a verdade sobre jesus

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Page 1: A Verdade Sobre Jesus
Page 2: A Verdade Sobre Jesus

Índice

PrefácioA humanidade que Jesus encontrouDa encarnação à idade adultaDa prisão à desencarnaçãoUm valoroso soldado de JesusPortugal independente da Espanha e sob os seus reisJuramento de D. Afonso Henriques acerca da visão que teve

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PREFÁCIO

Nenhum contemporâneo de Jesus escreveu alguma coisa sobre a sua vida e a sua obra O que se sabe a seu respeito vem da tradição oral. Nem mesmo São Paulo, cognominado o Apóstolo dos Gentios, que nasceu de uma família de origem judaica, em Tarso (Cilícia), no começo da era cristã onde recebeu o nome de Saúl, o parece ter conhecido ou sequer ouvido falar nele, antes da sua morte.

Como delegado do Sinédrio, aliás, Saúl (mais tarde Paulo de Tarso) foi implacável perseguidor dos adeptos da religião que surgia (o cristianismo) caçando-os, de casa em casa, depois de haver participado do julgamento de Santo Estevão, e votado pela sua morte.

A conversão de Saúl ao cristianismo, segundo ele próprio descreveu nos “Atos dos Apóstolos” se deu quando, como delegado do Sinédrio, de quem havia recebido a incumbência de dar caça “aos abomináveis infiéis”, em toda a Síria, ia em direção a Damasco, à frente de uma tropa armada, quando subitamente lhe apareceu, às portas da cidade, Jesus, que o lançou por terra, perguntando-lhe: Saúl, Saúl, por que me persegues?

Este livro é o resultado de uma séria pesquisa sobre a fase mais importante da vida de Jesus, que foi justamente a da pregação espiritual que o levou ao sacrifício do madeiro. A maioria do que se tem escrito sobre o nascimento e a infância desse Mestre dos Mestres, não tem qualquer suporte histórico.

O dogma da virgindade de Maria e da paternidade do Espírito Santo, criado para justificar a pretensa divindade de Jesus, é tão ridículo, tão insensato, tão absurdo, tão falto de lógica, tão inverossímil, tão contrário à razão e ofensivo às leis naturais, que não merece ser comentado.

A Verdade Sobre Jesus pretende, em resumidas palavras, reabilitar a memória daquele que as seitas religiosas, umas por ignorância e outras em defesa de interesses inconfessáveis, tanto têm enxovalhado. O sublime nazareno tem sido apresentado, a um só tempo, como um deus da paz e da guerra, como um valente e um poltrão. Reduziram-no a uma caricatura irreconhecível, atribuindo-lhe as atitudes mais contraditórias que um ser humano pode ter.

A ignorância sobre a vida real é tamanha, que certa corrente espírita, influenciada pelo dogma católico que promoveu Jesus-homem a Jesus-Deus, negou-lhe a existência física, asseverando que o seu corpo era fluídico. Será possível conceber disparate maior?

A Verdade Sobre Jesus entra na sua l7ª edição. Quando autorizamos a publicação, atendendo a diversos apelos que recebemos de amigos do Racionalismo Cristão, longe estávamos de imaginar que despertaria o interesse que vem despertando.

Os editores. Rio de Janeiro,1987.

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A HUMANIDADE QUE JESUS ENCONTROU

I

Reinava em Roma Tibério, espírito sanguinário, que se regozijava com carnificinas e vivia cercado de espiões.

Seu antecessor fora Augusto, ao qual sucedeu Nero.

Se Roma esplendeu como um grande centro de cultura, não menos se denegriu com a corrupção e vandalismo.

Quando Nero, ainda jovem, subiu ao poder, todos esperavam que por sua cultura e inspiração em filósofos sábios, se tornasse um bom romano, um imperador sábio e justo. Mas não tardou em dar mostras da loucura que lhe dominava o espírito.

Por influência do meio, tornou-se ainda mais cruel que os seus antecessores, e num requinte de perversidade, assassinou a mãe, a mulher e a amante.

Tibério ainda sabia ocultar certos barbarismos e monstruosidades nos rochedos de Capri, mas nada detinha o perverso Nero, cujo sadismo se alimentava com a tortura das suas vítimas.

Entre estas, estavam o seu velho mestre e alguns senadores e amigos que mandou friamente assassinar, não antes de submeter as esposas destes a atos obscenos e fazer com que lhes cortassem os seios e as esquartejassem ou apunhalassem.

O delírio desse louco por novas sensações levou-o a incendiar Roma, com a mesma frieza e insensibilidade com que antes mandara atirar criaturas humanas às feras esfomeadas, dando um “hurra” a cada gemido das vítimas, enquanto mastigava, gulosamente, pedaços de vitela assada, lambuzada de gordura, e se deliciava com os mais caros e aromatizados vinhos.

Por medo, o Senado e o povo aplaudiam o desalmado facínora coroado e as suas façanhas de louco! O pavor reinava em Roma, perguntando os homens sensatos por que essa sujeição a um tirano, a um monstro, a um demente?

Não viviam em boas graças os povos de Roma, Grécia, Gália e Germânia.

Os homens cultos tinham saudades do passado, das academias, e relembravam as lições dos sábios filósofos. Mas, como o povo, conservavam-se impassíveis, quedos, temendo a decapitação de suas cabeças a qualquer momento.

Nesses tempos míseros, predominada a filosofia do estoicismo, o amo batia no escravo filósofo, e ele se limitava a dizer: “Olhai que me partis os ossos”.

Mas não faltavam os adivinhos, os oráculos, os astrólogos. Os ricos os visitavam para lhes fazerem perguntas. As mulheres e os homens não acreditavam nos deuses, mas, se estes tinham os seus oráculos, aquelas possuíam seus oratórios secretos, com o Sol etiópico

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simbolizado pelo gavião, divindades fenícias, metade mulheres, metade peixes, e pedras druísticas. Não se prestava culto à Providência e, sim, à Fatalidade.

Se o futuro lhes surgia com cores inseguras, o caminho era o suicídio.

A corrupção era grande, e embora não acreditando nos deuses, homens e mulheres corriam a consultar os adivinhos e terminavam por submeter-se a verdadeiros absurdos, como ainda hoje fazem aqueles que vão às macumbas, às sessões de terreiro ouvir o “pai de santo”, o “ungô”.

A estupidez daquele tempo levava as criaturas ao absurdo de sacrificarem crianças, por ordem de oráculos, para conseguir as graças desejadas.

Com a consciência pesada, sentiam-se carecer de purificação, e para a expiação das culpas, para se lavarem das faltas, faziam-se batizar com sangue humano nas cerimonias de Mitra, indo depois passar pelo gelo do rio Tibre ou atravessar, de joelhos, o campo de Marte.

Dominavam, então, a mais profunda ignorância e corrupção, não havendo freio para as paixões, quer de reis, em seus tronos, quer de mulheres, em seus lares.

Passando-se em revista o que vai pelo mundo, não será exagero dizer-se que os espíritos daquele tempo surgiram, de uma só vez, no mundo atual!

Não estamos vendo a família periclitar? Que têm feito os apregoados moralistas?

Aproveitando esta passagem, lançamos um brado de alerta contra a devassidão, contra a licenciosidade, contra o desrespeito, apelando para os homens de caráter a fim de cerrarem fileiras em torno da família, defendendo-a e colocando-a dentro dos elevados sentimentos de amor e respeito.

Afirma-se que a história se repete, e diante dos fatos, quem poderá duvidar da asserção?

Constantemente, surgem notícias de que A ou B, se divorciou pela terceira ou quarta vez, e são de todos os dias as trocas de esposas e maridos, com filhos de várias uniões.

Com tamanha falta de moral e a decadência da família – numa época bem parecida com os nazismos e fascismos deste século –, os propagadores da raça forte e pura, os massacradores de mais de seis milhões de judeus espoliados de seus haveres, esses corruptos nazistas que, à semelhança de Nero, incendiaram o Mundo, obedientes à moral emanante dos chefes que, antes de partir para a guerra, recebiam permissão para terem relações sexuais com mulheres da raça ariana, donzelas ou não, a fim de darem à Pátria um ariano puro para substituir aquele que ia morrer, não pela Alemanha, mas pelo Führer, num quadro de decadência espiritual idêntico ao que a história nos apresenta, quando do nascimento de Jesus.

A alta evolução desse grande espírito manteve-o sempre à distância dos gozadores e devassos da época, jamais permitindo qualquer confusão com eles.

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Registremos seu aparecimento como o faz a história, e guardemos, para mais adiante, a nossa maneira de ver Jesus, o doutrinador, o filósofo espiritualista.

DA ENCARNAÇÃO À IDADE ADULTA

II

Nasceu em Nazaré – pequena cidade da Galiléia – provavelmente no ano 750 de Roma, um menino que recebeu, não na manjedoura (que é uma das muitas fábulas inventadas, sem muita imaginação, para impressionar o rebanho), mas no berço, um menino, que recebeu o nome de Jesus – alteração de Josué.

O recém-nascido viu a luz do mundo obscurecida pelas neblinas da miséria: seu pai, José, e sua mãe, Maria, viviam, penosamente, do resultado do seu trabalho manual.

A infância de Jesus transcorreu serena, num meio social acanhado, mas tão isento de influências corruptoras, quanto limpa e sã era a atmosfera de Nazaré.

Esse berço do cristianismo fica localizado numa faixa de terreno situada no cume do grupo de montanhas que fecham, pelo norte, a planície de Esdrélon.

Cercam-na jardins viçosos e pomares balsâmicos. Vastíssimos horizontes se descortinam do planalto em que se encosta. A ocidente, desenvolvem-se as formosas linhas do Carmel, rematadas por uma ponta abrupta, que parece estender-se para o mar.

Para além, avistam-se a dupla cumeeira de Magedo, as montanhas do país de Sichem, os montes Gelboé, o grupo pitoresco a que estão presas as recordações graciosas ou terríveis de Sulém e Endor, e o Tabor arredondado. Por entre Sulém e Tabor, descortinam-se o vale do Jordão e as planícies da Peréia; ao norte, as serranias de Safed encobrem São João de Acre, mas deixam ver o contorno do golfo de Caifa.

A população, pouco numerosa, alojada em habitações singelas e toscas, é alegre e de caráter brando. Ali, naquelas alturas purificadas pelos ventos das campinas, naqueles miradouros de paisagens pacíficas, não tinham guarida o fanatismo sombrio nem a implacável ferocidade do Sul; a natureza espelhava-se nos espíritos, reproduzindo neles a sua inspiração de amor.

Encerrado nesse pequeno mundo, Jesus aprendeu, de certo, o que ensinava o bazzan, o leitor das sinagogas, mas não é de crer que tivesse freqüentado a escola superior de escribas, ou o Soferim.

Não estudou grego nem se iniciou na cultura helênica, aliás muito difundida então na Judéia, nas cidades habitadas por pagãos.

O seu idioma natal era o dialeto siríaco mesclado de hebraico. A sua educação foi exclusivamente judaica; todavia, ficou tão alheio à extravagante escolástica que no seu tempo se ensinava em Jerusalém, como aos ensaios de filosofia religiosa da escola israelita de Alexandria, sendo apenas lícito supor que não desconheceu, totalmente, os princípios apostolares de Hilel.

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Se é possível deduzir da sua doutrina e dos seus atos a história de seu espírito, a leitura dos livros do Antigo Testamento causou-lhe profunda e indelével impressão. Essa leitura despertou-lhe o interesse, aliás geral, pelas interpretações alegóricas e a poesia dos Salmos.

Os profetas exaltaram a sua imaginação e foram como que os seus mestres. O Livro de Daniel, e talvez os de Enoque, começaram a modelar-lhe a inteligência. Imaginoso e crédulo, deixou-se absorver na contemplação ideal dos quadros proféticos, iluminados todos pelos raios da cólera e da glória de Jeová, e ignorante como era das realidades políticas e sociais do mundo, com facilidade se embrenhou nas regiões do sobrenatural. Logo na infância – diz-se – manifestou a inteligência dos gênios destinados a serem guias da humanidade, e conta-se que, ainda menino, discutia com os doutores na sinagoga.

O povo hebraico, oprimido pelo estrangeiro, ultrajado na sua fé e sem dinastia tradicional nem nacionalidade, refugiara-se de tantos males e tantas vergonhas no formoso sonho, na ardente esperança de um renascimento político e religioso que julgava ler nas frases patrióticas de seus profetas.

Sonhava com a restauração da casa de Davi, com o triunfo de Jeová sobre os deuses estrangeiros e de Israel sobre as nações do mundo, e tanto mais cria no seu sonho, quanto mais lhe pesava a realidade.

Estas crenças e esperanças exaltavam os espíritos, proibiam-lhes a resignação, aferravam-nos ao mosaísmo e à sua lei, impeliam-nos a procurar nos textos – discutindo-os sutilmente e forçando-lhes o sentido – revelações do futuro. Portanto, era grande a atividade mental nas escolas e nas sinagogas, e perpétua a agitação social no país.

A todo momento rebentavam sedições a pretexto do menor insulto ou vexame real ou suposto, feito pelos romanos ao culto nacional ou aos seus adeptos, e os sediciosos afrontavam a morte com a convicção dos mártires.

O fervor religioso não reagia só contra os estrangeiros; os zelotas (kanaim) tinham-se associado para matar quem, perante eles, transgredisse a lei.

Ao mesmo tempo, como acontece sempre que um povo – mormente um povo oriental que crê com fanatismo, e espera com ansiedade – surgiram, por toda parte, homens que resumiam em si o estado moral de seus concidadãos, exagerando-lhes as convicções e as aspirações, sendo ouvidos e respeitados pela credulidade até quando se lhes apresentavam como taumaturgos e adivinhos. Um desses homens foi Judas, o Gaulonita ou Galileu, que se fez chefe da revolução, a um tempo política e religiosa.

Jesus foi influenciado por esse movimento moral, aspirando, com o ar, as idéias messiânicas; ajeitou-as, porém, à índole de seu espírito, distanciando-se do mosaísmo. O seu Deus não é já o déspota que escolheu Israel como um mau pai escolhe um filho, entre muitos, para transmitir-lhe a bênção e a herança: é o Deus da humanidade.

Elevou-se acima dos preconceitos nacionais e dos dogmatismos teocráticos, para conceber um Jeová universal na sua paternidade e no seu amor. O reino de Deus ou o reino do céu que ele esperava e fazia esperar, não era o reinado do Messias ou de um novo Davi, ou, ainda, do judaísmo, e não devia ter uma realização material.

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“O reino de Deus está entre vós” – dizia. Não havia nenhuma intenção política, nenhuma aspiração nacional na concepção desse reino. Jesus despreocupara-se totalmente dos problemas que agitavam os patriotas desesperados com a dominação romana: “Dai a César o que é de César!”.

Às esperanças mundanas, apontava o céu; aos sofrimentos morais, oferecia, como consolação, a prática das virtudes: humildade, abnegação e perdão. À justiça, propunha, como suprema regra, o axioma: “Não faças a outrem o que não queres que te façam a ti”.

O amor ao próximo e a fraternidade universal deviam ir até aos extremos da mansidão: “Se algum te intentar um processo por causa da tua túnica, dá-lhe o manto”, “Ama os teus inimigos, faz o bem a quem te odeia, irradia por aqueles que te perseguem”. “Quem se humilha será exalçado, quem se exalça será humilhado”.

O Nazareno deu, pois, uma direção inteiramente nova e original às aspirações do povo hebraico, e fez sair do messianismo uma doutrina toda moral. Não falava contra a lei mosaica, mas reconhecia-lhe a insuficiência e ensinava doutrinas que realmente se lhe opunham, instituindo um culto puro, uma religião sem sacerdotes e sem cerimonias externas, baseada toda nos sentimentos, na imitação da Força Criadora, nas relações imediatas da consciência com a Inteligência Universal.

A crença formalista e ostentosa dos fariseus enchia-o de repulsa e, apesar da mansidão do seu caráter, argüia-os com veemência: “Eles receberão a sua recompensa; quanto a ti, quando deres esmola, a tua mão esquerda não deverá saber o que faz a direita, para que a tua esmola fique oculta e teu Pai, que vê oculto, a possa restituir-te”.

Quando orares, não imites os hipócritas que gostam de fazer oração em pé, nas sinagogas e cantos nas praças, para ser vistos pelos homens. Em verdade te digo que eles recebem a sua recompensa. Quanto a ti, se queres orar, entra no teu gabinete e, fechada a porta, reza a teu Pai, que está no segredo; Ele vê o oculto, e te atenderá. Quando orares, não faças extensivos discursos como os pagãos, que imaginam ser atendidos à força de palavras. Deus, teu Pai, sabe o que precisas, antes que lhe peças”.

Não praticava ascetismo, e a alta noção que tinha das relações do homem com Deus, resumia-se numa prece que compusera com frases piedosas, já usadas pelos judeus: “Pai nosso, que estais no céu...”. Com Jesus, aparece, pois, pela primeira vez no mundo, a idéia de uma religião fundada exclusivamente na pureza e na fraternidade humana, “idéia tão elevada” – diz Renan – que “nesta parte a Igreja cristã haveria de trair completamente as intenções de seu Chefe, e mesmo nos nossos dias, só poucas almas são capazes de se prestar a ela”. (Adendo de Valdir Aguilera: Ernest Renan, Vida de Jesus, Editora Martin-Claret, São Paulo, sem data).

Estas doutrinas, muito tempo meditadas em silêncio nos campos de Nazaré e de Canaã (para onde se transportara Maria, depois da morte do esposo), começaram, finalmente, a expandir-se, numa espécie de apostolado. A palavra do moço apóstolo tinha a doçura do seu caráter amorável e o prestígio das sublimes concepções morais que a inspiravam; logo o rodeavam discípulos atentos e, depois, entusiastas.

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Como os rabis do templo, Jesus encerrava os seus princípios em aforismos concisos expressivos na forma e, às vezes, enigmáticos, alguns extraídos do Antigo Testamento ou de pensadores mais modernos, como Antígonos de Soco e Jesus, filho de Sirá e Hilel.

Esses aforismos, que se gravaram na memória dos ouvintes, eram por eles repetidos, e transmitiam, de espírito a espírito, de lugar a lugar, o pensamento e a voz do mestre, com a fama da sua grande sabedoria. Os proselitismos eram, então, fáceis e prontos; era o tempo das pequenas igrejas, dos essênios e dos terapeutas. Jesus achou-se, em breve, à frente de um grupo de pobres e humildes galileus que o amavam com o reflexo de seu próprio amor imenso, e que o escutavam como se fora a voz de Deus.

Diz Renan: “... só por um esforço que não se compreende, é que se poderia, segundo a lenda, dar Jesus como nascido em Belém”.

Ignora-se a data fixa de seu nascimento. Sabe-se que foi no reinado de Augusto, pelo ano 750 da fundação de Roma, provavelmente alguns anos antes do primeiro da era que todos os povos civilizados abrem no dia em que ele nasceu. Sabe-se que o cálculo que serve de base à era vulgar, foi feito no século VI, por Dionísio, o Pequeno. Esse cálculo envolve certos dados puramente hipotéticos.

Na Galiléia, o povo era constituído por várias raças, e, dentre outras, a dos fenícios, sírios, árabes e alguns gregos. Havia muito misticismo, e muitos eram os convertidos ao judaísmo.

É impossível formular aqui qualquer questão sobre raça, ou indagar que sangue girava nas veias daquele que mais contribuiu para escurecer na humanidade as distinções de sangue. Jesus saiu da classe do povo. Seus pais eram de nascimento mediano, artífices que viviam do seu trabalho, naquele estado tão comum no Oriente, que nem é de abastança nem de miséria.

A habitação de José (pai de Jesus) é provável que muito se assemelhasse às pobres lojas iluminadas apenas pela luz que entra pela porta, e que servem, ao mesmo tempo, de oficina, cozinha e quarto de dormir, mobiliadas com uma esteira, algumas enxergas deitadas no chão, um ou dois vasos de barro e uma caixa pintada.

A família, provinda de um ou de muitos matrimônios, era bastante numerosa. Jesus tinha irmãos e irmãs, dos quais parece ter sido o mais velho.

Não afirma Renan, categoricamente, que Jesus tivesse tido instrução, mas diz: “E de crer que aprendera a ler e a escrever, segundo o método do Oriente, que consistia em meter nas mãos da criança um livro, cujo conteúdo repetia em cadência com os seus condiscípulos, até que o soubesse de cor”.

E duvidoso, portanto, que compreendesse bem os escritos hebreus na linguagem aramaica, e seus princípios de exegese, tanto quanto o podemos imaginar pelos seus discípulos, que se pareciam muito com os que então vogavam, e que são a essência dos Targuns e dos Midraschim (traduções e comentários judaicos da época talmúdica).

O mestre-escola nas pequenas cidades judaicas era o bazzan ou leitor das sinagogas.

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Pode-se supor que sobre o espírito de Jesus houvesse uma grande influência dos princípios de Hilel. Este, cinqüenta anos antes de Jesus, estabelecera aforismos que tinham muita analogia com os que depois explanara Jesus.

Pela doçura de seu caráter, pela oposição que fazia aos hipócritas e aos sacerdotes, Hilel foi o verdadeiro mestre de Jesus.

III

Não teve Jesus conhecimento da idéia nova criada pela ciência grega, base de toda filosofia, que a ciência moderna tem confirmado inteiramente, à exclusão das forças sobrenaturais, a que atribuía a singela crença das eras remotas: o governo do Universo.

Quase um século antes de Jesus, exprimia Lucrécio a inflexibilidade do regime da natureza. A “negação do milagre” – essa idéia de que tudo se produz no mundo por leis em que não tem parte alguma a intervenção pessoal de entes superiores – era do direito comum nas grandes escolas de todos os países que tinham abraçado a ciência grega.

A lenda apraz-se em mostrá-lo, desde a infância, erguido contra a autoridade paterna e saindo das vias comuns para seguir a sua vocação. É certo, pelo menos, que as relações de parentesco pouco apreço lhe mereceram. Não parece que sua família lhe tributasse grande afeto, achando-se mesmo que algumas vezes Jesus foi duro para com ela, pois – como todos os homens preocupados exclusivamente com uma idéia – chegava a ter em pouco apreço os laços de sangue.

Jesus não foi um teólogo nem um filósofo que tivesse um sistema mais ou menos combinado. Para ser seu discípulo, não era preciso assinar formulário nem pronunciar profissão de fé; bastava segui-lo.

Os adeptos das sutilezas metafísicas com que começou o cristianismo a combater, no século III, não foram, de nenhum modo, formados pelo seu fundador – Jesus. Este não teve dogmas nem sistemas, mas uma resolução pessoal fixa.

Desde cedo, Jesus entrou na ardente atmosfera que criou na Palestina idéias confusas que não provinham de nenhuma escola, pois estavam no ar e cedo passaram a influenciar o seu espírito.

Sem hesitações, ou dúvidas, subia ele ao cume da montanha de Nazaré, sentava-se, meditava e, isento de egoísmo – origem das nossas tristezas e males que nos levam a andar por caminhos contrários à virtude – não pensou senão na sua obra, na sua raça e na humanidade.

Nunca deu Jesus grande importância aos acontecimentos políticos do seu tempo. José, seu pai, faleceu antes que ele alcançasse qualquer evidência pública, ficando Maria na chefia da família, motivo pelo qual passaram a chamá-lo de “o filho de Maria”, quando o queriam distinguir dos seus homônimos. Parece que tendo ficado, pela morte do marido, como estrangeira em Nazaré, Maria se retirou para Canaã, de onde talvez fosse natural.

