a violência nossa de cada dia a juventude pobre na linha de tiro

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VIOLÊNCIA. A VIOLÊNCIA NOSSA DE CADA DIA: A JUVENTUDE POBRE NA LINHA DE TIRO A violência nossa de cada dia: a juventude pobre na linha de tiro Marcondes Brito Mestrando em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí UFPI. Valéria Silva Doutora em Sociologia Política. Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas - UFPI As ideias estão no chão Você tropeça e acha a solução Titãs O presente artigo discute alguns apontamentos sobre a violência urbana na atualidade, detendo-se sobre os modos como a mesma afeta os jovens. Apresenta breve reflexão sobre a natureza das ações estatais dirigidas ou não - a estes segmentos sociais e das relações que estabelecem com a produção daquilo que pretendem enfrentar: a violência em meio juvenil. Enfoca, por fim, os jovens pobres e marginalizados de Teresina-PI, segmento distanciado das políticas públicas de assistência e proteção, de uma forma geral, porém muito próximo ou, mesmo, inserido nas ações de segurança e repressão implementadas pelas instituições públicas. Na apreciação do fenômeno aludido, apoiamo-nos no entendimento construído por Velho (2000), no qual o autor afirma que a violência não se esgota apenas no uso

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O presente artigo discute alguns apontamentos sobre a violência urbana na atualidade, detendo-se sobre os modos como a mesma afeta os jovens. Apresenta breve reflexão sobre a natureza das ações estatais dirigidas – ou não - a estes segmentos sociais e das relações que estabelecem com a produção daquilo que pretendem enfrentar: a violência em meio juvenil. Enfoca, por fim, os jovens pobres e marginalizados de Teresina-PI, segmento distanciado das políticas públicas de assistência e proteção, de uma forma geral, porém muito próximo ou, mesmo, inserido nas ações de segurança e repressão implementadas pelas instituições públicas.

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Page 1: A violência nossa de cada dia a juventude pobre na linha de tiro

VIOLÊNCIA. A VIOLÊNCIA NOSSA DE CADA DIA: A JUVENTUDE

POBRE NA LINHA DE TIRO

A violência nossa de cada dia: a

juventude pobre na linha de tiro

Marcondes Brito Mestrando em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí – UFPI.

Valéria Silva Doutora em Sociologia Política. Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas

Públicas - UFPI

As ideias estão no chão

Você tropeça e acha a solução

Titãs

O presente artigo discute alguns apontamentos sobre a

violência urbana na atualidade, detendo-se sobre os modos

como a mesma afeta os jovens. Apresenta breve reflexão

sobre a natureza das ações estatais dirigidas – ou não - a

estes segmentos sociais e das relações que estabelecem

com a produção daquilo que pretendem enfrentar: a

violência em meio juvenil. Enfoca, por fim, os jovens

pobres e marginalizados de Teresina-PI, segmento

distanciado das políticas públicas de assistência e

proteção, de uma forma geral, porém muito próximo ou,

mesmo, inserido nas ações de segurança e repressão

implementadas pelas instituições públicas.

Na apreciação do fenômeno aludido, apoiamo-nos no

entendimento construído por Velho (2000), no qual o

autor afirma que a violência não se esgota apenas no uso

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efetivo da força física, mas também na possibilidade ou

ameaça da sua concretização por vários meios, inclusive o

institucional. Este conceito de violência ganha sentido em

um contexto grupal, quando entendemos como se constitui

o conceito de juventude e, especificamente, de juventude

pobre, desassistida, e como esta relação se desdobra na

atualidade.

Segundo Irene Rizzini (1997), no Brasil, em meados dos

Séculos XIX e início do XX, percebe-se, claramente, que a

criança mais presente na literatura era aquela, aos olhos da

elite, „carente da ajuda e proteção do Estado‟ para ser

“corrigida”, “reeducada”. Isto é, a literatura tratava da

criança pobre.

