logo se adianta ao dizer:

Seria uma conclusão no mínimo apressada, pois, sem nos engajarmos aqui em um debate sobre a natureza do proletariado, segundo Marx, permitam-nos lembrar que essa classe não merece ser acantonada no social, na medida em que, segundo o próprio Marx, seu ser é paradoxal.4 [...] Queremos dizer que, pela sua situação revolucionária e, pois por sua missão inscrita em seu ser, essa classe dispensa, tanto uma localização, quanto uma determinação sociológica. Como uma nova figura da negatividade histórica, que realiza, no

4 Vou reproduzir nas próximas três notas algumas citações diretas do próprio Marx que o autor utiliza para exemplificar seu argumento. Nesta ocasião uma passagem da Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução (?): “Classe da sociedade civil, ela não é uma classe da sociedade civil”.

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campo da prática, o método transformativo, o proletariado aparece como a classe para a qual o social – seu ser social – é indissociável do político – se seu ser político.5 (ABENSOUR, 1998, p. 108-109)

Tendo ainda como objeto o possível deslocamento do elemento político para o elemento

econômico da esfera da produção, o autor se questiona:

Estamos, pois, autorizados a concluir por uma supressão do momento maquiaveliano, por uma retração do mundo específico da política. Tudo se passa como se a complexidade do político, em Marx, de repente se desfizesse, como se ele só tivesse guardado a dualidade dominação/servidão e além do mais, a tivesse relacionado com um lugar empiricamente detectável, a produção; como se ele houvesse transferido o viver-junto dos homens, para um outro plano, em um outro elemento, substituindo o trabalhador coletivo ao dêmos total, como se a solução do enigma (existe a continuidade, quanto à vontade de solução) realmente se houvesse deslocado da democracia para o comunismo. (ABENSOUR, 1998, p. 111)

Desde 1844, Marx se afasta do momento maquiaveliano, tanto daquele que apareceu na primeira constelação, quanto do que apareceu na segunda. A lei de gravitação do Estado não reside mais nele mesmo e o interesse de Marx deslocou-se, de uma busca apaixonada da essência do político, a partir da atividade do dêmos, a partir de uma filosofia da ação, do agir, para um encontro do comunismo no horizonte do ser como produção.Nossa análise termina, mas deve ela terminar com a constatação de uma perda do elemento político, que teria desaparecido para todo o sempre da obra de Marx, como se ele tivesse perdido o sentido do político e de sua especificidade? (ABENSOUR, 1998, p. 112)

O autor, novamente, logo adianta que essa tese não é sustentável. Em oposição a ela

procura demonstrar que a crítica da economia e a crítica da política sempre foram

simultâneas na obra de Marx, mas, diferentemente de outros autores, Abensour não

acredita que a crítica da política seja colocada como simplesmente derivada da crítica da

economia, caracterizando assim uma crítica puramente materialista do Estado.

Mais do que propor uma coexistência harmoniosa e bem equilibrada entre as duas críticas – a da política e a da economia política – e que culminaria com o fato de que a “verdadeira democracia” viria a sublimar-se no comunismo, não poderíamos pensar que o que vem à tona no texto de 1943, sob o nome de “verdadeira democracia” não desapareceu totalmente, mas persistiu, como uma dimensão oculta, latente, da obra, pronta para ressurgir, passível de ser despertada, diante do coque do acontecimento? (ABENSOUR, 1998, p. 113)

Para exemplificar seu argumento, Abensour se remete ao livro A guerra civil na

França, obra na qual Marx se esforça para demonstrar que a comuna é uma forma

política nova na qual a classe operária governa e que aponta para o fim do Estado

moderno.

5 “Ou a classe operária é revolucionária ou, então, não é absolutamente nada” escreve Marx, em 1865, em uma carta a J. B. Schweitzer. E mais a frente encontramos uma passagem da Miséria da filosofia: “Não diga que o movimento social exclui o movimento político. Não há nunca movimento político que não seja, ao mesmo tempo, social”.

