prosa&cinema 2

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ANO 1 - EDIÇÃO 1 - 30 DE SETEMBRO DE 2010

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Nesta ediçÞao procuramos personagens que remetessem a estoria classica de Ziraldo, o Menino Maluquinho, filme de 1993. Confira

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Menino Maluquinho pode ser conside-rado um retrato da infância, do ser me-nino. O olhar sapeca, o jeito levado, as brincadeiras e suas aventuras marcaram muitas gerações. Em 1994, depois de ins-pirar histórias em quadrinhos, peças tea-trais, foi a vez do garoto com a panela na cabeça ir parar nas telonas. “Menino Ma-luquinho – O filme” dirigido por Helvécio Ratton consegue mostrar as características do personagem sem buscar clichês.

O tempo do filme é o final dos anos 60. Maluquinho vive suas aventuras com a turma: Bocão, Junin, Lúcio, Her-man, Julieta, Carol e Nina. Brincalhão, esperto e leva-do, ele teve a sorte de nas-cer em uma família que lhe dá carinho e permite reali-zar todas as suas fantasias. Por outro lado, se depara com a difícil separação dos seus pais. Mas em nenhum momento, Maluquinho deixa que a tristeza seja maior que a alegria da infância.

As cenas mostram em grande parte a diversão de crianças da classe média. Cor-ridas de carrinho de rolimã, travessuras na escola e em casa, guerras de travesseiro, torneios de puns e arrotos fazem parte do cotidiano da garotada. No longa tudo isso aparece em uma sequência interessante, pois ao mesmo tempo que dá relevo a es-

ENSAIO EDITORIAL

Trabalho realizado para a disciplina de “Práticas em Jornalismo Impresso”

do 4º período do curso de Jornalismo da Faculdade Assis Gurgacz.

Jornalista responsável/Professora: Franciele Luzia de Oliveira

Acadêmicos: Douglas Fernando Barros , Maria Fernanda Kusmirski , Maycon

Corazza e Pedro de Brito Sarolli.

Projeto Gráfico: Douglas Fernando

Contato: (45) 8405-2725 / (44) 9960 - 4654

E-mail: [email protected]

ses fatos, não os torna exaustivos. Mescla-do a tudo isso estão dois pontos que mere-cem destaque: a relação que Maluquinho tem com o avô, Passarinho, e com a amiga e empregada, Irene.

O menino encontra na funcionária uma segunda mãe e no avô um baú aberto, cheio de travessuras. Maluquinho chega a ligar para Passarinho (enquanto ele ainda não havia aparecido na história) pergun-tando sobre como fazer uma pegadinha, que ele já não se lembrava mais. O avô ex-

plica os detalhes e logo Malu-quinho está envolvido em uma verdadeira trapalhada. Essa re-lação se intensifica ainda mais, quando Passarinho vem até a casa do neto e convida toda a turma para passar alguns dias com ele na sua propriedade.

No sitio acontece os mo-mentos mais emocionantes do filme. A força da amiza-de na infância e essa rela-ção avós e neto ficam ainda

mais evidenciados. O longa-me-tragem com duração de 83 minutos não deixa espaços em branco, preenche todos com muita cor e brilho. A pureza dos fatos retratados meche com qualquer um, crian-ça ou não. Quando os créditos começam a subir na tela a infância é vista com mais valor e apreciação, como fase essencial da formação do ser humano, talvez, a mais proveitosa.

Expediente

Mal tínhamos termina-do a primeira edição de “Prosa&Cinema” e já estáva-mos arquitetando o que viria pela frente. Afinal, o segundo passo tem que ser mais firme que o primeiro para uma boa caminhada. Pensando nisso e acima de tudo em você leitor, dedicamos grande parte do nosso tempo a discussões so-bre a escolha do filme e depois, das pautas que encheriam as páginas desta edição. “Menino Maluquinho – o Filme” apare-ceu como opção destaque e se confirmou como escolha.

O personagem criado por Ziraldo há exatamente 30 anos representa toda uma geração. Durante anos e ainda hoje, ele é símbolo da criança bra-sileira, do ser moleque, do ter infância. Nada mais merecido, portanto, que usar as páginas dessa revista para retratar his-tórias reais que se confundem com o mundo do Maluquinho. Convidamos você leitor para conhecer o nosso cardápio, apreciar nossas produções e ver que de maluquinho todo mundo tem um pouco.

REPRODUÇÃO

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PROFISSÃO SEGUNDA MÃEEra para Bel ser apenas funcionária, mas acabou se tornando membro da família que a contratou.

