a voluptuosidade do nada: o niilismo na prosa de machado de assis

304
A UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS VITOR CEI SANTOS A VOLUPTUOSIDADE DO NADA: O NIILISMO NA PROSA DE MACHADO DE ASSIS Belo Horizonte 2015

Upload: vitor-cei

Post on 28-Sep-2015

101 views

Category:

Documents


24 download

DESCRIPTION

Tese de doutorado de Vitor Cei Santos. Universidade Federal de Minas Gerais.

TRANSCRIPT

  • A UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LITERRIOS

    VITOR CEI SANTOS

    A VOLUPTUOSIDADE DO NADA:

    O NIILISMO NA PROSA DE MACHADO DE ASSIS

    Belo Horizonte

    2015

  • Vitor Cei Santos

    A VOLUPTUOSIDADE DO NADA:

    O NIILISMO NA PROSA DE MACHADO DE ASSIS

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Estudos Literrios da Faculdade de Letras da Universidade

    Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a

    obteno do ttulo de Doutor em Estudos Literrios.

    rea de concentrao: Teoria da Literatura e Literatura

    Comparada.

    Linha de pesquisa: Literatura, Histria e Memria

    Cultural.

    Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius de Freitas.

    Belo Horizonte

    2015

  • Em memria de Krishnamurti Jareski

    a vida inteira que podia ter sido e que no foi.

  • AGRADECIMENTOS

    Quem leu Humano, demasiado humano talvez reconhea estas palavras que

    Nietzsche escreveu no 180 sobre o esprito coletivo: Um bom escritor no tem apenas o seu

    prprio esprito, mas tambm o esprito de seus amigos. Durante o tempo lento da leitura e

    da escrita participaram de minha formao multidisciplinar e pluri-institucional muitos

    amigos, colegas, professores e alunos, a quem agradeo de corao. Na origem de tudo, o

    parente como melhor amigo agradeo aos meus pais pela educao e pelo apoio

    incondicional que eu recebi; minha irm, pela tarefa do tradutor e pela presena virtual em

    minhas ausncias.

    Uma palavra especial de apreo deve ser endereada ao Marcus Vinicius de

    Freitas, muito mais que orientador, amigo de sempre, que generosamente me acolheu como

    orientando, me propiciando desfrutar de um estimulante e rigoroso debate de ideias, o que me

    ajudou a ser mais claro e consciente nos meus argumentos.

    Agradeo Ligia Chiappini, minha coorientadora no Instituto de Estudos Latino-

    Americanos da Freie Universitt Berlin, pela valiosa superviso durante o Programa de

    Doutorado Sanduche no Exterior, quando parte importante da pesquisa para este trabalho foi

    feita. E, em seu nome, agradeo tambm ao grupo de pesquisadores por ela coordenado, com

    os quais eu tive a oportunidade de debater resultados parciais desta pesquisa.

    Agradeo a Marcos Rogrio Cordeiro e Olmpio Pimenta, que me privilegiaram

    com uma atenciosa e valiosa interlocuo iniciada quando esta tese ainda estava na fase dos

    projetos e esboos, me ofereceram leituras minuciosas no momento da qualificao e

    aceitaram participar da banca de defesa. Tambm agradeo a Fabola Padilha, Georg Otte,

    Jacyntho Lins Brando e Wilberth Salgueiro, interlocutores em fases distintas desta pesquisa,

    por aceitarem o convite para compor a banca examinadora.

    Minha gratido ao Jos Pedro Luchi, que generosamente me ofereceu um lar em

    meu primeiro ano de residncia em Belo Horizonte; sem essa inestimvel gentileza do

    apartamento emprestado o meu primeiro semestre na condio de doutorando sem-bolsa teria

    sido penoso.

    com alegria que agradeo aos meus bravos companheiros dos anos de

    experimento em BH: Andr Tessaro Pelinser, Maria Lopes, Daniel Filipe Carvalho, Eduardo

    Lima, Francigelda Ribeiro, Herlany Siqueira, Joo B. Botton, Leandro Lelis, Leticia Malloy,

    Rizzia Rocha, Roberta Bandeira, Sarah Forte e Sthefanny Gozze o acervo de experincias

  • que compartilhamos em nossas interaes, acadmicas ou extra-acadmicas, direta ou

    indiretamente deixaram marcas nesta tese. Agradeo tambm a Gil Porto, Ana Cludia Silva e

    Maria Auxiliadora Eleuterio, pela parceria na temporada de Barroso Jnior.

    Agradeo aos professores e colegas do Ps-Lit e da Faculdade de Letras da

    UFMG, pela aprendizagem e estmulo permanente: a Claudia Campos Soares, Jos Amrico

    Miranda, Lucia Castello Branco, Luciane Correa, Marli Fantini e Reinaldo Marques, pelas

    aulas estimulantes; a Maria Ceclia Boechat e Roberto Said, pela interlocuo pontual em

    eventos; ao Alex Sander Luiz Campos, meu consultor para assuntos machadianos; Renata

    Moreira, pelas dicas preciosas; a Leda Maria Martins, Graciela Ravetti e Myriam vila,

    coordenadoras do Ps-Lit; a Eliete Pinto, Letcia Magalhes e Norival Luiz, da secretaria.

    Schopenhauer assevera que uma reunio de filsofos uma contradictio in

    adijecto, tendo em vista que filsofos nunca estariam em grupos. Pois o Programa de Ps-

    Graduao em Filosofia da UFMG, onde eu encontrei um exemplar ambiente de debate

    intelectual e desfrutei de rigorosa e estimulante interlocuo filosfica, prova o contrrio.

    Agradeo aos professores Ivan Domingues, Jos Raimundo Maia Neto e Rodrigo Duarte, com

    quem fiz disciplinas e pude discutir alguns dos tpicos desta tese; um agradecimento especial

    a todos os membros do Grupo Nietzsche da UFMG, coordenado por Rogrio Lopes:

    Alexandra Lopes, Alice Medrado, Alice Melo, Ana Marta Lobosque, Bruno Vignoli, Daniel

    Carvalho, Olmpio Pimenta, Oscar Rocha, Renan Cortez, Silvia Lage, Vagner Acacio,

    Wander de Paula e William Mattioli; agradeo tambm aos colegas do conselho editorial da

    Outramargem: revista de filosofia Giorgia Cecchinato, Hugo Prado, Meline Costa Souza e

    os j mencionados Daniel, Joo e Leandro.

    O ano de experimento em Berlim, que me ensinou o quanto pode ser frtil estar

    fora do nosso pas, me encheu de orgulho e de saudades principalmente de saudades.

    Agradeo Suzanne Klengel, coordenadora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da

    Freie Universitt Berlin, por sua hospitalidade e comentrios ao projeto; ao Helmut Heit, pelo

    simpaticssimo acolhimento no Berliner Nietzsche-Colloquium, da Technische Universitt

    Berlin; ao Radouane Belakhdar, pelas estimulantes aulas de alemo; ao Joo Claudio Arendt,

    pelo pontap inicial; Sarita Brandt, pelas lies de traduo; a Gustavo de S, Pedro Lima,

    Slvia Nauroski de Irrgang e Teresa Bueno Schn, pelos colquios; e a todos que tornaram o

    meu PDSE mais caloroso e multicultural: Annette Prfer, Daniel e Herlany, Franziska

    Brendel, Lorenzo de Donato, Magdalena Panas, Nikol Nagy, Marco Schlaegel, Patricia

    Dvalos, Rizzia e a todos os colegas do Schlachtensee.

  • Meus cumprimentos de boa amizade aos professores e colegas da Universidade

    Federal do Esprito Santo, onde tudo comeou: Adolfo Oleare, Bernardo Barros Coelho de

    Oliveira, Claudia Murta, Fernando Mendes Pessoa, Hudson Ribeiro, Lino Machado, Srgio da

    Fonseca Amaral e especialmente a Fabola Padilha e Wilberth Salgueiro, que aceitaram o

    convite para participar da banca examinadora.

    Agradeo a todos os professores e colegas que conversaram ou debateram comigo

    os esboos, recortes e insights desta tese que apresentei em inmeras conversas informais,

    aulas e eventos acadmicos ao longo desses anos. Comunicaes e palestras sobre o tema

    desta tese foram apresentadas nos seguintes locais: Universidade Federal do Esprito Santo,

    em Vitria-ES; Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte-MG; Instituto

    Federal do Esprito Santo, em Linhares-ES; Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em So

    Leopoldo-RS; Apoena: grupo de estudos Schopenhauer-Nietzsche, em Fortaleza-CE; Freie

    Universitt Berlin e Technische Universitt Berlin, na capital alem; Universit de Paris-

    Sorbonne (Paris IV), na capital francesa; Universidade de Atenas, na Grcia; Sociedad

    Filosfica del Uruguay, em Montevidu. Daqueles com quem pude discutir, em diferentes

    ocasies formais, algumas das ideias que integram esta tese, recordo especialmente de Andrea

    Werkema, Clademir Araldi, Marcio Seligmann-Silva, Paulo Margutti, Paul van Tongeren,

    Roberto Barros, Ruy de Carvalho e Thas Castro.

    Agradeo s instituies sem as quais esta pesquisa no seria possvel: ao

    Programa de Ps-Graduao em Estudos Literrios da UFMG (Ps-Lit), pelo apoio

    institucional; Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pela

    concesso da bolsa que me permitiu estabelecer residncia em Belo Horizonte e me dedicar

    exclusivamente s atividades acadmicas; Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de

    Nvel Superior (CAPES), pelo apoio financeiro e institucional ao meu estgio na Freie

    Universitt Berlin, atravs da concesso de bolsa do Programa de Doutorado Sanduche no

    Exterior (PDSE), entre maro de 2013 e fevereiro de 2014; ao Lateinamerika-Institut da FU-

    Berlin, que me recebeu como pesquisador visitante.

  • Murchas,

    As rosas j no surtem

    seus efeitos de rosas.

    Tudo tem seu tempo de florescer,

    as revolues

    os poemas,

    as palavras,

    as crianas,

    tudo tem seu tempo de apodrecer.

    Miguel Marvilla, Ordem natural das coisas. Lio de labirinto.

  • RESUMO

    O niilismo na obra de Machado de Assis permanecia um tema no estudado. O objetivo geral

    desta tese argumentar que o niilismo um dos Leitmotive da prosa machadiana, aparecendo

    como perspectiva a ser galhofada. As principais reivindicaes do presente estudo so: a

    prosa de Machado de Assis, com a pena da galhofa, conjuga filosofia e literatura de tal modo

    que contedo filosfico e forma literria tornam-se indissociveis; o niilismo a dominante

    cultural do Ocidente no sculo XIX; Machado de Assis teve uma aguda conscincia do carter

    complexo e multifacetado da presena do niilismo em seu tempo.