Nesse lugar, Jesus fixou morada por algum tempo. Exercia ele a profissão de seu pai, que era carpinteiro. Esta circunstância nem era desprezível nem molesta. O costume judaico

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exigia que o homem dedicado aos trabalhos intelectuais, aprendesse um ofício. E afirma-se que Paulo de Tarso (São Paulo), tendo tido uma educação e instrução esmeradas, era construtor de tendas.

Jesus não se casou. Toda a sua força de amor, ele a empregou no que considerava uma vocação do Alto. O sentimento em extremo delicado que nele se notava para com as mulheres, não o separou do apego exclusivo que tinha à sua idéia. Tratava as mulheres como suas irmãs.

Uma alta noção da eternidade, que não deveu ao judaísmo e que parece ter sido criação de sua alma sublime, e só dela, foi, de algum, modo, o princípio da sua força.

Para bem compreender Jesus, é preciso abstrair o que se tem metido de permeio entre o Evangelho e nós. Deísmo e panteísmo formaram os dois pólos da teologia. As miseráveis discussões da escolástica, a aridez da alma de Descartes, a profunda irreligião do século XVIII, amesquinhando Deus e limitando-o, de algum modo, por exclusão de tudo o que não fosse ele, afogaram, no seio do moderno racionalismo, todos os sentimentos fecundos da divindade.

Se Deus é, (*) na verdade, um ente determinado fora de nós, quem julga ter relações particulares com Deus é um “visionário”, e como as ciências físicas e fisiológicas nos mostram que uma visão sobrenatural é uma ilusão, o deísta que seja um pouco conseqüente vê-se na impossibilidade de compreender as grandes crenças do passado. O panteísmo, por outro lado, suprimindo a personalidade divina, está tão longe quanto é possível do Deus vivo das religiões antigas.

(*) A concepção materialista de Deus, como juiz supremo das ações humanas – um poderoso rei do Universo a distribuir prêmios e castigos – é, em tudo, contrária aos ensinamentos do Racionalismo Cristão.

Os homens que mais altamente compreenderam Deus – Çáquia-Muni, Platão, São Paulo, São Francisco de Assis, Santo Agostinho, em alguns momentos de suas vidas inconstantes –foram deístas ou panteístas?

Tal pergunta seria um contra-senso. As provas físicas e metafísicas da existência de Deus tê-los-iam deixado indiferentes. Sentiam o divino em si mesmos. Cabe a Jesus o primeiro lugar nessa grande família dos verdadeiros filhos de Deus. Jesus não tem visões. Deus não lhe falta, como a quem está fora dele; Deus está nele; ele sente-se como Deus, e tira do seu espírito o que diz de seu Pai.

Vive no seio de Deus por uma comunicação de todos os instantes; não o vê, mas ouve, sem carecer de trovões nem de sarça ardente, como Moisés, de tempestade reveladora, como Jó, de oráculo como os antigos sábios gregos, de espírito familiar, como Sócrates, do Anjo Gabriel, como Maomé.

A imaginação e a alucinação de uma Santa Teresa, por exemplo, nada valem aqui. O alheamento do soufi que se proclama idêntico a Deus, também é coisa muito diversa. Não há um momento em que Jesus enuncie a sacrílega idéia de que ele seja Deus. Julga-se em direta comunicação com Deus. Julga-se filho de Deus. A mais alta consciência de Deus que tem existido no seio da humanidade, foi a de Jesus.

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Compreende-se também que Jesus, partindo de tal disposição de alma, não era, de nenhum modo, um filósofo especulativo, como Çáquia-Muni. Nada está mais fora da teologia escolástica do que o Evangelho. As especulações dos padres gregos sobre a essência divina provêm de um espírito muito diferente – Deus – concebido, imediatamente, como Pai. Essa é toda a teologia de Jesus.

E isso não era nele um princípio teórico, uma doutrina mais ou menos provada que pretendia inculcar aos outros. Não obrigava os seus discípulos a desenvolver o raciocínio; não exigia deles nenhum esforço de atenção. Não impunha aos outros as suas opiniões, impunha-as a si mesmo.

Há almas superiores e altamente desinteressadas que apresentam, associado a muita elevação, esse caráter de perpétua atenção a si mesmas e de extrema suscetibilidade pessoal que, em geral, é mais própria das mulheres.

Esta personalidade exaltada não é egoísmo, porque homens assim possuídos de um ideal dão a vida, de bom grado, para firmar a sua obra; é a identificação do eu com o objeto por ele abraçado, levada ao limite extremo. E o orgulho para aqueles que não vêem na aparição nova senão a fantasia pessoal do fundador. E o dedo de Deus para os que vêem o resultado. Aqui vai o doido a par do homem inspirado; consiste a diferença em não ser o doido bem sucedido. Até hoje, ainda não foi concedido aos desvarios do espírito obrar de um modo sério sobre o caminhar da humanidade.

Jesus não chegou de improviso, por certo, a esta alta afirmação de si mesmo. Mas é provável que, desde os seus primeiros passos, se considerasse para com Deus na relação de um filho para com o seu pai. Está nisto o seu grande ato de originalidade, que nada tem de comum com a sua raça.

Nem o judeu nem o muçulmano compreenderam essa deliciosa teologia de amor. O Deus de Jesus não é esse ser superior, fatal, que nos mata quando lhe apraz, que nos salva quando quer. O Deus de Jesus é nosso Pai. Ouvimo-lo quando escutamos um ligeiro sopro que grita em nós: “Pai”. O Deus de Jesus não é o déspota parcial que escolheu Israel para seu povo e que o protege de todos e contra todos. É o Deus da Humanidade. Jesus não é um patriota como os Macabeus, um teocrata como Judas, o Gaulonita.

Elevando-se, desassombradamente, acima dos preconceitos da sua nação, estabelecera a paternidade universal de Deus. O Gaulonita asseverara que mais cumpria morrer do que dar a outro que não fosse Deus o nome de “Senhor”. Jesus deixa esse nome a quem quer usar dele, e reserva para Deus um título mais grato. Concedendo aos potentados da Terra, que para ele são os representantes da Força, um respeito cheio de ironia, funda a consolação suprema, o recurso ao Pai que todos têm no céu, o verdadeiro reino de Jesus que todos têm no espírito.

IV

A expressão “reino de Deus” ou “reino do Céu”, foi o termo predileto de Jesus para exprimir a revolução que ia desencadear neste mundo. Como quase todos os termos messiânicos, o nome de Deus é tirado do Livro de Daniel. Segundo o autor desse livro, aos quatro impérios romanos que hão de cair, sucederá um quinto império, que será dos Santos, e que durará eternamente.

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Esse reinado de Deus sobre a Terra amoldava-se, naturalmente, a diversas interpretações. Para a teologia judaica, o “reino de Deus” não é, quase sempre, senão o próprio judaísmo, a verdadeira religião, o culto monoteísta, a devoção. Jesus, nos últimos tempos de sua vida física, julgou que esse reinado ia realizar-se, materialmente, por uma pronta renovação do mundo. Mas, sem dúvida, não foi esse o seu primeiro pensamento.

A admirável moral que tira da noção do Deus-Pai, não é a dos entusiastas que julgam o mundo a ponto de acabar e se preparam, com ascetismo, para uma catástrofe quimérica; é a de um mundo que quer viver e tem vivido. “O reino de Deus está dentro de vós”, – dizia ele aos que procuravam, com sutileza, sinais exteriores.

A concepção realista do começo do reino divino não foi mais do que uma nuvem, um erro passageiro que a morte fez esquecer. O Jesus que fundou o verdadeiro reino de Deus, o reino dos mansos e dos humildes, é o Jesus dos primeiros dias, dias castos em que a voz de seu Pai repercutia no seu espírito com um som mais puro.

Houve, então, alguns meses, talvez um ano, em que a voz do moço carpinteiro tomou, de repente, estranha suavidade. Infinito encanto o envolvia, e os que o tinham visto até então já não o reconheciam. Ainda não possuía discípulos, e a turba que se apinhava à sua volta não formava uma seita nem uma escola, mas acusava já um espírito comum, um não se sabe quê de suave e penetrante.

Seu caráter amável é, sem dúvida, um desses aspectos deliciosos que aparecem, algumas vezes, na raça judaica; traçavam ao redor dele, digamo-lo assim, um círculo de fascinação, ao qual quase ninguém, no meio dessas populações benévolas e singelas, podia escapar.

Com efeito, o paraíso teria sido transportado para a Terra, se as idéias do jovem mestre não tivessem excedido muito aquele nível de bondade medíocre, acima do qual ninguém tem podido, até hoje, elevar a espécie humana. A fraternidade dos homens e as conseqüências morais que dela resultam eram deduzidas, com delicado sentimento.

Como todos os rabis daquele tempo, Jesus, pouco afeito aos raciocínios seguidos, encerrava toda a sua doutrina em aforismos concisos, de forma expressiva, às vezes enigmática e singular. Algumas dessas máximas eram colhidas nos livros do Antigo Testamento. Outras em pensamentos de sábios mais modernos, como Antígono de Soco, Jesus, filho de Sirá, e Hilel que tinham chegado ao seu conhecimento, não em conseqüência de sábios estudos, mas como provérbios muitas vezes repetidos.

A sinagoga era rica em máximas enunciadas com muita felicidade de expressão, que formavam uma espécie de literatura proverbial corrente. Jesus adotou quase toda essa instrução oral, mas imprimindo-lhe o cunho de um espírito superior. Aquilatando os deveres traçados pela lei e pelos antigos, ele queria a perfeição. Todas as virtudes de humildade, de desculpa, tolerância, abnegação, de rigor para consigo mesmo – virtudes que justamente foram apelidadas de cristãs, se se quer dizer, por essa forma, que elas foram, em verdade, pregadas por Jesus – estavam em embrião nesses primeiros preceitos. Quanto à justiça, contentava-se em repetir o axioma já conhecido: “Não faças a outrem o que não desejas que te façam”. Mas essa velha sabedoria, ainda muito egoísta, não o satisfazia.

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V

Jesus não falava contra a lei mosaica, mas conhecia a sua insuficiência, como o dava a entender. Repetia que era preciso fazer mais do que os antigos sábios tinham feito, condenava o juramento, censurava a pena de Talião, reprovava a usura, aconselhava um culto puro, uma religião sem sacerdotes e sem práticas exteriores, toda baseada nos sentimentos elevados, na imediata relação da consciência com Deus ou Força Criadora.

Revolucionou o judaísmo com suas idéias, e os sacerdotes não o desculpavam por isso. “Para que medianeiros entre o homem e seu Pai? – perguntava. Vendo Deus somente como espírito – perguntava: – de que servem essas purificações essas práticas martirizantes, que não passam além do corpo?”.

A hipocrisia dos fariseus que voltavam a cabeça, quando oravam, para ver se alguém os estava observando, que davam esmolas publicamente e punham nas vestes sinais que os denunciavam como pessoas piedosas, todas essas momices de falsa devoção o indignavam.

“A ti te digo que, quando quiseres orar, entra no teu gabinete, e depois de fechares a porta, ora a teu Pai, que está oculto, mas vê na profundidade do segredo. E, quando orares, não faças largos discursos como aqueles que imaginam que devem ser atendidos à força de palavras. Deus conhece as tuas necessidades antes que alguma coisa lhe peças”.

Fazia saber que a oração grega ou romana foi sempre um palavreado enfatuado e cheio de egoísmo. Nunca um sacerdote foi capaz de dizer ao seu fiel: “Se quando trouxeres a tua oferenda ao altar te lembrares que o teu irmão tem alguma queixa contra ti, deixa ficar a oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; volta depois, e farás, então o teu oferecimento”.

Na Antigüidade, só os profetas judeus, especialmente Isaias, na sua antipatia contra o sacerdócio, tinham suspeitado da verdadeira natureza do culto que o homem deve a Deus.

“Que me importa o grande número das vossas vítimas? Já estou saciado, a gordura das vossas ovelhas enoja-me, importuna-me o vosso incenso, porque vossas mãos estão cheias de sangue. Purificai os vossos pensamentos, deixai de fazer o mal, aprendei a praticar o bem, procurai a justiça e vinde depois”.

O espírito humano do tempo pendia para as pequenas igrejas e o movimento dos Essênios e Terapeutas. De toda parte surgiam rabis, cada um com suas doutrinas – Schomia, Abtalion, Hilel, Schammai, Judas, o Gaulonita, Ganvaliel e muitos outros, cujas máximas compuseram o Talmude, que, em verdade, começou a ser escrito no segundo século da nossa era. No tempo de Jesus, escrevia-se muito pouco; os doutores judeus desse tempo não faziam livros; tudo se passava em palestras e lições públicas, às quais se procurava dar uma feição que se não pudesse esquecer.

O moço carpinteiro de Nazaré começou a difundir, publicamente, as suas máximas, em sua maior parte já conhecidas, mas às quais imprimia o cunho de quem quer regenerar o mundo. Ele era visto, apenas, como um rabi a mais, mas a verdade é que começou a influenciar pessoas de não larga idade que, ansiosas, já o procuravam, em conjunto, para ouvi-lo. Ainda não havia cristãos; entretanto, o verdadeiro cristianismo estava fundado.

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Jesus chegou a travar relações com um homem, que diziam ser extraordinário.

No décimo quinto ano do reinado de Tibério, surgiu, na Palestina, Iocanã, ou João, moço ascético, possuído de fogoso entusiasmo, e que era da casta sacerdotal. Desde a sua infância, João foi Nazir, sujeito, por voto, a certas abstinências. Atraiu-o o deserto da Judéia, e ali passava a vida, como se fora um iogue da Índia, vestido de peles ou panos fabricados com pêlo de camelo, comendo, apenas, gafanhotos e mel silvestre.

O povo tinha tal confiança em João que até o julgava a ressurreição (encarnação) do profeta Elias. A crença nas ressurreições era vulgar naquele tempo, chegando muitos a pensar que Deus ia fazer levantar de seus túmulos alguns dos antigos profetas para guiarem Israel ao seu destino final. Havia também quem supusesse que João era o próprio Messias. Ele pregava contra os sacerdotes ricos, contra os fariseus, contra o judaísmo oficial e, como mais tarde Jesus, era acolhido pelas classes menosprezadas.

Jesus esteve propenso a seguir João, mas este nunca pensou em criar uma religião, e Jesus almejava um sistema religioso puro. O estilo de João, em seus discursos, era severo e duro. As expressões de que se servia contra os seus adversários eram das mais violentas.

João foi, por isso, preso. Jesus prosseguiu e, em muitas ocasiões, explanava tal qual João. Não o podemos considerar propriamente mestre de Jesus, pois cada um criou a sua escola, ambos eram jovens, estimavam-se, e foi Jesus um dos primeiros a saber da sua morte, ficando fiel e grato à sua memória.

Bem cedo João fora impedido de prosseguir em sua carreira profética. A extrema vivacidade com que se exprimia criava embaraços aos potentados. Antipas, o tirano, vivia em sobressalto com as prédicas de João, e o mandou, por isso, prender e encerrar na fortaleza de Machero, onde, por certo, terminou morrendo torturado. Mas era tanta a fé depositada nele, que os discípulos confiavam na sua vinda próxima, como Messias.

Até à morte de João (verão do ano 31), Jesus conservou-se nas vizinhanças do mar Morto e do Jordão. A escola de João acanhou-se, e a de Jesus se ampliou. Com João, aprendera Jesus a ter mais ação, mais força nas suas pregações, passando este a apresentar-se às massas com mais autoridade e confiança nas suas idéias espirituais.

Ambos haviam chegado à conclusão de que o mal reinava no mundo: os reis matavam os profetas, os sacerdotes e os doutores não faziam o que recomendavam que os outros fizessem, os justos eram perseguidos e aos bons só cabiam as lágrimas. Um mundo assim, pensavam, era inimigo de Deus.

Jesus deixou de ser o conformado a pregar o reino dos céus, para transformar-se no revolucionário transcendente a querer renovar o espírito da humanidade, começando pelas bases, com o propósito de fundar na Terra o ideal que concebeu.

Quando Jesus falava no reino de Deus, emprestava-lhe um sentido moral de elevado alcance social.

Judas, o Gaulonita, mostrara a Jesus a inutilidade das sedições populares, e daí ser pouco provável que ele tenha tido qualquer interferência na política. A revolução que Jesus quis levar a cabo era moral. O verdadeiro cristão, pois, é isento de peias. A liberdade para ele

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não existe fora da Verdade. A pátria não é tudo; o homem é anterior e superior ao cidadão.

Compreendamos melhor a posição de Jesus, e a influência da sua força e do seu prestígio como doutrinador. O deísmo do século XVIII, e certo protestantismo, têm-nos habituado a considerar o fundador do que chamamos cristianismo somente como um grande moralista, como um benfeitor da humanidade. Já não vemos, no Evangelho, senão boas máximas; daí o lançarmos prudente véu sobre o estranho estado intelectual em que ele veio à luz.

Não acreditemos que se possa mover o mundo com a simples idéia da felicidade ou da moralidade individual. O pensamento de Jesus foi mais profundo; a sua idéia revolucionária deve ser tomada no seu todo, e não com aquelas tímidas supressões que lhe subtraem, precisamente, o que lhe deu maior eficácia para a regeneração da humanidade.

Na essência de um ideal há sempre uma utopia, mas quando queremos representar o nazareno da consciência moderna, o consolador, o juiz dos novos tempos, fazendo o que ele fez há séculos, passamos a imaginá-lo – com as condições do mundo real muito diversas do que elas são – como um libertador moral quebrando, sem armas, os ferros que algemam o negro, melhorando a condição do proletário, libertando as nações atribuladas.

Mas, diante dos fatos, o que vemos? Vemos revoluções e guerras, o sangue jorrando pelas ruas, os campos enchendo-se de cadáveres, as sementeiras, as árvores queimadas e tudo destruído – num chocante contraste entre o ideal e a triste realidade.

Jesus ainda não faz mais do que comunicar os seus pensamentos a algumas pessoas secretamente atraídas para ele. Está com trinta anos. É agora que inicia suas preleções públicas. É de crer que a ele chegassem muitos dos admiradores de João, o Batista. Forma o seu primeiro núcleo, que anuncia, ousado, logo que volta à Galiléia.

As idéias judaicas são avessas à arte e à mitologia; a simples forma do homem tinha superioridade sobre a dos querubins e animais fantásticos, que a imaginação do povo, desde que sofrera a influência da Assíria, supunha dispostos, em ordem, em torno da divina majestade. Ezequiel, porém, dizia: “O ser assentado no trono supremo, muito acima dos monstros do carro misterioso, o grande revelador das visões proféticas, tem a figura de um homem.”

No Livro de Daniel, no meio da visão dos impérios representados por animais, no momento em que se inicia a sessão do grande julgamento e em que são abertos os livros, um ser, “semelhante a um filho do homem”, se aproxima do Ancião dos Dias, que lhe confere o poder de julgar o mundo e de governá-lo por toda a eternidade.

Nas línguas semitas, a expressão “filho do homem”, é simplesmente um sinônimo de homem. Mas tal impressão causou o Livro de Daniel, que chegou a ser, em certas escolas, um dos títulos do Messias. Jesus, aplicando-o a si, proclamava a sua messianidade e afirmava a próxima catástrofe, em que havia de figurar como juiz.

Um magote de homens e mulheres, todos caracterizados por igual espírito de candura juvenil e de singela inocência, aderiram a ele, e disseram-lhe: “Tu és o Messias”. E como o Messias havia de ser filho de Davi, conferiram-lhe esse título, que era símbolo do

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primeiro. Isso não deixou de causar embaraço a Jesus, por haver ele nascido do povo e não de reis. Para Jesus, nenhum título era mais honroso do que o de “Filho do Homem”.

Em Cafarnaum, onde, mais tarde, veio a residir, foi hospedado em casa de um homem de nome Jonas, pai dos irmãos André e Simão, cujo sobrenome era Cefas ou Pedro. Nasceram em Betsaída, mas estabeleceram-se em Cafarnaum. Pedro era casado, e tinha filhos. Jesus sentia-se bem na casa de Pedro. André fora discípulo de João Batista, e já conhecia Jesus de vista. André e Simão ou Pedro eram pescadores, e Jesus, brincando, lhes dizia: “Hei de fazer-vos pescadores de homens”.

Eram grandemente dedicados a Jesus. Da família Zabdia ou Zebedeu, pescadores ricos, descendiam Tiago e João, ambos admiradores também de Jesus. Salomé, mulher de Zebedeu, acompanhou Jesus até à morte, como sua fiel discípula. Surgiu, depois, Maria Madalena, mulher de grande formosura, que também acolheu os ensinamentos de Jesus. Outras mulheres, algumas ricas, gostavam de ouvi-lo, e choraram, mais tarde, a sua morte.

De quando em quando, ele se reunia em conferência com Pedro, Tiago e João. Formavam uma espécie de junta íntima e, através deles, Jesus se inteirava do que se passava entre os que duvidavam dos seus ensinamentos.

Era extrema a afeição de Jesus por Pedro. Este possuía caráter reto, sincero e obediente, era pouco místico, comunicava a Jesus as suas dúvidas, as suas repugnâncias naturais, as fraquezas puramente humanas, mas sempre com uma franqueza respeitosa. Por vezes, Jesus o repreendia, em termos amigáveis, sem lhe faltar com a confiança e estima.

João era mais novo do que Pedro, e Jesus tinha por ele carinho paternal. Era tal a admiração de João por Jesus, que a conservou até à velhice e, ao fazer a sua biografia, por certo deturpou um pouco a verdade dos fatos.

É o mal dos homens. Platão, como biógrafo de Sócrates, fez o mesmo. Só via qualidades no mestre, apresentando-o ainda maior do que foi. De igual modo procedem os homens, quando inimigos. Deturpam a realidade dos fatos, as ações generosas, escondem, sem escrúpulo, a verdade, para prejudicar aqueles que lhes fizeram sombra ou que foram ou são seus desafetos.

Jesus servia-se da casa de Simão ou Pedro, para fazer preleções sobre a sua doutrina, e o povo já considerava Pedro um grande entre aqueles que seguiam os ensinamentos de Jesus.

A Pedro deu o sobrenome siríaco Kefa (pedra), dando a entender que fazia dele a pedra angular do seu edifício doutrinário. Isso causou inveja a Tiago e João, tendo a mãe deste perguntado a Jesus por que preteria seus filhos por Pedro!

Jesus doutrinou-a, mas a inveja contra Pedro continuava. Talvez por isso é que Jesus se referia a João como discípulo querido, para colocá-lo em situação de igualdade com Pedro.

Os homens, dois mil anos depois, continuam com iguais sentimentos: são maus e invejosos.

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As preleções de Jesus eram suaves, doces, porque impregnadas da essência da natureza, mas, por vezes, causticantes. Amava as flores e o campo, de onde tirava, às vezes, lições úteis.

Havia grande analogia entre os ensinamentos de Jesus e os de Buda. Jesus, com sua filosofia transcendental, fundou o alto espiritualismo, o qual, no decurso de séculos, tem enchido muitos espíritos de alegria na sua passagem por este mundo.

VI

Compreendeu Jesus que o mundo oficial e os ricos não aceitavam, por conveniência, os seus princípios filosóficos, mas sentiu que era compreendido pelos humildes e pelos simples, sendo essa a razão de lhe haverem atribuído falsamente os seus biógrafos tantas parábolas por ele nunca proferidas.

Como poderia Jesus, homem inteligente, dizer: “O reino de Deus é dos pobres de espírito”; “O reino de Deus é para as crianças, para os enjeitados, vítimas da arrogância social”? E outras tolices, como: “Só os pobres serão salvos”; “Está próximo o reinado dos pobres”. “Ai de vós, ricos, que tendes no mundo a vossa consolação”?