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Abensour esforça-se, nesse fôlego final, em comparar as categorias e as argumentações

da crítica de 1843 e aquelas presentes n’A guerra civil da França, como se esta fosse

uma ilustração, acompanhado deum refino teórico e retórico, daquela. Vou ressaltar

somente algumas passagens mais relevantes para o esforço maior no qual essa resenha

se insere:

Em contradição absoluta com o Estado, a comuna marca uma ruptura na história revolucionária; pela primeira vez, não se trata de apoderar-se do Estado para apropriar-se de seus poderes e coloca-los a serviço de um novo grupo social. Para o proletariado, trata-se de destruir o poder do Estado moderno. Não é mais uma forma ou outra de estado moderno – monarquia ou república – que é rejeitada, mas sim o próprio Estado, enquanto forma, na consciência implícita de que essa própria forma – pouco importa se nome ou sua posição política – contém nela uma relação de dominação específica e odiável, enquanto tal. (ABENSOUR, 1998, p. 115)

Nesse ponto da análise de Marx, é legítimo ver nele uma contradição entre uma visão instrumental do Estado, que ele continua a professar e que se acompanha da ideia de uma neutralidade do aparelho do Estado – a natureza do Estado dependeria da classe que se apoderasse dele – uma contradição, como dizíamos, entre essa visão e a tese mais fecunda, mais complexa, segundo a qual, o Estado, longe de ser neutro, engendraria, enquanto formalismo específico, uma relação de dominação, que cairia sobre o conjunto da sociedade. Por isso, a emancipação exige, não apoderar-se do Estado, mas, derrubá-lo, para destruir, de uma só vez, a forma de dominação que lhe é intrínseca. (ABENSOUR, 1998, p. 116)

Vemos que a problemática de 1843 enriqueceu-se sensivelmente. No entanto, duas orientações essenciais permanecem próximas. Como o povo, a Comuna apresenta-se como um sujeito que é para si mesmo seu próprio fim. Vontade coletiva , ela procura sua manifestação política própria. [...] A grandeza da Comuna é a de ter conseguido existir contra todas as formas de Estado que lhe negavam direito à existência. (ABENSOUR, 1998, p. 116)

Não se trata de uma interpretação jacobina – a questão não é mais de apoderar-se do Estado, de colocá-lo a serviço do povo; o jacobinismo não escapa à ironia da história: revolução pelo Estado, ele contribui involuntariamente para aumentar e aperfeiçoar o poder do Estado moderno. Sua interpretação também não é imediatamente social, significando que, para Marx, contrariamente a certas escolas utópicas, bem analisadas por Martin Buber, em sua obra sobre a utopia, não se trata de refazer o tecido social, destruído pelo capitalismo e pelo Estado; não se trata de reestruturar o social, de regenerá-lo, a fim de tornar o Estado supérfluo e caduco. A lição da Comuna, pelo menos a que Marx aceita, é que a emancipação social dos trabalhadores, do trabalho contra a dominação do capital, não pode efetuar-se senão por intermédio de uma forma política que Marx chama, muitas vezes, de “a Constituição comunal”. (ABENSOUR, 1998, p. 116)

Esse é o traço distintivo da Constituição comunal, enquanto forma política. É nessa posição contra o Estado que essa constituição passa a existir, manifesta-se e persevera no seu ser. Instituindo-se como hostilidade de princípio, em relação ao Estado, como uma resistência a seus encantos, ela deve não ceder a essa abolição contínua, para não inverter-se em seu contrário e culminar em um retorno do poder do Estado. Nesse sentido, a especificidade dessa forma política em não confundir-se com o formalismo, deve-se a que ela não está ameaçada de deriva, na medida em que se constitui

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contra aquilo que produz essa deriva, a saber, a arrogância da forma-Estado. (ABENSOUR, 1998, p. 117)

Essa linha de argumentação leva Abensour, inevitavelmente, a discussão acerca da

diferença entre o desaparecimento do Estado e a ação de destruir o poder do Estado.