    Palavras-chave: Machado de Assis. Nietzsche. Niilismo. Morte de Deus. Galhofa.

    ABSTRACT

    Machado de Assis on nihilism remained an unstudied subject. The main purpose of this thesis

    is to argue that nihilism is a leitmotif of Machados prose, presented as a perspective to be

    mocked. The fundamental claims of the present thesis are: Machado de Assis prose, with a

    playful pen, combines philosophy and literature in such a way that philosophical content and

    literary form become inseparable; nihilism is the cultural dominant in the West in the

    nineteenth century; Machado de Assis had an acute awareness of the complex and

    multifaceted nature of the presence of nihilism in his time.

    Keywords: Machado de Assis. Nietzsche. Nihilism. Death of God. Mockery.

  • SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................................................12

    1. COMO SE FILOSOFA COM O MACHADO.................................................................23

    1.1. Olhares da crtica machadiana sobre o problema do niilismo.....................................24

    1.2. Nenhuma filosofia?..........................................................................................................36

    1.3. A tinta da melancolia e a pena da galhofa.....................................................................47

    1.4. A histria como loureira..................................................................................................61

    1.5. O perspectivismo machadiano........................................................................................65

    2. A EMERGNCIA DO NIILISMO..................................................................................68

    2.1. O pessimismo como protoforma do niilismo.................................................................69

    2.1.1. O cristianismo como instituio promotora de niilismo.................................................70

    2.1.2. O desconsolo do Eclesiastes...........................................................................................76

    2.1.3. Machado leitor de Pascal...............................................................................................81

    2.1.4. Pascal e a condio miservel da existncia humana....................................................85

    2.1.5. Schopenhauer, o filsofo dos niilistas.............................................................................88

    2.1.6. Machado leitor de Schopenhauer...................................................................................93

    2.2. Um sculo fatigado e esfalfado........................................................................................98

    2.3. O louco e a viva de Deus..............................................................................................105

    2.4. O niilismo e a Rssia......................................................................................................116

    2.5. Resistncia ao niilismo...................................................................................................132

    2.5.1. A arte como contramovimento ao niilismo...................................................................134

    2.5.2. O humor como resposta ao niilismo.............................................................................140

    3. ARQUITETURA DE RUNAS........................................................................................145

    3.1. O naufrgio da existncia: niilismo e modernidade capenga em Quincas Borba.....146

    3.1.1. Modernidade capenga...................................................................................................147

    3.1.2. Nufragos da existncia, arquitetos de runas..............................................................151

    3.1.3. Humanitismo e niilismo................................................................................................165

    3.2. Nada em cima de invisvel: niilismo e modernidade de caranguejo em Esa e

    Jac.........................................................................................................................................172

  • 3.2.1. Do ttulo: intertexto.......................................................................................................174

    3.2.2. Modernidade de caranguejo.........................................................................................178

    3.2.3. O niilismo poltico de Pedro e Paulo............................................................................180

    3.2.4. O niilismo poltico de Batista........................................................................................184

    3.2.5. Filosofia das Tabuletas: niilismo poltico e desvalorizao dos valores.....................187

    3.2.6. A paralisia da vontade de Flora: radical rejeio de valor e desejo...........................193

    4. O CANSAO QUE OLHA PARA TRS.......................................................................198

    4.1. Narradores do tempo perdido.......................................................................................199

    4.2. Brs Cubas e a voluptuosidade do nada......................................................................203

    4.2.1. A terra e o estrume........................................................................................................206

    4.2.2. As rabugens de pessimismo e o enxurro da vida..........................................................211

    4.2.3. O delrio........................................................................................................................216

    4.2.4. Das negativas................................................................................................................225

    4.3. A condio casmurra de Bento Santiago: o prazer das dores velhas........................229

    4.3.1. A condio casmurra: o bicho-homem interiorizado...................................................231

    4.3.2. O cime como protoforma do ressentimento................................................................238

    4.3.3. Ressentimento: a crueldade que se volta para trs......................................................244

    4.4. Conselheiro Aires e a vida como um ofcio cansativo.................................................252

    4.4.1. Esse Aires......................................................................................................................255

    4.4.2. Filosofia do compasso: o tdio controvrsia.............................................................261

    4.4.3. Fadiga geral da vontade de viver: os ideais ascticos.................................................266

    4.4.4. Asceta gamenho............................................................................................................272

    EPLOGO..............................................................................................................................282

    Em que se explica o explicado..............................................................................................283

    Tentativa de autocrtica........................................................................................................285

    REFERNCIAS....................................................................................................................288

  • 12

    INTRODUO

    O objetivo geral desta tese argumentar que o niilismo um dos Leitmotive da

    prosa de Joaquim Maria Machado de Assis, aparecendo como perspectiva a ser galhofada.

    Embora o niilismo na obra do escritor brasileiro apresente vrias afinidades eletivas com o

    niilismo europeu, ele estrutura-se a partir de questes machadianas especficas que percorrem

    toda a sua obra.

    Leitmotiv uma tcnica de composio musical caracterizada por um tema

    meldico ou harmnico destinado a caracterizar um personagem, uma situao ou um estado

    de esprito e que, na forma original ou por meio de transformaes, acompanha os seus

    mltiplos reaparecimentos ao longo de uma obra. Por analogia, refere-se ideia ou frmula

    que reaparece de modo constante em uma obra literria, expressando uma preocupao

    dominante ou um tema fundamental. Embora seja possvel uma traduo literal motivo

    condutor o termo alemo consensualmente mantido e registrado em dicionrios de lngua

    portuguesa1.

    As principais reivindicaes desta tese so: (1) a prosa de Machado de Assis, com

    a pena da galhofa, conjuga filosofia e literatura de tal modo que contedo filosfico e forma

    literria tornam-se indissociveis; (2) o niilismo a dominante cultural do Ocidente no sculo

    XIX; (3) Machado de Assis teve uma aguda conscincia do carter complexo e multifacetado

    da presena do niilismo em seu tempo.

    O conceito de dominante cultural, que tomo emprestado de Fredric Jameson, parte

    do princpio de que de tempos em tempos ocorrem modificaes sistmicas na histria da

    civilizao, ou ao menos alteraes fundamentais na esfera da cultura, que geram uma nova

    concepo de mundo predominante. O que no significa afirmar a constituio de uma ordem

    social totalmente nova, mas apenas o surgimento de um novo paradigma, ou viso de mundo

    (Weltanschauung), que permite a presena e coexistncia de uma gama de caractersticas

    muito distintas, ainda que subordinadas dominante: Descrev-la em termos de hegemonia

    cultural no significa sugerir uma homogeneidade cultural massificada e uniforme do campo

    social, mas exatamente levar em conta sua coexistncia com outras foras resistentes e

    heterogneas que ele tem tendncia a dominar e a incorporar2. Nesse sentido, o niilismo deve

    1 LEITMOTIV. In: Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa 3.0, s. p.

    2 JAMESON. Ps-modernismo, p. 176. Grifo original.

  • 13

    ser compreendido como categoria maior para a anlise das dinmicas culturais em operao

    nas mltiplas esferas de interao sociocultural no sculo XIX.

    O ttulo A voluptuosidade do nada surge a partir de uma expresso utilizada pela

    personagem Pandora no captulo VII, O delrio, de Memrias pstumas de Brs Cubas:

    Creio; eu no sou somente a vida; sou tambm a morte, e tu ests prestes a devolver-me o

    que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada3. Esta metfora

    determina o ponto de partida do caminho desta tese, na medida em que cunha um horizonte

    prprio de discusso do problema filosfico do niilismo.

    O conceito de niilismo, que no tem uma definio unvoca, provm do francs

    nihilisme e do latim nihil, nada, significando reduo ao nada, no-existncia. Sendo uma

    palavra polissmica, mesmo em seu significado mais comum, dicionarizado, recebe distintas

    acepes:

    1 reduo ao nada; aniquilamento; no existncia

    2 ponto de vista que considera que as crenas e os valores tradicionais so

    infundados e que no h qualquer sentido ou utilidade na existncia

    3 total e absoluto esprito destrutivo, em relao ao mundo circundante e ao

    prprio eu

    4 Rubrica: filosofia.

    no nietzschianismo, negao, declnio ou recusa, em curso na histria

    humana e esp. na modernidade ocidental, de crenas e convices com seus respectivos valores morais, estticos ou polticos que ofeream um sentido consistente e positivo para a experincia imediata da vida

    5 rejeio radical s leis e s instituies formais

    6 Rubrica: histria, poltica.

    ideologia de um grupo revolucionrio russo da segunda metade do sXIX,

    que pregava a destruio das instituies polticas e sociais para abrir

    caminho a uma nova sociedade, mesmo empregando medidas extremas

    7 ao anarquista, terrorista ou revolucionria4.

    O problema do niilismo alcanou grande importncia no sculo XX, a ponto de

    despertar o esprito de investigao de pensadores to heterogneos quanto Martin Heidegger,

    Theodor Adorno, Gilles Deleuze, Vilm Flusser, Marshall Berman e Benedito Nunes,

    incluindo autores ainda em atividade como Jrgen Habermas, Daniel Bell e Gianni Vattimo,

    para no citar em demasia. As obras desses pensadores assinalam que o conceito de niilismo,

    alm de fazer parte da histria do pensamento ocidental, exerce forte influncia no debate

    filosfico contemporneo, constituindo um dos grandes desafios do terceiro milnio.

    3 ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, VII, p. 634. Para as citaes em portugus feitas nesta tese, optei

    por manter a grafia original dos textos, sendo que, alguns deles, no esto atualizados conforme o ltimo acordo

    ortogrfico brasileiro vigente desde 2009. 4 NIILISMO. In: Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa 3.0, s. p.

  • 14

    Sintomas contemporneos do niilismo seriam: os arcaicos ideais ascticos de

    renncia de si, mortificao do ego e do corpo, jejum voluntrio, castidade autoimposta5; a

    reduo de tudo, inclusive do valor humano, aos termos do mercado e do consumo6; o

    skinhead destruindo o patrimnio pblico de seu bairro, enquanto os vizinhos, indiferentes,

    observam a cena como se no fosse com eles7; o niilismo poltico, segundo o qual a poltica

    no vale nada e no leva a nada; o sujeito-demiurgo, que acredita poder tudo, sem qualquer

    parmetro tico a presidir a escala de valores e a orientar as suas aes8; a desenfreada

    explorao da natureza e a submisso do ser humano dinmica dos processos tcnicos de

    produo e circulao9.

    A discusso sobre essa problemtica remonta ao sculo XIX, quando niilismo

    comeou a ser um termo de frequente circulao entre escritores, crticos e filsofos europeus.