O Brasil, uma nação em surgimento, buscava, na época, na

Europa do século XIX e EUA do século XX, modelos e

fórmulas capazes de desencadear, aqui, um processo

desenvolvimentista. Parte importante deste propósito se

constituía da importação de modelos e teorias para

combater a “degradação de sociedades modernas”, como

as teorias eugenistas, evolucionistas, que, a partir de

Charles Darwin, expandiram-se por todo o mundo. Este

advento se verificou tanto pelas proposições trazidas pela

genética social quanto pela validação construída por um

discurso de verdade científica, de cunho racista e criminal,

de Paul Broca e Cesare Lombroso, autores que

fomentavam, no bojo dos seus argumentos a idéia de que a

pobreza trazia o atraso da sociedade e os seus vícios, a

degenerescência da sociedade. Neste contexto, o papel dos

intelectuais seria de contribuir com seu saber, para a

implementação de políticas e ações, no sentido do

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enfrentamento da degeneração social ocasionada pelo

trinômio pobreza - ociosidade - degradação social.

Esses discursos influenciaram vários intelectuais

brasileiros, tais como Franco da Rocha, Nina Ribeiro,

Silvio Romero, Henrique Roxo, dentre outros. Estes

intelectuais, além da contribuição teórica que prestaram,

assumiram também cargos públicos, oportunidade em que

colocaram em prática suas idéias, disseminando-as dentro

e fora das instituições. Tais intervenções fizeram com que

o ideário de suas teses passassem a fazer parte das

subjetividades brasileiras, mas com uma particularidade:

as teorias racistas e discriminatórias voltavam-se

principalmente, para os pobres, que eram a maioria da

população. Como nos diz Rizzini (1997, p. 65) “não por

acaso pobreza e degradação moral estavam sempre

associadas. Aos olhos da elite, os pobres, com sua áurea

de viciosidade, não se encaixavam no seu ideal de nação”,

entendimento endossado também pelos pressupostos da

biologia social. A propósito, afirma a autora que “a

fantástica expansão da medicina, bem como sua

ramificação no campo jurídico (mais ligado à medicina

legal) e à conjugação dos saberes bio-psico-sociais

trataram de redefinir o humano e explicar a etiologia dos

medos que afligem o homem e a sociedade; o corpo e a

alma” (1997, p. 69.), chamando a si a autoridade para a

discriminação dos modelos sociais, dos processos de

normalidade e patologia.

Essas premissas são reafirmadas e detalhadas também por

Cecília Coimbra (2003, p. 23.), quando aponta que “a

degradação moral” era especialmente associada à pobreza

e percebida como uma epidemia que se deveria tentar

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evitar. Ou seja, “todas essas teorias

estabelecem/fortalecem a relação entre

vadiagem/ociosidade/indolência e pobreza, bem como a de

pobreza e periculosidade/violência/criminalidade”.

Não é à toa que, da união destas duas abordagens, a

médica e a jurídica, embaladas pela influência das teorias

referidas surge, em 1927, a primeira lei brasileira para a

infância e a adolescência, o primeiro Código de Menores e

com ele a adoção da terminologia menor. Entretanto, a

terminologia não possuía orientação cronológica, não era

empregada para separar e/ou diferenciar segmentos por

faixas etárias. A denominação concretizava uma

diferenciação que levava em consideração eminentemente

a condição de pobreza do indivíduo, imbricando, mais

uma vez os pressupostos bio-sociais na compreensão dos

segmentos juvenis marginalizados.

Encontrando suporte nestas idéias gerais vindas da Europa

é que o higienismo penetra no Brasil do final do Século

XIX e início do Século XX. Este movimento extrapola o

campo da Medicina e se dissemina, em toda a sociedade

brasileira, alcançando especialistas como pedagogos,

arquitetos, urbanistas e juristas, dentre outros.

(COIMBRA,1998).

Do ponto de vista de sua história, podemos dizer que, em

território brasileiro, o movimento higienista alcançou seu

apogeu na década de 1920, quando ocorreu a criação, por

Gustavo Riedel, da “Liga Brasileira de Higiene Mental”.