“Quando derdes um banquete, não convideis os vossos parentes, amigos e vizinhos ricos, porque vos convidariam depois, e teríeis a paga do convite. Convidai os enfermos, os coxos e os cegos, porque de tudo sereis pago na ressurreição dos justos”. “Dar aos pobres é emprestar a Deus”.

Esse gosto exagerado pela pobreza, não podia ser de larga duração, por representar uma simples utopia.

Como todos os grandes homens, Jesus era afeito ao povo e folgava em falar-lhe. Seu pensamento se encaminhava para os pobres e, confortando-os, dava-lhes a boa nova da salvação. Assim é que todos os enjeitados do judaísmo ortodoxo eram seus prediletos.

O amor pelo povo, o sentimento do caudilho democrático que faz viver em si o espírito das turbas, do qual se reconhece seu intérprete natural, mostravam-se, a cada passo, nos atos e discursos de Jesus. Encontrara ele, nessa gente que vivia fora das regras comuns, mais distinção e altos sentimentos do que em uma burguesia pedante, formalista, orgulhosa, com apenas aparente moralidade. Os fariseus, exagerando as prescrições mosaicas, chegaram ao ponto de se julgar maculados pelo contato de homens menos severos do que eles. Os fariseus e os doutores diziam:

“Vejam com que gente ele come!”

Ironicamente, respondia Jesus:

“Os homens que têm saúde, não são os que carecem de médico”. “O pastor que perdeu uma ovelha, das cem que apascentava, deixa ficar as noventa e nove para ir ao alcance da perdida, e, depois que a encontra, a leva, alegre, nos ombros, para o rebanho”.

Verberante, analisava os fatos e jamais deixou de aproximar-se do que errou, para ajudá-lo a sair do erro, e depressa deixava o rico, para aproximar-se do que havia perdido os

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haveres. Não tinha afetações exteriores, nem mostras de estudada austeridade. Não se furtava à alegria e, de bom grado, ia aos festejos de noivados. Ele mesmo o dizia:

— “Mais feliz, ainda, é aquele que, desprendido de ilusões, em si mesmo produz a aparição celeste, e sem sonho milenário, sem paraíso quimérico, sem sinais do céu, mas só pela retidão da sua vontade e pela poesia de seu espírito, sabe de novo criar em si o verdadeiro reino de Deus”.

A notícia dos bons sucessos doutrinários de Jesus, previstos por João Batista, chegava até à sua prisão. O povo já se convencia de que chegara o Messias anunciado pelos profetas.

João quis certificar-se da verdade dos boatos e, como recebia na prisão a visita de seus discípulos, escolheu dois deles para irem à Galiléia ouvir Jesus.

Os dois discípulos, que encontraram Jesus no auge de sua reputação, participaram-lhe a mensagem de João Batista, e voltando ao cárcere, revelaram ao prisioneiro o que viram, sendo de crer que este tivesse morrido contente por estar certo de viver já aquele que anunciara.

As disposições indulgentes que Herodes Antipas demonstrara, no princípio, para com João, não podiam ser muito duradouras. João insistia em afirmar ser o casamento do Tetrarca da Galiléia ilícito, e que devia repudiar Herodíades, a mulher com quem vivia, passando a censurar a vida escandalosa que levava. Herodes mandou prendê-lo. Do cárcere, João trocou ainda mensagens com Jesus.

Parece que o Tetrarca estava disposto a perdoá-lo, mas Herodíades, a neta de Herodes, o Grande, devotava-lhe ódio de morte e jurara vingança. Num aniversário de Antipas, Herodíades instigou sua filha Salomé a pedir-lhe a cabeça de Batista. O pai acedeu, contrariado. O executor desceu ao cárcere e dele voltou trazendo, num prato, a cabeça de João. Recebeu-a Salomé, e entregou-a à mãe.

Os discípulos de João Batista obtiveram o corpo do seu mestre, depositando-o num túmulo. O povo ficou desgostoso. Seis anos depois, Harret, acometendo Antipas para reconquistar Machero e vingar a desonra de sua filha, derrotou-o, fragorosamente, e esta derrota foi considerada, pelos admiradores de João, um castigo pela sua morte.

A notícia da morte de João foi levada a Jesus, por seus discípulos. O último passo que ele dera, junto a Jesus, acabara por estabelecer estreitas relações entre as duas escolas.

Jesus, que sempre falara de João com grande admiração, receando que aumentasse a malquerença de Antipas, tomou algumas precauções e retirou-se para o deserto, deixando patente que João Batista havia encarnado todo o querer de Elias, e que ele era o Messias prometido. João passou à história como era na realidade: austero preparador e triste pregador de penitências. Foi ele quem abriu a era dos mártires cristãos.

A escola de Batista – que não morreu com o seu fundador – viveu algum tempo como distinta da de Jesus. Mais tarde, com a morte de ambos os pregadores – João e Jesus – algumas pessoas permaneceram em uma e outra. Houve luta doutrinária, posteriormente, com João, o Evangelista, combatendo a cerimônia do batismo de João Batista.

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Jesus ia a Jerusalém quase todos os anos, pela festa da Páscoa. Ao que parece, foi no ano de 31, depois da morte de João, que se verificou a mais importante estada de Jesus na capital. Seguiam-no muitos discípulos. Jesus dava pouca ou nenhuma importância à peregrinação, mas não a desprezava, para não irritar a opinião judaica, que ainda não combatera.

A comunidade galiléia era muito estranha ao país. Jerusalém era uma cidade de pedantismo, de acrimônia, de disputas, de ódio e baixezas de espírito. O fanatismo era extremo, e as sedições religiosas muito freqüentes.

A Renascença, porém, introduziu em todos os ensinos – mesmo os mais rebeldes – uma parte das boas letras e do bom método que fez com que a escolástica tenha tomado mais ou menos uma tintura de humanidade.

O serviço do culto trazia consigo um sem-número de atos repugnantes, especialmente operações mercantis, que davam ensejo a se estabelecerem lojas no recinto sagrado. Vendia-se ali o gado para os sacrifícios; havia mesas para cambiar o dinheiro, e os oficiais inferiores do templo exerciam as suas funções com a vulgaridade dos sacristãos.

Jesus, então, dizia: “A casa da oração está convertida em covil de ladrões”. Conta-se que um dia, não podendo sofrear a cólera, azorragou aqueles desprezíveis vendedores, deitando-lhes, por terra, as mesas.

Dizia-se também que Jesus era pouco afeito ao templo. O culto por ele concebido não podia admitir aquelas cenas, mais próprias de açougues. Desagradavam-lhe todas as velhas instituições judaicas, e doía-lhe a alma ver-se obrigado a conformar-se com elas.

O tempo excluiu os não-judeus de seu recinto, através de editais desdenhosos.

O orgulho do sangue começa a ser combatido por Jesus, que já não se considera judeu e passa a ser revolucionário, no mais alto grau, chamando os homens para um culto único – o do amor ao próximo. Proclama os direitos do homem, no sentido universal, e não os do judeu; a religião do homem, não a do judeu; a redenção do homem, não a do judeu. Distancia-se de Judas, o Gaulonita e de Matias Margalot, que pregavam a revolução, em nome da lei.

Jesus fundara a religião da humanidade, estabelecida não sobre o sangue, a matéria, mas sobre o espírito. Moisés é excedido por Jesus; o templo já não tem razão de ser, e está irrevogavelmente condenado.

Os judeus passaram a considerar Jesus um inimigo, por ele ter deitado por terra todas as práticas dos devotos da carne, das momices, e do sacrifício de cordeiros “divinos”...

Jesus não dava apreço aos jejuns. Ele queria a prática do bem e a desculpa recíproca. Nisso consistia a sua lei. Nos ensinamentos de Jesus não há nada de sacerdotal. O padre prega o sacrifício público, dissuade da oração íntima secreta, por saber que ela dispensa os intermediários, portanto, eles próprios.

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Renan assevera que no Evangelho não é encontrada a recomendação de qualquer prática religiosa atribuída a Jesus. O batismo não tinha qualquer valor para ele, e quanto à oração, somente a admitia quando partia do espírito e era feita com pensamentos elevados.

Jesus atacou os guardadores do sábado, hoje chamados “sabatistas”, que são um ramo religioso protestante. A guarda do sábado era um pretexto para miseráveis disputas de jesuítas e raiz de crenças supersticiosas; por isso mesmo, Jesus se comprazia em desafiar seus adversários, violando, abertamente, a guarda do sábado.

Às censuras que por isso lhe faziam, respondia com agudas zombarias. Censurava um sem-número de cerimônias modernas, muito apreciadas pelos devotos. Para as abluções, para as sutilíssimas distinções das coisas puras e impuras, não tinha contemplação, e indagava:

— “Também podeis lavar a vossa alma? O que conspurca o homem não é o que ele come, mas o que lhe sai do espírito”. “Raça de víboras” – acrescentava em segredo – “não falam senão no bem, mas são maus no interior. Da boca só sai o que já não cabe no espírito.”

O jovem Jesus, democrata judeu, não admitia outro senhor que não fosse Deus, e não podia tolerar as honrarias prodigalizadas aos soberanos, nem os títulos, muitas vezes mentirosos, que lhes eram dados.

Nas suas preleções, Jesus dava a entender que as religiões separam os homens, que estes precisam unir-se pelos sentimentos de fraternidade, que cada um se deve condoer do sofrimento do outro, sem distinção de crença ou seita. A fraternidade humana, na sua concepção mais alta, era a essência de todas as suas preleções na Galiléia ou Jerusalém. Alguém lhe perguntara:

— “Nossos pais adoravam sobre a montanha. Vós desejais que se vá adorar em Jerusalém?” Ao que Jesus respondera: “Em verdade te digo que chegará o momento em que ninguém precisará subir a montanha nem ir a Jerusalém para adorar o Pai. Os verdadeiros adoradores só o adorarão em espírito e verdade”.

Nunca disse Jesus maior verdade.

Havia ele fundado o culto puro, sem data, sem pátria, sem sacerdotes, que todos os espíritos, pela elevação dos sentimentos, hão de celebrar, por todo o sempre, por ser o culto da verdade.

Jesus nunca admitiu a existência do milagre, e jamais se inculcou homem sobrenatural ou enviado divino para fazer curas.

A Medicina, instituída na Grécia cinco séculos antes de Jesus, era, em sua época, desconhecida na Judéia pelos judeus da Palestina. Na Judéia, a Medicina era o que ainda é hoje em muitas partes, principalmente no Oriente: nada científica, e entregue às superstições e à inspiração individual.

Em tal indigência de conhecimentos científicos, a presença de um homem superior que trate o doente com carinho e lhe dê, por alguns sinais sensíveis, a esperança de seu restabelecimento, é, muitas vezes, um remédio decisivo.

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Em muitos casos, salvo o de lesões perfeitamente caracterizadas, o contato de uma pessoa dedicada e amiga vale tanto ou mais do que drogas da farmácia. A alegria de ver curada a criatura amiga, às vezes cura.

Jesus, como os seus compatriotas, não tinha a idéia do que fosse uma ciência médica racional. No entanto, pensava que se a doença era um castigo por uma infração espiritual, devia ser normalizada por pensamentos de valor.

Havia, no tempo de Jesus, bastante loucos na Judéia, em virtude de se entregarem às dissoluções e às bebidas. Muitos, ouvindo Jesus falar, se corrigiram e modificaram suas vidas. A influência espiritual do homem que ouviam, fazia bem àqueles infelizes.

Há muita falta de verdade nas curas que uma grande parte de religiosos fanáticos atribui a Jesus. Este, como qualquer outro homem, não podia alterar as leis em que se esteia a vida, por serem estas imutáveis.

VII

Durou, apenas, dezoito meses, a verdadeira ação doutrinária de Jesus.

Durante esse tempo, não acrescentou nada mais ao que vinha pregando, porém se tornou mais enérgico em suas palavras, a ponto de ser tomado, algumas vezes, por um caudilho democrático.

Mas a revolução desejada por Jesus consistia apenas na criação de um culto novo, mais puro do que o de Moisés. Ele nunca teve nem queria ter a Terra, nem ricos da Terra, nem o poder material, como coisas dignas de seus cuidados. Não teve qualquer ambição exterior. Devotado, de todo, ao seu ideal espiritualista, nunca saiu da sua desdenhosa pobreza. Julgaram-no uma espécie de Chaning ou de “Vigário Saboiano”, tal era a pureza dos sentimentos que revelava.

Jesus jamais marcou prazo para a sua volta à Terra. Interrogado sobre se viria e quando seria a sua vinda, recusou-se sempre a responder, tendo, porém, dito certa vez: “Esse dia só o sabe o Pai”, adiantando que era preciso que todos estivessem atentos, prontos, para o dia da partida de cada um deste mundo, conservando sua lâmpada acesa e velando pela vida, como alguém que chega de improviso para um cortejo.

Com isto quis dizer que o homem deve manter lúcido o raciocínio e vigilante o seu espírito, para, à medida que os anos forem passando, não ser colhido inesperadamente pela chamada morte, a desencarnação, e fique a lâmpada (espírito, luz) apagada, em trevas, na atmosfera da Terra.

Eis o motivo de suas palavras: “sempre prontos para partirem, para velarem e ter a sua lâmpada acesa”.

Jesus afirmava sempre que não há, na vida eterna, diferença de sexo. Que homem e mulher só existem na Terra. Ao falar da ressurreição, quis apenas significar que todo espírito tem de redimir-se de suas faltas.

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O mundo não acaba, como supunham seus discípulos, mas é renovado, como previa Jesus. Seu pensamento foi fecundo e, se não chegou a ser compreendido em seu tempo, pelo simbolismo que muitas vezes empregava em suas palavras, o foi mais tarde, e agora mesmo o está sendo pelos que melhor analisaram e analisam o seu pensamento. Daí o terem produzido seus ensinamentos frutos eternos.

A doutrina de Jesus teve sempre um alcance muito mais amplo do que aquele que lhe emprestou a Igreja. Ela deixou base para a criação de um mundo melhor para a humanidade. Elias ou Jeremias, se ao tempo de Jesus voltassem à Terra, não explanariam princípios tão certos.

O reino de Deus, tão falado por Jesus, não era se não o bem, uma ordem de coisas melhores do que as existentes, o reinado da justiça, para cujo estabelecimento deve contribuir cada ser humano, na proporção das suas forças morais e intelectuais.

Tudo na mente de Jesus era concreto e substancial, embora parecendo, e sendo, às vezes, místico. Na verdade, ele foi o homem que mais convictamente acreditou na realidade da vida e na autenticidade de um ideal espiritualista.

Abraçando as utopias do seu tempo e da sua raça, com elas soube proclamar altas verdades. Seu reino de Deus não era o próximo apocalipse que, segundo a lenda, estava iminente a manifestar-se no céu, mas, sim, e sem dúvida, o reino do espírito, criado pela liberdade e pelo sentimento que move o homem virtuoso. Ele queria a religião pura, sem práticas místicas, com o homem transformado num templo entesourado de virtudes.

O Novo Testamento está desabonado pelos absurdos que contém, e não pode deixar de ser tido como de importância secundária e ininteligível, alterado, que foi, de mil maneiras, e repelido por todos os estudiosos dos porquês da vida.

Não se duvida que Jesus tenha escolhido a Pedro, dentre os seus discípulos, para dar prosseguimento à sua pregação espiritualista.

Os dois filhos de Jonas, os dois de Zebedeu, Tiago, filho de Cleofas, Felipe Nataelbar –Tolmai, Tomás, filho de Alfeu ou Mateus, Simão, Zelota, Tadeu ou Lebeu, Judas de Cariote eram os doze da tribo de Israel que formavam um corpo de discípulos privilegiados, em que Pedro conservava a sua primazia toda fraterna e paternal, desde que Jesus lhe confiara a responsabilidade de propagar a sua obra.

Logo após a desencarnação de Jesus, houve muitos impostores, como os há, em grande número, hoje, a explorar a credulidade popular, em seu nome.

Uma só vez Jesus se pronunciou sobre o casamento, com clareza, proibindo o divórcio para constituir novo casamento, sem motivo justificado. Não aparece nos ensinamentos de Jesus nenhum motivo para lhe atribuírem o direito canônico.

Condenando o batismo, Jesus explicou: o espírito não se batiza, e só se purifica pela prática das boas ações. O batismo do espírito, portanto, para aqueles que pensam e raciocinam sobre a vida, está em os pais educar e instruir seus filhos, de modo a que eles sejam sempre úteis ao todo, que é a humanidade, da qual todos fazem parte.

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Sempre esteve longe do pensamento de Jesus a idéia de um livro religioso que contivesse um código e artigos de fé. Jesus não só não o escreveu, como até era contrário ao espírito da seita nascente e à composição de livros sagrados.

Os Evangelhos tiveram, a princípio, um caráter puramente particular e uma autoridade muito mais estreita do que lhes atribui a tradição.

Jesus anuncia aos que o querem seguir grandes perseguições e ódios do gênero humano. Serão como os cordeiros no meio dos lobos. Serão flagelados e arrastados para as prisões. O irmão será atraiçoado pelo irmão, e o filho pelo pai. E dizia mais: “Não sejam temidos aqueles que tiram a vida do corpo, porque eles nada podem sobre o espírito”; “Se alguém quer ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, e siga-me”.

O Evangelho, por seus absurdos, não passa de uma utopia perante os ensinamentos de Jesus. A moral, vinda dos Evangelhos, se tomada a sério, levaria os povos à inércia, à indiferença por tudo que torna a vida útil na Terra. Um exército de mendigos seria visto se fosse admissível ser “o reino de Deus para os pobres”.

Nos últimos tempos da vida de Jesus, era ele visto menos afável, áspero mesmo, a ponto dos seus discípulos, por vezes, dizerem que não o compreendiam.

Algumas vezes, quando o contrariavam, o seu mau-humor o levava a praticar atos inexplicáveis e, na aparência, absurdos. Não porque sua virtude diminuísse, mas porque a sua luta pelo ideal tornava-se cada vez maior e mais irrealizável.

Isso o magoava e indignava, porque via cair sobre ele o ódio e as prevenções que condenam a idéia, desde o momento em que ela procura converter os homens. O tom que adotara em suas dissertações, chegava a ser temerário.

A morte viria desembargar uma situação excessivamente crítica, e barrar-lhe um caminho já sem saída.

No primeiro período de vida, Jesus não encontrou oposição séria à sua carreira filosófica. Sua pregação, em virtude da excessiva liberdade que se gozava na Galiléia e do número de pregadores que sumiam de toda parte, só teve importância em uma sociedade muito limitada. Mas depois de haver penetrado no caminho brilhante de suas explanações, começou a tempestade espiritual a bramir.

Por mais de uma vez teve de esconder-se e fugir, não porque Antipas o incomodasse, mas por ter corrido o boato de que outro não era ele senão João Batista, ressuscitado de entre os mortos.

Antipas, diante desse boato, ficou inquieto e empregou toda a astúcia para afastar de seus domínios o novo profeta, cujo proceder pacífico, contrário às agitações populares, tranqüilizou, por fim, o Tetrarca, dissipando o perigo.

As lutas do moço nazareno contra a hipocrisia oficial eram, todavia, contínuas. Jesus era mais do que o reformador de uma religião antiquada: era o criador da eterna religião espiritualizadora da humanidade.

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Os aristocratas de Jerusalém desdenhavam de Jesus, mas consentiram que os homens simples o tivessem por profeta. Havia, porém, desencadeada uma guerra de morte contra Jesus, por ser ele um espírito novo que aparecia no mundo e fazia decair tudo quanto o havia precedido.

João Batista era profundamente judeu, mas Jesus era-o muito pouco. A Jesus interessava sempre, e acima de tudo, a delicadeza do sentimento moral. Não disputava senão quando argumentava com os fariseus. Por vezes, procedia com ironia. Os fariseus, cheios de ódio, não podiam admitir que esse mestre da ironia deixasse de pagar com a própria vida o seu triunfo.

Desde a Galiléia, os fariseus procuravam atingir Jesus, empregando, contra ele, as manobras que deveriam, mais tarde, surtir bom efeito em Jerusalém.

VIII

De há muito que Jesus pressentia os perigos que o rodeavam. Durante dezoito meses, deixou de ir a Jerusalém, mas na festa dos Tabernáculos, do ano 32, seus parentes, sempre malévolos e incrédulos, convidaram-no para assisti-la. O evangelista João parece insinuar que havia, nesse convite, algum projeto oculto para perder Jesus.

“Revela-te ao mundo” – diziam-lhe os parentes. “O que fazes não deve ser feito em segredo. Vai à Judéia, para que todos vejam o que sabes fazer”.

Jesus recusou, a princípio, pressentindo a traição, mas, partida que foi a caravana dos peregrinos, pôs-se a caminho, sem ninguém o saber. Foi o último adeus à Galiléia.

Certo dia, na propriedade de Simão, Jesus meditava. Retirou-se para o monte das Oliveiras.

“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados” – clamava ele, nesses momentos de amargura. “Quantas vezes tenho tentado reunir os teus filhos, e tu não tens querido”.

Havia criaturas boas em Jerusalém e na Galiléia, que aceitavam os ensinamentos de Jesus, mas tal era o peso da ortodoxia dominante, que muito poucos se atreviam a defendê-lo.

O alto sacerdócio e os saduceus votavam-lhe imenso desprezo. Os saduceus repeliam, como Jesus, as tradições dos fariseus, e negavam a ressurreição e a existência dos anjos.

A burguesia farisaica, sentindo-se, na realidade, ameaçada pela doutrina do novo mestre, procurava chamá-lo ao campo das questões políticas e comprometê-lo no partido de Judas, o Gaulonita.

Sua forte eloqüência sobressaía e causava grande impressão todas as vezes que se tratava de combater a hipocrisia.

“Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que lançastes mão da chave da ciência e não vos servis dela senão para fechar aos homens as portas do reino da Verdade”!

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“Não entrais nele, e impedis que os outros entrem”.

“Ai de vós, que arruinais as casas das viúvas, simulando longas orações!”

“Insensatos e cegos, que pagais o dízimo por um raminho de hortelã, de cedro, de cominho, e desprezais os preceitos graves, como a justiça e a compaixão”.

Assim se dirigia Jesus à aristocracia e à burguesia do seu tempo, que tomava nota de suas palavras para invocar contra ele as leis que sustentavam uma teocracia intolerante.

A morte de Jesus ficou resolvida desde o mês de fevereiro ou princípios de março, mas ele ainda escapou por algum tempo, por ter-se retirado para Efraim ou Efrom, cidade pouco conhecida. Mas já havia sido expedida a ordem de prisão para ser executada logo que ele fosse a Jerusalém, e o reconhecessem.

Jesus regressou a Jerusalém, preso, cada vez mais, à idéia de que ia morrer.

Reuniu-se de novo o Conselho, em casa de José Caiafa, e ficou resolvida a imediata prisão de Jesus, mas fora do templo onde ia, todos os dias, para evitar-se um motim.

Sem negar que Judas de Cariote tivesse contribuído para a prisão de Jesus, é de supor que as maldições que pesam sobre ele tenham muito de injusto. Contudo, não deixará de haver razão para guardar as palavras atribuídas a Jesus, na última ceia:

“Em verdade vos digo que um de vós me trairá”.

Jesus foi, de fato, denunciado por Judas, tendo sido uma das testemunhas contra Jesus.

Os discípulos de Jesus disseram que o crime atribuído a ele foi o de “sedução” e, salvo algumas minudências de imaginação rabínica, há as narrativas dos Evangelhos no processo, extraídas do Talmude, o livro sagrado dos israelitas.