    Contumazmente associado a Arthur Schopenhauer10

    , o conceito ganhou destaque na literatura

    russa, em obras de autores como Fidor Dostoievski, Nikolai Leskov e Ivan Turguniev. O

    autor de Pais e Filhos ficou clebre por ter popularizado a palavra e equivocadamente

    costuma receber sua paternidade.

    O primeiro filsofo que se dedicou a pensar o niilismo como um dos conceitos

    centrais de sua obra foi um contemporneo de Machado de Assis, Friedrich Wilhelm

    Nietzsche, autor que, no primeiro quinqunio do sculo XX, comeou a se tornar uma

    verdadeira moda na cena intelectual brasileira11

    , mas que no foi citado por Machado,

    tampouco consta na sua biblioteca.

    Nietzsche, ainda que no tenha feito nenhum estudo sistemtico sobre o niilismo,

    apresentando suas reflexes sobre o problema em trechos esparsos de suas obras e

    manuscritos, consagrou-se como o autor oitocentista a partir do qual a reflexo sobre o

    niilismo alcanou seu mais alto grau12

    . Aps Nietzsche, segundo Theodor Adorno, a

    filosofia no pde mais renunciar a esse termo13.

    5 Cf. PIMENTA. Nietzsche, Thomas Mann e a superao do niilismo, p. 170.

    6 Cf. BERMAN. Tudo o que slido desmancha no ar, p. 107.

    7 Cf. FEITOSA. No-nada. Formas brasileiras do niilismo, p. 4.

    8 Cf. DOMINGUES. A filosofia no terceiro milnio, p. 37-39.

    9 Cf. ARALDI. Nietzsche: do niilismo ao naturalismo moral, p. 59.

    10 Por ora, necessrio apenas deixar claro que o termo Nihilismus, ao contrrio de nihil, no aparece sequer

    uma vez na filosofia do autor. Trata-se de uma interpretao tardia, sobretudo devido influncia nietzscheana,

    descrever a filosofia schopenhaueriana como niilista . DE PAULA. Nietzsche e a transfigurao do pessimismo schopenhaueriano, p. 73. 11

    Cf. VERSSIMO. Um Nietzsche diferente, p. 125-126. 12

    A fecundidade da bibliografia crtica e terica sobre o niilismo na obra de Nietzsche inversamente

    proporcional que se refere obra de Machado de Assis. A fortuna crtica do filsofo tem destacado, nas ltimas

    dcadas, o niilismo como um dos seus conceitos fundamentais. 13

    ADORNO. Dialtica Negativa, p. 314.

  • 15

    Identificado por Nietzsche como o esgotamento da capacidade humana de criao

    de sentido e de valor, o niilismo ganhou repercusso a partir da situao de crise dos valores

    da segunda metade do sculo XIX, no contexto do problema axiolgico gerado pela imagem

    cientfica de um mundo mecanicista e essencialmente desprovido de sentido14.

    O niilismo, radical rejeio de valor, sentido, desejo15, designado como o

    fenmeno descomunal do esgotamento dos valores e dos ideais que sustentavam as esferas

    valorativas do mundo ocidental moderno: artes, poltica, economia, metafsica, esttica,

    cincia, moral, religio e at mesmo o chamado senso comum, que orienta os hbitos

    cotidianos das pessoas.

    Ao longo de suas reflexes fragmentrias, em estilo aforismtico e perspectivista,

    Nietzsche analisa o problema do niilismo em suas nuances, apresentando segmentaes do

    conceito, com destaque para as seguintes acepes: incompleto (unvollstndige), ativo

    (aktiver), passivo (passiver) e completo (vollkommener). Quando o lugar e a funo outrora

    ocupados por Deus e pelos ideais suprassensveis passam a ser ocupados por novos ideais

    (racionalidade, ordem e progresso, liberdade, igualdade e fraternidade), isto , quando o

    homem moderno quebra os dolos religiosos em nome da autonomia da razo, mas continua

    desvalorizando a vida em nome de valores pretensamente eternos e absolutos, porm, vazios

    (bem, mal, progresso, verdade) tem-se o niilismo incompleto. Nada o nome dessas figuras

    difanas do ideal. Alimentado pelos autores que criticam o projeto moderno com o intuito de

    rejuvenesc-lo, aprimor-lo ou reform-lo, o niilismo incompleto se manifesta nas reas das

    cincias naturais e da histria como mecanicismo, darwinismo ou positivismo, nas esferas da

    poltica e da economia como nacionalismo ou anarquismo, e no campo das artes como

    esteticismo ou naturalismo.

    Dentro do contexto descrito acima, o niilismo torna-se uma condio normal,

    com duplo sentido: niilismo ativo e passivo. O primeiro aparece como a violenta radicalizao

    da vontade de destruir, de ir alm do mundo esvaziado de valores, tal como observvel nos

    niilistas e anarquistas russos do sculo XIX, que exprimem o sinal de uma fora insuficiente

    para, produtivamente, instituir novamente uma finalidade, um porqu, uma crena. O niilismo

    passivo, cujo maior exemplo o budismo, pe em cena um estado patolgico intermedirio:

    as suas foras produtivas ainda no so suficientemente fortes e a decadncia ainda hesita. Ele

    surge em sociedades que se encontram desestruturadas, caracterizando a perda do sentido dos

    14

    NIETZSCHE. A Gaia Cincia, 373, p. 277. 15

    NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, p. 125. Todas as referncias em lngua estrangeira

    citadas na tese tm traduo minha.

  • 16

    valores estabelecidos. Motivo de ressentimento, regresso e declnio, incapaz de criar novos

    valores:

    Niilismo como decadncia e diminuio do poder do esprito: o niilismo

    passivo como um sinal de fraqueza: a fora do esprito pode estar cansada,

    esgotada, de modo que as metas e valores at agora so inadequados e

    indignos de f de modo que a sntese de valores e metas (alicerce sob o qual se baseia toda cultura forte) se dissolve, de modo que os valores

    individuais fazem guerra entre si: decomposio que tudo refresca, cura,

    tranquiliza, aturde, em primeiro plano, sob diferentes disfarces, religioso ou

    moral, poltico ou esttico, etc16

    .

    Nietzsche quer superar o niilismo passivo a partir de uma transvalorao de todos

    os valores, instituindo o niilismo completo, aquele que promove e acelera o processo do

    crepsculo dos dolos. O que significa no apenas destruir os antigos valores, mas tambm o

    prprio espao que ocupavam o do mundo ideal, pretensamente verdadeiro. Assim, alcana-

    se a possibilidade de se completar o niilismo e ganhar a condio necessria instaurao de

    novas maneiras de avaliar17

    .

    O filsofo do martelo se considerava o primeiro a ser capaz de levar s ltimas

    consequncias a transvalorao de todos os valores, abolindo a distino entre mundo sensvel

    e suprassensvel, preparando terreno para a criao de novos valores afirmadores da vida.

    Contudo, ele ainda no seria capaz de criar valores afirmativos, o que seria uma tarefa

    destinada aos filsofos do futuro.

    Ainda de acordo com Nietzsche, o niilismo parte destrutivo, parte irnico18. E

    Machado de Assis retrata o niilista de forma irnica. Exemplar o conto ltimo Captulo,

    narrado pelo suicida Matias Deodato de Castro e Melo. Cansado e aborrecido, aceitando a

    insignificncia da vida e da morte, o narrador entendia que no podia achar a felicidade em

    parte alguma, at se deparar com um homem que, apesar de vtima de grandes reveses,

    caminhava risonho e aparentemente feliz, contemplando os sapatos novos. Motivado por esse

    encontro, o narrador determina em seu testamento que o valor de sua modesta herana seja

    empregado em sapatos e botas novas, que se distribuiro por um modo indicado, fazendo

    certo nmero de venturosos:

    16

    NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, p. 351. 17

    Foge ao escopo desta tese uma discusso sobre a tentativa de uma transvalorao de todos os valores (Ein Versuch der Umwerthung aller Werte), expresso cunhada por Nietzsche em uma anotao de 1884. Cf.

    NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1884-1885, p. 218; BROBJER. The Origin and Early Context of the

    Revaluation Theme in Nietzsches Thinking. 18

    NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, p. 353.

  • 17

    No fim de dez minutos, vi passar um homem bem trajado, fitando a mido

    os ps. Conhecia-o de vista; era uma vtima de grandes reveses, mas ia

    risonho, e contemplava os ps, digo mal, os sapatos. Estes eram novos, de

    verniz, muito bem talhados, e provavelmente cosidos a primor. Ele levantava

    os olhos para as janelas, para as pessoas, mas tornava-os aos sapatos, como

    por uma lei de atrao, anterior e superior vontade. Ia alegre; via-se-lhe no

    rosto a expresso da bem-aventurana. Evidentemente era feliz; e, talvez,

    no tivesse almoado; talvez mesmo no levasse um vintm no bolso. Mas ia

    feliz, e contemplava as botas. A felicidade ser um par de botas? Esse

    homem, to esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna.

    Nada vale nada. Nenhuma preocupao deste sculo, nenhum problema

    social ou moral, nem as alegrias da gerao que comea, nem as tristezas da

    que termina, misria ou guerra de classes; crises da arte e da poltica, nada

    vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas,

    ele calca com elas o cho de um globo que lhe pertence. Da o orgulho das

    atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranquilidade olmpica... Sim,

    a felicidade um par de botas19

    .

    A mxima nada vale nada, ao mesmo tempo em que aponta para o niilismo

    enquanto experincia histrica da ausncia de fundamento e da negatividade radical, mostra a

    ironia com a qual o escritor brasileiro repetidamente aponta que os conceitos importados da

    Europa sofrem deslocamentos no Brasil, muitos deles risveis.

    Inegavelmente a expresso do niilismo no Brasil diferente da sua expresso na

    Europa. Nietzsche tambm j alertava para a intrnseca relao entre conceito e contexto e os

    riscos da descontextualizao. Se costumeiramente a comunidade cientfica compreende os

    termos europeu e ocidental como sinnimos20

    , enquadrando maquinalmente as ex-colnias

    europeias no mundo ocidental, o filsofo alemo distinguia o niilismo europeu do niilismo

    budista e do niilismo russo, admitindo que o fenmeno no possui uma histria universal.

    Pensemos, pois, o niilismo tal qual aparece como Leitmotiv na obra do escritor brasileiro

    Machado de Assis, dando fisionomia prpria ao pensamento nacional21.