MENINO MALUQUINHO TEM CABELOS BRANCOS Conheça um Maluquinho que não viu o tempo passar e mesmo com xx anos conti-nua com muita energia e jeito de garoto.

UMA AMIZADE É ...Uma amizade que nasceu de um mero acaso e que é viva até hoje. Descubra!

COISA QUE BRINQUEDO NÃO ENTENDEUm brinquedo ganha voz e fala como foi o dia em que viu seu dono passar por um momento difícil.

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14 // PROFISSÃO SEGUNDA MÃE

SEGUNDA MÃESEGUNDA MÃEM

AYCO

N C

ORA

ZZA

Os primeiros passos de um filho significam muito para qualquer mãe. Para uma segunda mãe não é diferen-te. Fica na memória o cenário, trajeto, feição e tudo aquilo que compôs aquele momento. “Foi na avó dela. Ela se levantou do chão, se apoiou em um banco e deu os primeiros passos”. A fala é de Maria Elizabeth de Jesus de 45 anos, mais conhecida como Bel. A caminhada tinha como protagonista Mariana Casagrande que atualmente tem 19 anos .

PROFISSÃO

por Maycon Corazza

04 // PROFISSÃO SEGUNDA MÃE

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Era tarde de quinta-feira quando minhas ferramentas de trabalho co-meçaram a ser usadas. As persona-gens da história estavam sentadas lado a lado. O vento passava pela va-randa e nos brindava com a sua rápi-da visita. Em cima da mesa algumas fotografias mostravam uma Mariana pequena e uma Bel de estilo diferen-te.

– Que cabelo estranho Bel, olha só – disse Mariana, apontando para uma das fotografias.

– Ah, agora você acha feio – brin-cou Bel.

Sorrisos e muito falatório ocupa-ram os primeiros minutos do en-contro. A forma como elas agiram naquela fração do tempo pré-entre-vista já disse muito sobre a história delas. Os olhares esbanjavam amor, carinho, afeto. Dava para perceber que era tudo muito puro, natural.

Comecei a perguntar tentando resgatar do fundo da memória de Bel e Mariana os detalhes da história da relação delas. Como a funcionária se tornou segunda-mãe da neta da patroa? Aos poucos, minha dúvida foi sendo esclarecida.

Tudo começou em 1982 quando Bel, no auge de seus 17 anos, saiu da fazenda em que morava, na região de Santa Helena, Oeste do Estado, tendo como destino final a cidade serpente. Convidada para trabalhar na casa de Maria Valderez Torres Rodrigues, partiu em busca de uma vida melhor. O interesse da família por Bel surgiu graças ao senhor Luiz Rodrigues dos Prazeres que já co-nhecia a garota e a família dela.

“Foi uma fase difícil por causa da adaptação. Eu já conhecia o avô da Mariana, mas a dona Valderez não.

Então no começo eu tive um pouco de dificuldade, até porque tinha vindo da fazenda, mundo totalmente diferente”, relembra Bel. Naquela época ainda era comum as empregadas morarem com os patrões. Foi assim com Bel. Na casa ela fazia de tudo, desde limpar e passar até ir ao banco.

Em pouco tempo começou a se en-turmar com os filhos da patroa: quatro no total – duas garotas e dois garotos. A relação logo se concretizou e se tor-nou amizade. “Me dava bem com todo mundo.” Mas foi com Lucimar, na épo-

ca com 18 anos, que Bel mais se ape-gou.

“Não tem nada que eu não saiba da vida da Lucimar. Passei com ela por to-dos os momentos”, disse Bel. Lucimar se casou pela primeira vez aos 19 anos. Seis anos depois estava separada. Quando completou 27 anos se casou novamente, grávida da Mariana.

“Antes da Mariana nascer tinha o primo dela, o Guto. Eu sempre gostei de criança, sabe? Aí logo quando a Mariana nasceu eu já comecei a cui-dar dela. A Lucimar sempre foi muito

MAYCON CORAZZA

pROFISSÃO SEGUNDA MÃE // 05

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trabalhadora. Nunca ficou desempre-gada. Nunca dependeu de seguro de-semprego. Aí a Mariana ficava comigo. Eu fazia de tudo, levava na escola, ia passear”, diz Bel.

Hoje, Bel é uma senhora de rosto sereno. Deixou os trabalhos na casa da dona Valderez há dois anos. Agora ela é chefe de cozinha. “Em um daqueles restaurantes noturnos, sabe?”, tentou explicar Mariana. Mas mesmo sem estar oficialmente junto à família, Bel continua participando de tudo o que acontece.