Fundamentados nas teorias racistas, no darwinismo social

e na eugenia, pregava o aperfeiçoamento da raça e

colocava-se publicamente contra os negros, mulatos e

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mestiços e, por consequência, contra a maior parte da

população pobre brasileira.

Entre os higienistas da época, havia um consenso acerca

da “missão patriótica”, que se atribuíam na construção de

uma ”nação sadia e limpa”. Acreditavam no conceito de

“degradação das sociedades modernas” e buscavam

estratégias para executar um “saneamento moral” da

sociedade brasileira. Como dissemos, associavam a

“degradação moral” à pobreza, pois esta, com seus vícios,

não condizia com o ideário de Nação, que, na época,

buscavam produzir.

A “degradação moral”, vista como uma epidemia,

implicava também a inevitabilidade do contágio, o que

preocupava, sobremaneira, os higienistas. Uma vez a

“doença” presente nas famílias pobres, esta endemia, por

conseguinte, colocava toda a sociedade em risco. Fecha-

se, portanto, um círculo vicioso, produz uma vez levado às

últimas consequências, a conclusão de que sociedade

“boa”, “saudável”, dependeria da eliminação dos pobres. E

isto, não pelo extermínio da pobreza como problema

social e/ou construção de uma sociedade democrática, mas

pela eliminação das pessoas pobres.

A complexidade do pensamento higienista também chegou

à consideração dos espaços públicos no seu todo, onde

assumiram o aspecto de um corpo, de um organismo,

demandando, então, cuidado, tratamento, a fim de curá-los

da “doença” que se abatera sobre os mesmos. Para reforçar

a gravidade de tais propostas de “reforma social”, vejamos

o que nos diz Coimbra:

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Partindo, portanto, da ideia de um corpo saudável,

limpo, asséptico e disciplinado, o desenho urbano

deveria prever cidades que funcionassem da mesma

forma. Palavras como ‘artérias’ e ‘veias’ entraram para

o vocabulário urbano no século XVIII, aplicadas por

projetistas (...) que passam a pensar o funcionamento

das cidades a partir dos ensinamentos médicos da época.

Desde aquele século domina o pensamento científico a

chamada ‘teoria dos fluidos’, onde o ar e a água são

considerados os portadores de emanações fétidas e

pútridas, conhecidas como ‘miasmas’ e transmissores de

doenças como a peste, o escorbuto e a gangrena

(COIMBRA, 1998, p. 80).

Assim posto, o espaço público surge como o lugar do

perigo biológico e social, configurando-se também como

“grande escola do mal”, uma vez ocupados pelos

“menores” (compreendendo os “menores” infratores

também os jovens), a infância perigosa e a infância em

perigo. Os últimos seriam os pobres e os desassistidos,

expostos aos outros “elementos”, ou seja, aos criminosos,

degenerados e irrecuperáveis, que ocupavam os espaços

urbanos de então.

É neste contexto que durante a Primeira República,

consubstancia-se o entendimento de menoridade não mais

vinculada a correlações etárias, mas associada ao conceito

de marginalidade, situações de abandono ou de delito. O

abandono é visto como o prenúncio do risco do delito,

justificando o tratamento desta condição como caso de

polícia e, portanto, suscetível de vigilância e punição, com

vistas à manutenção da ordem então vigente.

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Por outro lado, para Coimbra (1998), a adoção do termo

“menor” não designava menores de quaisquer classes

sociais, mas apenas diferençava um determinado segmento

de menores: o pobre. Esta marca ganhou força, enredou-se

no imaginário social e se impõe, até hoje, mesmo quando,

em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

aboliu tal terminologia do seu texto legal. Infância e

juventude, criança e adolescente são as designações

utilizadas em substituição à categoria “menor”.

Assentado nesta imagem de crianças e jovens

abandonados, desprotegidos e vulneráveis como elementos

perigosos, o Código de Menores de 1979, dando

continuidade à associação abandono-pobreza-

marginalidade, disciplinou postura institucional que não se

limitava apenas à ideia de correção de conduta, mas

também – respondendo a uma política de segurança – de

reintegração, coadunada com a proposta da Política

Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBM).