    O niilismo europeu, a despeito de sua inteno de abrangncia universal, qui

    fizesse no Brasil oitocentista efeito de ideologia estrangeira, localizada e relativa uma ideia

    fora do lugar: uma roupa entre outras, muito da poca, mas desnecessariamente apertada22,

    como diria Roberto Schwarz. Por isso, se o niilismo ocupa espao importante na obra de

    Machado, como reivindica esta tese, o tratamento galhofeiro, como tambm pode-se atestar

    19

    ASSIS. Histrias sem data, p. 363. Grifo meu. 20

    Sobre as acepes das palavras Europa e Ocidente ao longo da histria cf. DUSSEL. 1492. El encubrimiento

    del otro, p. 169-173. 21

    ASSIS. Notcia da atual literatura brasileira, p. 1203. Existe um niilismo brasileira? Ou o niilismo teria se

    globalizado de tal forma que as diferenas regionais acabaram sendo absorvidas e anuladas? O tema abordado

    de forma introdutria por Feitosa (Cf. No-nada. Formas brasileiras do niilismo) e Domingues (Cf. A filosofia no

    3 milnio). 22

    SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 27.

  • 18

    em crnica da srie A Semana, publicada no jornal Gazeta de Notcias em 26 de junho de

    1892:

    O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois misterioso,

    dramtico, pico, lrico, todas as formas da poesia. Um homem est jantando

    tranquilo, entre uma senhora e uma pilhria, deita a pilhria senhora, e,

    quando vai a erguer um brinde... estala uma bomba de dinamite. Adeus,

    homem tranqilo; adeus, pilhria; adeus, senhora23

    .

    A conscincia do carter historicamente complexo do niilismo, rara em um

    escritor brasileiro da poca, confere ao estudo do niilismo na obra de Machado de Assis um

    valor que eu suponho ser no apenas literrio, mas tambm histrico e filosfico. Se o valor

    histrico da obra machadiana j foi apontado por crticos renomados como Raimundo Faoro,

    Roberto Schwarz, John Gledson e Sidney Chalhoub, a densidade filosfica de Machado,

    essencial compreenso de sua obra, parece ser um consenso na fortuna crtica, como

    observou Miguel Reale24

    . Esse autor, como bem definiu Jacyntho Lins Brando, no foi

    apenas escritor, mas igualmente pensador e, sobretudo, pensador da cultura brasileira25.

    preciso reconhecer, pois, que a fico tambm um modo de pensamento26,

    compreendendo a literatura machadiana como ela mesma pensante, como repositrio de

    conceitos.

    A despeito de Machado ser o primeiro autor brasileiro a abordar o problema do

    niilismo de forma consistente, o assunto recebeu pouca e superficial ateno da crtica,

    permanecendo um terreno ainda no suficientemente explorado. Verdade que,

    esporadicamente, alguns poucos intrpretes ocuparam-se da questo, mas apenas como um

    interesse subsidirio (conforme ser visto na primeira seo do captulo I). O presente estudo

    tem o intuito de preencher esta lacuna e argumentar a favor da relevncia do tema em questo.

    Para tratar desse assunto, tentarei colocar em evidncia uma caracterstica que no

    foi ainda inteiramente reconhecida pela crtica machadiana, a saber, que o estatuto do termo

    niilismo no somente de ordem filosfica ou psicolgica, mas tambm histrica, o que

    quer dizer que a explicao de sua lgica no se esgota na crtica biogrfica ou no nvel do

    discurso, seja literrio ou filosfico. enquanto factum que o niilismo deixa suas marcas na

    literatura machadiana e nessa perspectiva que ser estudado: a realidade do mundo e do ser

    se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literria, permitindo que esta

    23

    ASSIS. A Semana, p. 899. 24

    Cf. REALE. A filosofia na obra de Machado de Assis, p. 128. 25

    BRANDO. A Grcia de Machado de Assis, p. 128. 26

    NUNES. Machado de Assis e a filosofia, p. 9.

  • 19

    seja estudada em si mesma, como algo autnomo27. Isto posto, esta tese no adota uma

    perspectiva sociolgica que visa interpretar a obra como documento de poca, a partir de uma

    instncia verificvel e externa fico. Antes, proponho uma leitura que suspenda

    preconceitos e no atribua um sentido unvoco obra de Machado de Assis, porque A

    referncia ao social no deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para

    dentro dela28.

    Sigo o exemplo do mtodo crtico de Antonio Candido, caracterizado por uma

    sntese integradora do trilema histria-teoria-crtica, para saber como que o niilismo,

    fenmeno concreto, histrico, vem baila com insistncia na obra de Machado de Assis, com

    valor simblico e para expressar uma preocupao dominante, e de que modo o niilismo que

    est na sociedade se transforma no texto literrio:

    Os estudos deste livro (cuja primeira edio de 1965) procuram focalizar

    vrios nveis da correlao entre literatura e sociedade, evitando o ponto de

    vista mais usual, que se pode qualificar de paralelstico, pois consiste

    essencialmente em mostrar, de um lado, os aspectos sociais e, de outro, a sua

    ocorrncia nas obras, sem chegar ao conhecimento de uma efetiva

    interpenetrao. [...] Nestes est formulado, em planos cada vez mais

    particularizados, o problema fundamental para a anlise literria de grande

    nmero de obras, sobretudo de teatro e fico: averiguar como a realidade

    social se transforma em componente de uma estrutura literria, a ponto dela

    poder ser estudada em si mesma; e como s o conhecimento desta estrutura

    permite compreender a funo que a obra exerce29

    .

    Candido o principal expoente brasileiro da linha de estudo comparatista que

    compreende a linguagem literria em sua dimenso esttica, como algo carregado de sentido

    histrico e cultural e no somente um meio de descrio ou representao da realidade. De

    modo que procura compreender os textos em seus contextos e os contextos nos textos,

    encontrando na linguagem a histria cultural, resultando no traspassamento das duas

    estruturas, a literria e a histrica, de modo que a primeira manifeste em si mesma e por si

    mesma a segunda30.

    No mtodo integrador de Candido os trabalhos crtico e analtico so

    indissociveis, porque a teoria brota dos textos sobre os quais e a partir dos quais se teoriza,

    sem perder de vista a fora do concreto. Para dar conta de um texto e de suas relaes com

    27

    CANDIDO. O discurso e a cidade, p. 9. 28

    ADORNO. Notas de literatura I, p. 66. 29

    CANDIDO. Literatura e sociedade, p. 8. 30

    CORDEIRO. Comparatismo brasileira, p. 18.

  • 20

    os seus vrios contextos, o crtico precisa ler, reler, refletir, repensar, entrar no texto e sair

    dele atravs de outros textos, voltando a ele pelo filtro dos discursos a articulados31.

    O mtodo crtico proposto por Candido influenciou a leitura que Roberto Schwarz

    fez da obra de Machado de Assis. tese de Schwarz, de que o processo social toma forma na

    obra machadiana, vale somar as de John Gledson e Sidney Chalhoub, para quem Machado

    incorpora a histria brasileira oitocentista sua obra, fazendo referncias e stiras aos seus

    principais eventos: Independncia, Abdicao, Maioridade, Conciliao, Guerra do Paraguai,

    Lei do Ventre Livre, Abolio, Proclamao da Repblica e Guerra de Canudos, temas que

    foram abordados por Machado e por seus principais crticos. A esses acontecimentos

    acrescento o niilismo, importante fenmeno oitocentista que Machado incorpora sua obra,

    mas permanece tema no estudado pelos crticos.

    Para discutir essas questes, esta tese est estruturada em quatro captulos. O

    primeiro, cujo ttulo uma pardia com o subttulo do ltimo livro editado por Nietzsche,

    Crepsculo dos dolos, ou, como se filosofa com o martelo, tem cunho propedutico e serve

    de prolegmenos tese, estabelecendo uma base de sustentao adequada para todas as

    discusses posteriores. Primeiramente, apresenta uma reviso da fortuna crtica referente ao

    tema do niilismo na obra de Machado de Assis; em seguida, discute a forma irnica como a

    filosofia aparece na obra machadiana para, a seguir, analisar a pena da galhofa e a tinta da

    melancolia com a qual o autor escreve sua prosa e, por fim, apresentar breves consideraes

    sobre a concepo machadiana de histria e o perspectivismo machadiano.

    O captulo II prope que o niilismo na prosa de Machado de Assis deve ser

    investigado no mbito do estabelecimento de um dilogo com a tradio que o antecede,

    porque o estudo do niilismo na obra do autor brasileiro no se concebe sem uma perspectiva

    comparativa, no quadro mais amplo de suas relaes com as tradies locais e internacionais.

    Assim, percorre as obras de Eclesiastes, Blaise Pascal, Arthur Schopenhauer, Ivan

    Turguniev, Nikolai Leskov, Fidor Dostoievski e Friedrich Nietzsche, apresentando um

    estudo do estado da questo. Desse modo, contextualiza a emergncia do niilismo como

    dominante cultural do Ocidente no sculo XIX e discute o problema correlato da morte de

    Deus. Concomitantemente, se debrua sobre algumas crnicas de Histrias de Quinze Dias

    (1876-1878), Notas Semanais (1978), Balas de Estalo (1883-1886), Bons Dias! (1888-

    1899) e A Semana (1892-1897), reputando que Machado no somente se configura como

    31

    CHIAPPINI; VEJMELKA. Antonio Candido na Alemanha, p. 247.

  • 21

    leitor irreverente da tradio, como tambm partiu do antigo e abriu espaos novos, criou

    diferenas.

    A crnica, considerada um gnero de classificao imprecisa, fronteirio entre o

    jornalismo e a literatura, ocupa um lugar importante na obra de Machado. Ao longo de sua

    vida o escritor-jornalista produziu um jornalismo literrio que conjugava fait divers (fatos

    diversos, incidentes da atualidade, que interessam pelo pitoresco), acontecimentos histricos,

    aluses literrias e reflexes filosficas, de carter ontolgico, tico e esttico. As crnicas

    no sero lidas como se expressassem opinies pessoais do autor emprico, mas sim enquanto

    expresses de narradores fictcios. Preserva-se, assim, a autonomia da obra em relao ao

    autor emprico. Afinal, Histrias de Quinze Dias uma srie assinada por Manasss, que se

    autorretrata como um velho; Notas Semanais por Eleazar, o protegido de Deus, autor da

    famosa crtica ao Primo Baslio, de Ea de Queirs; Balas de Estalo por um irnico Llio

    dos Anzis Carapua; Bons Dias! por Policarpo, ex-relojoeiro atormentado em um mundo

    de relgios em descompasso, que assina Boas Noites; A Semana por um annimo escriba

    de coisas midas, interessado e ao mesmo tempo enfastiado do homem e seus problemas32

    .