“A gente está sempre se falando. Eu ligo pra ela ou ela me liga. Aí a gente conversa, coloca as coisas em dia. Deu saudade eu ligo pra ela”, disse Maria-na. Durante a entrevista as duas esta-vam sempre se olhando, se tocando. As cadeiras separadas não impediram que estivessem próximas durante todo o tempo. Do lugar onde eu me sentei via Mariana e depois Bel, exatamen-te nessa ordem. Ao fundo uma rede branca e um pedaço da piscina; aos lados eu via as janelas e as portas de

acesso a residência.Na atual casa da Mariana, Bel só

aparece como visita. A mulher de pele negra, lábios pintados de batom ver-melho constituiu a própria família: é casada, tem duas filhas, uma de 15 e a outro de 3 anos. A experiência que teve com os pequenos dos outros serviu na hora em que vieram os dela. Hoje Bel, fala de infância com muita proprieda-de. “Criança tem que ter infância de verdade: pé no chão. Tem que aprovei-tar, com carrinho de rolimã, com tudo”, passa a receita.

Quando Bel afirmou isso, me recor-dei do filme do Maluquinho. O garoto sapeca, correndo pela casa, provocan-do a funcionária Irene, confidenciando segredos. É o trabalho da ficção brasi-leira que resiste ao tempo, mostrando uma infância que infelizmente aos pou-cos está acabando. Ter pessoas como a “Irene cascavelense” é coisa rara.

O tempo passou, e a segunda mãe teve que acompanhar as mudanças, principalmente da “filha mais velha”. Mariana não gosta mais de brincar

de boneca, nem de se su-jar com barro para distrair. Agora ela sai sozinha à noi-te, e de carro; faz faculdade

e tem problemas amo-rosos. Enfim, a bebê agora é mulher: loira, olhos claros, sorriso

bonito. “Nossa sinto muita saudades da

minha infância”, confessa Mariana. No trajeto até o local da entrevista, mais uma vez a “mãezona” precisou colocar em prática sua experiência.

- Você se lembra do que eu te falei sobre o seu ex-namorado? – pergun-tou Bel, sorrindo.

- Disse para eu seguir o meu coração – falou Mariana.

- Eu me lembro dessa menina bri-gando com o primeiro namorado dela – Bel emendou na conversa – Ela ligou para o pai desesperada, parecia que estava morrendo. Tudo por causa de uma coisa boba.

Bel não demonstrou pela voz, ou por qualquer outro fator ter tido uma vida sofrida. A infância ela classificou como “normal”. Porém, quase no final da en-trevista ela confessou ter sim, sofrido quando criança.

“Eu fui abandonada pela minha mãe. Eu não a conheci. Eu não tive mãe em nenhum momento da minha vida. Eu só tive pai. Ela [minha mãe] foi embo-ra quando eu tinha oito meses. Eu fui a conhecer quando eu tinha 19 anos. Então o carinho que não tive, passei tudo para essas meninas. Não tratei do jeito que eu fui criada, porque fui criada com madrasta”, contou Bel, sem demonstrar fraqueza.

Mariana sabe da importância da re-lação das duas. Entende e valoriza aqui-lo que passaram e passam juntas. “Se Deus me livre um dia eu perder minha mãe eu sei que a Bel vai estar lá pra me dar carinho, colo. Não coisa material, mas carinho. O meu amor por ela é di-fícil até de explicar”, declarou Mariana. Um sentimento recíproco.

MAYCON CORAZZA

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“O carinho que não tive, passei tudo para essas meninas.

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EM BREVE UMA NOVA EDIÇÃO

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por Pedro de Brito Sarolli e Douglas Fernando

maluquinho temDOUGLAS FERNANDO

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cabelos brancos

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maluquinho tem cabelos brancos // 09