Podemos observar que o modelo que propugnava a

salvação do país pela salvação da criança e dos

adolescentes, já anteriormente utilizado pelo comissário de

vigilância, assumia outro “rosto”, nos anos 60 e 70 do

século XX, com a vigência da Doutrina de Segurança

Nacional e com o fortalecimento do tecnicismo.

Dispositivos “científicos” eram utilizados tanto para

classificar quanto para justificar o “tratamento”

recomendado, em cada caso, por profissionais de diversos

setores, como assistentes sociais, psicólogos, médicos,

advogados, dentre outros. A medicina higienista, agora

aliada ao judiciário, não media esforços no sentido de

purificar a sociedade.

Page 8: A violência nossa de cada dia a juventude pobre na linha de tiro

A perspectiva acima apontada gerou um importante

impacto na constituição das subjetividades juvenis, em

suas identidades, nas suas sociabilidades, de uma maneira

geral. Encontramos que, no contexto da doutrina de

segurança nacional, tudo o que fugia do padrão instituído

era considerado perigoso e subversivo, o que levou ao

delineamento de duas categorias de juventudes, aos olhos

do poder que as criou: a que subvertia e a danosa. Ambas

eram consideradas como perigosas, pois entravam em rota

de colisão com as pautas sociais consideradas corretas, no

sentido do desenvolvimento almejado, da ordem

constituída, da moral estabelecida, da família estruturada.

Em meio a este ranço cultural se gestou uma ligação

perversa da juventude pobre à criminalidade, tal como

desenvolveu Foucault (1987). Também se engendrou a

lógica da punição – ainda em voga e com muita força nos

tempos atuais –, que passou a permear as subjetividades

daquele que julga, dando forma concreta à falsa ideia de

que o ato de proteger passa pelo gesto de encarcerar,

vigiar e punir.

Por outro lado, ao institucionalizar a medida punitiva da

reclusão, do apartheid como a última solução para lidar

com os problemas sociais enfrentados pelo segmento

infanto-juvenil, o Estado brasileiro produziu uma visão

distorcida do que deveria ser uma prática pedagógica,

educativa, desenvolvida para/com os seus jovens e

crianças. Em verdade, as políticas com este corte

revelaram a assunção formal da desistência, do abandono

destes sujeitos pelo Estado e pela sociedade.

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Segundo Edson Passetti, a criação da Política Nacional do

Bem-Estar do Menor, fundamentada no pensamento da

Escola Superior de Guerra, (ESG), mostrou-se, de um

ponto de vista, como um eficaz recurso para equacionar o

problema social enfrentado – por um lado demonstrando o

desenho da ação estatal ante o problema social em si e, por

outro, apontando como esta escolha vinha se ajustar aos

mecanismos de controle acionados pelo próprio Estado,

correspondendo a um determinado perfil de organização

política. Como se pode ver, a ação do Estado brasileiro

consistiu, desde o princípio, em privilegiar o

desenvolvimento de políticas e programas sociais, que

consolidaram, em nome da defesa do bem-estar dos ditos

infratores, uma conduta intervencionista/autoritária, de

natureza higienista, fomentanto um perfil repressor e, ao

mesmo tempo, conciliador junto à sociedade – haja vista

que um dos objetivos deste comportamento era apresentar

uma satisfação à opinião pública, no sentido da paz e da

ordem social.

Esta forma de gestão intervencionista revela e reforça a

ação burocrático-estatal em uma linha de continuidade,

que sustenta e é sustentada pela correlação abandono-

pobreza-delinquência, que teve como efeito, desde a era

Vargas, o acirramento de implantação de políticas sociais

como se fossem de bem-estar no sentido amplo,

frequentemente ancoradas em uma perspectiva autoritária

de correção, higienização, controle, ordem. Outro aspecto

que se constata, na história política do Brasil República, é

que, tanto em períodos ditatoriais como em períodos de

distensão “democrática”, a intervenção em nome do bem-

estar acompanhou o ideal de desenvolvimento,

intimamente ligado à noção de segurança, garantindo a

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proliferação de interesses da burocracia estatal,

coadunados, confortavelmente, com o cunho autoritário da

gestão da vida.