    O captulo III, cujo ttulo faz referncia ao personagem Freitas, de Quincas Borba,

    que se autodenominou um arquiteto de runas33, analisa de que modo o niilismo aparece

    como um dos Leitmotive de Quincas Borba (1891) e Esa e Jac (1904). Partindo de uma

    investigao da passagem brasileira modernidade, passagem desde sempre marcada pelo

    signo das contradies34, argumento que os dois romances configuram o niilismo no

    contexto de modernizao do Rio de Janeiro.

    O captulo IV analisa de que modo o niilismo se torna um dos Leitmotive dos

    romances narrados em primeira pessoa, aparecendo como perspectiva a ser galhofada. A

    partir do conceito nietzschiano de o cansao que olha para trs35, argumento que, nas

    narrativas de Memrias Pstumas de Brs Cubas (1881), Dom Casmurro (1900) e Memorial

    de Aires (1908), o tempo um componente crucial, na medida em que tudo destri e devora.

    Ao revolverem o passado, os trs memorialistas reagem cada um sua maneira: superao da

    finitude e negatividade total (Brs Cubas), ressentimento (Bento Santiago) e ideal asctico

    (Conselheiro Aires).

    32

    Sobre a crnica, seu lugar na obra de Machado de Assis e a pluralidade dos cronistas machadianos, cf.

    CAMPOS. Machado de Assis contra a concepo de sujeito solar, p. 35-60. 33

    ASSIS. Quincas Borba, XXX, p. 783. 34

    FREITAS. Contradies da modernidade, p. 18. 35

    NIETZSCHE. Genealogia da moral, prlogo, 5, p. 11.

  • 22

    Concluo que Machado percebe o niilismo com penetrao e constncia, mas em

    lugar de represent-lo apenas superficialmente, como tema, em cenas e falas de personagens,

    incorpora-o como elemento funcional da composio literria. Enquanto problema artstico,

    linha de fora literria, o conceito filosfico de niilismo limado, ganhando algumas

    caractersticas e perdendo outras. Caracteriza-se, nesse sentido, pela polissemia, abrangendo

    manifestaes distintas vrios Leitmotive, ou variaes do Leitmotiv em questo.

  • 23

    1. COMO SE FILOSOFA COM O MACHADO

  • 24

    1.1. Olhares da crtica machadiana sobre o problema do niilismo

    A fora potencializadora da tradio1, como indica Roberto Schwarz, ao

    rejuvenescer questes longamente amadurecidas e nos alimentar com a experincia

    acumulada pelas geraes passadas, a matriz de fora do trabalho intelectual. Tendo em

    vista que devemos nos valer dos autores que nos precederam para avanar, o propsito desta

    reviso de literatura o estabelecimento de um dilogo com a tradio crtica que me

    antecede, ao qual devo muito do que digo aqui. Aponto, nas linhas a seguir, a contribuio de

    vrios crticos para o debate que ora nos convida e rene a pensar. Dada a impossibilidade de

    se ler tudo o que foi editado sobre Machado de Assis, o balano dever ser necessariamente

    seletivo e parcial. As presenas reclamam as omisses, justificadas pelos limites do trabalho,

    que, propondo-se como uma perspectiva possvel, no visa especificamente ao estudo

    exaustivo da fortuna crtica machadiana.

    Cabe considerar, inicialmente, que os prprios conceitos de niilismo ou de

    obras literrias niilistas aparecem en passant nas obras de diversos crticos, algumas vezes

    veiculados atravs de imprecises conceituais, como se estivessem dados a priori e no

    necessitassem de maiores explicaes. Desse modo, encontramos uma tradio crtica que

    parte do pressuposto de que a obra machadiana transmissora de uma filosofia melanclica,

    pessimista, niilista, sem deixar bem clara a acepo de niilismo empregada.

    Benedito Nunes indica que o enlace entre literatura e niilismo na obra de Machado

    foi reconhecido pela tradio crtica, que, se do ponto de vista filosfico emitiu rtulos no

    raras vezes apressados e taxativos, de um ponto de vista literrio, por natureza impreciso,

    metafrico e, principalmente, machadiano, apresentaram uma boa caracterizao do

    pensamento de Machado:

    Pascaliano sem o consolo jansenista da Graa distribuda aos eleitos da

    Salvao, schopenhaueriano que substituiu pelo dio vida a moral da

    renncia da vontade de viver, e ctico radical, pirrnico, derivando para o

    niilismo eis os traos fisionmico-doutrinrios, carregados nas tintas do negativismo, com os quais a tradio crtica revestiu o perfil filosfico de

    Machado de Assis que fez chegar at ns, emoldurando-o na autoridade das

    fontes principais em que o criador de Dom Casmurro teria abeberado o seu

    pensamento2.

    1 SCHWARZ. Que horas so?, p. 48.

    2 NUNES. No tempo do niilismo e outros ensaios, p. 129. Grifo meu.

  • 25

    Apesar de essa caracterizao ser pertinente, h que se tomar cuidado com a

    rotulao de Machado de Assis em uma tendncia de pensamento preestabelecida, pois ele

    autor de obra vasta, que no enquadra facilmente em rtulos e bandeiras, seja de natureza

    literria, poltica, filosfica ou religiosa.

    Com razo, Jean-Michel Massa reconhece, na fortuna crtica do escritor publicada

    at a primeira metade do sculo XX, uma controvrsia que envolveu a atribuio ou recusa do

    niilismo ao escritor: descobriu-se o pessimismo do escritor, seu ceticismo, seu niilismo. Os

    ataques surgiram de todos os lados. Joaquim Maria Machado de Assis, um novo Scrates,

    passou a ser um mestre da perverso e sua obra uma escola da corrupo3.

    Alguns estudos decisivos da tradio crtica postularam que a lgica de

    composio e o estilo de Machado esto atrelados a uma viso de mundo pessimista.

    Considero que muitos desses estudos, de Slvio Romero aos contemporneos, reforaram

    alguns pressupostos, tais como a sua caracterizao de autor pessimista, niilista, ctico, sem

    confrontar as categorias analticas ao conjunto de livros do autor4.

    No me deterei na reconstruo dos argumentos apresentados por cada autor em

    sua respectiva obra, justamente porque o tema do niilismo no o foco das obras a serem

    avaliadas. Tampouco pretendo indicar eventuais insuficincias ou algo parecido. Meu breve

    comentrio tem o intuito apenas de levantar algumas questes que as leituras dos textos

    sugerem, mas que no so diretamente abordadas neles.

    O primeiro livro dedicado obra do presidente perptuo da Academia Brasileira

    de Letras Machado de Assis: Estudo Comparativo de Literatura Brasileira, publicado por

    Slvio Romero no outono de 1897. O pioneiro crtico tentou erigir sobre bases cientificistas

    uma tipologia das variedades de pessimismo. Machado surge enquadrado nessa classificao:

    O pessimismo entre ns tem tido at hoje trs feies principaes, ou, melhor,

    costumamos chamar pessimistas a trs categorias de indivduos: os que

    dizem mal de nossos desmantelos nacionaes, nomeadamente os desmantelos

    de ordem politica e litteraria; os que praguejam mais ou menos

    conscientemente contra os vicios e desarranjos da vida social em geral; os

    que tm opinio sombria dogmaticamente feita sobre a essncia mesma da

    existncia universal. No primeiro grupo tem-se-me dado um lugar que s

    aceito com restrices; no segundo est o finado Braz Cubas ou Machado de

    3 MASSA. A juventude de Machado de Assis, p. 21. Grifo meu.

    4 Exceo o estudo do ceticismo, muito bem contemplado pelo livro de Jos Raimundo Maia Neto, O ceticismo

    na obra de Machado de Assis. Tambm merecem meno Eunice Piazza Gai, com Sob o signo da incerteza,

    Paulo Margutti, com Machado, o brasileiro pirrnico?, e Gustavo Bernardo Krause, autor de O Bruxo contra o Comunista, dentre outros artigos. Sem me opor a essas interpretaes do ceticismo na obra de Machado, gostaria, entretanto, de ressaltar que o fato de os narradores assumirem uma postura ctica no impede que o

    niilismo aparea em sua obra.

  • 26

    Assis, se endossa os esconjuros do illustre namorado de Virgilia; no terceiro

    tem posto, mais ou menos conspicuo meu saudoso Tobias Barreto, e digo

    mais ou menos conspicuo, porque elle na escala do pessimismo no chegou

    ao degrau em que se sentaram Schopenhauer, Byron, Leopardi e Hartmann.

    Em todo caso, seu pessimismo de natureza muito mais grave do que o de

    Machado de Assis. V-se, conhece-se que o philosopho sergipano, sobre os

    mais rduos problemas da vida, da religio, da moral, chegou at ao solio

    das negaes tremendas e absolutas. O sceptico e irreverente, que havia

    nelle, levava-o at ahi; mas o que nelle havia de sentimental e potico

    vedava-o de despenhar-se do alto no pelago sem fundo do nihilismo

    materialistico e pessimista. Apezar disto, existem paginas suas que so

    muito mais amargas do que todos os delrios de Cubas ou Borba ou Rubio

    juntos5.

    Slvio Romero, atento ao debate filosfico de seu tempo, um dos primeiros

    pensadores brasileiros a empregar o conceito de niilismo. Para o crtico sergipano, a obra do

    escritor carioca, a partir da publicao de Memrias pstumas de Brs Cubas, com seu tom

    pessimista, desgostoso e humorista, seria documento do estado de penria real pelo qual

    passava o Brasil: Machado de Assis , disse eu, um representante do esprito brasileiro, mas

    num momento mrbido, indeciso, annuviado, e por um modo incompleto, indirecto, e como

    que a medo6. Tal momento mrbido seria marcado pelo nihilismo materialistico,

    desbragado e sandeu to em moda entre os tolos de todos os feitios7. E, ao referir-se aos

    iniciados num certo pessimismo de pacotilha 8, Romero pontifica que o fecundo Machado

    de Assis chefe de fila. Tobias Barreto, em contrapartida, ofereceria uma reao positiva ao

    estado de misria intelectual do pas.

    Alcides Maya, com suas notas sobre o humour, publicadas em 1912, renovou a

    leitura da obra do escritor, ao abrir uma nova perspectiva crtica que viria fundamentar

    reflexes posteriores. O crtico gacho, centrando-se na anlise do humor machadiano,

    apontando e analisando os usos desse recurso em seus contos, romances e poemas, afirma que

    Machado, partindo de um princpio de celebrao do nada, faz uma profisso de f s

    avessas, manifesto platnico de niilismo9. Com uma dolorosa e spera sinceridade, Machado

    teria dado ao seu desespero uma expresso esttica:

    A tinta de Machado de Assis um violete de decadncia. Ele mais do que

    um homem triste, do que um vulto de raa frustrada: representa uma

    civilizao que de si prpria duvida [...] O desencanto a nota essencial do

    5 ROMERO. Machado de Assis, p. 299-300. Grifo meu. Faz-se necessrio um estudo do niilismo na obra de

    Tobias Barreto. 6 ROMERO. Machado de Assis, p. 121.