O plano dos inimigos de Jesus era convencê-lo, por uma devassa testemunhal e pela sua própria confissão, de blasfêmia e de atentar contra a religião mosaica, condená-lo à morte, segundo a lei, e depois fazer aprovar a condenação por Pilatos, no que foram bem sucedidos.

Atendendo à situação dos romanos na Judéia, Pilatos não podia deixar de proceder como procedeu. Quantas sentenças de morte, ditadas pela intolerância religiosa, têm forçado a mão do poder civil! O rei da Espanha que, para condescender com um clero fanático, mandava à fogueira centenas de seus súditos, era mais censurável do que Pilatos, porque representava um poder mais completo do que era o dos romanos em Jerusalém.

O poder civil dá provas de fraqueza quando se torna perseguidor ou intransigente a solicitações do clero.

Não foram, pois, Tibério e Pilatos que condenaram Jesus à morte. Foi o velho partido Judaico, do qual eram chefes Hanã e Caiafa.

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Jesus não foi um criador de dogmas ou propagador de símbolos, e sim o iniciador no mundo de um espiritualismo novo. Compreende-se, dessa forma, porque ainda hoje se apresenta o cristianismo como filosofia pura.

Como fruto de um movimento espiritualista perfeitamente espontâneo, despido, na sua origem, de todas as peias dogmáticas, resultou o desejo de lutar sempre pela liberdade de consciência.

IX

Falemos, agora, de Jesus, livre de misticismos, como de um homem de convicções doutrinárias, desprendido, valoroso, inteligente, filósofo e espiritualista, que soube ir além do mundo físico, fazendo sentir ao povo a continuação da vida após a morte do corpo, como é apresentado pelo Racionalismo Cristão.

Em 1910, em Santos, começou a haver grande interesse pelo estudo do espiritismo, no plano científico. Luiz José de Mattos e Luiz Alves Thomaz sentiam-se atraídos um pelo outro, para essa tarefa. Ambos, dotados de elevados sentimentos, tinham, no entanto, grande prevenção contra o espiritismo, porque muitos dos seus praticantes não eram socialmente muito recomendáveis.

A Igreja, por seus sacerdotes, também propalava que o espiritismo era arte do demônio, etc., etc.

A contradizer essas idéias, veio a ciência. Na Europa e na América, homens de grande saber estudavam os fenômenos espíritas.

O Dr. Antônio Pinheiro Guedes, conceituado médico brasileiro, explica o espiritismo, não para ser praticado pelo povo ignorante, mas para demonstrar a existência real do espírito, e na sua obra Ciência Espírita, dá lições sábias sobre a vida fora da matéria, explicando a causa dos fenômenos visíveis e invisíveis.

Luiz de Mattos, influenciado por muitos amigos, mas sempre precavido contra os embusteiros do espiritismo e das religiões, como livre-pensador e crítico que era, entrega-se ao estudo da vida fora da matéria, lendo obras de vários autores estrangeiros e nacionais. Depois de mais de um ano de estudos e investigações, comprometeu-se, com Luiz Thomaz, a codificar o Espiritismo Racional e Científico Cristão, para fazer luz no espírito humano sobre a razão de ser da encarnação e desencarnação do espírito, indispensáveis à sua evolução.

Fundada em Santos, no grande Estado de São Paulo, a primeira Casa Racionalista Cristã, começaram a congregar-se, em torno desses dois homens, criaturas de bons sentimentos, embora a maioria fosse constituída por pessoas humildes e obedientes à ordem e à disciplina instituídas por Luiz de Mattos para falar em público. Esses seres admiravam a semelhança que existia entre a doutrina que ele explanava e a de Jesus. O Jesus que apresentava era bem diferente do que exibiam nos templos.

Luiz de Mattos deslumbrava os ouvintes com as suas pregações, causando sensação nas sessões doutrinárias realizadas na capital de São Paulo e na cidade de Santos. Cada vez

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mais empolgado pelo valor da obra de Jesus, toma posição na imprensa para fazer despertar, para as verdades que pregava, a consciência humana.

E Jesus apresentado como revolucionário do bem contra o mal, com o esclarecimento de que, antes e depois dele, houve muitos Cristos. Ainda hoje, por ironia, se chama “Cristo” àquele que sofre e é espezinhado.

Jesus, em hebreu Jechua, o Salvador, era nome próprio, muito usado pelos judeus. Cristo, tradução portuguesa da palavra grega Khristos (messias), que significava para eles, ungido, e designa, na Bíblia, o Redentor prometido por Jeová ao seu povo.

Pela ignorância dominante é que houve, e ainda há, quem espere a vinda do Messias para salvar os povos crentes e místicos. Aqueles, porém, que souberam despertar a razão e o raciocínio, não mais esperam a chegada dos prometidos salvadores.

Luiz de Mattos foi um dos que souberam ver longe. Estudou, pensou, raciocinou sobre os fenômenos psíquicos e físicos, e não quis ficar impassível. Prometeu e fez a obra esclarecedora sobre a Vida, não deixando dúvidas com relação ao que o homem representa como Força e Matéria.

Apresentou Jesus como um homem que não condescendia com o erro, o embuste ou a mentira, a quem se atribui a máxima: “Só a Verdade fará livre o ser humano”.

A Igreja teria prestado grande serviço ao mundo se, em vez de organizar-se numa espécie de monarquia, procurasse levar por diante os ensinamentos de fraternidade e de simplicidade explanados por Jesus.

César Cantu, historiador, disse: “(...) Eis, pois, a Igreja organizada em monarquia eletiva, mais ou menos representativa. Partira da democracia, passara pela oligarquia; havemos de vê-la ir consolidando e desenvolvendo o princípio monárquico. É certo que esta fórmula lhe deu a força da unidade e lhe permitiu resistir às tempestades da história. Mas também a imobilizou e impediu de acompanhar os progressos do espírito humano e as transformações dos organismos sociais”.

Democrata, por excelência, que fora Jesus, não pode hoje, como espírito, deixar de estar com aqueles que pugnam por um viver simples, pelo trabalho racional, por um padrão de vida que assegure bem-estar, por um regime governativo democrata, em que povo e governo se entendam, para que desapareçam da face da Terra os famintos, os esfarrapados, os indolentes e os vencidos.

Não se trabalhou pela espiritualização humana. Se o sectarismo religioso tivesse encarnado a vontade de Jesus, outro seria o estado espiritual dos povos do mundo.

É de crer que quando, em 1º de março de 311, Galerius, em seu nome e em nome de Constantinus e Licinus, publicou um édito contrário às perseguições de Diocletianus aos cristãos, estivesse movido por intentos elevados.

É profundamente lamentável que a religião, dita cristã, não tenha rumado pelos ensinamentos de Jesus, e, sim, pelos interesses dos imperadores romanos. Se tivesse seguido os ensinamentos filosóficos de Jesus, não existiriam catedrais ornamentadas de

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ouro, com mendigos à porta. Haveria mais escolas e menos templos, e não teríamos analfabetos nem criminosos a encher os presídios.

A Igreja negou a evolução por motivos óbvios. Constantinus lhe conferira o direito de possuir bens fundiários, e ela deixou, desde então, de interessar-se pelas esmolas dos fiéis. As doações e os legados bastavam para custeio do culto, subsídios aos pobres e sustentação do sacerdócio.

Note-se a elevação espiritual daquele imperador que dava independência e encargos à Igreja como órgão do Estado, para servir ao povo.

Mas vê-se o contrário. A Igreja ostenta riquezas sem conta, pedindo sempre: ao rico, os seus milhões, para ganhar o céu, e ao pobre, os minguados centavos para que o santo padre tenha pão ...

Eis porque, em vez de os pedintes diminuírem, aumentam, seguindo o exemplo que lhes é dado pela Igreja, que não se cansa de pedir, em desacordo, portanto, com o que teve em vista Constantinus.

Poderia esse imperador ter outros intentos ocultos, vendo na Igreja uma arma política internacional, mas, pelo que exteriorizou, quis, criando uma religião oficial para o Estado, proporcionar meios de cultivar-se o Espírito, socorrendo aos necessitados através da Igreja.

DA PRISÃO A DESENCARNAÇÃO

X

Há cerca de dois milênios que Jesus desencarnou, martirizado pelos fariseus, em conseqüência de infâmias e calúnias assacadas contra esse magnífico pregador do bem e da virtude, preso, quando tinha 33 anos, para se ver processar pelo crime de heresia ou por ser revolucionário, crimes que lhe foram imputados pelos sacerdotes fariseus.

O grande nazareno não poupava, em suas prédicas, os dogmas da religião mosaica por serem os poderosos sacerdotes do Templo homens devassos, incapazes de respeitar as leis dos homens e as da Natureza, que exerciam o seu mister no único empenho de extorquir a esmola à ingênua devoção e inconsciente crença do pobre povo ignaro.

Lascivos, indolentes, sibaritas e céticos, conhecedores profundos das dissolventes filosofias gregas, sua existência se inclinava sobre os jáspeos seios e os lábios de coral das voluptuosas e ternas mulheres da Jônia e da Assíria, que possuíam terríveis segredos de um sensualismo ilimitado. Mas, enquanto Jesus verberava, ferinamente, os maus sacerdotes, acendia, no espírito do povo, o sentimento do Bem, como base fundamental da única religião que professava – a Verdade.

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“Elevai o humilde, socorrei o necessitado, matando-lhe a fome do espírito e do corpo, estai sempre preparados para desculpar os vossos inimigos, e esclarecei-vos para esclarecerdes” – eis as palavras que de sua boca saíam sempre, deixando-lhe o rosto como que iluminado por uma espécie de auréola de paz e de amor, de sinceridade e de pureza, que deslumbrava os que o ouviam e cativava quem o fitava.

Dentre os numerosos ouvintes de suas prédicas, salientava-se Cláudia, mulher de Pôncio Pilatos, que da janela da torre Antonina fixava olhares ardentes e melancólicos no jovem pregador, invectivado pelos fariseus e aplaudido com entusiasmo por uma multidão compacta, que exclamava, admirada:

“Este homem tem razão no que diz”.

Os fariseus procuravam defender, diante de Jesus, cerimônias várias, inclusive o jejum, ao que, calma e comedidamente, mas de forma clara e serena, que fazia luz nas inteligências mais obscuras, ele respondia:

“Acaso podeis lavar a vossa alma, ou purificar a vossa consciência, privando o corpo de alimento, quando ela está suja com as vossas ações?”

Os fariseus, indignados contra ele, que assim abalava, pelos alicerces, as aparências que os conceituavam aos olhos da opinião pública, apodavam-no de herético, enquanto o povo, delirante, bradava:

“Rabi, Rabi, continua a dizer a verdade à gente!”

Quando ele desceu ao átrio, no meio do entusiasmo da multidão, Cláudia retirou-se da janela da torre donde o vira e ouvira, e, levando a mão ao peito, murmurou:

“Como deve ser meigo e digno o amor desse homem!”...

Jesus sentia-se um tanto melancólico e apreensivo. Começava a ver claro os sólidos pilares a que se achava ligada a alta sociedade judaica e, ao mesmo tempo, a extrema ignorância das baixas camadas. Estas não o compreenderiam, e aquela, de certo, não queria compreendê-lo. E pressentia avançar sobre ele essa enorme montanha de dificuldades que se antolha sempre no caminho dos homens superiores.

Seguindo para o vale do Cedron, chega a Getsêmani e, em companhia de seus discípulos, estava ceando, quando alguém lhe vem dizer que um estranho pretendia falar-lhe.

Jesus manda-o entrar.

Era Nicodemos, membro do Sinedrim, possuidor de abastados haveres e muito respeitado na cidade pelo seu caráter reto e, ainda, de grande influência pessoal por seus princípios liberais.

Nicodemos escutara a prédica no pórtico do Templo, e as teorias claras, honestas, francas e limpas de toda hipocrisia, expostas por Jesus, sem artifícios, sem modos especulativos, tinham-no impressionado profundamente.

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Pediu para falar-lhe em particular, e soube de todos os antecedentes de Jesus e os fins a que se propunha. Ouviu-o, com a máxima atenção, e quando ele, no ardor da palestra, lhe expôs as suas teorias a respeito da composição do Universo – Força e Matéria –, explicando o que é a alma encarnada e sua verdadeira vida nos mundos de luz que se movimentam no Espaço, o ilustrado judeu exclamou:

— Tendes razão, mancebo. É assim que eu também entendo, mas o mal é fundo e a árvore, robusta.

Jesus interrogou-o com seu olhar claro – espelho em que se refletia toda a doce limpidez de sua alma.

— Vindes tarde ou cedo demais, acrescentou Nicodemos. Sois um simples e um justo, mas desconheceis o volume dos rochedos que obstruem o vosso caminho. Jerusalém está longe de ser a vossa Galiléia. Aqui há muita maldade, muita mentira, muita infâmia e muita hipocrisia. Todos vos olharão como um revolucionário, e o procurador de César vos mandará flagelar e expulsar da cidade como conspirador contra a autoridade romana e sublevador do povo.

Jesus, pensativo, cofiou a barba cetinosa.

—Não vos parece que bem vos aconselho?

—Sim, mas está escrito — respondeu ele, como obedecendo a uma enorme força de vontade que, por vezes lhe dava o aspecto de iluminado.

—Então, persistis?

—Talvez. O fruto ainda não está sazonado – monologou. É preciso ensinar aos homens o caminho da Verdade. Espalharei a semente, e ela frutificará um dia.

Nicodemos abraçou-o.

—Tendes em mim um amigo – exclamou, com sinceridade. Vossa idéia é grandiosa, sem dúvida, ela abalará, até aos fundamentos, a lei e o dogma, mas a vossa vida corre perigo.

Jesus sorriu e Nicodemos, absorto, continuou:

—Pensais, então, em derrubar a lei?

—Isso mesmo. É preciso acabar com o cínico e repugnante sofisma dos fariseus, e com a forma baixa, vil e humilhante com que se trata o povo, deturpando as leis da Natureza!

—Mas, atendei, é a nossa religião que ides afrontar ...

—Em verdade vos digo, senhor, que não é com a alma suja e a consciência manchada que às almas puras – Espíritos de Luz já livres deste degredo – se pode honrar, oferecendo-lhes bezerros, nacos de carne sobre as brasas, cera e dinheiro...

Nicodemos não soube responder.

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—A Força Criadora – continuou Jesus – sendo espírito, é Luz que tudo irradia, e quer menos aparências e melhores obras, e aqui faltam estas e sobram aquelas.

—Tendes razão – respondeu Nicodemos – e em mim encontrareis sempre um admirador sincero do vosso gênio, embora discorde, em vários pontos, das vossas teorias.

—E a luz há de fazer-se – disse Jesus, como respondendo a um interlocutor invisível.

Nicodemos despediu-se de Jesus e, já à distância, pensou:

—Esse galileu há de ir longe!

XI

Jerusalém, como todas as grandes cidades do Oriente sujeitas ao domínio romano e cheias de costumes gregos, era, no tempo de Jesus, foco de incrível imoralidade e devassidão. O próprio grande Salomão, filho adulterino de Betsabé, apesar de casado com uma egípcia formosíssima, da Família dos Faraós, não se contentava com menos de 700 mulheres e 300 concubinas oriundas de todos os países onde fossem encontradas mulheres formosas!

Entre as mulheres mais lindas de Jerusalém, no tempo de Jesus, destacava-se Maria Magdala, galiléia de origem, que concentrava em si o ideal da beleza feminina. Maria era amante oficial do velho Hanã, sogro de José Caiafa, o Sumo Pontífice dos judeus.

Cláudia, a mulher de Pôncio, quando a viu pela primeira vez, ficou deslumbrada.

O velho Hanã, apaixonado loucamente por aquela beldade sem rival, fazia cair uma perene chuva de ouro sobre ela, de quem tinha ciúmes ferozes. Maria Magdala, ou Madalena, ainda possuía um aluvião de escravas, cada qual mais serviçal, que queriam até adivinhar-lhe os menores desejos, porém não se sentia feliz e inúmeras vezes suas escravas a viam por entre os olivais de Getsêmani contemplando o firmamento à beira de um poço em ruínas ou junto a um cedro centenário, com lágrimas a lhe tremularem nos olhos, como gotas de orvalho.

Cláudia passou a ser sua amiga íntima; quase diariamente a visitava, tomavam juntas a refeição da tarde e despediam-se sempre mais amigas e ligadas pela estranha simpatia que as unia.

Certa tarde, Cláudia entra, agitada e nervosa, nos jardins onde Maria se entretinha brincando com as rolas domesticadas. As duas amigas se abraçam.

—Estás doente? – pergunta Maria.

Cláudia senta-se à moda do Oriente sobre o felpudo tapete da Pérsia estendido no solo e, levando a mão ao peito, do lado esquerdo, respondeu, em voz baixa:

—Parece-me que amo, Maria.

—Tu? – exclamou a outra, com um sorriso. Tu, amares? Tu, que nunca sentiste amor, como me tens dito?

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—Vais talvez rir-te de mim, tu, que nunca amaste também. Mas se soubesses como ele é belo, como sua voz é harmoniosa, como suas palavras chegam ao mais fundo da nossa alma, como seu olhar refulge e por toda a sua pessoa se espalha um tom de suavidade, de carinho, de altivez, de energia e de convicção!... Oh! Maria, se o conhecesses, talvez o amasses também.

—Mas quem é esse ídolo tão extraordinário, já, aos meus olhos, somente pelo que me dizes?

—Jesus de Nazaré, um pobre galileu visionário que tem pregado coisas contra a tua religião, muito querido na Judéia, segundo me contou, hoje, Caiafa.

—Tenho ouvido falar desse rapaz – respondeu Maria, pensativa. É da Galiléia, meu patrício, e, se não me engano, sobrinho de Maria Cleofas, que era amiga de minha mãe.

—A família dele é gente pobre, o pai era carpinteiro. Contou-me minha mãe que, quando ele começou a pregar, os irmãos e primos fizeram-lhe tal oposição que o obrigaram a sair de Nazaré. Mas eu não o conheço.

—E o que tencionas fazer, Cláudia?

—Possuí-lo – respondeu Cláudia, com altivez.

—Há de ser difícil.

—Por quê?

—Esses visionários são, quase sempre, castos.

—Sim, como Gamaliel, Osâmias, Caiafa e o teu Hanã, que todos pertencem ao mesmo culto e têm mais sensualidade naqueles ossos do que cabelos tens na cabeça...

—Mas ... teu marido?

Cláudia sorriu, com desprezo!

—Pôncio faz o que eu quero e não se mete na minha vida. A tempo vinha! Se não fosse eu, ele havia de ser tanto Procurador da Judéia, como esse frágil galileu é filho do tal rei David, que morreu há uns centos de anos, como tu me tens contado.

Maria muda a conversa, porque aquela não lhe interessava. Passam-se as horas. Cláudia abraça-a, despedindo-se, quando entra Hanã, todo alegre, com um bracelete precioso cravejado de pérolas maiores que um grão de tremoços, para oferecê-lo a Maria. Essa preciosidade ele a comprara, pela manhã, a um mercador amigo, vindo de Damasco para negociar, em Jerusalém, com os vendilhões do Templo.

Já noite, Jesus caminhava, sozinho, absorto em suas meditações transcendentais, quando uma sombra negra saiu de entre os olivais e tomando o passo ao meditativo nazareno, exclamou:

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— Pára!

Jesus era animoso; os receios e fraquezas de seus discípulos, por vezes acobardados, tinham-lhe fortificado o ânimo e encorajado o espírito. Por isso, sem se atemorizar, parou e indagou, serenamente:

— Quem és, e o que de mim pretendes?

— És tu Jesus, de Nazaré? – perguntou o intruso, com aquela doçura de voz que revela sempre a mulher.

— Sou.

— Conheces-me?

Jesus fitou-a com aquele modo singular e refletido que lhe era próprio e, após um instante de observação, respondeu:

— Não.

— Pois sou Cláudia, mulher de Pôncio, Procurador de César, na Judéia.

— E o que pretendes de mim?

— Ouvi-te, durante todo o tempo em que ontem pregaste no Templo.

— E vens, de certo, a mando de Pôncio sondar o meu pensamento, crendo-me um agitador, não é verdade?

— Não, isso nunca – atalhou Cláudia, com um tom de sinceridade que fez Jesus olhá-la, atentamente.

— Então, se falas a verdade, foi apenas o efeito de minha prédica que te levou a esperar-me, a esta hora da noite, nesta solidão imensa?

— Talvez ... E Cláudia, tomando-lhe a mão, obrigou-o a sentar-se sobre a enorme raiz descoberta de um cedro.

— Sou sincera – continuou ela. Preciso ouvir-te, conhecer-te e admirar-te, porque talvez nisso encontre o bálsamo e o conforto de que tanto careço.

— Tens, então, ofendido muito o teu próximo, prejudicando a tua alma, e por isso desejas agora enveredar por melhor caminho?

Cláudia não soube responder, e Jesus, conhecendo, nessa indecisão, o seu erro, sorriu e acrescentou:

— Por certo, desconheces a tua composição espiritual e física, e falas em alma, ignorando o que ela significa, pois, se o soubesses, estarias compenetrada de que as boas ou más ações a acompanham, não só na trajetória deste planeta, mas até à eternidade.

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Infelizmente, os meus irmãos em espírito não se têm dignificado pela conduta. Todo o mau sacerdócio que explora, aí nos templos, a ingenuidade e a crença, usa uma hipocrisia que causa revolta às almas evoluídas. Esses fariseus que se fazem passar por austeros e puros aos olhos ingênuos do vulgo, estão repletos de mazelas e vícios destruidores, no homem, da essência mais pura do espírito. Se não for possível demovê-los, pelo menos ficam sabendo que são criminosos conscientes e vão-se salvando os bem intencionados. O meu dever é fazer luz sobre os espíritos encarnados, e essa luz há de fazer-se.

— Nesse caso, a tua ação é toda moral e pacificadora?

— Sim, embora o erro seja enorme e os homens persistam nele.

— Receias algum atentado?

— Não.

— Es um grande espírito, Rabi – atalhou Cláudia – mas, diz-me: não te seria melhor a vida se deixasses essa tarefa em que consumirás toda a tua mocidade e o valor e os dotes da tua alma sublime e boa? Estás a tempo de recuar.

Jesus sorriu.

— Recuar! Falas-me em recuar, quando dentro de mim vejo a longa estrada a percorrer sobre a Terra! ...

— E se uma mulher rica e poderosa, que te adorasse até à loucura, te dissesse: ama-me, como eu te amo, abandona a tua tresloucada missão, dá descanso a essa alma ardente. Pensa, pensa bem rabi, as trevas são densas e os homens maus, tu mesmo o disseste.

Jesus fixou-a, atentamente, e, em tom enérgico, replicou:

— E acaso existiria uma mulher que ousasse afastar-me do caminho da Verdade?

— Existe, sim – exclamou Cláudia, com entusiasmo. Sou eu, Cláudia, mulher do Procurador da Judéia, delegado de César Tibério Augusto, que te amo e te quero salvar dos perigos que vais encontrar no teu caminho.

Jesus levantou-se e, com gravidade, disse:

— Mulher, aquela que não sabe respeitar o nome de seu marido, não é digna de viver.

E, sem um gesto de enfado ou sinal de desprezo, antes todo comiseração e dó por aquela infeliz, afastou-se, lentamente, caminhando pelo vale de Cedron.

Cláudia, absorta, surpresa e envergonhada, ficou estática, a segui-lo com a vista, até que ele se perdeu nas trevas da noite.