Como dito, este não foi um fenômeno próprio apenas do

contexto repressivo-militar brasileiro. Na atualidade, a

despeito dos avanços inegáveis do ECA, por exemplo, o

seu texto ainda traz a punição/violência travestida de

medida educativa. Sociedade e Estado brasileiros

permanecem adotando este tipo de abordagem como

legítima, para tratar das realidades infanto-juvenis

socialmente produzidas e mais presentes em contextos de

pobreza e exclusão. Por decorrência, desmistificam toda a

normativa construída em nome da proteção e da promoção

de crianças e adolescentes.

Como sabemos, a gestão pública e suas políticas, assim

como os demais fenômenos sociais, produzem

desdobramentos previsíveis e imprevisíveis, desejados e

indesejáveis, que fogem ao controle absoluto dos gestores,

e também da sociedade. No nosso entendimento, um dos

resultados produzidos pela intervenção estatal de natureza

disciplinadora/punitiva – por fim, de violência – foi a

contribuição efetiva para a geração de um contexto social

propício à real assunção, pelos jovens, do papel violento a

eles atribuídos. Nesta perspectiva, os jovens têm

protagonizado as cenas que alimentam a mídia

espetacular, ora como estratégia final de sobrevivência

material, ora como última medida de sobrevivência física,

ora como único recurso social disponível de afirmação de

suas subjetividades.

Page 11: A violência nossa de cada dia a juventude pobre na linha de tiro

Sobre a produção de juventudes

violenta(da)s

Pensar o sujeito, no mundo, implica refletir sobre as

relações intersubjetivas no complexo das materialidades

da vida, inclusive aquelas de natureza social e política, nas

quais interesses diversos estão em constante embate e as

posições hegemônicas pontuando o tom das realidades

experienciadas. Coimbra (2003), ao abordar o assunto,

oferece uma reflexão sobre como os indivíduos são

construídos neste processo de embates com o mundo

exterior:

O cotidiano é esvaziado politicamente; as relações de

opressão, as explorações, as diversas formas de

dominação são invisibilizadas e atribuídas ao território

do psicológico, fazendo parte do psiquismo e da vida

interior do sujeito. Com forte apoio de argumentos

moralistas [...] transformam-se em conflitos, sonhos,

ilusões, fantasias e, mesmo, patologias. Estas, não

somente são atribuídas ao indivíduo, mas estendidas

especialmente a determinados segmentos sociais, como a

pobreza e a todos aqueles que destoam das normas e

modelos instituídos (p.7).

Desta perspectiva, aquilo que se produz, socialmente, é

retraduzido enquanto responsabilidade individual,

consubstanciando, portanto, um processo de vitimização

do sujeito. Este agora tem a tarefa solitária de se colocar

viável socialmente, uma vez que o problema é de ordem

individual. O embate do sujeito, no mundo, dá-se em um

front polissêmico, inseguro e desafiador, que dele exige

complexas habilidades, talentos e recursos – estes,

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inclusive de natureza materiais, normalmente assegurados

pela inserção, no mundo do trabalho. Para os jovens

pobres, inseridos em realidades cruas e dispondo de

restritas oportunidades, a tarefa se mostra agigantada.

Da problemática posta, um aspecto se faz mister destacar:

o mundo capitalista contém uma tensão imanente. Impõe

sua univocidade essencial, seu discurso universal, como

única verdade. A “concorrência” é a tônica. Ao mesmo

tempo, como um contrafactum, promete que aquele que

passar pelo “buraco da agulha” alcançará a plenitude, que

ganha o nome de “sucesso”, na linguagem que coloca a

perspectiva econômico-financeira enquanto centro do

diálogo, e o consumo como canal de intercomunicação.

Este diálogo é possibilitado pelo universo das relações

trabalhistas, difundindo, de forma cada vez mais intensa, a

subjetividade do trabalho formal como aquela que

expressa a verdadeira natureza do ser humano, e também

como a única possível de se deixar existir.