Começar um texto é sempre uma dificuldade. Leio anotações e mais anotações. Ouço as gravações. Tento voltar no tempo em busca de gestos, palavras ou até sorrisos que talvez definam o direcionamento do meu texto. Mesmo estando com a me-mória viva sobre o que quero escrever ainda tenho dificuldades de encontrar uma maneira, um começo para a histó-ria que quero relatar. O meu desejo é tentar abordar a relação de avô para neto especifica-mente. Não de avós para netos, e sim do homem para o neto ou neta, como no filme-tema dessa edição “Menino Maluquinho”. É impossível escrever ou ler sobre esse tema sem se lembrar das nossas próprias relações com nos-sos avós. Tive oportunidade de conhe-cer todos os meus avós, que vivem até hoje. Mas, como em qualquer tipo de relacionamento com outras pessoas, encontrei minha preferência, no caso meus avós maternos, com quem eu convivi por nove longos anos. Meu avô sempre foi diferente. Alegre e conversador, adorava a com-panhia dos netos, assim como minha avó. Contava histórias, brincava, ria alto e sempre nos dava presentes. Quase toda vez que o encontrava re-citava o famoso versinho de sua infân-cia “Pedro José meu filho, reponte as vacas, mas aparte os novilhos”. Since-ramente, eu nunca soube o que ele re-almente queria dizer com isso, mas eu sempre dava risada e repetia em unís-sono com ele. Fora esses, milhares de outros versinhos de sua infância foram recitados durante o nosso convívio, além das histórias que eram constan-tes. Dentre todas elas a que me marcou e será inesquecível, tanto para mim como para meus outros primos que a ouviram, é a da Bambina, o saca-rolhas. Empunhado de um saca-rolha que o acompanhava por muitos anos, como todas as coisas dos avós, ele con-tava histórias de vivência de Bambina, viagens e aventuras, dando vida a um simples objeto que passaria desperce-

bido por muitos. Isso me faz lembrar da famosa história do grande escritor Franz Kafka, que ao ver uma menini-nha chorando em um parque por sua boneca perdida, rapida-mente emen-da: “Ela viajou”. Daí em diante ele começa a escrever uma série de cartas como se fosse a própria bone-ca, contando as suas experiên-cias e aventu-ras, até que quando a boneca resolve se casar e encerrar as cartas. Muito esforço, mas com o belo intuito de não deixar a garotinha triste. O engraçado dessa história é que enquanto estou escrevendo este texto toca o telefone. Era meu avô. Como diz o ditado, acho que ele não morre tão cedo. Tomara que seja verdade! Chegamos à casa do Sêo Zé. Maria Fernanda, Guto, Douglas e o Maycon. Cheguei lá um pouco depois deles. Um senhor de estatura mediana (baixo perto do neto, que já o alcançou) saiu a porta para nos atender. Cabelo ralo e branco, polaco quase vermelho, olhar radiante e simpatia no rosto. Só de olhar para o jeito daquele homem era possível de imaginar que ele foi agraciado com a possibilidade de ser avô. Representado em tudo: os gestos, a forma como nos recebeu, aquele jei-to de alguém que está sempre pronto para uma brincadeira Ele se apresen-tou na cozinha, coração de toda casa. Estava com uma camiseta adidas, ócu-los enroscado na peça, shorts e chine-lo. Direcionou-nos para a sala, sobre a orientação do fotógrafo, pois a melhor luz da casa era lá. Logo no começo da conversa um barulho alto penetra pela sala. Era um som similar ao que é co-locado pelas tele-marketings (tanãnã-nãnã, tanãnãnã, tanãnãnã..), em altos brados. Segundos depois descobrimos

que era o som do interfone. Mais um integrante une-se ao nosso bate papo, o Altair, filho do nosso entrevistado.

Seu José Lovato de Araujo com seus 70 anos é um senhor de muitas histórias. Era uma noite de quarta-feira quando geralmente aposentados assis-tem televisão ou no caso de Zé, jogam mini fazenda no orkut. O convívio com os netos o fez aprender e gostar des-se tipo de atividade, mas, modernida-des à parte, o nosso personagem teve uma história de vida difícil. Logo aos oito anos de idade já trabalhava o dia inteiro ao lado de seu pai na lavoura. Freqüentou a escola por apenas seis meses, pois “não se entendeu” com a professora após ser acusado de uma travessura que segundo ele, não co-meteu. “Eu era louquinho”, afirmou.

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Conheceu a mãe de seus quatro fi-lhos, a baiana Dona Cida, em Altônia, no ano de 1962. Ela é uma senhora mo-rena, e Seu Zé relata que naquela épo-ca os pais dele não gostaram muito da idéia do casamento com uma “negui-nha”. Os pais dela também não apro-vavam, pois a mistura de cores nesse período não era comum. Venceu o pre-conceito e casou-se com ela, somando hoje 48 anos de relacionamento.

Trabalhador, Zé já fez de tudo um pouco. Desbravou o Paraná quando ainda era “tudo mato”. Tanto no quartel (que passou apenas uma noite), tanto como vendedor de filme fotográfico.

Papo vai e papo vem, che-gamos ao nosso foco principal. Com as mãos sempre inquietas, Seu Zé nos contava que ser avô foi uma das melhores coisas que já aconteceu com ele. “É melhor do que ser pai de novo”. Mas ao mesmo tempo em que trás fe-licidade, trás responsabilidade. Segundo ele, ser avô é ser pai duas vezes.