Maria Magdala, naquela tarde em que Cláudia lhe revelou o seu segredo, embora o ocultasse, ficou pensativa, desejosa de ouvir as prédicas de Jesus. E isso fez, logo que soube o dia em que ele ia ao Templo falar.

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De repente surgiu, entre a multidão que ouvia Jesus, um burburinho enorme, e o povo abre alas à passagem de uma mulher de deslumbrante beleza, vestida com uma magnificência quase real.

— É Maria Magdala! – exclama um fariseu.

— A amiga de Hanã – observa um escriba.

Efetivamente, Maria dirige-se para perto de onde Jesus predicava. Ouve-o, atenta, e quando ele fala, fervorosamente, das riquezas mal adquiridas, ela, como que impulsionada por uma força, levanta-se, despojando-se de todas as suas jóias, e atirando-as ao povo, exclama:

— Jesus tem razão! Tomai essas riquezas mal adquiridas e reparti seu produto entre os velhos, os famintos, os cegos e as crianças sem lar nem pão! E chorando e beijando a túnica de Jesus, oferece-se para acompanhar os apóstolos, por desejar ser, como eles, uma companheira de causa, para servir à Doutrina da Verdade.

Jesus concluiu sua prédica, aconselhando a todos a naturalidade e a modéstia, e demonstrando que a verdadeira riqueza é aquela que parte do ouro puro das nossas ações, e não do metal vil com que adornamos as nossas vestes.

Nicodemos diz a um dos seus colegas do Sinedrim: “Este homem tem, realmente, um grande talento”!

O povo se retira, alguns chorando, enquanto os fariseus se revoltam e praguejam.

Jesus regressa à Galiléia, depois de haver-se despedido apenas de Nicodemos e da boa gente de Getsêmani, que tão carinhosamente o acolhera, e dos seus discípulos galileus.

Segundo nos conta Alfredo Galis, Jesus saiu de Jerusalém pela mesma estrada por onde fora ter à cidade, passando perto de Sichem, entre os montes Ebel e Garazim. Este último indicava naturalmente a Samaria, pequeno povoado encravado entre a Galiléia e a Judéia, as duas vastas províncias judaicas.

O culto que se praticava em Samaria era o de Garazim, isto é, o judaico, igual ao de Jerusalém, mas sem o luxo e o orgulho que a influência política levara a essa grande cidade.

Jesus não queria saber de dogmas nem seitas, era amigo de toda gente, fiel ao seu pensamento de que os homens na essência – espírito – são todos irmãos.

Nesses termos e nessa ordem de idéias, de uma filosofia límpida e verdadeiramente liberal que a estupidez humana ainda não soube compreender, Jesus escolhera a estrada de Sichem como o melhor caminho para a Galiléia, sem querer saber se podia ou não beber a água ou comer o pão de um samaritano; esses princípios, criados pelo ódio e a estupidez ignara, ele não só desconhecia, como os não admitia.

Para ele não existiam dogmas, ódios, prevenções e fórmulas exteriores, como as criadas para a adoração da Inteligência Universal, materializada pela ignorância dos seres e

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reduzida à forma humana, pois só concebia os homens como irmãos e, pelas suas boas obras, pelo seu mútuo amor, pela honestidade de consciência e igualdade de princípios, podiam, hereges ou não, merecer todo o respeito e consideração.

Mal podia imaginar que apontando à humanidade o único caminho sério, honesto e digno de ser seguido pelo espírito encarnado na Terra, os seus grandiosos ensinamentos e princípios espiritualizadores viessem a ser vilmente deturpados, convertendo-o, falsamente, num deus absurdo, e servindo-se do seu nome como bandeira e escudo para a criação de seitas que têm acendido, por questões teológicas, ódios e paixões entre os homens, levando-os a guerrear-se, mutuamente, quando a base das suas pregações, de extrema simplicidade, faz compreender que a Força Criadora – Grande Foco – é a alma mater de tudo, e que todos os seres são suas partículas em evolução!

Sendo o Grande Foco, portanto, Espírito, Luz, não quer adorações, mas ações dignas, nascidas da consciência esclarecida – única maneira do ser humano encaminhar-se, dia-a-dia, para ele.

O ideal de Jesus era a todos unir por laços indissolúveis que só o conhecimento da Verdade pode formar. Deplorando a existência negativa das religiões, sentia-se compungido diante das seleções de raças e de povos, uma vez que o amor que pregava tinha sentido universal.

O“crê ou morre’’, nunca foi por ele admitido, como também não tolerava crentes ou fanáticos. Queria as criaturas esclarecidas, aptas para o trabalho e para a compreensão racional da vida.

Jesus, fatigado, senta-se perto de um poço. Pensativo, recorda as amizades conquistadas em Jerusalém, as ponderações acertadas de Nicodemos, quando se aproxima uma mulher nova e formosa enchendo de água do poço a bilha que levava.

Jesus, sentindo sede, pede-lhe água. Com espanto, a samaritana o olha, e pergunta:

— És judeu?

— Sou da Galiléia.

— E pedes água a uma samaritana?

Com seu natural sorriso, olhar meigo e respeitador, responde-lhe:

— E que tem isso? Acaso não somos todos irmãos?

A mulher entregou imediatamente a bilha a Jesus, e ele, bebendo lentamente a água, e já saciada a sede, lhe diz:

— Em verdade te afirmo, mulher, que dar de comer aos famintos e de beber aos sedentos é uma ação elevada que agradará sempre às almas puras.

— Ainda mesmo que seja a de um judeu?

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— Não há crenças nem preconceitos que possam diminuir as ações boas e naturais da alma humana.

— Mas nunca ouvi falar assim!...

— Deixa, mulher, que atrás do tempo o tempo vem; há de chegar a ocasião em que os homens verdadeiros e sinceros não precisarão de templos e montes para neles fazerem adorações, porque saberão irradiar bons pensamentos, conservando no espírito a verdade. Os templos desses homens, serão a sua consciência!

A mulher ficou deslumbrada com o que ouvia da boca de Jesus, vendo nele um propagador do valor, do amor e da justiça, que desejava a humanidade congregada numa só família.

XII

Jesus entra na Galiléia aplaudido pelo povo, é cada vez mais querido e respeitado. Mas os anos e a experiência entre os homens levaram-no à meditação sobre a ignorância da maioria: o pobre a invejar o rico, o rico a menosprezar o pobre. E como de pronto não pudesse dar outro remédio, procurou insinuar no espírito daquela gente que o reino dos pobres era o céu.

Convencido de que estava num país de profetas, taumaturgos e outros exploradores da ignorância humana que haviam povoado a mente do povo de concepções falsas da vida espiritual, em que predominavam divindades celestiais e outras imposturices, o grande idealista achou prudente não combater a idéia de Deus e do Céu, por estar ela profundamente enraizada no espírito do povo, mas procurou defini-la como Espírito criador de tudo.

Possuído de notável capacidade de observação, Jesus ansiava por reformas que a todos libertassem da escravidão dos sentidos, e não se sentia bem com o calor das manifestações de carinho que recebia em toda parte. Ele não queria tratar de si mesmo, mas da obra regeneradora de usos e costumes em que estava empenhado.

Chamavam-no de rabi, título com que o distinguiam, mas que não satisfazia a sua alma, desejosa de grandeza eterna, que não admite honrarias e, sim, obras.

Quando em Jerusalém, estudou de perto os homens e a máquina social, política e religiosa, e observou a profunda ignorância do povo, a sagacidade do sacerdócio, o egoísmo dos ricos e as condições de miséria, quase infamantes, dos pobres.

Comparou a disciplina das tropas romanas aguerridas e educadas na arte da guerra, acostumadas a obedecer aos chefes, sem preconceitos nem hesitações, com o povo judaico inerme, desarmado, falador e acomodado, sem a menor educação militar, todo ele dividido em crenças e fórmulas dogmáticas, os ricos fazendo causa comum com os dominadores, os pobres à espera de que viesse das nuvens a salvação providencial, embora eles não fizessem o menor esforço para quebrar as algemas da ignorância e da servidão que os manietavam. Todas estas misérias de Israel caíram no seu ânimo como a pedra num túmulo, sufocando as intenções primitivas de sua missão.

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Convencido de que nada poderia esperar da Terra nem dos homens que sobre ela se debatiam em lutas estéreis, de interesse, de vaidade, de soberbia e ódio, sua grande alma voltou-se, então, para o mundo espiritual, fazendo-o pensar demoradamente na Força, elemento criador de tudo, e nas leis imutáveis que tudo regem. A resolução que tomou o ia expor, mais ainda, ao ódio dos seus inimigos.

Concebeu que todos os males do povo provinham das falsas crenças. Atacá-las pela base, batalhar até à intransigência, implantando princípios racionais e científicos, consubstanciados na Verdade, baseada nos dois únicos elementos componentes do Universo – Força e Matéria – era o que lhe ditava a consciência quando, em recolhimento, reexaminava a sua obra de explanador.

Nesse empreendimento grandioso, cheio de clarividência, iniciado após seu regresso à Galiléia, não pôde Jesus ir além de dezoito meses.

Maria Magdala chega também à Galiléia. Procura Jesus, e diz-lhe:

— Rabi, peço-te que não voltes a Jerusalém, onde te esperam grandes perigos, invejas, ódios e rancores.

— Por quê? – pergunta Jesus, ingenuamente.

Ela, pensativa e chorando, quis ocultar-lhe as tramas de Hanã. E confusa, baixando a voz, responde:

— Pelo muito que és amado.

Jesus se calou, parecendo refletir.

— Em que pensas?

— Em ti, mulher! ...

Maria sufocou a voz, dando, após um grito:

— Em mim, a mais desprezível e infame das mulheres?

— Sim, Maria, se o teu arrependimento é sincero e se realmente amas a Verdade. Tu eras rica, vaidosa, cortejada e querida. Vivias nesse meio corrupto e de falsas grandezas, onde se mata o corpo e se corrompe a alma. És jovem e formosa, e talvez não saibas a vida que te espera.

— O que tu e os teus companheiros passarem, passarei também.

— Lembra-te que os que me seguem não têm lar, nem bens, nem posição, nem dinheiro, nem comodidades. Vivem como podem e dizem que me amam, porque falo a Verdade.

— E acaso alguém te poderá estimar e respeitar mais que eu? Alguém poderá ser mais dedicada, mais humilde, mais obediente do que esta pobre e desgraçada mulher que a ti e

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aos teus discípulos veio procurar, abandonando suas riquezas, seu fausto e essa vida desregrada e de prazeres fáceis que tão deleitosa lhe corria em Jerusalém?

— Felicito-te, Maria! E que nunca te arrependas de ter abandonado essa vida dissoluta. Sê boa, pura em pensamento e atos, que as irradiações dos Espíritos Superiores – aqueles que já habitam os mundos de Luz – chegarão a ti, confortando-te e fortificando-te para que ainda muito possas fazer, como mulher esclarecida.

XIII

Predicando na Galiléia, com a sinagoga cheia não só de galileus de todas as camadas, mas também de muitos fariseus oriundos de Jerusalém, atraídos pela fama de Jesus, assim se expressou ele, numa de suas prédicas:

— Em verdade vos digo que não é Moisés, mas, sim, o Espírito Criador, quem vos dá o pão espiritual. Esse pão o recebeis através das boas obras, pois nós todos somos partículas suas, e eu entre vós me encontro para explicar a Verdade.

— Isto não se diz – murmuraram, a um só tempo, diversos conterrâneos de Jesus, vindos de Nazaré para escutá-lo nas prédicas.

— Por acaso não o conhecemos nós, assim como ao pai, à mãe e aos irmãos? Não é ele filho de José, irmão de Tiago? Com que direito nos quer fazer acreditar que não é filho de José e Maria?

Ignorantes que eram, não alcançavam o sentido figurado das palavras pronunciadas pelo orador.

Por essa razão, Jesus teve, muitas vezes, de servir-se de palavras que intimamente combatia, por não expressarem a Verdade, mas que achava necessárias para atrair o povo, inclusive crentes e fanáticos feitos pelas inúmeras religiões.

Numa de suas últimas prédicas, ficou tão entristecido, tão cheio de mágoa com o estado psíquico da maioria de seus ouvintes que, sentindo ressentimento entre eles, pelo que havia dito, resolveu seguir para Tiberíades.

Já noite, passeia Jesus, sozinho, à beira da praia; um barco balouça sobre as ondas, e uma rola adormecida numa palmeira deixa antever um ponto branco no fundo escuro da folhagem. Contemplando, enfim, a natureza, e cansado, senta-se numa pilha de cordas e redes pertencentes aos pescadores, onde se deixa ficar, meditativo.

Maria bate-lhe no ombro, e exclama:

— Mestre, que tens?

— Ah! És tu, Maria?

— Sim; a lua vai alta e soube que ainda não estavas recolhido. Parece-me que sofres.

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— Talvez tenhas razão no que dizes. Sofro, porque vejo que os homens não se desejam salvar.

Maria senta-se a seu lado, e pergunta-lhe:

— E quando terminarás a tua missão? Quando chegará a hora de descansares dessa luta que te fatiga o corpo e martiriza a alma?

— Quando tiver cumprido o meu dever na Terra e nela deixar o corpo para ascender, como espírito, ao meu mundo espiritual!

— Pensas em morrer, Mestre? – Indaga Maria, com voz trêmula.

— Não. Mas acaso os que se dispõem a servir à causa da Verdade podem dizer-se livres da morte física, de um momento para o outro?

— E lembrar-me que podias ser tão feliz na tua cidade, Nazaré, amado e respeitado como merece a tua grande alma.

— Cala-te, mulher, que não sabes o que dizes!

Reagindo contra o desânimo que, por momentos, pareceu querer dominá-lo, Jesus levanta-se, caminha para o horto de Genezaré, e com palavras repassadas de doce e terna suavidade, fala aos companheiros da sua missão esclarecedora e dos perigos que o esperam, dando-lhes conselhos bons e ponderados.

Como os demais discípulos, Maria ouve, atenta, Jesus, quando dois homens se aproximam, dizendo que lhe queriam falar. Esta, mandando-os entrar, viu que se tratava de servidores de Hanã, que fora seu poderoso amante.

— Maria – exclamou o emissário mais velho – aqui vimos de mando do nosso grande amo e senhor, o prudente Hanã, que é Abraão, em sua santa guarda, para pedir-te que abandones esse galileu doido e nos acompanhes a Jerusalém.

— Hanã – continuou o outro – autorizou-nos a dizer-te que tua leviandade está perdoada, pelo muito que te ama, e que encontrarás o seu coração mais puro e bem intencionado que o cordeiro Pascal, quando marcha para o sacrifício. Terás novas riquezas, em substituição das que repartiste com a gentalha: sedas, pérolas, servos, ouro, âmbar, tudo quanto ambicionares, contanto que a tua presença dê felicidade e prazer ao sumo sacerdote de Jerusalém.

— Se soubesses ...

— Basta de palavras! – responde Maria em tom altivo. E diz, com energia na voz: – ide-vos, e dizei ao vosso amo que jamais abandonarei Jesus e seus discípulos por todas as riquezas de Salomão; eles são pobres de haveres, mas ricos de espírito, e pregam a Verdade.

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— Acautela-te, Maria – rosnou o judeu mais velho. Hanã é poderoso, e Jesus não passa de um galileu revolucionário, sem proteção nem valor, que Antipas pode mandar supliciar, de um dia para o outro.

— Não temo as cóleras desse velho pontífice, desdentado e devasso; dizei-lhe que se Jesus precisar de um escudo que o defenda, esse escudo serão minha alma e meu corpo.

— Estás louca, Maria!

— Não estou doida, Natasiel, ouviste? Não estou doida! Sigo Jesus porque amo a Verdade, e as suas palavras me chamaram ao caminho do bem e da virtude. Ele me respeita e estima porque eu me arrependi e abandonei a vida dissoluta. Não quer o meu corpo, como o teu velho amo. Sabes, agora, por que jamais o abandonarei?

Os dois emissários judeus se entreolharam, encolheram os ombros e exclamaram:

— E essa a tua última palavra?

— Sim.

— Pois fazes mal, Maria. Perdes uma grande fortuna e também vais perder Jesus.

Maria voltou-lhes as costas, e quando os dois homens saíram para a estrada, disse o mais velho ao mais novo:

— Se Hanã apanha Jesus em Jerusalém, sua vingança vai ser terrível.

— Assim o penso – respondeu o outro.

XIV

Todos os discípulos de Jesus eram galileus, à exceção de Judas, filho de um lavrador humilde e honesto da cidade de Cariote, perto de Judá e Hebron. Ele era diferente de todos os demais discípulos: possuía um caráter reservado, meditativo, concentrado e tímido, ao passo que os outros eram expansivos, alegres, francos, simples e ingênuos. Dizendo ter gostado das suas prédicas, pediu permissão para acompanhá-lo.

Certo dia, Jesus teve de ir a Cafarnaum dissertar sobre a Doutrina. Maria ficou no Horto remendando roupas, e estava a consertar uma túnica roxa de Jesus, que lhe havia dado um homem rico de Betsaída, quando lhe apareceu Judas que, pretextando doença, se deixara ficar em Genezaré.

— Então, não acompanhaste o Mestre?

— Sentia-me um pouco doente e também desejava falar-te, reservadamente.

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— A mim?! Algum perigo ameaça Jesus? ...

— Não, descansa.

— Então, que me queres dizer?

— É grave, Maria, o que tenho a comunicar-te, e espero que saibas dar às minhas palavras o valor devido.

— Fala, que eu te escuto.

Maria parou de coser.

— Tenho 30 anos – começou Judas, baixando os olhos para não sofrer a persistência do olhar daquela mulher que o deslumbrava – e possuo em Cariote alguns bens, suficientes para não pensar no dia de amanhã. Sou só no mundo, e vivi, até há pouco, sem afetos, sem amor e sem esperança de consolo.

— E depois?

— Depois, um dia vi uma mulher tão bela, tão formosa e sedutora como não poderá haver outra, e essa mulher apoderou-se de toda a minha alma, de toda a minha vida, sem eu poder resistir a este sentimento que me domina.

— Fazes mal, Judas.

— Por quê?

— Não diz Jesus que aqueles que o quiserem seguir, como discípulos, precisam ser livres e independentes, amando só a Verdade?

— Sim, mas Jesus, se nos pode dar conselhos, não pode domar os impulsos íntimos.

— E que desejas fazer?

— Tomar essa mulher por esposa.

— E abandonar Jesus?

— Não, totalmente não; mas Jesus quer mudar as leis da natureza e, como tal, não aceito as suas imposições.

É doloroso quando, a serviço de uma causa como a da Verdade, não se é compreendido.

Jesus nunca cometeu tal heresia; ele era claro e explícito nas suas prédicas, porém os perversos, os infelizes, de fundo rancoroso, ainda bastante animalizados, é que deturpavam o seu sentido.

Ele quis dizer: “Nós, os servidores desta causa – a Verdade – não podemos ter apegos às coisas da Terra”.

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Jesus nunca defendeu o celibato. Ao contrário, pregava a constituição da família e combatia sempre a vida dissoluta, aconselhando aos jovens o recato e a abstinência, para não legarem, em tempo algum, enfermidades às esposas e filhos.

Jesus, portanto, quis apenas incutir no espírito de seus discípulos a continência do sexo, para não se deixarem tentar por ele, vindo a falir na luta empreendida. Ele conhecia bem a natureza humana.

— Serás um rebelde, entre tantos amigos fiéis – respondeu Maria a Judas. Cometerás uma deslealdade, uma traição se procederes em desacordo com os ensinamentos do Mestre.

— Pois bem, acompanhá-lo-ei, sempre, se essa mulher me quiser acompanhar também.

— E não sabes se esta te quer acompanhar?

— Não.

— Ainda não lhe falaste sobre isso?

— Agora mesmo.

Maria empalideceu.

Judas revela-lhe o que se havia passado no pórtico de Salomão, e diz que desde aquele dia a sua imagem se lhe gravara no intimo da alma, não lhe dando sossego, e que não mais a poderá esquecer.

Ela lhe pede que nunca mais repita semelhantes palavras.

Judas, cambaleando como um ébrio, com a voz estrangulada, pergunta-lhe:

— Então recusas-me?!

— A ti, como recusaria o Tetrarca e o César, se me quisessem para sua mulher.

Judas retirou-se do Horto, deprimido, só ali voltando depois de terem regressado Jesus e os discípulos que o haviam acompanhado.

Aproximava-se a festa dos Tabernáculos, e os seus parentes: – alguns fariseus que, hipocritamente, fingiram transigir com ele, e vários amigos falsos, malévolos e incrédulos – incitam-no a partir para Jerusalém.

Embora houvesse percebido, nesses conselhos, a traição disfarçada, ele acedeu, porém não acompanhou a caravana dos galileus que se encaminhavam para as festas que iam ser realizadas naquela cidade.

Repugnavam a Jesus a bajulação, a pompa e o fausto. Não queria entrar em Jerusalém chefiando a caravana de forasteiros, e sim ali chegar sem rumor, na sua simplicidade natural. Daí o ter aconselhado aos discípulos a seguirem com os forasteiros, pois ele iria sozinho.

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Com isso não concordaram, porém, João, Judas e Maria, que ficaram para acompanhá-lo.

A caminho de Jerusalém, partem os quatro. Mas Jesus sentia-se invadido por essa repulsa instintiva que nutria pelos fariseus, escribas e sacerdotes, gente maldosa, velhaca, hipócrita e especuladora, tão contrária ao seu modo de ser e de sentir.

As aparências mundanas, por mais belas e esplendorosas que fossem, incomodavam sempre a natural singeleza da sua alma rústica e inimiga de pompas e artifícios.

A notícia da chegada de Jesus a Jerusalém, correu logo, de boca em boca. Os sacerdotes e potentados sentiam-se agitados, praguejavam e mandavam os seus apaniguados infiltrar-se entre o povo, para saber quando ele faria as suas prédicas no Templo. E, informados, para lá se dirigiam, nos dias marcados.

De novo no Templo, observou Jesus que ali não estavam, apenas, os que desejavam orientar-se por suas palavras esclarecedoras, mas alguns elementos provocadores para lá mandados pelo seu maior inimigo – desde que se decidiu a acolher Maria Madalena – o poderoso Hanã.

Esses infelizes agitadores, a cada palavra de Jesus, não poupavam os mais ignóbeis e artificiosos sofismas, para deturpar o sentido do que ele dizia. Revoltado, mas sem perder a calma e a serenidade, pôs de parte a prudência, que até então usara, e passou a ferir de morte, com críticas e admoestações, a hipócrita sociedade judaica.

Essas críticas, entretanto, não teriam maiores conseqüências, uma vez que os próprios sacerdotes, no íntimo, lhe davam razão, se não fora o ódio mortal que se destilava, cada vez com maior intensidade, do espírito conturbado de Hanã.

Este, tão logo teve conhecimento de que Jesus de novo ali se achava com Maria Madalena, mais formosa do que nunca, ficou ainda mais furioso. O poderoso Hanã haveria dado de ombros, sem se incomodar, se Jesus se tivesse limitado a discutir a lei e os textos considerados sagrados. Mas concorrer para que a amante o abandonasse era coisa que nunca poderia esquecer.

Tanto assim que passou por cima da lei, maculando o nome de seu genro, José Caiafa, mesmo sabendo que este, como Sumo Pontífice, passaria à história acusado de ter causado a morte de Jesus!