No primeiro caso – a crítica de 1843 – Marx descreve o processo que procede da prática de um discurso positivo particular, a verdadeira democracia, que se traduz pelo desaparecimento do Estado político, enquanto forma. Parece que esse desaparecimento, no final do manuscrito de 1843, é visto por Marx, no máximo como um exercício transformado do direito ao sufrágio, o direito ao voto e a elegibilidade sem limitação6. (ABENSOUR, 1998, p. 117)

Nos textos de 1871, Marx vislumbra uma operação diferente; ele associa o advento da Constituição comunal a um ato político, a uma ação na qual se manifesta a negatividade revolucionária de uma classe dominada, que lhe permite realizar sua emancipação social. Essa mudança de registro é tanto mais sensível quanto o elemento central dessa nova situação é a posição contra, o que implica o contra, a construção dessa posição com a determinação do campo do enfrentamento, a eleição do adversário, a previsão do combate ou combates a travar, enfim, a realização de uma agonística, na cena política, que tem como objetivo evitar todo retorno do Estado, instituir uma forma política nova contra o formalismo, mobilizando, assim, um saber crítico e um thumos, onde se misturam, indistintamente, desejo de liberdade e ódio à servidão. (ABENSOUR, 1998, p. 118)

Além disso, a verdadeira democracia, associada ao desaparecimento do Estado não é um impulso revolucionário de um instante, nem uma curiosidade sem futuro na obra de Marx, mesmo que sua crítica da política esteja estreitamente articulada à crítica da economia política e, enfim, subordinada a esta. O manuscrito de 1843 e sua interpretação da fórmula dos franceses modernos têm quase o valor de uma matriz antiestatista, que persiste como uma dimensão latente da obra, sempre passível de ressurgir e produzir novos frutos. (ABENSOUR, 1998, p. 118)

Daí a hipótese de ambiguidade de Marx, em relação ao momento maquiaveliano: se ele sai desse momento, quando se volta para a produção, a fim de pensar a monadologia, não retornaria ele a ela, quando faz surgir, na Constituição comunal, a figura da verdadeira democracia? (ABENSOUR, 1998, p. 118)

IX) CONCLUSÃO

Ora, essa oposição, a revelação do conflito entre democracia e o Estado, não trabalharia ela, até um certo ponto, o momento maquiaveliano contemporâneo – assim, o Estado dos conselhos, em H. Arendt, a ideia libertária de democracia, em C. Lefort –, como se, nessa perspectiva, a obra de Marx tivesse manifestado uma das forças vivas, ativas da modernidade, desde a revolução francesa? Na realidade, desde esse acontecimento, cada ruptura revolucionária de 1848 a 1956, em Budapeste, não teve, como meta e como tarefa, lembrar que a emancipação em seu múltiplo võo, em suas manifestações democráticas é também dirigida contra o Estado, levanta-se inexoravelmente contra o Estado? A revolução democrática, se ela quiser estar à altura da liberdade moderna, não pode deixar de confrontar-se permanentemente com o problema do Estado. Desde a queda dos sistemas

6 Novamente, Abensour faz uma citação direta de Marx que, em tese, reforçaria sua argumentação, mas, a meu ver, cria outra possibilidade de interpretação. A citação é: “A reforma eleitoral é, pois, no Estado político abstrato, a exigência de sua dissolução, mas, ao mesmo tempo, da dissolução da sociedade civil burguesa”.

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burocráticos, que se pretendiam socialistas, a questão da liberdade tornou-se a questão primeira, a questão primordial. A questão da emancipação deve ser mantida a todo custo. (ABENSOUR, 1998, p. 121)

Se convém redescobrir a questão política em sua integralidade, indissociavelmente ligadas justiça e liberdade, convém também conferir prioridade à liberdade, à instituição de uma cidade livre, ou melhor, aceitar que é através da liberdade que se pode, que se deve aceder à justiça, que se pode satisfazer às exigências da justiça. Um tal elo, pois, entre a justiça e a liberdade, que a escolha da justiça previna, por um efeito de retorno, a transformação da liberdade em autonomia conquistadora e predadora. (ABENSOUR, 1998, p. 121-122)

Recapitulando a relação entre a realização da verdadeira democracia e o

desaparecimento do Estado, bem como o processo duplo que implica a redução do

político (sua limitação como momento do social e sua expansão como força motora da

transformação das outras esferas do social), Abensour arremata:

Somente a generalização do agir democrático consegue realizar, nesse caso, a unidade do universal com o particular, e não a aplicação de uma forma unificadora, segundo o modelo da razão. (ABENSOUR, 1998, p. 123)