Seus quatro filhos o presen-tearam com oito netos. Os mais próximos do estilo Zé de ser são o Guto, o Alysson e Cami-ly. Quando perguntado sobre o que os aproximava ele respon-de: “Eles não têm muito medo”. Não que os outros netos sejam covardes, mas o avô não gosta de “frescos”. Gosta que eles par-ticipem das coisas que ele gosta de fazer. Explicando-nos melhor ele fala: “Tem uns que pegam uma minhoca na mão e já ficam com nojo. O Guto não. O Guto não tem medo. Desde os dois anos ele já me ajudava na horta. Parecia um robozinho”.

A lógica para a amizade entre avós e netos funcionarem é ba-seada na troca. Na maioria dos casos são trocas simples, como

um bom ouvinte para uma longa his-tória, uma brincadeira a dois, com um ensinando as artimanhas do passado e o outro ensinando as modernidades do futuro, um presente e um sorriso, uma comida gostosa e um elogio, uma traquinagem vista com outros olhos, uma vontade de aprender com alguém que está querendo ensinar. São trocas simples, mas com um profundo sig-nificado, que de tão forte, ficam pra

sempre na memória dos netos depois que os nossos velhinhos queridos vão embora desse mundo.

Além de tudo isso, o ser humano tem uma ânsia instintiva de sempre querer cuidar de alguém. Depois que os filhos já estão criados, normalmente o foco se direciona para bichos de esti-mação, como gatos, cachorros, passa-rinhos e para os tão mimados netos. As crianças – independente da idade que

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DOUGLAS FERNANDO

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elas tenham – fazem com que os avós se sintam melhores, mais vivos, mais novos: “Criança faz você ficar mais jo-vem”, afirma o vô Zé. Para ele ser avô é família, é felicidade, é vitória.

É por essas e outras que seu Zé ado-ra passar o tempo com os netos em sua casa nas marinas. Lá eles pescam, plantam e vem cheios de novas histó-rias. Como na vez em que ele fez um barquinho de madeira para os netos

poderem aprender a remar: “Eu soltei o Guto lá e falei: Rema! No começo ele ficou remando em círculos, não saía do lugar. Depois ele começou a remar certinho. Levou quase meia-hora para chegar (risos).”

Além de se aproximarem mais nas marinas, pois lá não tem essas regalias da “cidade”, como videogames, inter-net e outras distrações que tomam conta da rotina das crianças de hoje em

dia, eles se aproximam porque seu Zé é uma criança realmente. Ele se sente mais menino lá porque tem chance de fazer as mesmas coisas que fazia na in-fância para se divertir, ensinando e di-vidindo sua felicidade com seus netos. Até seu próprio neto de apenas doze anos considera seu avô “mais criança que ele”.

Guto acha que seu Zé não é qual-quer avô. “Ele é divertido, brincalhão”.

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A reprodução fiel desse relacionamento jamais se-ria possível com fotografias. Estando lá o sentimento se deu enraizado, a alegria contagiante e uma sensa-ção de que uma família é realmente a base de tudo, e que ela dá o sentido de viver.

Diante de uma simples lente é impossível captar o que há de mais importante - uma riqueza de conhe-cimento que foge da forma tradicional. Aquele con-quistado pelas experiências ao longo do tempo, que deixaram como resultado aquelas linhas de expres-são, típicas de quem tem muita história pra contar!

Por mais que a imagem possa congelar um momen-to, ela não consegue transmitir a sensação do que é a construção de uma árvore genealógica quase inaba-lável. E assim o simpático Sêo José, mesmo não ten-do um conhecimento acadêmico, dá e tem de sua família e de quem o rodeia.

VISÃO DO FOTÓgRAFO

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O neto gosta de passar o tempo com seu avô porque senão acaba ficando apenas no computador, jogando e pro-curando manter algum contato com alguém através das redes sociais. Se-gundo ele, seus pais nunca estão de bom humor, sempre estressados, pois trabalham o dia inteiro. Já seu avô é aposentado e está sempre disposto a se divertir e a aprender: “Eu aprendo as coisas no colégio em Ciências, e de-pois falo pra ele. Já ele sabe muita coi-sa de informática que eu não sei. Ainda mais que a vó faz curso de informática, então acho que ela ajuda ele também, aí ele vem falar pra mim”, conta en-quanto o braço direito estava apoiado no esquerdo, como alguém que toma soro.