Nicodemos, amigo de Jesus e membro do Sinedrim, foi um dos convidados por Hanã para a reunião secreta do alto sacerdócio, na casa de José Caiafa e, sereno e justo, ouvia, com grande repulsa, as acusações que se faziam a Jesus. Chegou mesmo a querer defendê-lo perante esse tribunal judaico, composto, em sua maioria, de devassos e subservientes, mas depressa se conteve, pensando que o momento carecia de prudência, pois um dos seus companheiros, do trato íntimo de Hanã, exclamou:

— Por quê? Tu também és galileu? Consulta as Escrituras e responde-me se pode vir um profeta da Galiléia!

Nicodemos, que tudo percebia e não ignorava donde partia o raio, conhecendo bem os fatos que motivaram a reunião, disfarçou, como pôde, a sua revolta, e, no íntimo, tomou a

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resolução de ir cautelosamente prevenir Jesus, o que fez tão logo terminou aquele encontro.

Era já alta noite, tudo estava em silêncio, quando Nicodemos, embrulhado na sua túnica, encaminhou-se para Getsêmani, à procura, no Horto, de Jesus.

A porta estava aberta, e uma candeia de cobre, presa a um gancho de ferro seguro na parede escura do fundo, iluminava o compartimento, deixando entrever João e Pedro, que conversavam, a meia voz, junto a uma mesa, e, um pouco mais adiante, Jesus, lendo uns pergaminhos vindos da Galiléia.

À entrada de Nicodemos, João e Pedro ergueram-se, receosos. Mas Jesus correu a abraçá-lo, com confiança e estima.

— A esta hora aqui! – exclamou, admirado.

— Tinha que falar-te, rabi – respondeu Nicodemos.

— Diz.

— Sabes que o Sinedrim já se ocupa da tua pessoa, e o alto sacerdócio discute, a teu respeito?

— Não sabia – respondeu Jesus.

— Pois para que o fiques sabendo, é que te vim procurar.

Jesus lançou-lhe um olhar de reconhecimento, um daqueles seus olhares que valiam por um poema.

— Tens no alto sacerdócio o teu mais cruel inimigo.

— José Caiafa?

— Não, Hanã, seu sogro.

— O velho?

— Sim.

Jesus ficou pensativo.

— E que mal fiz a esse homem?

— Roubaste-lhe a amante.

— Eu?! — exclamou Jesus, admirado.

— Pois não sabias que Maria Madalena, a tua discípula, era a amante querida do velho Hanã?

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— Não!

— Creio-te, porque sei que os teus lábios não sabem mentir. Estás, pois, prevenido do perigo que corres. E agora, pergunto-te: — Persistes no teu intento?

— E parece-te que devia retroceder? – perguntou Jesus, energicamente.

— Não, respondeu Nicodemos, abraçando-o. És um homem de bem, e admiro-te. Previa a tua resposta, e pensei em ti. Aqui não estás seguro, e é justo que te defendas, pois a tua obra ainda não está concluída.

— Tens razão – murmurou Jesus, pensativo.

— Reservei-te um local, onde estarás ao abrigo de qualquer cilada. Na aldeia de Betânia, no alto da colina, na vertente do Jordão, a hora e meia de Jerusalém, possuo uma propriedade que trago de renda a um tal Simão, bom homem, meu amigo, que me deve favores e é leal e dedicado. Vive com duas sobrinhas, Marta e Maria, raparigas de bem, e um irmão delas, Lázaro, rapaz de belos sentimentos e melhores intentos. Aí encontrarás lugar seguro contra qualquer traição. Já os avisei da tua chegada. Amanhã apresenta-te, que serás recebido como em família.

— E os meus amigos?

— Descansa, que esses não correm perigo. São demasiado humildes e ignorantes para que alguém lhes dê importância em Jerusalém.

— E Maria?

— Maria pode acompanhar-te ou, se não o quiseres, aqui fica em segurança. É mulher resoluta, e Hanã jamais ousará recorrer à violência. Isso seria um escândalo, de que se aproveitariam os fariseus, e ao sacerdócio não convém dar asas à loquacidade intrigante e difamadora desses escaveirados doutores.

Nicodemos levantou-se.

— Agradeço-te tudo quanto fazes por mim – disse-lhe Jesus.

Abraçaram-se, ambos a chorar, e despediram-se, entre soluços de Nicodemos, que parecia prever a morte antecipada de Jesus.

XV

Ao romper do dia, Jesus falou com seus discípulos, dizendo-lhes que, à hora terça, estaria no pórtico de Salomão, onde, na véspera, o tinham reptado vários fariseus. E sem se referir ao destino que tomava, tomou o rumo da Betânia.

Maria, com receio de apresentar-se em Jerusalém, ficou só no Horto. Sentada junto a um poço, fiava uma estriga tão loura como seus cabelos, quando se aproximou um rapazinho de 10 anos, muito de sua estima, para dizer-lhe que uma mulher a procurava e desejava falar-lhe.

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Pedindo ao menino que a guiasse até ela, pouco depois reconhecia, com espanto, Cláudia, a mulher de Pôncio Pilatos.

— Não me esperavas, compreendo – exclamou Cláudia – mas soube que estavas em Jerusalém, com teu profeta, e quis ver-te nesta nova encarnação de arrependida. Hás de confessar que és uma mulher de espírito.

— Não blasfemes, Cláudia!

— Queres, então, que acredite na tua conversão?

— Quero.

— Como me julgas inocente!... Então eu seria tão néscia assim?

— Enganas-te, minha amiga. Morri para o mundo, e quero expiar as minhas culpas.

— As tuas culpas, dizes? E quais são elas? O seres realmente formosa entre as formosas? Repara que, quando uma mulher diz isso a outra, o elogio é sincero e duplica o valor. Os homens gostavam de ti e cobriam-te de ouro e pérolas! Que mal encontras nisso?

— Fazer de meu corpo um comércio infame.

— Estás, então, uma senhora pura, quase virgem, aposto!

— Não, mas estou no caminho da honra e da Verdade.

— E tudo isso te deu o teu esfarrapado Jesus! Olha que o velho Hanã sempre te dava coisas mais úteis. Lembras-te quando ele te ofereceu um rico bracelete, naquela noite em que fomos a Betfagé comer figos e beber vinho de Sichem, com dois romanos alegres e divertidos?

— Tudo isso esqueci, Cláudia, e se me estimas, não me recordes esses tempos de ignorância e perdição.

— Desculpa, Maria, não te julgava tão ciosa da tua honestidade atual ...

— Insultas-me, ouço-te, mas paciência.

— Lembras-te da nossa conversa em tua casa, na véspera daquela loucura que fizeste no Templo?

— Lembro-me, sim, e daí?

— Não te disse eu que o amava?

— Disseste.

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— Pois se o disse, acreditaste, por um momento, que eu me deixaria vencer na luta, desistindo dele, eu, Cláudia, romana legítima e mulher de Pôncio, Procurador da Judéia, em nome de César?! ...

— E por que não?

— Porque eu não quero, ouviste? Foge de Jerusalém, abandona esse homem e faz com que me pertença. Pede-me o que quiseres, fortuna, importância e honrarias. Serás mulher de um romano ilustre, se tanto ambicionares, mas ajuda-me a conquistar esse homem. – Lentamente, a voz de Cláudia passara da imposição orgulhosa, à súplica humilde.

— É impossível o que de mim exiges, Cláudia.

— Por quê?

— Porque ele ama a Verdade, e não as mulheres; cuida do espírito, e despreza a carne.

— Desgraçada, proferiste a sua perda.

E Cláudia levantou-se, como se mordida por uma áspide.

Retirando-se Cláudia em verdadeiro estado de desvairamento, Maria encaminha-se para o Horto quando, de trás de um monte de palha, vê sair um homem com o olhar também desvairado, e no rosto, uma lividez de cadáver, murmurando:

— Oh! A vingança! – A vingança!

Era Judas, de Cariote.

Em Jerusalém, era sempre grande a afluência de fariseus e políticos no pórtico do Templo.

O velho Hanã, de conluio com alguns membros do Sinedrim, seus amigos particulares, dispusera as coisas em casa de seu genro Caiafa para preparar uma cabala destinada a comprometer Jesus junto à autoridade romana.

Certo dia, dissertando sobre os bens terrenos, Jesus fez referência à transitoriedade das coisas materiais e à perenidade das espirituais, representadas por ações nobilitantes.

A peroração fora admirável, os fariseus e os samaritanos que o ouviam aplaudiram-no também, chegando-se a ele, em companhia de um espião de Pôncio, e exclamaram, como que convertidos por sua eloqüência:

— Mestre, vemos que és um homem verdadeiro e que, sem quaisquer considerações, ensinais retamente a cumprir o dever. Dize-nos, pois, o que pensas: – Achas que se deve pagar o tributo a César?

Jesus cravou neles o seu olhar brilhante, profundo e sereno, e fitando a efígie de uma moeda romana, respondeu:

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— Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus!

Equivalem estas palavras a dizer: dai ao homem o que é do homem, e ao espírito o que é do espírito.

Aos fariseus, aterrados, o espião exclamou:

— Este homem é justo e digno.

A alma esclarecida, a consciência reta de Jesus lançaram por terra o ardil vergonhoso de Hanã.

Mas ele é, ainda, submetido à nova prova. Ao sair do Templo, passava a pequena distância, conduzida por oficiais de Justiça, uma mulher algemada, por haver sido surpreendida, pelo marido, em flagrante crime de adultério.

A mulher estava descalça e chorava de dor, por a obrigarem a caminhar sobre pedras soltas a cortantes, lançadas no caminho para consertá-lo.

Feridos pela derrota, os fariseus apontaram-lhe a mulher adúltera, e um deles perguntou, sorrateiramente:

— Mestre, tu que és tão justo e sábio, na tua opinião como deve ser tratada aquela que desonrou o nome do marido e dos filhos?

Jesus, sorridente, compreendeu a malícia, e indicando-lhe os montes de pedras, respondeu, bem alto, para que todos o ouvissem:

— De vós, o que nunca pecou que lhe atire a primeira pedra.

Os fariseus, confundidos e envergonhados, voltaram-lhe as costas, rosnando:

— Este homem não pode nem deve existir.

Jesus acabara de feri-los, diretamente, no intimo de suas misérias e de suas consciências hipócritas, e essas feridas os infelizes gozadores geralmente não desculpam nunca.

XVI

A constituição física de Jesus era muito delicada. O inverno alterava-lhe muito a saúde, já agravada pelos grandes sofrimentos morais que se refletiam profundamente em seu organismo.

Marta e Maria, as duas sobrinhas de Simão, o leproso, cuidavam dele com todo o carinho e solicitude.

Jesus adoece. Seus discípulos são chamados, inclusive Maria Madalena, e é também avisado Nicodemos, que já o vinha visitando e havia providenciado para que nada lhe faltasse, pois cada vez mais se estreitavam os laços de amizade que uniam esses dois homens puros e bons.

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A esse tempo adoece, também gravemente, Hanã, e isso fez acender no espírito de Nicodemos a esperança de salvar seu amigo Jesus, a quem aconselhou, para refazer-se, uma viagem ao Pireu, para a qual tomou todas as providências.

Jesus não queria aceitar o generoso oferecimento de Nicodemos; preocupava-o a doutrina, e não queria interromper a sua explanação. Mas, diante das ponderações do amigo, não se pôde escusar. O físico de Jesus carecia de grandes cuidados e absoluto repouso.

Acompanharam-no ao Pireu, localidade situada às margens do Jordão, Maria, Simão, Zelota, João e Pedro. Apesar de haver ali demorado apenas dois meses, esse retiro fez muito bem a Jesus.

Dessa viagem resultou, ainda, uma grande alegria: o recebedor da cidade, Zaqueu, quis vê-lo, e Jesus, tendo aceito lugar à sua mesa, logrou convertê-lo à Verdade, convencendo-o de que a prática do bem é o que mais agrada à alma e concorre para a sua mais rápida ascensão no caminho da espiritualidade.

Dentre outras conversões, destaca-se a do miserável mendigo Bartimeo, que provocou grande celeuma entre os inimigos de Jesus.

Judas ficara em Jerusalém, rancoroso, ciumento e vingativo. Na câmara escura de sua alma, descortinavam-se dramas tétricos.

Receava ele que Maria houvesse tentado Jesus, impedindo-o de prosseguir na sua obra.

Os discípulos estavam desanimados com a ausência do Mestre e, entre o povo, começavam a correr boatos de fuga, apodando-o os fariseus de covarde e charlatão. Urgia chamar Jesus para apresentá-lo, de improviso, ao povo.

Judas arquiteta, sempre pensando em prejudicar Jesus, um plano audacioso, capaz de produzir entre o povo verdadeiro alarido.

Lázaro, irmão de Marta e Maria, achava-se possuído de profunda melancolia (obsessão), e Judas, sabedor disso, propôs aos condiscípulos a realização de um “milagre” praticado por Jesus, através do qual ele mesmo, Jesus, ficasse convencido do seu grande poder. Era esta uma forma de elevar, ainda mais alto, o seu nome, ganhando grande fama, dizia.

Concordaram os discípulos, na maior boa-fé, com essa proposta ardilosa, e Judas, munido de narcótico, desses que as magas gregas conheciam bem e que produziam a insensibilidade da morte, deu-o a Lázaro, para que caísse num sonho letárgico, do qual só acordaria passado muito tempo.

Lázaro entra em delírio, e pede para ver Jesus, antes de morrer. A família, que desconhecia a trama maliciosa de Judas, manda um mensageiro preveni-lo. Este parte, rápido, mas Lázaro sente-se aflito, e não tarda a cair em estado cataléptico (morte aparente).

Em verdadeira perturbação e tristeza, a ingênua família anuncia a morte de Lázaro, logo comparecendo Tiago e Judas para prestarem seus serviços ao morto e aos parentes. E,

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seguindo o rito judaico, ajudado por aqueles dois bandidos disfarçados, a família levou Lázaro para o sepulcro, tendo os dois ainda puxado a laje para cobrir a sepultura.

Na manhã seguinte, chega Jesus, que fica muito contristado quando lhe anunciam a morte de Lázaro. Mas, médium vidente e auditivo, manifesta o desejo de vê-lo, e os discípulos correm, pressurosos, a levantar a laje que cobria o sepulcro.

Diante do suposto cadáver, Jesus tem a clarividência de que Lázaro não está morto, e coloca as mãos sobre o seu corpo, sacode-o e diz-lhe:

— Levanta-te e caminha!

Sobressaltado, Lázaro começa a abrir os olhos, perguntando onde está. Jesus fala-lhe, amparando-o, e Lázaro, ao reconhecê-lo, exclama, de joelhos:

— És tu, meu Jesus, que me vieste ressuscitar da morte!

As mulheres caem de joelhos e entoam louvores a Jesus, gritando os discípulos, em uníssono:

— Milagre! Milagre! Milagre feito pelo Mestre!

Nesse mesmo dia, Jerusalém era sacudida com a notícia de que Jesus ressuscitara um morto em Betânia.

Agentes do Sinedrim são mandados àquela terra para colherem informes reais, voltando de lá convictos de que tudo era verdade. Os fariseus ficaram desesperados, e o velho Hanã, que triunfara da doença, deixou transparecer nos lábios um sorriso sinistro, quando lhe contaram o fato.

A multidão, porém, sentiu-se comovida com a notícia daquele “milagre”, do qual ninguém ousava duvidar em Betânia. Os fariseus viram-se repelidos, com desdém, por esse mesmo povo que os acatava com temeroso respeito, e em poucos dias as esmolas do Templo sofreram uma baixa considerável.

Ferido nos seus interesses, o sacerdócio acordou da letargia em que vivia, e sentiu trepidar debaixo dos pés, esse vulcão imenso que ameaçava destruir o Templo e apertar o jugo romano.

Jesus era um espírito grandemente esclarecido – disso estavam convencidos todos os membros do alto sacerdócio. Mas era um agitador religioso e, por isso, mais fundo os feria nos seus interesses particulares e na importância social.

O Sinedrim reuniu-se em casa de José Caiafa, Sumo Pontífice nomeado por Valério Grato, bastante amigo dos romanos. Caiafa não passava de uma figura ornamental do alto sacerdócio judaico. Saduceu até à medula, ilustrado nas ciências gregas, libidinoso e epicurista, pusilânime de ânimo fraco e passivo, não passava de um joguete ao bel-prazer de seu sogro, Hanã, político manhoso e excessivamente devasso.

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Depois de uma larga discussão das medidas preventivas a tomar contra Jesus, o Sinedrim, sob proposta de Nicodemos, opinou por sua expulsão de Jerusalém, decidindo entregá-lo ao Tetrarca, acusado de agitador do povo e de atentar contra a lei existente.

Hanã fingiu conformar-se com a resolução do Conselho.

Prevenido dos acontecimentos, Jesus retirara-se, incógnito, para Efraim, cidade obscura, mas não muito longe de Jerusalém. Aproximando-se, porém, a época dos festejos da Páscoa – uma das muitas invencionices místicas do sacerdócio para a exploração da credulidade pública – Jesus, que sempre aproveitara as oportunidades para esclarecer o povo sobre a realidade da vida, não se podia quedar em silêncio nesse dia.

O rancoroso Hanã havia conseguido um mandado de prisão contra ele; caso fosse a Jerusalém predicar ao povo.

XVII

Jesus dirige-se a Betânia. Lázaro e sua família, radiantes de alegria, acolhem-no, ofertando-lhe um jantar de honra, do qual compartilharam os apóstolos.

Sabedores de que ele se encontrava de passagem por Betânia para ir pregar em Jerusalém, os feirantes e vendedores de hortaliças depressa fizeram espalhar nos mercados da Cidade Santa – Jerusalém – a novidade que, passando de boca em boca, dentro em pouco era conhecida de todo o povo.

No dia seguinte, acompanhado dos discípulos, encaminha-se Jesus para Jerusalém. A gente do povo, pelo qual era querido, deixa a cidade e, em número superior a 10 mil pessoas, segue para o arrabalde chamado Betfagé, onde desembocava a estrada que Jesus palmilhava, desde Betânia.

Quando Jesus apareceu, a multidão recebeu-o com gritos de entusiasmo e, oferecendo-lhe uma bonita jumenta branca, obrigou-o a montá-la.

Ramos, palmas e flores foram espalhados pela estrada, estendendo o povo, à sua passagem, mantos e capas, e as mulheres erguiam nos braços os filhos, gritando vivas ao Rei de Israel:

— Hosanas ao filho de Davi, que vem salvar Israel!

Assim entrou Jesus em triunfo, nessa Jerusalém mentirosa e hipócrita.

Um pressentimento parecia avisá-lo do que se tramava contra ele e, meditativo, cofiava a barba, sentindo-se estremecer, não por temer a morte, mas por ainda não haver terminado a missão que o trouxera à Terra.

Enquanto ele assim refletia, o Sinedrim reunia-se de novo em casa de Caiafa, a instâncias de Hanã, que apresentava o auto de blasfêmia atribuído a Jesus, no qual lhe era imputada “a afirmação de que destruiria o Templo e o reedificaria em três dias”. Assinavam o auto, como testemunhas, vários fariseus e algumas pessoas importantes da cidade.

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Nicodemos compreendeu que Jesus estava perdido. Foi então que José de Arimatéia que, em silêncio, vinha admirando Jesus, achou oportuno erguer-se para defendê-lo, causando verdadeiro assombro entre os demais membros do Sinedrim, pois era uma voz respeitada e altiva que Jesus tinha em sua defesa.

Além de homem sério e rico, José de Arimatéia exercia também grande influência em Jerusalém, e por simpatizar muito com Jesus, repugnava-lhe deixá-lo condenar, sem o seu protesto veemente.

Ergueu, pois, a voz, e em tom violento, acusou o alto sacerdócio como responsável pelo atrofiamento do progresso, em detrimento do povo, entregue ao fausto e à devassidão, e como único culpado de aparecerem homens capazes de chamar o povo de Israel ao caminho do bem, propugnando por uma lei baseada em princípios dignos, sérios, de trabalho e respeito.

Hanã estava lívido de cólera, e o Sumo Pontífice teve de impor silêncio a José de Arimatéia, que havia reduzido o sumo sacerdócio à condição de devasso, comercialista e explorador da credulidade do povo.

Alguns membros do Sinedrim ficaram impressionados com as acusações de José, mas o ouro de Hanã e a política de Caiafa tinham feito o bastante para ser votada a prisão de Jesus, em nome da ordem pública e da preservação do Estado.

Todavia, essa prisão produzia calafrios, não só nos mandantes, mas nos executores, porque sendo ele grandemente estimado pelo povo, e havendo muitos forasteiros galileus na cidade, temiam um levante geral que produzisse uma tremenda revolução. Por essa razão decidiram que não fosse preso no Templo, quando a dissertar, mas, sim, fora, e de surpresa.

José e Nicodemos foram os únicos a votar contra a prisão. E tão logo foi encerrada aquela tenebrosa reunião, Nicodemos correu a avisar Jesus, contando-lhe tudo quanto se passara, em presença de Maria Madalena, Cefas, Tiago, Pedro, João e Judas. Nicodemos aconselhou a fuga, mas Jesus, calmo e resignado, apenas respondeu:

— Mais uma vez muito te agradece, Nicodemos, a minha alma. Mas, cumpra-se o dever.

Na manhã seguinte, Judas procurou Hanã em sua casa, mantendo com ele demorada conferência.

Jesus conservava-se cada vez mais meditativo, não pelo aviso de Nicodemos, mas por ver sua obra interrompida.

Quase ao pôr do sol, reúnem-se os discípulos para jantar com o Mestre, e João, o discípulo mais moço, dissertou sobre a obra de Jesus, dando-lhe suas palavras grande contentamento. Seguiram-no, com entusiasmo, todos os demais, à exceção de Judas, que se mantinha taciturno e reservado, comendo pouco e não dizendo uma só palavra.

Por duas vezes, Jesus o surpreendeu olhando-o de revés e com certa expressão de deslealdade, tanto assim que o Mestre, voltando-se para agradecer aos discípulos as palavras de conforto, exclamou:

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— Vossas palavras me consolam, porém, em verdade vos digo que dentre vós algum me trairá.

Oefeito dessas palavras foi terrível entre aqueles homens, que se entreolharam, mudos de espanto. Mas Jesus continuou a recomendar a todos que se amassem muito uns aos outros.

Ao se levantarem da mesa, um vago pressentimento de perigo próximo assaltou a todos aqueles homens.

Jesus e os demais serenamente se despediram do dono da casa, e saíram para a rua.

Pouco depois, Judas dirige-se a Maria Madalena, e exclama:

— Maria, uma palavra.

— Que queres?

— Sabes que Jesus deve ser preso, por ordem do Sinedrim?

— Sei.

— E que se fala em o condenarem à morte?

Maria estremeceu, violentamente.

— E seria possível salvá-lo? – interrogou, ansiosa.

— Sim.

— O que é preciso, para isso?

— Sê minha, uma hora... um minuto apenas, e Jesus será salvo.

— Bandido! Miserável! Maldito sejas! – e partiu em carreira vertiginosa para alcançar Jesus, que se dirigia, com os discípulos, para o vale de Cedron.

Estranhou ele, ao chegar ao horto de Getsêmani, não ver Judas entre os companheiros, e João, que também dera pela falta, toma-o logo pelo traidor.

Maria, chorosa, dirige-se a Jesus, quase sem se poder expressar:

— À Terra lançaste a semente da tua grande e generosa idéia: a Doutrina da Verdade. Ela frutificará nas almas dos bons e dos justos. Dá por terminada a tua missão e foge de Jerusalém e da Judéia. Se preciso for, eu te acompanharei, pois por ti quero dar a vida; nada temo, nada desejo que não seja salvar-te da morte. Vamos, meu Jesus, é noite; uma hora, um minuto, um instante, apenas, e será tarde. Os que me amam e te odeiam, e os que me odeiam porque te amo, não dormem.