Comparando a análise de G. Simmel sobre a relação entre a vida e sua objetivação ao

pensamento de Marx, Abensour diz:

Podemos, pois, traduzir Marx na língua de Simmel: a forma-Estado se autonomiza, desenvolve sua lógica própria (dominação, totalização, apropriação do Uno), até esquecer, em sua arrogância, a fonte de onde ela se origina, até erguer-se contra a vida do povo e destruir todas as manifestações que não entrem na sua perspectiva. Em resumo, um conflito estrutural entre a lógica do Estado, de um lado, e a lógica da democracia de outro. Troca entre dois pensamentos tanto mais legítima quanto, Simmel tinha já percebido, por sua própria iniciativa, como certas descrições da vida econômica, segundo Marx – sobretudo o fetichismo da mercadoria –, correspondiam perfeitamente à tragédia da cultura, ao paradoxo de uma relação cujos termos são, ao mesmo tempo, opostos e indissociáveis. Ora, para Marx, a tragédia da cultura não existe somente no campo da economia; lendo o manuscrito de 1843, ele a descobriu igualmente no campo do político. Uma única precaução deve ser tomada nesse confronto: o que Simmel pensa, no âmbito da filosofia da vida, Marx pensa na perspectiva de uma filosofia de ação. O que Simmel atribui ao dinamismo da vida, aos seus impulsos espontâneos, encontra-se em Marx sob a forma de uma agir que não se esgota no ato, sempre excessivo em relação a si mesmo, pronto a retrair-se para saltar e se lançar mais longe. (ABENSOUR, 1998, p. 124)

Voltemos à democracia. [...] podemos concluir que é muito mais satisfatório pensa-la no esquema ao qual Marx recorreu, para definir a Comuna de Paris, do que no esquema de 1843; muito mais no esquema do conflito do que no de um processo. Na verdade, a democracia não é tanto a realização de um processo que acarreta o desaparecimento do Estado – no espaço, em suma, liso, sem aspereza –, mas a instituição determinada de um espaço conflituoso, de um espaço contra, de uma cena agonística na qual se confrontam as duas lógicas antagônicas, se desenvolve uma luta, sem trégua, entre a autonomização do Estado, enquanto forma, e a vida do povo, enquanto ação. Luta na qual a democracia tem tudo a ganhar em saber que seu adversário

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permanente é a forma-Estado, a arrogância do Estado enquanto forma organizadora; e sua arma nessa luta, a redução. (ABENSOUR, 1998, p. 125)

Se optarmos pelo confronto dessas duas lógicas – parece que estaremos longe dos sonhos idílicos do Estado democrático, cujos teóricos surgem como mercadores de sonho, que distribuem ilusões tanto mais falaciosas quanto falacioso seria voltar às origens da democracia – o que encontraríamos no começo, senão uma insurreição contínua contra o Estado? (ABENSOUR, 1998, p. 125)

[...] a esse espaço político, onde se formam polos antagônicos, onde se enunciam objetos de litígio, onde se organizam lutas se acrescenta um novo conflito essencial entre democracia e o Estado; não somente porque os grandes se apoderam do Estado e porque o povo se opõe aos grandes, mas porque o Estado representa para a democracia um perigo permanente de degenerescência. Basta que a democracia deixe o terreno livre para o Estado para que este se infle até pretender tornar-se forma unificadora. Longe de ser o complemento harmonioso da democracia ou a estrutura na qual ela pudesse eficazmente buscar apoio, o Estado passa a ser para a democracia o órgão responsável pelo seu declínio; fixando-se em sua autonomia, considerando-se ele mesmo como um todo, constitui um perigo para o todo. Há, pois, luta recíproca entre os dois: se a verdadeira democracia visa o desaparecimento do Estado, ou melhor, luta contra o Estado, inversamente, ali onde o Estado cresce, a democracia degenera até desaparecer. A forma-Estado, ganhando terreno, substitui-se à vida do povo e se apresente como uma forma organizadora e totalizante. (ABENSOUR, 1998, p. 125-126)