A relação que se firma cada vez mais não tem prazo para acabar. Hoje Guto prefere muito mais freqüentar um churrasco com toda a família reunida do que qualquer outra coisa. Preten-de sempre manter contato com seus avós, optando às vezes por ir visitá-los ao invés de “se preocupar com coisa besta, ir à balada”. Para ele ser neto é “em palavras, uma troca de experiên-cias, uma mistura de culturas”. E ele sabe que mesmo que tentar escapar ele não conseguirá, pois seu avô faz parte de sua história.

São essas relações extremamente saudáveis que marcam nosso caráter e nossa história. Esses momentos de felicidade, as risadas, as conversas e o amor são o que realmente reforça nosso espírito para as futuras lutas que virão com o passar dos anos. Só quem teve ou tem esse tipo de rela-cionamento sabe o quanto eles fa-zem falta. A idéia é que um bom neto torne-se um bom avô, mantendo esse ciclo. Dando de presente para os que ainda estão por vir, o amor e o cari-nho diferente, que só os avôs sabem fazer.

Após o término da conversa, come-

çamos a tirar as fotos para compor a reportagem. O serelepe vô Zé arrumou um jeito de transformar a cordinha do pião em um laço. Logo estava laçando o neto, pelo pé, como se fazia antiga-mente com os bodes, depois pela ca-beça; sempre numa brincadeira sadia, de criança. A nora também entrou na história e logo estava sendo vítima da criancice do sogrão.

Isso me faz lembrar uma passagem do filme:

– Sabe o que eu acho vô? – per-guntou o Menino Maluquinho. Que os meninos que vem por aí nunca vão saber o que é um pião. – É meu velho, os tempos estão mu-dando, mas vai ter sempre alguém pra ensinar – responde o avô Passarinho.

E no final talvez descubram que Sêo Zé não era um avô crianção. Era um avô feliz.

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DOUGLAS FERNANDO

Sêo Zé não era um avô crianção.

Era um avô feliz!

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14 // a amizade é...

Acaso. É um fato imprevisto, e na maioria das vezes, por mais que se tente buscar uma explicação, não há um argumento ou motivo pronto, que desenhe em linhas retas aquilo que não passa de traços fragmentados. “Nada acontece por acaso”, diria qual-quer avó. É como se o universo brin-casse com nós, peças do seu tabulei-ro, assim como brincou com Carolina e Pâmela, e fez com que a história de-las se tornasse foco dessa matéria.

Tudo começa em meados dos anos 80. Vânir e Terezinha até então ti-

nham uma relação estrita de vende-dora e cliente. Atendimento, compras, conversas fiadas e confissões foram o cenário do nascimento de uma forte amizade. Por um longo tempo as duas estiveram juntas até que o relaciona-mento ganhou um ponto final. Teresi-nha faleceu em 1990, com 34 anos.

O tempo passou e Vânir trocou de es-tabelecimento – de vendedora de loja de roupas para uma de cristais. Já era início do novo século quando Pâmela entrou na história. A jovem falante, simpática, começou a trabalhar na loja

como vendedora, dividindo o espaço com Vânir. Por conta da convivência ra-pidamente se tornaram amigas.

Papo era o que não faltava. Em uma dessas conversas, Vanir descobriu que Pâmela, sua nova companheira de tra-balho, era filha de sua grande amiga do passado, Terezinha. Pâmela tinha a mesma idade de sua filha e a vendedo-ra mais experiente sempre dizia que as duas deviam se conhecer, garantindo que se dariam muito bem.

Chegou a hora do almoço e Carolina, a filha da vendedora, foi na loja bus-

A AMIZADE É ...

por Maria Fernanda Kusmirski

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a amizade é... // 15

car a mãe. Chegando lá conheceu a tão falada colega de trabalho. Vânir de-pois de tanto insistir viu o dia em que as meninas se conhecerem. Surpresa: apresentações foram dispensadas. As “meninas” não paravam de rir, até lan-çarem:

- Ah, mas quanto tempo! – disse um delas.

- Que saudade – sendo quase que

uma resposta automática. Pâmela e Carolina se conheceram

na catequese, quando eram crianças e moravam no mesmo bairro. Estavam sempre em contato juntas na Igreja, no dia a dia. Depois do dia do reencontro as duas nunca mais se desgrudaram.