    7 ROMERO. Machado de Assis, p. 127.

    8 ROMERO. Machado de Assis, p. 307.

    9 MAYA. Machado de Assis, p. 29.

  • 27

    seu esprito; no tem iluses, nem as quer; deleita-se na incerteza e s a

    morte ainda o fascina. H nas suas pginas uma vibrao, talvez derradeira,

    de prazer quando verifica a vacuidade de tudo10

    .

    Maya assume uma posio crtica que se ope avaliao de Romero, com

    relao ao emprego do humour, ao mesmo tempo em que reflete sobre o lugar do escritor na

    histria da literatura brasileira. Enquanto o sergipano acusa o humor machadiano de

    artificialismo, o crtico gacho explica que o dito pessimismo de Machado de Assis exprime a

    sua viso tragicmica da vida. A prosa machadiana, ao mesmo tempo em que leva ao riso,

    apresenta uma complicada trama de fatores morais, que, alm de apontar as misrias do ser

    humano, revela a filosofia do autor, modelada com ironia e humour.

    Em 1938 Peregrino Jnior inaugurou a tradio que tratou do niilismo na

    perspectiva biogrfica. Em Doena e constituio de Machado de Assis, ele relacionou os

    supostos sintomas e caractersticas mrbidas do escritor disfemia e epilepsia a seu estilo e

    aos procedimentos literrios que lhe so prprios, tentando comprovar seu diagnstico com

    episdios da vida de Machado, alm de citaes de sua correspondncia e de suas obras

    ficcionais. O crtico-mdico conclui que

    Depois de Brs Cubas, porm, vai perdendo a serenidade, a atitude

    impassvel cede lugar a uma tendncia francamente niilista, e o masoquismo

    e o sadismo [...] se delineiam e entremostram em todos os seus romances [...]

    Duvidar e negar eis os verbos que ele conjuga em todos os livros da ltima fase

    11.

    Peregrino Jr. encontrou, na obra de Machado de Assis, nas formas de sua escrita,

    no seu estilo e nos seus temas, a confirmao do diagnstico e da constituio mrbida que

    ele havia imputado ao escritor. Fez exatamente aquilo que era o objetivo dos psicopatlogos

    de ento, que pretendiam chegar ao diagnstico das diferentes doenas mentais utilizando as

    produes de seus pacientes, buscando variedades especficas de formas visuais, escritas e

    sonoras, para cada doena. A esse viviseccionista do esprito poderamos avisar que o melhor

    , certamente, separar o artista da obra.

    Entre as dcadas de 1930 e 1950 o crtico Augusto Meyer dedicou-se a fazer uma

    sondagem moral da prosa madura de Machado e detectou a relao entre o humor corrosivo e

    a introspeco como caractersticas formais da obra machadiana. Em sua anlise, chama

    10

    MAYA. Machado de Assis, p. 29. 11

    PEREGRINO JUNIOR. Doena e constituio de Machado de Assis, p. 122-123. Grifo meu.

  • 28

    ateno a mistura dos conceitos de pirronismo e niilismo, que do uma caracterizao

    ambgua ao pessimismo de Machado de Assis:

    Por mais que ponha nas palavras uma graa incomparvel, cheia de perfdias

    finas e de pulos imprevistos, no sabe disfarar o pirronismo niilista que

    forma a raiz do seu pensamento. Com as diversas mscaras superpostas

    desse voluptuoso da acrobacia humorstica, podemos compor uma cara

    sombria a cara de um homem perdido em si mesmo e que no sabe rir. Perdido em si mesmo, isto , engaiolado na autodestruio do seu niilismo

    12.

    A inflexo crtica de Augusto Meyer, ousada para a poca, props o

    comparativismo de dois autores que eram, via de regra, tidos como antpodas, por

    temperamento, biografia, fatura literria e relao com a nacionalidade: Dostoievski e

    Machado.

    Com enfoque no homem subterrneo, Meyer leu as Memrias pstumas de Brs

    Cubas luz das Notas do subsolo, ressignificando a obra do escritor brasileiro.

    Indiretamente, porm, o russo machadianizou-se13, recebendo caractersticas inteiramente

    ausentes da recepo crtica anterior: ironia, malcia e humor, dimenses que, segundo Bruno

    Gomide, so importantes e subestimadas no estudo da fico de Dostoievski e do romance

    russo em geral, ainda que, na acepo de Meyer, fossem apenas mscaras a encobrir o

    niilismo de fundo.

    Em 1936 aparece o estudo crtico e biogrfico de Lcia Miguel Pereira que,

    apesar de no trabalhar com o conceito de niilismo, compreende Machado como um niilista e

    aponta para o mesmo ao comentar que H um gosto de cinza nos seus livros, as cinzas da

    inanidade de tudo, mas h tambm o sal das lgrimas e do sangue, o sangue do homem

    sofredor, as lgrimas do desespero que se sabe intil14. Segundo a autora, Machado, marcado

    por uma obsesso do nada, aceitou a falta de sentido da vida como um fato consumado,

    tornando-se um pessimista cuja obra alcanou a descrena total, no cu e na terra, em Deus e

    nos homens. Assim, ela interpreta o autor como um pessimista que quer destruir os valores

    estabelecidos e conclui que isso um sinal de fraqueza.

    De 1934 a 1959, Pereira dedicou-se obra de Machado de Assis. Seu estudo

    crtico e biogrfico, considerado referncia fundamental na fortuna crtica do autor, foi uma

    publicao decisiva para a guinada interpretativa de base psicolgica, que, se renovou a

    12

    MEYER. Machado de Assis, 1935-1958, p. 16. Grifo meu. 13

    GOMIDE. Da estepe caatinga, p. 464. 14

    PEREIRA. Machado de Assis, p. 27.

  • 29

    recepo da obra de Machado de Assis, tambm contribuiu para a propagao do clich

    romntico do artista doentio, mestio, gago e epiltico.

    Em 1940, Afrnio Coutinho publicou A filosofia de Machado de Assis, obra que

    busca investigar as fontes do pessimismo machadiano, determinando os antecedentes e

    motivos sociais, psicolgicos, intelectuais e hereditrios, provenientes da sua origem, da sua

    raa e da sua doena, que repercutiriam na concepo pessimista da vida, do homem e do

    mundo, na obra do patrono da ABL. Partindo da premissa de que o escritor era pessimista e s

    enxergava o lado mau da natureza humana, Coutinho conclui que justamente este o carter

    da filosofia de Machado, o sentido de niilismo total da sua concepo do mundo15.

    Coutinho, em sua tentativa de interpretao do problema psicossocial do mestio

    brasileiro, repleta de preconceitos, profere uma srie de improprios, dentre os quais ele

    afirma que O autor de Helena foi um caso tpico de ressentimento mulato16. O resultado

    que se deixa a ltima pgina com uma intensa decepo, avalia Srgio Buarque de Holanda,

    para quem A filosofia de Machado de Assis uma obra marcada por uma fragilidade to

    patente dos seus argumentos em favor de uma tese artificial e forada17.

    Em 1958, o militante comunista Octvio Brando publicou O niilista Machado de

    Assis, primeira e, at agora, nica obra dedicada ao tema. O livro apresenta uma anlise

    biogrfica impressionista por meio da qual, ao atribuir o niilismo como um defeito tanto do

    autor quanto da obra, tenta desqualificar o escritor:

    Machado de Assis no se limitou ao pessimismo vulgar. Mergulhou num

    abismo sem fundo, ainda mais lbrego e lgubre o niilismo [...] Era ateu. Mas seu atesmo no servia absolutamente para nada. Levava ao niilismo negao de tudo quanto existe de positivo na vida e no universo, na histria e

    na sociedade. [...] Antes e depois da primeira guerra mundial, os livros de

    Machado de Assis e de outros literatos exerceram uma influncia

    profundamente perniciosa. Ameaaram as foras vivas da Nao brasileira.

    Envenenaram a conscincia de muitos intelectuais, com o ceticismo, o

    pessimismo e o niilismo18

    .

    Em artigo de 27 de dezembro de 1958, Otto Maria Carpeaux j respondia ao autor

    do livro recm-lanado: No me refiro ao Sr. Otvio Brando, que, pretendendo denunciar o

    niilismo de Machado de Assis, apenas conseguiu demonstrar seu prprio niilismo literrio19.

    Embora claramente secundrio dentro da fortuna crtica machadiana, o livro de Brando teve

    15

    COUTINHO. A filosofia de Machado de Assis, p. 52. 16

    COUTINHO. A filosofia de Machado de Assis, p. 87. 17

    HOLANDA. A filosofia de Machado de Assis, p. 312. 18

    BRANDO. O niilista Machado de Assis, p. 152-153. 19

    CARPEAUX. Vrias histrias, p. 454.

  • 30

    o mrito de levantar a discusso sobre o tema do niilismo na obra de Machado de Assis. No

    entanto, o pressentimento da importncia do conceito de niilismo para a compreenso da obra

    machadiana desproporcional capacidade analtica para esclarec-lo. O crtico l Brs

    Cubas e entende Machado, sem perceber que o niilismo do narrador submetido ironia do

    autor. Ou ainda: se alguns narradores e personagens so niilistas, o escritor no

    necessariamente o , e ironiza esse niilismo.

    Em 2007, Gustavo Bernardo Krause escreveu uma rplica tardia ao livro de

    Octvio Brando. Em contraponto ao autor de O niilista Machado de Assis, que iguala os

    termos ceticismo, niilismo, cinismo e pessimismo com o intuito de desqualificar a obra do

    escritor brasileiro, o artigo O Bruxo contra o Comunista procura demonstrar que esses

    termos designam filosofias muito diferentes, a fim de sustentar que o valor artstico da obra

    machadiana deriva precisamente de seu ceticismo. Krause conclui que a incompreendida

    postura ctica do autor e de seus personagens, ao colocar uma srie de problemas morais,

    motiva contra Machado a acusao de acomodado, reacionrio ou niilista20.

    Entre as dcadas de 1950 e 1970, Dirce Cortes Riedel dedicou dois estudos obra

    de Machado: O tempo no romance machadiano (1959) e Metfora, o espelho de Machado de

    Assis (1974). No primeiro, analisa a concepo machadiana de tempo, observando as formas

    que tal concepo assumiu em sua fico. No segundo, investiga as metforas constantes na

    obra machadiana e observa que o escritor foi caracterizado como niilista por causa da

    crueldade lcida do seu humor: Por ter jogado com essa dubiedade do ser humano, e no ter

    acreditado na integridade do bem, que Machado tido por niilista e cruel21.