Neste sentido, contextualizando como tal ideário tem sido

alimentado na contemporaneidade, Loïc Wacquant (2005,

p.5), nos diz que:

Por um lado existe a des-socialização do trabalho, por

outro a transformação do Estado, e ambas empurram as

pessoas a terem uma vida insegura. Então esta dupla

insegurança objetiva, do lado do trabalho e do lado do

Estado, que já não protege as pessoas da insegurança

trabalhista, cria duas formas de insegurança. Uma é a

insegurança social objetiva, causada pelo trabalho

assalariado des-socializado, mas há também uma

insegurança mental: quando o trabalho é inseguro, os

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indivíduos não podem mais projetar-se no futuro por não

saberem se terão emprego no próximo mês, isso

desestabiliza o mundo mental e cria um grande

sentimento de ansiedade na sociedade. [...] Isto cria uma

grande corrente de insegurança dentro da sociedade,

relacionada à insegurança do trabalho e relacionada à

não vontade do Estado de proteger dessa insegurança, o

que gera uma demanda na população por estabilidade de

vida.[grifo nosso] O Estado responde a esta demanda de

estabilização fornecendo polícia e políticas penais. O

Estado diz "nós não vamos mais dar um trabalho

garantido, ou uma renda garantida, ou uma assistência

social garantida, porque não é isso que o Estado faz

agora, mas daremos um fim à população de rua e aos

criminosos dos seus bairros, etc. Responderemos sua

demanda por segurança social fornecendo segurança

criminal.

Para a juventude pobre órfã do Estado e rechaçada pela

sociedade, carente das relações familiares como mediação

fundamental, sejam elas presentes ou ausentes (nas

situações de abandono) – as contingências postas, em

grande parte dos casos, são mais agudas e complexas do

que ela pode administrar. No momento em que a vida está

a lhes exigir definições existenciais (identidade sexual,

formas de sobrevivência e de sustento, isto é,

"profissionalização", inserção em grupos sociais etc),

encontram-se em um contexto no qual existem poucas

certezas, muitas indefinições e instabilidades. Estes jovens

não sabem se terão comida no dia seguinte, se seus

familiares e amigos estarão vivos ou quando serão vítimas

da violência urbana, familiar, policial. A vida se torna algo

incerto, produto absoluto do momento presente, palco de

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negociações sumárias, em torno das possibilidades do

agora.

A radicalidade da situação posta dificulta o delineamento

de um projeto de vida gerador de sentido à existência dos

jovens. Retira-lhes qualquer segurança quanto ao futuro,

enredados que estão no imediatismo da luta pela

sobrevivência. Como não poderia deixar de ser,

particularmente, imprime contornos específicos à forma

como os jovens vivem e resolvem seus conflitos subjetivos

e sociais.

Compungidos a uma determinada inserção social – na qual

o ideário existente tem o trabalho como importante

mecanismo de afirmação social e, além disso, adotado

como critério de normalidade de conduta –, os jovens

provindos dos setores empobrecidos se deparam com uma

realidade efetiva de ausência de postos de

trabalho/emprego, somados à fragilidade pessoal quanto

aos requisitos cobrados para assunção das vagas que ainda

são oferecidas. Neste mesmo contexto, são acossados a

oferecer respostas a si mesmos e à

família/comunidade/sociedade acerca da sua contribuição

simbólica e material. O tráfico aparece para muitos como

o lugar onde podem assumir a condição de sujeito ativo,

lugar de ancoragem, de alguma segurança frente ao

ambiente geral de insegurança produzida. Enquanto o

Estado declina da responsabilidade e a sociedade dá as

costas aos jovens pobres, o tráfico os recebe de braços

abertos.

A realidade acima considerada tem feito com que os

jovens apareçam diretamente implicados na ampla

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divulgação social, particular e fortemente através da

mídia, da cultura da insegurança vivida nos tempos atuais.

Termos como “violência”, “terror” e “medo” têm presença

inarredável na retórica jornalística sensacionalista

brasileira, que identifica a relação entre a sociedade e o

crime com um estado de guerra. O crime ressaltado é o

crime dos pobres, diga-se, dos jovens pobres. É em relação

à “violência” da pobreza que a sociedade se encontra

“refém”, “aterrorizada”, “afrontada”.