Olhando para todo o trajeto em que passaram juntas elas afirmam que confiança é a base para uma amiza-

de como a delas. Durante a vida elas fizeram vários amigos no colégio, na internet, vizinhos, faculdade, na aca-demia, mas “amigos de verdade para poder contar um segredo e saber que não será passado adiante são poucos”. A relação se tornou tão próxima que as duas se chamam de “mana”, e os pais de Carolina são chamados por Pâmela de “mami’s e papi’s”. “A gente sempre

MARIA FERNANDA

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fala que a Carol é que está errada na família, ela é diferente! Nós falamos besteiras e ela é toda certinha, a Carol é a irmã que Deus não me deu como sangue, mas que a vida me trouxe”.

Pâm e Carol, como costumam ser chamadas pelos mais íntimos, tem muitas coisas em comum, mas tam-bém possuem diferenças. Carol é mais séria, tranqüila, fala doce e suave. Pâm tem o seu jeito de ser, serelepe, brin-calhona, não para quieta. Uma coisa é certa, as duas são impagáveis. A entre-vista que deu fruto a esta matéria foi recheada de muitas risadas. Pode-se dizer que uma completa a outra.

Ao mesmo tempo em que fala “sou filha única” Carol faz com os dedos o sinal que indica entre aspas. “Porque a Pâmela é a minha irmã”, explica em seguida. Isso acontece mesmo com a correria do cotidiano. Pâmela é jorna-lista. Carolina advogada. Namorados, profissão, tudo isso contribui para que elas estejam um pouco distante. “Hoje enquanto eu vou à reunião na OAB, a Pâmela vai à reunião no Pool Bar”. Ca-rol conta rindo.

MSN nessas horas é uma boa “arma de comunicação”. Seja novidade rele-vante ou não, logo está Pâmela teclan-do. “Qualquer coisa que acontece eu

conto pra ela, sempre foi assim, não interessa se ela pode ou não me ou-vir, me atender. Eu sou irmã e a Carol já sabe que sou assim”, conta rindo. A liberdade que há entre as duas não es-colhe hora. Mesmo quando Carol ficou noiva, Pâmela continuou sendo a me-nos romântica da amizade.

– Ela veio na minha casa pra me contar do noivado.

Chegou muito feliz. Lembro que fa-lei: “Escuta, ta feliz por quê? O que há de lindo nisso? Seu namoro não está bem e você ta feliz porque vai noivar?” – Ela chegou bem e saiu triste da casa – ter-mina dando uma gar-galhada.

Carolina, por ou-tro lado, reconhece a importância da presença da amiga na sua vida. “Um dia eu estava meio doente, fraca, pre-cisava de algo sal-gado e minha mãe não estava aqui. Na hora liguei para a Pâmela e ela veio correndo cuidar de mim. Fez uma coisa grossa para eu comer, parecia

uma sopa sabe? Sei lá o que era aqui-lo, mas não estava ruim. Comi e acabei melhorando”, conta Carolina.

Conforme as lembranças vinham, Pâmela corria no quarto e trazia fotos das duas. Uma que me chamou aten-ção foi de uma tarde em que se en-contraram para jogar conversa fora e fazer máscara de argila no rosto com direito à pose para foto. Uma relação de sintonia mesmo, com muitas coi-sas inexplicáveis, como, por exemplo, dona Vânir sentir que a Pâmela está precisando de alguma coisa. “Muitas vezes a mami’s pede pra Ca-rol me ligar pra ver se está tudo bem, e nesse tempo eu já estouligando pra mana. Nós somos ca-tólicas, mas com parte

“Hoje enquanto eu vou à reunião na OAB, a Pâmela vai à reunião no Pool Bar”.

“A Carol é a irmã que Deus não me deu como sangue, mas que a vida me trouxe”.

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espírita e acreditamos que nada disso é por acaso”.

Do mesmo jeito, com a mesma in-timidade que lida com a preocupação de mãe para filha, também existem os puxões de orelha: “A mami’s é tão mi-nha mãe, que me dá puxões de orelha também e isso já aconteceu na frente de outras pessoas. Eu não ligo. Amo isso porque sinto que sou filha, que sou da família”, declara Pâmela.

Entre risos e choro elas lembraram vários momentos especiais. “A for-matura da Pâmela foi inesquecível”, lembra Carolina. “Começou já nos preparativos. Meu pai preocupado em

comprar a gravata da mesma cor do vestido dela. No baile na hora de dar a flor para os pais a Pâmela chorava mui-to. Ela chegou para os meus pais e deu a flor pra eles e também para a avó dela. Foi muito emocionante. Na mesa ao lado o pessoal chorava, a gente via aquilo e chorava mais ainda”.