    Em 1987, Roberto Schwarz defende que o Machado da chamada segunda fase, ao

    criar narradores que pertencem elite e reproduzem seus valores, passa a representar a vida

    social brasileira pelo ngulo da classe dominante, revelando, assim, todas as suas iniquidades:

    Em lugar da viso positiva, a viso desabusada, cujo propsito no de

    criticar, mas de conferir o brilho e a tranquilidade da inteligncia sem peias:

    a compreenso da mecnica social como que uma consolao para a falta

    de sentido desta e para os seus horrores. Ainda aqui Machado fazia trabalho

    civilizador, pois o seu pessimismo dava dignidade e equilbrio ao sentimento

    de impasse em que se debatiam as nossas elites liberais, escravocratas e

    paternalistas. Uma arte nihilista, mas no maldita22

    .

    20

    KRAUSE. O Bruxo contra o Comunista, p. 239. 21

    RIEDEL. Tempo e metfora em Machado de Assis, p. 49. Este volume rene as duas obras supracitadas. 22

    SCHWARZ. Que horas so?, p. 178. Grifo meu.

  • 31

    A tese de Schwarz ganha corpo com a publicao de Um mestre na periferia do

    capitalismo (2000), obra que apresenta uma consistente anlise sociolgica da articulao

    entre forma literria e processo social no Brasil. Ele examina a relao estabelecida entre

    esttica e ideologia no desenvolvimento do capitalismo, bem como a ambivalncia entre

    iderio burgus e paternalismo, inscrita na conduta dos grupos sociais do sculo XIX: A

    funcionalidade da barbrie colonial para o progresso das elites brasileiras est no centro do

    humor e do nihilismo machadianos23.

    As categorias examinadas por Schwarz se associam a perspectivas de

    interpretao voltadas para conexes entre literatura e pensamento social no Brasil. O enfoque

    do crtico a anlise da volubilidade como princpio formal da narrativa do defunto autor

    Brs Cubas. Sua pena da galhofa seria a estilizao de uma conduta prpria classe

    dominante brasileira, caracterizada por abuso, arrogncia, interrupes e agresses ao leitor:

    Com efeito, no h chave de que Brs no se valha para decifrar e reduzir a nada os

    movimentos da volubilidade, donde uma espcie de nihilismo ecltico, a que no falta o trao

    de comdia24.

    Em 1988, Ktia Muricy, com A razo ctica, procura situar o vnculo do

    pessimismo de Machado de Assis com as questes de seu tempo. A partir dessa abordagem, a

    autora mostra como o escritor construiu uma crtica ctica s transformaes da sociedade

    brasileira oitocentista. A obra do autor estaria voltada para o advento da racionalidade

    burguesa no perodo em que a sociedade carioca importava os valores da modernidade

    europeia. A propsito de tais transformaes, Muricy faz uma nica meno a esse conceito-

    chave, mas para descartar sua atribuio prosa machadiana:

    O descrdito dos valores culturais e ticos da nossa cultura, caracterstica

    radical em Machado de Assis, est presente de forma exemplar em

    Memrias pstumas de Brs Cubas. O descrdito no resulta de um

    ceticismo, compreendido como marca psicolgica do autor; tampouco

    efeito da diluio de algum niilismo do sculo. Resulta antes da trama de um

    texto capaz de desnudar as articulaes do poder na nova sociedade

    brasileira do sculo XIX25

    .

    Em 1989, Jos Guilherme Merquior apresenta uma conferncia sobre a recepo

    crtica da obra de Machado, interpretando a viso de mundo do escritor como ctica e niilista,

    pelo uso radical de certo tipo de pessimismo, por um lado, e pelo humor corrosivo, por outro:

    23

    SCHWARZ. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 128. 24

    SCHWARZ. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 207. Grifo do original. 25

    MURICY. A razo ctica, p. 110.

  • 32

    Para Machado no a individualidade na sua prpria essncia que constitui

    o problema; so outras coisas, sobretudo o embate dos apetites, uma

    viso que desqualifica todas as ambies, todos os apetites, todos os

    impulsos, em nome de uma possvel contemplao esttica de tipo nirvanista

    e, em ltima anlise, de tipo niilista; o famoso niilismo de Machado26

    .

    Merquior vai da crtica biogrfica, que discute o aspecto da mobilidade social em

    Machado de Assis, abordagem de tipo sociolgico, passando por comentrios sobre as

    influncias estilsticas e filosficas do escritor, concluindo que a fico machadiana levanta

    uma viso eminentemente corrosiva e negativa da realidade social brasileira e da realidade

    humana, atravs do prisma do contexto social especfico.

    No mesmo ano, 1989, Enylton S Rego publicou O calundu e a panaceia,

    primeira obra da fortuna crtica machadiana que analisa sistematicamente as relaes entre a

    prosa madura de Machado e a stira menipeia gnero criado por Menipo de Gadara no

    sculo III a.C. e retomado pelo srio helenizado Luciano de Samsata no sculo II de nossa

    era. Detendo-se, sobretudo, em Luciano, Menipo e seus seguidores modernos, como Robert

    Burton e Laurence Sterne, Rego documenta a insero do escritor brasileiro na chamada

    tradio lucinica:

    Foi tambm nossa inteno demonstrar que algumas questes levantadas

    desde o sculo dezenove pela crtica literria brasileira com relao obra de

    Machado reproduzem exatamente as questes sistematicamente colocadas

    pelos textos pertencentes tradio da stira menipeia. De fato, ao apontar

    na obra de Machado sua grande dificuldade de classificao genrica, seu

    carter fragmentrio e antidiscursivo, suas citaes truncadas e seu contedo

    parodstico, seu ponto de vista irnico e distanciado, e ao julg-la como

    moralmente duvidosa, pessimista ou niilista, os crticos estavam de certa

    forma repetindo as observaes feitas pela crtica tradicional aos textos de

    Varro, Sneca, Luciano, Erasmo, Burton e Sterne, eminentes escritores da

    tradio menipeia ou lucinica27

    .

    Rego chama ateno para uma caracterstica recorrente na obra machadiana, a de

    ser um texto hbrido, em que se misturam a seriedade e a comicidade, e resulta na mesma

    espcie de stira e de riso filosfico pretendidos por Luciano, que visava sempre denncia e

    crtica das mazelas sociais e dos vcios humanos. O pessimismo apenas aparente isto ,

    um pessimismo ou niilismo presente enquanto perspectiva a ser galhofada.

    Em 1999, Alfredo Bosi publicou Machado de Assis: o enigma do olhar, livro que

    rene quatro ensaios: dois inditos e dois publicados na dcada de setenta. O tema central o

    26

    MERQUIOR. Machado em perspectiva, s. p. Grifos meus. 27

    REGO. O calundu e a panaceia, p. 189. Grifos meus. Para uma compreenso geral da obra de Luciano, cf.

    BRANDO. A potica do Hipocentauro.

  • 33

    foco narrativo do autor. O olhar machadiano, segundo o crtico, est voltado para o

    comportamento humano, mais especificamente para a percepo de palavras, pensamentos,

    obras e silncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo

    Imprio.

    Segundo Bosi, o olhar com que Machado penetra nos meandros da sociedade

    fluminense de seu tempo mostra a decomposio do sistema escravista, com a permanncia da

    estrutura social assimtrica e injusta. Prevalece o egosmo das classes dirigentes e a

    disparidade das relaes sociais: Nada, porm, impedir que a corrente da vida individual

    desgue na morte e no nada: o legado da misria o de toda gente, no excludos os

    cavalheiros ricos e ociosos como Brs Cubas28.

    Apesar de destacar o pessimismo machadiano, na nica vez em que faz uso do

    conceito de niilismo, Bosi nega a atribuio do epteto ao escritor, caracterizando-o como

    ctico: o caso de Machado de Assis, que apenas relativiza o que vulgarmente aparece sob a

    veste de bem ou de mal, de verdadeiro ou de falso, assim fazendo, nada afirma nem denega

    com o ar peremptrio dos dogmticos ou dos niilistas29.

    Em 2008, Patrick Pessoa, com A segunda vida de Brs Cubas, parte do princpio,

    formulado por Friedrich Schlegel, de que toda interpretao filosfica deve ser ao mesmo

    tempo uma filosofia da interpretao. Respeitando a autonomia do texto ficcional, Pessoa

    prope uma leitura fenomenolgica da narrativa do defunto autor, visando suspender os pr-

    conceitos que ele atribui fortuna crtica machadiana. Sua nica meno ao niilismo

    encontra-se na introduo de seu livro:

    Como seria possvel compatibilizar uma interpretao que, inspirada pela

    fenomenologia de Heidegger, descobre afinidades entre Brs Cubas e o

    homem do subsolo dostoievskiano, explicitando o modo como suas

    memrias pstumas constituem uma negao sistemtica da existncia, e o

    prazer esttico que esse autntico monumento ao niilismo e ao ressentimento

    capaz de provocar?30

    A obra de Pessoa, denso exerccio de interpretao do romance Memrias

    pstumas de Brs Cubas, oferece contribuies importantes para esta pesquisa. No entanto, a

    prpria estrutura de uma tese de doutorado, da qual se origina o livro, que exige a delimitao

    do tema, gerou inevitavelmente uma lacuna em sua descrio fenomenolgica. Seu estudo

    bem fundamentado da melancolia, da ironia trgica, da volpia do aborrecimento, da

    28

    BOSI. Machado de Assis: o enigma do olhar, p. 155. 29

    BOSI. Machado de Assis: o enigma do olhar, p. 44. 30

    PESSOA. A segunda vida de Brs Cubas, p. 44. Grifo meu.

  • 34

    solidariedade do aborrecimento humano e do desdm dos finados aborda a voluptuosidade do

    nada a partir de sua relao com as noes supracitadas, mas no inclui um estudo do

    niilismo.

    Em 200931

    , o livro Serenidade e fria: o sublime assismachadiano, de Ravel

    Giordano Paz, renovou a recepo crtica da poesia machadiana, dedicando-se a resgatar o

    dilogo vivo do escritor carioca com o Romantismo, sob o prisma de um conceito

    preeminente na esttica romntica: o sublime. O ponto crtico do trabalho a hiptese de que

    a arte de Machado de Assis mais fiel ao sublime romntico do que o prprio romantismo

    pde ser. Tratando-se, aqui, de uma fidelidade sentimental e livre (libertria), na medida em

    que o escritor carioca mobiliza o sublime em sua instabilidade constitutiva.