Em Teresina, encontramos uma situação emblemática.

Fato como a aposição de grades, nas aberturas dos

pequenos comércios das periferias sustenta o discurso

sobre a prisão dos moradores e comerciantes, em função

do medo difundido, advindo de ameaças, de boatos de

origens incertas e, particularmente, os riscos que dizem

correr em relação a grupos de jovens, as ditas „gangues‟.

Normalmente, constam das listas acusatórias dos

programas policiais, sendo apontados, publicamente, como

algozes de atos de violências na completa ausência de

investigação, processo e julgamento.

Na sociedade autoritária, que insiste em retirar a

visibilidade de vários segmentos sociais, quando se fala na

“pessoa de bem”, faz-se referência à inclusão, à harmonia,

ao trabalho e à família normatizada, enfim, realidades de

apenas alguns grupos sociais, impostas aos demais. Esta

forma societária ideologizada e hegemônica como norma

é, para a imprensa e os planejadores da segurança pública,

a sociedade, a “boa” sociedade, modelo que uma

determinada visão de mundo busca implantar e sustentar,

como a forma única de relacionamento entre agentes

sociais. A má sociedade é a dos “bandidos”, dos

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“traficantes” e de todos aqueles que, de algum modo,

desvirtuam este padrão de relacionamento social.

Quaisquer outros modelos são desautorizados e

indesejáveis, embora originários da complexidade desta

mesma ordem. Frequentemente resultam da efetividade de

ações que tomam corpo, a partir da ausência ou negação

de outras práticas sociais pelo modelo hegemônico.

Assim, a síntese é inevitável: a boa sociedade é a dos

burgueses, e a má sociedade é a de todos os outros. Aquela

“é”, esta “não é”. No entanto, a estas duas construções de

sociedade subjaz um jogo entre criador e criatura, no qual

a sociedade da „maldade‟ é gerada e alimentada pela da

bondade, por meio de instrumentos econômicos,

ideológicos, midiáticos e simbólicos, dentre outros. Além

disso, a manutenção da má sociedade é condição sine qua

non de sustentação de discursos e práticas da boa

sociedade, muitas delas de viés autoritário e violento, para

com os grupos „inimigos‟. Ontem e hoje, diversos destes

grupos são formados por jovens pobres das periferias das

cidades, e em Teresina não é diferente.

Parte significativa das juventudes – e no sentido aqui

tratado, a juventude pobre, seja de forma individual ou

grupal, nas ditas „gangues‟ – é constantemente colocada,

no discurso produzido pela normalidade, como

protagonista de ações pautadas na violência, como sujeitos

causadores do medo e do terror aos moradores da cidade.

Acerca da violência social e violência de Estado, que se

abate sobre crianças e jovens do Brasil, os discursos da

ordem têm pouco a dizer; optam pelo silêncio. Na

contingência de tomar alguma medida, diante de eventuais

esgarçamentos de pactos de convivência social, as elites

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agem no sentido da manutenção da lógica autoritária/de

punição, como aponta Wacquant: “Já não podem garantir

empregos nem assistência social, então o que garantem?

Bem, para compensar a falta de legitimidade do Estado, os

políticos têm oferecido mais polícia, justiça criminal e

prisões.” (2005, p. 5); “o Estado se faz presente,

reafirmando sua autoridade no campo penal para

compensar a crescente impotência e ausência de poder do

Estado em um campo social e econômico. (2005, p. 6).

Mas isso ainda não é tudo. Outra estratégia bastante

comum das elites é a trivialização da tragédia social da

juventude. Telles (1999) assinala que, em realidades

transformadas em paisagens, a pobreza tem sido

banalizada, tornada fato palatável com o qual se convive –

com um certo desconforto, é verdade –, sem que as

responsabilidades individuais e coletivas sejam

interpeladas. A banalização da situação de miséria, que

transforma os marginalizados em fenômeno natural, sendo

explorados sob a marca do espetáculo pela mídia mundial,

é, de fato, algo comum e recorrente no cotidiano das

cidades. O Brasil se torna notícia, quando chacina seus

meni¬nos de rua, quando incendeia pessoas dormindo nos

bancos das praças, quando jovens matam jovens em

conflitos do tráfico, nos morros brasileiros.