Democracia contra o Estado pode significar para nós uma sensibilidade diante dessa forma estranha de experiência política que, realizando-se no tempo e “na prática efetiva” das instituições políticas – uma maneira de ser do político, nos termos de J. Rancière – em que se manifesta a constituição da vontade coletiva do povo – um ser político – na medida em que sua unidade não prejudica a condição de pluralidade – e que, em um mesmo movimento, para preservar suas instituições, a instituição democrática do social não cessa de erguer-se contra o Estado, afirmando in actu a possibilidade de suprimir a divisão entre governantes e governados, ou de reduzir quase a zero, de inventar um espaço público e um espaço político, sob o signo da isonomia. Em resumo, uma transformação do poder, em condições de agir em concerto, ou se se prefere, uma passagem do poder sobre os homens, ao poder com os homes e entre os homens, o entre sendo o lugar em que se ganha a possibilidade de um mundo comum. (ABENSOUR, 1998, p. 127)

Concebido, em princípio, para limitar o arbitrário do poder e proteger o estatuto dos indivíduos, fixando, de antemão, os caminhos que deve tomar o Estado, para a consecução de seus fins, o Estado de direito – a substituição pela norma, no governo dos homens – o Estado de direito, repetimos, enfrentou, no decorrer de seu desenvolvimento, uma série de contradições internas, que o destruíram, de certa maneira, por dentro, ou pelo menos, o esvaziaram de seu sentido primeiro. (ABENSOUR, 1998, p. 128)

Ao invés de ser considerado como um ideal regulador, o Estado de direito se transformar em sistema fechado, que mobiliza a verticalidade das normas jurídicas, sua organização piramidal, para dar origem a uma nova concentração de poder unitário e hierárquico, em detrimento de todas as formas de autonomia. (ABENSOUR, 1998, p. 128)

[...] o Estado de direito expressa sua imperfeição original e aparece como ele é, um dispositivo que visa subtrair o indivíduo ao arbítrio do poder, que, no começo, pois, se posiciona como salva-guarda jurídica do indivíduo, e não como invenção de um vivere civile, de um agir político, orientado para a

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criação de um espaço público e a constituição de um povo de cidadãos. O estado de direito revela, assim, que pertence mais ao paradigma jurídico-liberal do que ao paradigma cívico e republicano. (ABENSOUR, 1998, p. 129)

A democracia, tão domesticada e banalizada, é, como observamos, uma forma estranha de experiência, que institui politicamente o social e que, simultaneamente, se volta contra o Estado, como se, nessa oposição e na sua efervescência, coubesse à democracia, não conseguir o fim da política – seu desaparecimento –, mas abrir, de maneira mais fecunda, uma brecha, que permitisse uma invenção política, sempre renovada, para além do Estado, ou mesmo contra ele. (ABENSOUR, 1998, p. 129-130)

A fim de ter acesso essa estranheza da democracia, convém não somente rejeitar as ideologias do consenso, sobretudo a do consenso entre a democracia e o Estado, mas ainda desbanalizar a ideia de conflito, evitar dirigi-la para o compromisso, devolver-lhe sua carga máxima, isto é, a emergência sempre possível da luta dos homens, o surgimento da divisão originária, portadora da ameaça de dissolução, de explosão do social. [...] A democracia, por mais que possa parecer paradoxal, é a sociedade política que institui um elo humano, através da luta dos homens e que, enquanto instituição, volta à origem, tentando sempre redescobrir liberdade. (ABENSOUR, 1998, p. 131)

Ao invés de o Estado fechar sobre a democracia, como se pudesse aprisiona-la identificando-se a ela, é a democracia, longe de qualquer arché, que revela e marca os limites do Estado e, assim procedendo, contesta, ou melhor, arruína, o movimento de totalização dessa forma que pretende ser soberana. (ABENSOUR, 1998, p. 132)

Tal como a desordem que não se destina a tornar-se a uma ordem outra, a democracia tem um sentido irredutível, enquanto recusa da síntese, recusa da ordem, enquanto invenção no tempo da relação política, que transborda e ultrapassa o Estado. Se a democracia pode opor-se ao Estado, é porque o político não cessa de confrontar-se com ele. (ABENSOUR, 1998, p. 132)