Carolina e Pâmela não são irmãs de sangue, mas a vida deu de presente a elas essa amizade valiosa.Os momen-tos tristes e os mais felizes são lem-brados, assim como os que ainda vi-rão. “vamos ter muitas realizações nas nossas vidas, como filhos, casamento”. Brincam as duas.

As amizades de infância normalmen-te são as mais duradouras. A história delas não termina aqui, brincadeiras à parte, os filhos de Carolina e Pâmela já

vão nascer com um bom exemplo do que é amizade.

MAR

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ERN

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18// coisa que brinquendo não entende

DOUGLAS FERNANDO

por Maycon Corazza

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DOUGLAS FERNANDO

coisa que brinquendo não entende // 19

A porta se abriu de uma forma como nunca havia visto antes, em um movi-mento vagaroso. Daqui de dentro eu aguardava as mãos delicadas do meu dono, que tocariam em mim, como em todos os dias. A luz invadia o escuro que tomava conta da minha moradia. Logo vi o rosto do garoto que sempre me escolhia para as mais impressionan-tes aventuras criadas pela sua mente. Foi nesse momento que percebi que algo de errado havia acon-tecido; que hoje não haveria brincadeira, encenação, diver-são.

Aqueles olhos que sempre brilhavam, formando uma sintonia perfeita com o sorriso, mas dessa vez estavam dife-rentes. Eu não conseguia compreen-der o que significava aquela água es-correndo pelo rosto dele e aquela face desmontada. Talvez por ser um brin-quedo, coisas humanas não se encai-xem no meu mundo, e eu fique sempre perdido quando o roteiro é quebrado. Em vez de brincadeiras, às vezes me deparo com cenas de algo que eles, humanos, chamam de sentimento.

Depois de me encarar por alguns minutos, seus pequenos dedos me envolveram com facilidade. Não senti firmeza nos movimentos. Seus olhos se perdiam como se avistassem um labirinto. Me segurando em uma das mãos, fechou a porta do local que ele chama de armário. Agora me segurava firme, olhando para mim com o rosto encharcado. Eu queria fazer perguntas. O que acontece companheiro, que hoje não me joga para cima, me dá nomes diferentes e monta histórias de repen-te? Por que está tão ofegante, aflito? Cansou-se de mim?

Parece até que ele me ouviu. Come-çou a soluçar e formar frases. “Pai”.

“Mãe”. “Acabou”. “O que vai ser ago-ra?”. Essas palavras saíram sem nexo, soltas no ar, como se o que ele queria dizer não tivesse sentido nem mesmo a ele. Então, resolveu se sentar, desa-bando no chão coberto por um tapete, que em dias normais se transformava

em mar, estrada, chão da lua. Ele me apoiou em cima das pernas, me acariciou e deu início a um monólogo inter-rompido com freqüência por suspiros, soluços e mais daquela água que brotava dos seus olhos.

- O que será

de mim agora? Acabou tudo. Meus pais se separaram, não serão os mes-mos. Eu não vou ser o mesmo. Por que isso tinha que acontecer? Me diz! Você não deve entender, nem imaginar.

Realmente não sabia do que se tra-tava. Estava angustiado, queria resol-ver os problemas dele, ser o herói da brincadeira, mas só podia ouvir. E de repente o silêncio tomou conta do am-

biente. Ele me segurou com firmeza, colocou-me perto do seu rosto e eu sentia o carinho daquela atitude. Ficou assim por alguns minutos, paralisado. Nesse momento quis ser humano, po-der entender o que acontecia; ajudá-lo, retribuir o carinho.

“Filho”, a voz grave se fez ouvir. Co-nhecia aquele homem que tinha mania de chamar meu dono de filho, mesmo sabendo que o nome dele era Maycon. O rosto do gigante estava pálido e aquela água brotava dos olhos dele também. Uma das mãos estava ocupa-da por um objeto com alça. O chama-do fez com que eu fosse colocado no chão e meu dono se levantasse e cor-resse em direção ao homem de grande altura. De onde eu estava não consegui ouvir o que eles falavam.

É, parece que foi ontem que aque-

le senhor esteve aqui pela última vez. Desde então, nunca mais o vi por aqui. Vejo apenas aquela senhora que meu dono chama de mãe. Nunca mais vi o Maycon com os dois juntos, conver-sando, sorrindo. Comigo ele também mudou. Seu mundo mudou. E sempre ouço meu dono culpando uma tal se-paração. Coisa que brinquedo não con-segue entender.

Estava angustiado, queria resolver os

problemas dele, ser o herói da brincadeira, mas só podia ouvir.

DOUGLAS FERNANDO

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essa história só está começando

mericg - edição: douglas fernando

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