As favelas do Rio de Janeiro são passeio turístico

obrigatório. Fazem parte de clips de Michael Jackson,

porém, na opurtunidade, consubstanciam uma idéia de

cenário e não de realidade crua, experienciada por seus

moradores, com todas as feridas e dores individuais e

coletivas, muitos deles jovens. Esta transfiguração em

cenário irreal ou, se quisermos, hiperreal, esconde, atrás de

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si, situações e formas de existência subumanas, em

contextos vivenciados, cotidianamente, por determinados

grupos sociais, ensejando que a criminalidade surja como

um elemento-chave, nos processos de sobrevivência física

e, mais do que isto, de subjetivação e identificação.

Eis a matriz da chamada incivilidade, posto que, ante este

cenário, a pobreza aparece como símbolo de

“inferioridade”, de pequenez, de embrutecimento. Aqueles

pertencentes a estes núcleos normalmente experimentam

lugares muito aquém das regras de igualdade que a

formalidade da lei e o exercício do direito deveriam

concretizar. Podemos constatar tal afirmação ao

analisarmos a violência policial que, na sua aplicação,

deixa patente, de público, que nem todos são iguais,

quando, dioturnamente, violam-se os mais elementares

direitos civis, normalmente, das populações pobres. Ao

discutir a grave situação da incivilidade, Santos (2006, p.

334) afirma que:

Trata-se da segregação social, através de uma

cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas

civilizadas. (...) Nas zonas civilizadas o Estado age

democraticamente, como Estado protetor, ainda que

muitas vezes ineficaz ou não confiável. Nas zonas

selvagens, o Estado age fascisticamente, como Estado

predador, sem qualquer veleidade de observância,

mesmo aparente do direito. O policial que ajuda o

menino das zonas civilizadas a atravessar a rua, é o

mesmo que persegue e eventualmente mata o menino nas

zonas selvagens.

Page 19: A violência nossa de cada dia a juventude pobre na linha de tiro

A realidade posta no estado do Piauí e na cidade de

Teresina evidencia um quadro similar àquele que preocupa

o autor. Da parte do Estado, configura-se a inexistência de

políticas públicas de atendimento aos jovens em situação

de grave vulnerabilidade – mais especificamente, aqueles

que se encontram enredados no tráfico de drogas –, que

leve em consideração mínima o seu entendimento de

mundo e de vida, os percursos que não escolheram e os

processos a que foram compungidos vivenciar. Restam-

lhes as políticas de segurança pública, que se orientam

pela lógica da panoptia, do triângulo asséptico que liga

pobreza à violência e à criminalidade, levando os jovens a

um ciclo vicioso de cadeias, penas e violência policial

cotidiana. A história já pode demonstrar que esta conduta

institucional não resolve o problema da segurança pública

e tampouco aqueles de natureza social que vitimam os

jovens, mas os expõem fortemente aos valores e regras e

ao controle direto do tráfico. Este labirinto engendra

realidades de violação variadas, vindas de diversas

origens, sem rosto, voz ou nome aparentes, as quais

deixam profundas marcas no acontecer das vidas juvenis.

No fogo cruzado, os jovens passam a sobreviver como

podem, inclusive praticando violências contra si e contra

os demais.

É a juventude pobre brasileira e teresinense à deriva,

vítima da violência estatal que, ao tempo em que ignora as

demandas sociais mínimas postas pela situação de

desproteção dos jovens, culpabiliza-os pelas condições de

insegurança em que vivemos socialmente, colocando-os

na linha de tiro de ações autoritárias e policialescas. Este

assunto, no entanto, não dá audiência à mídia do

espetáculo. Mudemos de pauta...

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REFERÊNCIAS

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TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Ed.

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VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 2ª

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