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Maria lança-se aos pés de Jesus, em tremenda súplica. Este, em tom paternal, levanta-a e murmura:

— Não devo, nem posso fazer o que me pedes.

— Por quê?

— Escuta. Quando tu apareceste na Galiléia, tive um momento em que pensei possuir-te, como minha mulher, casando-me contigo. Mas, ouvia segredar-me ao ouvido uma voz: “Tu não pertences ao mundo, aqui te encontras para dar cumprimento à obra a que te comprometeste. Não te embaraces, caminha e caminha sempre, como homem livre, cumprindo o teu dever para com a humanidade.” Obedeci. De então para cá, conheces bem a minha vida. A obra que tentei é grande, superior às forças de um homem. Que seria de mim se as partículas que emanam da Força Criadora não me intuíssem e ajudassem? Sinto e pressinto que a obra se interrompe. Os malvados não acreditam na tua conversão à Verdade, querem conquistar-te novamente a carne, não os satisfazes, revoltam-se, vingando-se em mim, por ser eu o explanador da doutrina. Paciência, Maria, já estou cansado de sofrer e lutar, mas o meu dever é caminhar até à morte do corpo, porque a alma, essa continuará na luta astral.

Maria sufocou um grito.

Chegavam ao Horto os meirinhos do Templo, acompanhados de soldados que, sem formalidade prévia, entraram no telheiro.

À frente, um homem, com o rosto encoberto nas pregas da túnica, que parecia dirigi-los, portando a ordem de prisão emanada do Sinedrim.

Os discípulos acordaram. De pronto, adivinharam o que se tratava, e quiseram resistir. Pedro ainda puxou a espada ...

A escolta cercou-os, e o homem embuçado indicou Jesus aos soldados. Os discípulos arremeteram, mas Jesus exclamou:

— A lei é lei, e é em nome dela que sou preso. Ordeno-vos que não tenteis resistir.

Jesus chega escoltado a Jerusalém, sendo conduzido à casa de Hanã, naquelas altas horas da noite. À distância vinha Maria, sozinha, a alma torturada, por ver Jesus a caminho do martírio.

Hanã, velhaco e matreiro, não querendo descobrir o ódio que lhe ia na alma, exclamou:

— És tu, então, Jesus de Nazaré, que te intitulas “filho de Deus” e pretendes destruir a lei de Israel, que foi a de nossos gloriosos antepassados?

— Sou! – respondeu Jesus.

Várias pessoas presentes pasmaram da convicção, da coragem e destemor de Jesus.

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— És, então, um ímpio que blasfesmas da lei de Moisés, que não respeitas os dogmas e que chamas o povo à revolta contra os seus pastores espirituais, concitando-os, assim, à cólera de Deus?

— Enganas-te, Hanã – respondeu Jesus, com altivez – nem chamei o povo á revolta, nem blasfemei da lei de Moisés. Publicamente tenho ensinado a doutrina da Verdade à luz clara do Sol, assistido pela Força que clarividência a inteligência que tudo incita e movimenta, para o aperfeiçoamento espiritual. Só quem fosse cego e surdo é que não me teria podido ver e ouvir no pórtico de Salomão.

Quanto aos meus discípulos, são homens humildes, inofensivos e bons. Não quero destruir a lei, mas acabar com a hipocrisia e a falsidade daqueles que a administram e ensinam ao povo coisas absurdas, fora das leis naturais que tudo regem e que à razão e ao bom-senso repugnam, por serem baseadas na mentira. Percebes, Hanã?

— Cala-te, irreverente! – berrou, com voz afônica, o velho, roxo de cólera, dando um criado, em seguida, uma bofetada na face de Jesus.

— Isto é para falares com mais respeito ao grande luminar da religião de Israel, entendes, aventureiro pregador?

— Desculpo-te, infeliz, mas continuarei a falar! – respondeu-lhe Jesus.

— Negas, então, que és um sedutor religioso, que queres perder o povo e afastá-lo do seu Deus e do seu culto?

— Nego! – gritou Jesus, com energia. – E, se não me acreditas, pergunta a todos que me têm ouvido, que eles falarão por mim.

— Negas também, aposto, que te intitulas filho do Pai, do qual dizes receber ordens? (Jesus empregava muito a palavra Pai, para fazer-se compreender pelos ignorantes da Verdade, desconhecedores da composição do Universo: Força e Matéria).

— Não, isso não nego; não reconheço o Deus que dizes adorar – rancoroso, vingativo, sem piedade e justiça – mas, sim, a Força Suprema, cujas partículas estão em toda parte, a assistir a todos os atos bons ou maus que a humanidade pratica.

Lavrou-se um auto daquele interrogatório, e Hanã, saboreando uma taça de leite, onde boiavam torrões doces e folhas de rosa, exclamou, pausadamente:

— Levem este homem à casa de Caiafa; só ele é o Sumo Pontífice, e só ele pode condenar ou absolver.

XVIII

A escolta de novo tomou Jesus sob sua responsabilidade, levando-o, preso, à casa de Caiafa, onde estava reunido o Sinedrim.

Jesus é conduzido à sala oficial. Constituído em tribunal, o Sinedrim o aguardava, e Jesus a todos impressionou com a sua doce serenidade.

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Caiafa apresentou ao Tribunal o auto dos fariseus que o tinham ouvido dizer que “destruiria o Templo de Deus e o reedificaria em três dias”.

As testemunhas, corrompidas e subornadas pelo ouro de Hanã, confirmaram tê-lo ouvido proferir a terrível blasfêmia. Caiafa pediu a Jesus a explicação daquelas palavras, porém ele, escusando-se, não respondeu. Caiafa não insistiu e, fingindo-se disposto à clemência, pergunta:

— Dizem também que tu te intitulas o “Messias, filho de Deus”. É isto verdade?

Jesus ergueu-se, e com voz pausada e forte, que ressoou no espírito de todos os presentes como o som de um clarim, bradou:

— Em verdade vos digo, homens de Naftali e da Judéia, sacerdotes da lei, fariseus e servidores do Templo, e a ti, José Caiafa, Sumo Sacerdote e Pontífice Máximo, que eu sou aquele de que falam as profecias, (querem atribuí-las a Daniel e Elias), e entre vós me encontro para dizer a Verdade.

Sou um homem como os demais, composto de Força e Matéria (alma e corpo), e não vim para destruir templos nem pregar mentiras, mas para esclarecer a humanidade, guiando-a para a vida eterna que é aquela que o espírito vive quando deixa o corpo e transpõe este planeta, ascendendo aos mundos de luz que rolam no Espaço Infinito. Chegou o momento de acabar com o sobrenatural e com os mistérios, produtos da ignorância humana, jamais aceitos pelos que raciocinam em maior profundidade.

Podeis ficar certos de que o povo vos há de abandonar e maldizer pelos martírios infligidos, pela extorsão e embrutecimento a que o vindes submetendo, há séculos. Todos saberão que nem as cerimônias do culto, nem os seus sacrificadores poderão salvar a alma, se as suas consciências não estiverem limpas de culpa.

Tenho estado entre o povo para ensinar-lhe o caminho da salvação do espírito, falando-lhe em linguagem simples, mas pura. Não sou embusteiro, nem charlatão; fisicamente, sou um simples mortal, como todos, e nada possuo, nada quero a não ser o cumprimento do meu dever, que me ordena que explane a verdade, baseada em princípios racionais e científicos.

Roxo de cólera, Reboão, um dos mais instruídos e devassos dos sacerdotes, bradou:

—O que este homem diz é uma infâmia!

Nicodemos não presenciou essa memorável sessão do Sinedrim, e José de Arimatéia acovardou-se diante das disposições hostis de seus colegas. Via-se só em campo, e esse isolamento quebrou-lhe a força moral.

Jesus foi levado da sala, e o Conselho entrou em deliberação.

Nesse momento entrava Hanã, lívido e desfigurado, com todo o corpo em convulsivo tremor. Ao sair da casa do velho Sumo Sacerdote, encontrara-se com Maria Madalena e esta, em altos gritos, bradou:

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— Assassino!

— Dá-me uma palavra, uma palavra apenas, e Jesus será salvo! – dizia, ainda, o velho apaixonado.

— Nunca! – retorquiu Maria, com altivez. – Jesus morrerá, bem o sei, mas jamais tocarás no meu corpo. As tuas carícias envenenaram-me o sangue e o espírito. Jesus me salvou, por que nunca pensou em conquistar o meu corpo, mas sim a minha alma. Esta pertence-lhe, e meu corpo tombará em sua defesa.

Hanã sufocava-se de cólera e ciúme:

— Pensa no que fazes, louca!

— Vai-te, velho réptil repulsivo e nojento, foge da minha vista, sapo asqueroso, com figura de homem. Que eu nunca mais te encontre no meu caminho, senão ... E Maria, abaixando-se, apanhou uma pedra, que arrojou com força, e passou sibilando rente à face do velho. Se o tivesse acertado, poderia tê-lo matado.

Hanã gritou por socorro mas, quando os criados acudiram, já Maria tinha desaparecido.

Foi assim alterado que ele se apresentou no Sinedrim, onde levou a questão para o campo da política e dos interesses pessoais, acusando Jesus de homem perigoso que atacava a lei e o dogma, e demonstrando que desde que o rabi começara a predicar em Jerusalém, os rendimentos do Templo haviam baixado consideravelmente.

Hanã defendeu a tese de que a exaltação dos espíritos, provocada por aquele homem, acarretaria conseqüências iguais ou piores que as causadas pela revolução fomentada por Judas, o gaulonita, que foi, apenas, política. “Jesus – disse Hanã – está à frente de um movimento de caráter religioso contra as leis de Moisés e os nossos dogmas, e se não for pronta e energicamente detido, acabará por tomar conta do povo e levar o poder romano a proceder com rigor e força, ameaçando de ruína o Templo e pondo em risco o privilégio de todos os sacerdotes e até a autoridade religiosa de César, que a tem transferido, em toda a sua plenitude, para os judeus”.

Apesar dessa exposição ter sido habilmente tratada e encerrar, no fundo, verdades indiscutíveis, o Sinedrim teve os seus escrúpulos.

O tribunal religioso compunha-se dos seguintes juízes: José Caiafa – Presidente e Sumo Pontífice da religião judaica; Joram, Sarêas, Diarábias, Ptolomeu, Josafá, Sabinti, Subato, Áquias, Samaci, Putifar, Mesá, Rifar, Rosmofino, Simão (o leproso), Táreas, Eierino, Nicodemos, José de Arimatéia e Reboão.

Dentre eles, Joram, Áquias e José de Arimatéia tomaram a defesa de Jesus, com grande interesse e dignidade. Mesá pediu a aplicação justa da lei, observando que se devia ouvir o réu. Mesmo os mais virulentos, achavam que Jesus devia responder pelo crime, mas não sofrer a pena de morte que, diziam, ele não merecia.

A discussão azedou-se, tomando grande calor, e Hanã tornou a falar:

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— Se Jesus tornar a predicar em Jerusalém e na Galiléia – disse – o Templo irá por terra e nós seremos as vítimas. Devemos pesar bem as conseqüências das prédicas proferidas por esse revolucionário religioso, que ocasionarão a ruína do sacerdócio, uma vez que elas afastam o povo de sua devoção ao Templo.

Tocando, assim, na corda sensível – o interesse pecuniário – ele estava quase certo do triunfo. E não se enganou. Os juízes temeram pelas suas riquezas e a vida ociosa e fácil que levavam. Caiafa e os demais, à exceção de José de Arimatéia, Joram e Áquias, concordaram com a exposição de Hanã, e Nicodemos, apesar de integrar o Tribunal, não compareceu.

Lavrada a sentença, Jesus foi de novo introduzido na sala, e o Sumo Sacerdote, devidamente paramentado, leu o pergaminho encerado, onde o estilete gravara o seguinte laudo condenatório:

“Aos 15 do Nizan, estando reunido o Sinedrim da Judéia em casa de José Caiafa, Sumo Sacerdote e Pontífice Máximo de Jerusalém, foi-lhe apresentado o rabi Jeschona Ben Jeschona, natural da Cidade de Nazaré, Galiléia, acusado de sedutor e blasfemador, acusações todas confirmadas pelas testemunhas que assinaram o auto e compareceram a este Tribunal, e sendo interrogado, declarou ser o Messias, filho de Deus, vindo à Terra para salvar os homens, não tendo negado sua blasfêmia de que destruiria o Templo de Deus e o reedificaria em três dias. O Sinedrim reconheceu-o, por maioria, como réu do crime de blasfemador e destruidor do culto estabelecido e, segundo a lei estatuída para tais crimes nefandos, condena-o à morte, em nome da lei e do respeito ao Culto”.

Jesus ouviu a sentença sem pestanejar nem mudar de cor. Não se lhe contraiu um só músculo do rosto, que se mantinha sereno e calmo, o que levou os falsos e covardes juizes a admirarem a sua coragem.

Caiafa fez sinal aos guardas, e Jesus foi levado para a estrebaria do palácio, onde o amarraram a um poste utilizado para prender jumentos.

XIX

A sentença do Sinedrim não bastava, no entanto, para Jesus morrer, por não possuir o Tribunal atribuições executivas.

Somente o Legado Imperial a podia mandar executar, se o condenado fosse cidadão romano. Mas, como Jesus era judeu, o Procurador podia sancionar a sentença ditada pelo Sinedrim.

Urgia, pois, que Pilatos a ratificasse, antes de principiarem as festas da Páscoa.

Logo de manhã, pouco depois do sol nascer, o Sinedrim reuniu-se, de novo, em casa de Caiafa, para submeter o processo à ratificação de Pilatos.

Era sexta-feira, 14 do Nizan (3 de abril), primeiro dia da Páscoa, e aquele em que se devia comer o cordeiro ritual. Os sacerdotes mandaram buscar Jesus, ordenando que lhe atassem as mãos atrás das costas.

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Como, segundo o rito, os judeus que entrassem em casa de um pagão, durante as solenidades pascoais, ficavam poluídos e proibidos de as celebrar, Jesus devia ser julgado no pátio da Pretória, situado ao ar livre, e, como tal, fora dos tetos pagãos.

Informado do que se tratava, o Procurador não ocultou o seu desgosto ao ver-se, contra a vontade, envolvido em tal caso.

Imparcialmente falando, Pilatos era bom procurador e amigo de fazer justiça. Além disso, não apreciava os judeus, por considerá-los fanatizados por uma religião que ele não compreendia e que cobria de motejos e epigramas, chamando o seu deus de “Deus da carne assada”, numa alusão à imolação dos cordeiros e vitelas sobre as grelhas sagradas.

Foi, pois, com supremo tédio e mau-humor que Pilatos tomou conta do processo que condenara Jesus à morte.

Envolto na sua toga branca, com barra de púrpura, Pilatos encaminha-se para a Pretória. O povo abre alas, em silêncio, à sua passagem, e cumprimenta-o, com reverência, não por estima e respeito, mas pelo pavor que tinha do Império Romano. Subindo o pedestal, senta-se na cadeira curul, sendo Jesus conduzido, entre soldados, e colocado à sua frente.

Sarêas, vogal do Sinedrim, saudando o pretor, começa a ler, em voz pausada, o auto do processo.

Pilatos, com os olhos semicerrados e o queixo apoiado na mão, ouve a leitura; de vez em quando, curioso, crava o olhar em Jesus, parecendo admirá-lo. Era a primeira vez que o via, porém sentia-se impressionado com aquele homem do povo. Demais, ele percebia em tudo aquilo uma vingança mesquinha e baixa do sacerdócio, que abominava.

Após a leitura do auto do processo, Pilatos descruzou as pernas e, dirigindo-se a Jesus, disse-lhe, em voz lenta, pausada e sonora:

— Os teus trazem-te aqui depois de te haverem condenado à morte. Acusam-te de te intitulares rei dos judeus e blasfemares da sua lei, que é também a tua. Vamos, responde: o que fizeste, para assim procederem?

Jesus avançou um pouco, e olhando, fixo, o Procurador, respondeu:

— Pretor, a mim me condenaram, sem me ouvirem. Queres tu ouvir-me, sem que eles me ouçam?

Os sacerdotes e fariseus ergueram as vozes, num cavo ruído de protesto, mas Pôncio, indignado, bateu com a mão nos descansos da sua cadeira curul, e os litores, erguendo as varas, gritaram:

—Em nome de César, silêncio!

Cessaram os protestos.

— Este homem tem razão – exclamou Pilatos. Preciso ouvi-lo, assim como vos ouvi.

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E dirigindo-se a Jesus, disse-lhe:

— Segue-me.

Desceu da Bima, atravessou o pátio e encerrou-se com Jesus numa sala do Palácio. Teve pena dele, vendo-o tão débil e fatigado, mandou-o sentar e, com bondade e interesse, lhe falou:

— Acusam-te de te intitulares rei de Israel, filho de Davi, e atentares contra o poder de César. É isto verdade?

— Não, respondeu Jesus, com energia. Reconheço como dominante o poder de César, e esses homens enganam-te.

Pilatos ficou perplexo.

— Mas – exclamou, após um momento de reflexão – acusam-te também de blasfemador. Eu nada sei dessas coisas da tua religião, mas cumpre-me acatar as sentenças do Sinedrim, e tu estás condenado ...

— ... a morte, bem o sei – atalhou Jesus, com tanta tranqüilidade, que Pilatos se surpreendeu.

— Vejo que és vítima de uma intriga dos sacerdotes, e a mim cumpre não deixar que se cometa um crime. Preciso, porém, que me esclareças, claramente, sobre as causas que levaram tão longe a vingança do sacerdócio.

— Eu te digo, romano, respondeu Jesus. E, a traços largos, desenhou toda a sua agitada existência, desde os primeiros anos, a proclamação dos seus princípios de igualdade perante as leis da natureza, de paz e de fraternidade entre todos os homens, e a fundação de uma doutrina simples, baseada num princípio honestíssimo de consciência e amor ao próximo.

Pilatos era pouco teólogo, mas bastante inteligente para compreender, na súmula, as preciosas idéias de Jesus. E admirou-se de um simples homem do povo ter uma orientação filosófica tão completa, tão racional, a ponto de fazê-lo sentir a impressão moral com que ela se impunha.

Jesus, desejando tudo explicar, não para escapar à desencarnação, à qual pouca importância dava, mas para explanar a Verdade, discorreu sobre os altos e transcendentais princípios da vida, expondo a Pilatos que a sua missão entre os homens tinha a finalidade de esclarecê-los, transmitir-lhes o conhecimento de si mesmos, adiantando que todos possuímos uma origem comum, e como espíritos encarnados, em evolução, temos presença efêmera na Terra, que é um mundo-escola e depurador, e que é a ignorância destas verdades que leva a humanidade à prática de todos os crimes.

Intitulava-se filho de Deus, explicava, para fazer-se compreender pelos sectários, crentes, fanáticos religiosos, enfim, gente de toda espécie, pois, se falasse de outra forma, não seria entendido. (*)

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Pilatos não pôde compreender as últimas explicações dadas por Jesus, mas convenceu-se de que estava diante de um homem de grande valor, talento e inconcussa dignidade, idealista e absolutamente inofensivo. E levantou-se, resolvido a salvá-lo.

(*) Jesus nem mesmo pelos seus discípulos foi compreendido. Ele jamais alimentou qualquer pretensão, além de viver humildemente entre os homens, favorecendo-os com os princípios de amor e respeito que explanava, com base unicamente naquilo que sentia ser a verdade da vida. Nunca o seduziram as posições de destaque religioso ou social, e como só o preocupava a vida eterna do espírito, cuidava, apenas, de cumprir o seu dever na Terra.

XX

Apenas se retirava, a porta abriu-se, e Cláudia, a mulher de Pilatos, correu para Jesus e apertou-o convulsivamente nos braços, cobrindo-o de beijos.

Jesus ficou surpreendido, mas a sensual romana, apertando-o fortemente, murmurava-lhe ao ouvido:

— Amo-te! Amo-te! Se te salvares, hás de ser meu, e então vingar-te-ás, como quiseres, de toda essa canalha do Templo.

E, receosa de que o marido aparecesse, fugiu, rápida, como a visão de um sonho.

Jesus lançou-lhe um olhar sereno, repassado de piedosa compaixão.

Pilatos sobe à Bima, e exclama:

— Interroguei Jesus, e das suas respostas, depreendi que não é um revolucionário, mas sim um homem de princípios de elevada moral, ainda que possa ser considerado um fantasista; é ele inofensivo, tanto para o poder de César, quanto para todos vós.

Os sacerdotes acolheram tais palavras com um grande sussurro de desagrado. Pilatos percebeu o rugir da onda, e querendo agradar, prosseguiu:

— Não pretendo, porém, usar da minha autoridade, e por isso, respeitando o antigo costume do reino, faculto ao povo, neste dia, conceder a liberdade e perdoar um preso; submeto à vossa escolha aquele que quiserdes.

Os sacerdotes, conhecendo a intenção de Pilatos, já haviam segredado a vários homens do povo o nome de Bar Rabam para ser perdoado (um patife que numa sedição assassinara um homem) e distribuído moedas em profusão, e, por isso, os venais gritavam:

—Solte-se Bar Rabam! Bar Rabam!

Extremamente indignado, Pilatos mandou soltar o assassino. Cumpria condenar Jesus.

O Procurador condenou-o pela parte ridícula da acusação, que dizia haver-se ele intitulado Rei dos Judeus, e mandou açoitá-lo com varas verdes.

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Jesus foi levado à praça pública, onde os executores lhe colocaram na cabeça uma coroa de espinhos, que lhe feriu as carnes, lançaram sobre os seus ombros uma capa de púrpura, fizeram-no empunhar uma cana, e assim o mostraram ao povo, do alto da tribuna.

Alguns soldados mercenários dirigiam-lhe insultos, para grande indignação dos romanos, que eram homens sérios, encanecidos na disciplina e nos campos de batalha, aos quais repugnava aquela cena humilhante contra um homem indefeso e resignado.

O Procurador desceu novamente da Bima, imaginando ter satisfeito a opinião pública, mas, a esse tempo, o dinheiro já havia corrido em profusão e ouviam-se gritos partidos de todos os lados:

— À cruz, à cruz!

— Este homem pertence ao Tetrarca! – bradou Pilatos, empregando o último esforço a favor de Jesus.

Antipas achava-se em Jerusalém, onde fora assistir às festas da Páscoa. Pilatos ordenou, então, a Jesus que acompanhasse os soldados à casa do Tetrarca.

— É inútil – respondeu Jesus. – Antipas conhece-me bem, e eu mal posso suster-me em pé. Poupa-me essa fadiga escusada.

Pilatos admirou-se de tanta coragem e desprendimento e, erguendo as pregas da toga, retirou-se, depois de lançar aos sacerdotes um olhar de nojo e desprezo.

Revoltados, intimamente, com a atitude do Pretor, os sacerdotes e fariseus, para produzirem encenação no meio do povo ignorante, alguns ajoelhados e de mãos erguidas, clamavam por justiça, gritando, com toda a força de seus pulmões:

— Israel está perdida! Quem nos salvará?!

Sarêas, o vogal do Sinedrim, adiantou-se, e a sua mão clara, de falanges longas e descarnadas, bateu, com força, a potente aldrava de ferro polido da porta do Palácio da Justiça.

O soldado romano cruzou a lança e a porta abriu-se, deixando ver a sala lajeada de mármore, ao centro da qual se ostentava uma estátua de Augusto, em bronze, de tamanho colossal.