    Giordano Paz mostra que o sublime machadiano se configura como herana e

    problematizao do idealismo romntico dos filsofos e escritores europeus. A tenso entre

    vida e morte, constitutiva do sublime romntico, seria um componente fundamental da obra

    machadiana, visvel em sua implacvel desmistificao do sentimentalismo romntico e na

    constatao de uma misria universal, que o amor, longe de redimir, agrava: A esse respeito,

    o lugar ocupado pela filosofia de Quincas Borba nos dois romances em que ela se faz presente

    bastante sugestivo: tentando superar esse niilismo, tambm ela no faz seno agrav-lo32.

    Em 2012, Luis Eustquio Soares publicou um estudo dedicado ao tema do

    niilismo, o terceiro na histria da recepo crtica machadiana. Seu artigo Cinismo, niilismo

    e utopia aborda o carter paradigmtico do niilismo na obra de Machado, apresentando uma

    breve e sugestiva anlise da problemtica em questo. Soares avalia que o niilismo o

    dispositivo atravs do qual tentamos nos fazer modernos destacando a morte num mundo sem

    Deus e, por conseguinte, sem salvao na vida eterna: O niilismo espalha a morte em tudo

    porque sabe que tudo que reluz no o ouro da eternidade, mas a respirao do que morre,

    morrer33.

    Soares observa que o autor de Memrias Pstumas de Brs Cubas constitui um

    exemplo singular de uso criativo do niilismo na fico brasileira, na medida em que

    desconstri mitos, verdades e valores, no deixando pedra sobre pedra, a fim de fazer valer a

    onipresena da morte:

    31

    Em 2009, eu publiquei um artigo cujos argumentos j eram, no essencial, os mesmos que posteriormente

    apresentei no anteprojeto que deu origem a esta tese. O trabalho o primeiro, aps o de Octvio Brando,

    dedicado ao tema do niilismo na obra de Machado de Assis. Cf. SANTOS. Nietzsche, Machado e o niilismo. 32

    PAZ. Serenidade e fria, p. 169. 33

    SOARES. Cinismo, niilismo e utopia, s. p.

  • 35

    tal como o defunto autor/narrador de Memrias Pstumas de Brs Cubas,

    o ponto de vista da morte, logo do niilismo, que cria o contexto favorvel

    para que, cinicamente, ela, a morte, quando nos observa mortalmente, venha

    a rir, sem vergonha alguma, de nossas vs atribulaes, preocupaes,

    apegos, verdades, idealizaes, desprezos, autodesculpas, hipocrisias,

    roubos, limitaes34

    .

    Controvrsias parte, os leitores de Machado reconhecem a relao de sua

    literatura com o niilismo, galhofeiramente identificado na expresso voluptuosidade do

    nada conforme as palavras que Pandora dirige a Brs Cubas em seu delrio. Entretanto,

    nenhum dos crticos supracitados preocupou-se em aprofundar uma teoria do niilismo. Tal

    lacuna o que esta tese tenta preencher, mostrando que, no tratamento ficcional, o niilismo

    limado, ganhando algumas caractersticas e perdendo outras. Mas essa reviso bibliogrfica

    no se encerra com a celebrao da falncia do olhar crtico sobre o tema do niilismo na obra

    de Machado de Assis. Os autores supracitados detectaram aspectos cruciais da fico

    machadiana, alguns dos quais coincidem com as preocupaes mais profundas desta tese. No

    entanto, as descobertas dos crticos mostram a indefinio do que seriam o niilismo e o

    escritor a ele filiado, de forma que se mostra pertinente buscar a resposta na obra do prprio

    Machado.

    A ausncia de um mergulho mais profundo na abordagem do niilismo por parte da

    fortuna crtica machadiana reside no fato de no se ter levado em conta a histria e os

    desdobramentos do conceito filosfico em questo. Tal empreendimento ser cumprido nos

    captulos seguintes, que traam uma histria do niilismo no sculo XIX, investigando suas

    origens, seu desenvolvimento na Europa oitocentista e o modo como Machado de Assis

    maneja ficcional e filosoficamente tal conceito em suas obras.

    34

    SOARES. Cinismo, niilismo e utopia, s. p.

  • 36

    1.2. Nenhuma filosofia?

    O teor filosfico inerente obra de Machado de Assis ocupa, desde o incio de sua

    recepo, os leitores crticos. Uma vez que o campo recepcional da obra machadiana o mais

    amplo da literatura brasileira, nessa tentativa de encontro do literrio com o filosfico a

    profcua fortuna crtica do escritor percorreu diversos caminhos e alcanou diferentes

    respostas. De minha parte, busco identificar algumas das possibilidades abertas ao

    pensamento filosfico pela obra de Machado de Assis, tendo em vista o fenmeno do

    niilismo.

    Uma cautela se impe de imediato: Jeanne Marie Gagnebin alerta que o estudo da

    presena de teorias ou conceitos filosficos em obras literrias, apesar de vlido e til,

    limitado e s poder vir a constatar que na fico de qualquer escritor os conceitos filosficos

    so transformados pela forma literria (por natureza imprecisa, metafrica) e no

    correspondem exatamente s suas fontes originais:

    Uma abordagem bastante comum da problemtica filosofia/literatura

    consiste em analisar a presena de teorias ou de doutrinas filosficas na obra

    de um escritor ou de um poeta: por exemplo, a presena de Spinoza em

    Goethe, de Schopenhauer ou Bergson em Proust, de Adorno ou Nietzsche

    em Thomas Mann, de Heidegger em Clarice Lispector. No nego o interesse

    dessas anlises quando apontam para a elaborao esttica de elementos

    histricos singulares, retomados e transformados pela escritura literria. Mas

    trata-se, ento, de tambm mostrar como se do, na obra literria especfica,

    tal retomada e tal transformao, isto , no s quais contedos filosficos esto presentes ali, mas como so transformados em contedos literrios35.

    Advirto que o leitor no encontrar aqui um estudo das fontes filosficas de

    Machado, tampouco uma interpretao da obra machadiana luz de algum filsofo ou

    terico. Tambm no defendo a simples aplicao instrumental de conceitos filosficos na

    anlise de sua obra, porque o texto ficcional no pode ser mero suporte de uma leitura

    filosfica. Como o contedo filosfico o problema do niilismo se transforma em contedo

    literrio na prosa de Machado de Assis o que vamos descobrir no decorrer desta tese.

    Considerando-se que literatura e filosofia so duas ordens de discurso distintas,

    importa dizer que o leitor no receber de antemo uma proposio normativa sobre as

    diferenas e os domnios respectivos dos discursos literrio e filosfico, porque, se

    35

    GAGNEBIN. Lembrar escrever esquecer, p. 201.

  • 37

    reconhecidas essas diferenas, as obras de Machado as desafiam, conjugando filosofia e

    literatura de tal modo que contedo filosfico e forma literria tornam-se indissociveis a

    ficcionalidade da teoria e a fora terica da fico criam uma porosidade entre literatura e

    filosofia.

    Aceitando-se que as diferenas e semelhanas articulam-se num terreno mvel, o

    que no se deve confundir com a defesa ingnua da superposio do ficcional sobre outras

    formas de discurso, cuja autonomia, diferena e finalidade permanecem, em cada caso,

    resguardadas36, e evitando tomar literatura e filosofia como categorias universais, a tese toma

    forma a partir da colaborao entre essas duas disciplinas, buscando os seus diversos pontos

    de entrelaamento.

    Tomemos ento um caso exemplar de entrelaamento entre literatura e filosofia, o

    de Benedito Nunes, autodeclarado hbrido de crtico literrio e filsofo. Ele ensina a no

    aplicar a filosofia ao conhecimento da literatura, na tentativa de uma pretensa crtica

    filosfica. Tampouco, recomenda Nunes, se deve fazer da literatura um instrumento de

    figurao de teorias, reduzindo o exerccio crtico parfrase do pensamento de filsofos. Sob

    o foco prioritrio da estrutura narrativa da obra literria, preciso buscar a verdade da obra

    enquanto fico: Nada melhor do que o seu modus operandi, o seu como, para nos dar uma

    ideia da exigncia de verdade que a norteia37.

    Mas deixemos com Machado de Assis a ltima palavra a respeito. Para

    atentarmos aos pontos de entrelaamento entre as experincias literria e filosfica na prosa

    machadiana, no podemos perder de vista o contexto social. No sculo XIX mais de 70% da

    populao brasileira era analfabeta, as referncias culturais da elite estavam do outro lado do

    oceano e o acesso informao era difcil e restrito a poucos, o que determinou condies

    adversas para o florescimento da literatura e da filosofia, assim como para a produo e

    circulao de bens culturais. Por isso, no surpreende que os livros fossem lanados ao

    pblico como pedras ao poo, fato de que os escritores desde cedo se ressentiram38.

    No primeiro recenseamento geral do Imprio do Brasil, em 1872, foi apresentado

    um quadro da populao livre considerada em relao ao sexo, estado civil, raa, religio,

    nacionalidade e grau de instruo, arranhando a imagem ufanista construda pelo discurso

    oficial e reforada por muitos escritores romnticos. Hlio de Seixas Guimares, em seu

    estudo sobre o pblico de literatura do Oitocentos, resume o resultado do referido censo:

    36

    FREITAS. Contradies da modernidade, p. 20. 37

    NUNES. No tempo do niilismo e outros ensaios, p. 198. 38

    GUIMARES. Os leitores de Machado de Assis, p. 69.

  • 38

    Em 1872, apenas 18,6% da populao livre e 15,7% da populao total,

    incluindo os escravos, sabiam ler e escrever, segundo os dados do

    recenseamento; entre a populao em idade escolar (6 a 15 anos), que

    somava 1.902.454 meninos e meninas, apenas 320.749 frequentavam

    escolas, ou seja, 16,9%. J em 1890, a porcentagem diminuiu: apenas 14,8%

    sabiam ler e escrever. Ainda segundo o censo de 1872, que apurou uma

    populao de quase 10 milhes de habitantes, apenas 12 mil frequentavam a

    educao secundria e havia 8 mil bacharis no pas. Esses dados indicam o

    leitorado potencial, o que significa que o nmero de pessoas efetivamente

    capazes de ler e escrever era certamente muito menor39

    .

    O esforo de interlocuo com o minguado pblico leitor foi uma constante nas

    narrativas de Machado. Exemplar o defunto autor Brs Cubas, que recorrentemente

    interrompe a narrativa e se dirige ao leitor, mesmo que de modo agressivo e irnico. A

    evocao e a qualificao do ledor chegam a ser obsessivas, transformando a sua escassez em

    princpio de escrita: fino leitor (prlogo), leitor amigo (cap. XV), leitor circunspecto (XXXII),

    amado leitor (XLIX), leitor obtuso (XLIX), leitora plida (LXIII), curioso leitor (LX