Um tribuno do Palácio perguntou o que desejava, e Sarêas respondeu:

— Ide e dizei ao Pretor que gentes de Israel, sedentas de justiça e de eqüidade, o esperam.

Um grande silêncio, e apareceram dois litores empunhando as varas e, atrás deles, majestoso e altivo, o Pretor.

Pilatos saudou a estátua de César, voltou-se para os sacerdotes e exclamou:

— Pedis justiça e eqüidade? Escuto-vos.

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Sarêas avançou um passo, guardando-se de pousar seus pés no solo da casa do pagão, e com voz pausada e vibrante, disse:

— Em nome do Sinedrim, cujo poder e retidão de juízo César nunca deixou de reconhecer, venho pedir-te uma decisão acerca do destino de Jeschona Ben Jeschona, visto não terdes confirmado nem anulado a sentença proferida.

— Fiz o que devia – respondeu Pôncio, vermelho de cólera contra aquela infame velhacaria. Interroguei o vosso condenado, estudei atentamente o auto-de-culpa, e nele não encontrei motivo bastante para confirmar o exagero da vossa sentença.

Suas mãos estão limpas de sangue e não consta que tirasse para si o que a outrem pertencia. Agora mesmo, quando vós me chamastes, acabava de receber uma informação de Antipas Herodes, que pertence à vossa lei e dogma e é homem reto e de sã prudência, na qual me diz que Jeschona Ben Jeschona de há muito predica na Galiléia, que ele mesmo o ouviu por mais de uma vez, e apenas o considera um visionário e um idealista inofensivo, que não prejudica o Estado nem perturba a lei. Fostes precipitados; César não é cruel, e muito menos um assassino.

A última frase do Pretor calou no espírito dos sacerdotes como um insulto dirigido diretamente ao Sinedrim, e Pilatos viu bem o seu efeito pintado em todas aquelas fisionomias hipócritas e devassas.

Reboam, decano dos membros do Sinedrim, dirigiu-se a Pôncio e, em romano, proferiu as seguintes palavras:

— Procurador e homem de confiança de César Augusto, Imperador dos romanos, sábio, preclaro e justo: tu ignoras a índole da missão política que se encobre atrás das palavras desconexas desse homem, a quem julgas um visionário inofensivo. Há bastantes anos ele ofende as nossas leis, e nós temos sido tão magnânimos e leais, que até o deixávamos predicar no Pórtico de Salomão. Tua mulher bem o via do alto da torre, e ela que te diga se algum de nós o ofendeu.

E Rabi Reboam, deitando um olhar revesso ao Procurador, buscava-lhe no rosto o efeito da sua insídia, pois era voz corrente em Jerusalém que Cláudia estava apaixonada por Jesus.

Pôncio permaneceu impassível. As leviandades de sua mulher de há muito não o incomodavam.

— Fomos tolerantes – prosseguiu o velho rabi – mas, acima de tudo, prezamos a paz e a tranqüilidade pública, e só reconheceremos rei da Judéia a Tibério, Imperador dos romanos. Temos dados de sobra para podermos afiançar que o partido dos gaulonistas revive, e Jeschona Ben Jeschona ou Jesus de Nazaré, como geralmente o conhecem, é o seu chefe oculto.

Pôncio estremeceu.

— O seu idealismo e as suas visões são apenas o véu que encobre sua política revolucionária, e quando o vimos entrar em triunfo pela Porta de Ouro, na sua volta de

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Betânia, pareceu-nos ser tempo de sustar a marcha revolucionária desse inimigo de César. Assim, praticarás tu o contrário, tu que o representas e cobras do seu erário?

— Tende cuidado com as vossas palavras! – bradou Pôncio, cheio de cólera – Um procurador de César não precisa aprender os seus deveres com os bárbaros judeus desta ínfima colônia asiática.

Oinsulto fora violento, mas Reboam prosseguiu, como se o não tivesse ouvido:

— Sabemos que tu te importas tanto com a nossa lei ofendida, como com as profecias de Jesus, a cuja vida tampouco ligas importância alguma. Não imagines, porém, que estes bárbaros da mais ínfima colônia asiática sejam néscios que não compreendem as tuas intenções. Tu o que queres, romano, é a destruição de Judá. Tu queres salvar Jesus para que ele faça a revolução e, depois, lançares contra nós, em nome do dever, as lanças dos teus soldados.

Queres, ainda, o sangue dos filhos pacíficos de Israel, para te apresentares a César como soldado vencedor e exigires, depois, a paga da tua vitória – um proconsulado ou lugar eminente na Itália, ou talvez quem sabe se sonhas com essa realeza de Israel que pretendes conservar em Jesus? ... Mas descansa, que nós estamos tranqüilos com a nossa consciência e, condenando o homem que contra César se revoltou, mereceremos o seu aplauso justiceiro e imparcial. Daqui a Roma não se gasta um ano. César verá a nossa sentença e o teu proceder, e então saberemos como ele avalia a confiança que lhe deve merecer o seu Procurador na Judéia.

Reboam tossia, secamente, e trêmulo, arrimado ao bastão de marfim e ouro, voltou para junto dos colegas.

Pôncio estava indignado e enojado de tamanha infâmia. Viu, num relance, toda a miséria que envolvia a trama para o intrigarem com César, pretendendo se servir de seus inimigos, encabeçados por Elias Lama, que os representaria na reclamação junto ao Imperador.

Este, certamente, conquanto não compactuasse intimamente com as pretensões dos intrigantes, seria complacente com os judeus, por política e cálculo, para evitar uma revolta e, assim, poupar o sangue dos legionários, que tão precioso lhe era.

Teve, pois, Pôncio medo da sua queda, e sofreando os elevados impulsos que até ali o tinham levado a defender Jesus, caminhou, em passo mal seguro, até o limiar da porta, e com voz cava, exclamou:

— Ouvi as vossas acusações e ameaças e parece-me que não tendes razão nem sois justos, pois julgo que até hoje e há já sete anos que vos governo – não transgredi a lei nem meus deveres. Não receio as vossas ameaças, porque César não entregaria o Governo da Judéia a um homem em quem não depositasse absoluta confiança, mas reconheço que entre o meu e o vosso poder, devem existir harmonia e unificação e, neste caso ... Após uma leve pausa, e esfregando e sacudindo as mãos, como se as quisesse limpar do sangue que iria manchá-las, prosseguiu:

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— Se a vida de Jesus vos é necessária por interesse do vosso dogma e defesa da vossa lei, tomai-a. Eu julgava que a flagelação e o ridículo vos satisfaria, mas vejo que exigis a cruz. Pois crucificai-o, que eu cedo às vossas reclamações, mas de todo esse negócio em que quereis fazer uma vítima, lavo minhas mãos do sangue inocente que ides derramar.

— Descansa, Pôncio, fomos nós que o condenamos, e se o seu sangue tiver de cair, que caia sobre as nossas cabeças!

Pôncio pareceu sentir-se aliviado de um grande peso, e ratificando a sentença do Sinedrim, mandou entregá-la a Caiafa, retirando-se, lentamente, depois de lançar aos sacerdotes um olhar de desprezo.

Jesus estava irremediavelmente perdido. A medonha e infamíssima vingança de Hanã fora até onde podiam ir os instintos de uma alma cruel e mesquinha, devorada pelo ódio de um vil ciumento.

O velho ex-Sumo Pontífice, pedindo para Jesus o suplício da cruz, quisera acrescentar ao martírio a ignomínia. Esse suplício não era judaico, mas romano, e reservado aos escravos condenados por crimes infamantes.

No fundo da alma de Hanã só havia peçonha, mais venenosa do que a dos répteis mais repelentes e traiçoeiros, tanto assim que não se contentou em vingar-se mandando condenar Jesus à morte pela forma usada entre os Judeus, que consiste na lapidação ou enforcamento e apedrejamento do cadáver. Ele quis mais escárnio para saciar a sua alma de abutre; aquele martírio ainda não lhe era suficiente, pois queria gozar, confundindo Jesus com os ladrões e assassinos da mais baixa esfera. Eis a razão de Jesus na cruz.

XXI

Os soldados conduzem Jesus entre dois assassinos para o Gólgota, onde três carpinteiros preparam três cruzes para nelas serem pregados, com vida, aqueles três homens, sendo costume cada criminoso carregar a sua própria cruz até ao lugar do suplício.

Os dois companheiros de infortúnio de Jesus eram fortes e robustos, e à ordem emanada dos carpinteiros para cada um carregar o instrumento do seu suplício, eles o fizeram bem, porém Jesus, homem fraco e delicado, nascido para os exercícios da inteligência e nunca os do corpo, teve dificuldade em erguer e pôr aos ombros a sua cruz.

A distância a percorrer até o local da crucificação era regular, e Jesus mal podia andar livre do madeiro, quanto mais sobrecarregado com ele. Vendo-se só, desamparado e esquecido pelos apóstolos, seus olhos derramavam lágrimas que lhe regavam continuamente as faces, e de seus pés e ombros caía sangue, formando um filete pelo caminho já percorrido. Em dado momento, Jesus tropeçou, deixou cair a cruz e feriu-se num joelho, que deitava muito sangue.

A escolta fez alto, e o centurião, penalizado pelo estado de Jesus, indagou:

— Podes seguir?

— Já não agüento mais.

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A certa distância, caminhava um transeunte, que chamado por ordem do centurião, este lhe disse:

— És forte e vigoroso; agarra essa cruz e ajuda esse homem a levá-la; ele não a pode carregar.

O aldeão encarou Jesus, e empalideceu.

— É o rabi da Galiléia?! – exclamou pasmado.

— É, sim! – respondeu o centurião – Anda, vamos com isto!

Chegados ao lugar do martírio, cada qual foi pregado na sua cruz, tendo os dois assassinos resistido à crucificação; Jesus, resignadamente, deitou-se na cruz que fora levada, até ali, por Simão Cirineu, estendeu os braços, e no momento em que os carrascos iam pregar os cravos, o centurião virou o rosto para o lado, comovido com a barbaridade praticada com aquele inocente.

Quando a cruz começava a ser levantada, chega, apressado, um escriba do Sinedrim com uma placa de madeira negra, onde, em caracteres brancos, se lia o seguinte dístico:

Jesus de Nazaré, rei dos judeus.

Pregaram a placa na cruz e ergueram-na, para cravá-la ao solo.

Dentre os muitos que ali começavam a chegar, destacavam-se duas senhoras: uma, já idosa, outra, nova e bonita. Eram Salomé, mãe de João e mulher de Zebedeu, e Maria Madalena, que ficaram estupefatas diante daquele quadro horrível.

Jesus reconheceu-as, olhou-as piedosamente, e lágrimas sentidas lhe rolaram pelas já descarnadas faces.

Maria animou-se, e lhe disse:

— Fugiram todos, Mestre, tiveram medo.

Muitos eram os fariseus embriagados que ali se encontravam a chasquear de Jesus, tendo até dois brutos, mais animais do que gente, urinado num monte de areia e fazendo bolos, os atirado, rindo sobre Jesus.

Maria perdeu a calma; atirou-se contra os dois imbecis, esmurrou-lhes a cara e fez espirrar sangue do nariz do mais novo. Um velho escriba apanhou uma pedra e atirou-a em Jesus, mas ela bateu na cruz.

O centurião, indignado com o procedimento inferioríssimo desses fariseus e escribas, lança mão da espada e investe contra eles, que covardemente se afastam, proferindo blasfêmias e imprecações.

Entristecido e compadecido, talvez mais pelo que presenciava do que pelas dores da crucificação, este pensamento talvez dominasse Jesus: “Por minha causa já o sangue jorra

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entre os meus semelhantes; na hora da expiação, meus olhos presenciam estes fatos; o que estará reservado à minha alma ver?”

Longe estava de imaginar que em seu nome ia ser criada a Inquisição, espalhando terrores inimagináveis, e trucidando, matando, roubando e desonrando os que ousassem pensar com liberdade; que altares seriam erguidos, com supostas efígies suas e adoradores de toda espécie, a mendigar favores, benefícios e perdões para as faltas e crimes que cometem, mesmo os mais abomináveis, pelo mau uso do livre arbítrio; que se criou, sob o seu suposto patrocínio, uma religião de estado, de fundo negocista, com milhares de parasitas falando em seu nome, como se tivessem recebido mandato seu, com poderes para representá-lo – os mais amplos e ilimitados – com os quais criaram falsos oráculos compostos por uma casta de certos cultos cobertos de soberbas pompas e honrarias, no vestir e em tudo mais, obrigando a todos, vaidosamente a lhes dispensarem tratamento fidalgo.

XXII

Surgem no Gólgota dois homens sérios, graves e distintos que se encaminham, por entre o público, param junto da cruz, deixando à sua passagem os espectadores entregues a comentários segredados, com espanto, uns aos ouvidos dos outros:

São Nicodemos e José de Arimatéia, ambos do Sinedrim!

Junto à cruz, Nicodemos fala a Jesus:

— Ânimo, amigo!

Jesus envia a Nicodemos e Arimatéia um olhar agradecido, e cai-lhe a cabeça sobre o ombro esquerdo, pois já não a podia sustentar, tais eram as dores torturantes daquele suplício.

— Ouviste? Ouviste? – segredou um escriba ao ouvido de um sacerdote.

— O quê?

Nicodemos chamou amigo ao rei dos judeus! Agora dou razão aos que dizem que ele se inclina para os essênios ...

— E te ferra um pontapé que te arrebenta, miserável escriba! – respondeu Nicodemos, que o tinha escutado.

Maria Madalena, de todos os discípulos do Mestre, era a única que compartilhava dos martírios de Jesus, pois nenhum outro ali se achava para confortá-lo.

Ela estava debruçada sobre uma pedra, quando sentiu que lhe bateram no ombro. Era Cláudia que, tomando-lhe as mãos, apertou-as, chorando, e pedindo perdão.

— Tu! – exclamou Maria, com espanto. E apontando-lhe Jesus, prosseguiu, com grande mágoa, na qual se traduzia toda a agonia de sua alma:

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— Ei-lo, Cláudia! Ele vai morrer, e eu o acompanharei.

— Como tu o estimas! exclamou Cláudia.

— E concorreste tu também para a sua morte! Duvidaste da sua castidade, supondo-o meu amante, e quiseste conquistá-lo, confundindo-o com aqueles devassos que apenas viam em mim uma galiléia formosa a tentá-los à cobiça da carne. Para eles, Maria, a galiléia, não possuía alma.

— Mas, enganaram-se porque nunca me senti tão feliz como desde o dia em que me vi livre dos grilhões da devassidão, despida dos adornos mal adquiridos, trazidos para mim por aqueles que, apesar de sacerdotes, não passavam de desprezíveis sensualistas.

— Perdoa-me, Maria, eu não compreendia esse amor espiritual! Meu marido quis salvá-lo, sabes?

— Disseram-me, em Jerusalém.

— E Antipas também.

— Sim?

— Fui pedir por ele e fui atendida pelo Tetrarca, porém nada se conseguiu, por ter o rabi Reboam ameaçado Pôncio com a desconfiança de César.

— Canalha! – e no olhar de Maria, fulgia um relâmpago de ódio.

— Mas, continuou Cláudia, muito baixo, para que ninguém a ouvisse – talvez ainda o possamos salvar.

— Como?

— Trouxe comigo um filtro que dá todas as aparências da morte durante algumas horas. Jesus arde de sede, pedirá água, e eu ensoparei a esponja nesse líquido, que ele sugará com avidez. Verás o seu efeito. Sei que seus amigos Nicodemos e Arimatéia reclamaram o corpo a Pôncio, e trazem ordem para que ele lhes seja entregue. O resto, pertence-te, ajuntou, limpando uma lágrima.

Maria apertou-lhe as mãos e beijou-as.

— Sou tua amiga, provo-te – exclamou Cláudia.

— Água, dêem-me água – suplicou Jesus, com angústia.

Maria correu a buscar a cana que um soldado tinha encostado à lança e, rápida, molhou-a na poscha, espremeu-a, disfarçadamente, e entornou nela o líquido azulado contido num pequeno tubo de ouro que Cláudia lhe entregara. Aproximando a esponja da boca de Jesus, ele a sugou, ansioso, e logo sentiu ânimo, nova vitalidade, mas quase imediatamente teve um tremor convulso, soltou um grito estridente, a face cobriu-se-lhe

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de uma lividez de cadáver, pendeu a cabeça sobre o peito, abriu, ainda, os lábios arroxeados, e expirou!

Eram três horas da tarde.

O centurião, voltando-se para Nicodemos e José de Arimatéia que, silenciosos e tristes, olhavam o cadáver de Jesus, exclamou, em mau caldaico:

— Pobre rapaz!

Nicodemos mostrou-lhe a ordem da autoridade romana para lhe ser entregue o corpo de Jesus.

— Antes do Sol posto – respondeu o centurião.

Os presentes comentavam a morte de Jesus, quando um soldado, de sentimentos inferiores, tirou da lança e lhe deu um golpe no lado esquerdo. O sangue correu, mas o corpo não manifestou o menor sinal de vida.

Como os dois sentenciados, companheiros de Jesus, ainda vivessem, os soldados acabaram por matá-los a pancadas, com barras de ferro, pois o povo receava a profanação do sábado, visto o Sol já estar declinando.

Mortos, todos, foram arrancadas as cruzes, e José e Nicodemos, seguidos de dois homens que levavam linhos e perfumes balsâmicos, descravaram Jesus, cobriram-no com um lençol e colocaram-no sobre uma maca de ramos secos, afastando-se, lentamente, a caminho de Getsêmani.

Madalena seguiu-os, chorando, cheia de dor. Cláudia, em sentido contrário, também se retirava, penalizada e chorando.

Chegaram com o cadáver ao Horto de José de Arimatéia, quase ao anoitecer.

Maria não o abandonara um instante. Segundo o costume judaico, Jesus devia ser envolto numa mortalha ensopada em mirra e aloés, e depois enfaixado com largas tiras de linho.

Reverentemente, José e Nicodemos, ajudados por Maria, depuseram o corpo sobre o leito, e foi ela quem, com uma fina esponja embebida em água aromatizada, lavou as chagas que os cravos tinham aberto nas mãos e nos pés de Jesus.

Nicodemos e José de Arimatéia notaram que o corpo de Jesus não conservava aquela frialdade própria dos cadáveres, e independente desse fenômeno, outro existia: dos lábios brancos escorria uma espuma viscosa, levemente rosada.

Maria, que a tudo assistia, não pôde ocultar por mais tempo, o segredo, e confessou aos dois amigos de Jesus o que se passara entre ela e Cláudia.

— E não será isso um sonho do teu delírio? – perguntou Nicodemos.

— Então, é preciso esperar – observou José.

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— Esperemos.

— E se ele se salvar, urge afastá-lo de Jerusalém – disse Nicodemos.

— Tens razão, amigo. Este rapaz, ressuscitado e aparecendo de novo em Jerusalém, revolucionaria a Judéia em peso.

— E nós, que somos chamados essênios e samaritanos; tu, que reclamaste o corpo a Pôncio, e eu que te ajudei e o tenho em minha casa, imagina o que nos faria o sacerdócio, secundado pelos fariseus! – E José de Arimatéia olhou, com medo, a lívida face de Jesus.

— Nada receiem – exclamou Maria. – Se ele viver, irá comigo para Magdala.

José e Nicodemos olharam-na com admiração e respeito, por verem o amor desinteressado e puro daquela mulher que, pela Doutrina que Jesus pregava, tudo deixara no mundo: gozos, prazeres, riquezas e alegrias – e como um cão fiel e dedicado, o seguira, naquela agitada existência cheia de perigos, de lutas e desconfortos. Esse seu procedimento impunha-se, naturalmente, à simpatia e à consideração dos homens.

José fechou as portas, cuidadosamente, tendo antes percorrido o Horto, desconfiado de que alguém os tivesse seguido, e veio sentar-se ao lado de Nicodemos, junto ao leito onde repousava o corpo de Jesus.

Jerusalém estava em festa, com o povo e os forasteiros se embriagando. Nicodemos e José faziam comentários sobre toda aquela miséria e o grande crime perpetrado pelo Sinedrim. Era uma baixeza! ...

Súbito, Maria abafou um grito, fazendo sinal a José e Nicodemos para que se aproximassem.

O rosto de Jesus tingia-se de uma levíssima cor rosada, o peito arfava em suavíssima ondulação, e dos lábios descerrados sala um tênue sopro de vida.

Maria tremia de ansiedade e de prazer, empalidecendo repentinamente, dominada pela comoção.

Nicodemos deu-lhe a beber um gole de água, temendo que desmaiasse, porém nada disso aconteceu; ela continuou calma, a esperar o desfecho da tragédia.

Nicodemos e José fitavam Jesus com respeito e ternura.

Este abriu, suavemente, os grandes olhos azuis. Maria, contemplando aquele olhar tão doce, tão meigo, tão amorável e expressivo que ninguém mais supunha ver, soltou um grito!

— Jesus!

Ele, fitando Maria, Nicodemos e José de Arimatéia, murmurou, com voz cavernosa:

— Não posso mais. Até a eternidade, meus grandes amigos! ...

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E voltando a face para o lado esquerdo, as pálpebras desceram-lhe, lentamente, uma palidez medonha envolveu-lhe o rosto, soltou um débil suspiro e ficou inerte.

Maria precipitou-se para ele, bradando, aflita:

— Jesus, Jesus, volta!... Ouves-me? Sou eu que te chamo! – e abraçou-se a ele, beijando-lhe a fronte.

Mas Jesus não mais assistia ao seu corpo; os ferimentos que recebera foram profundos, a vida anímica estava gasta, não era mais possível ao seu espírito acalentar o corpo mutilado pelos cravos que o mantiveram pregado na cruz e lhe esfacelaram as falanges das mãos e os ossos das pernas.

Maria saltou um grito de pavor. O corpo de Jesus estava morto para sempre.

Já altas horas da noite, José e Nicodemos, chorando, levaram o corpo para a sepultura. Maria beijou-lhe a testa e, após, eles puxaram a pedra, tapando o sepulcro.

A pequena distância, sentada, Maria, sem mais lágrimas para derramar, colocou a cabeça entre as mãos e apoiou os cotovelos sobre as pernas.

José e Nicodemos, avaliando a dor daquela que fora uma discípula fiel, cabisbaixos, retiram-se, sem coragem para dar-lhe uma palavra.

— Como sofre! – segredaram, um ao ouvido do outro.

XXIII

Onze horas da noite, no Horto. Tudo dormia. Maria busca no jardim uma alavanca de ferro, e arredando a pedra que cobria a sepultura, retira dali o corpo de Jesus e torna a colocar a pedra no mesmo lugar. Em profundo silêncio, dirige-se ao curral. Aparelhando a mula em que José costumava viajar, leva-a pelas rédeas até junto do corpo, e o coloca sobre ela. Monta-a, aconchegando o corpo a si, de forma a fazer o menor volume possível, e como ainda não tivesse ocorrido a rigidez cadavérica, envolve-o em seu manto e encaminha-se, por atalhos, para a estrada de Sichem.

Já mais conformada, vendo aproximar-se o romper da aurora e não querendo ser notada pelos viandantes, apressa o trote da mula, o que não a impediu de passar por dois viajantes que não a viram, por irem dormitando sobre as corcovas desses pacientes animais.

À distância, surpreendeu-a um corpo pendurado numa figueira existente do lado esquerdo da estrada. Tentou, ao aproximar-se, passar sem dar importância ao caso, mas, como que impulsionada por uma força estranha, resolveu aproximar-se do suicida. E qual não foi seu espanto ao reconhecer o corpo de Judas?

— Maldito sejas, traidor infame! – exclamou Maria.

O mau discípulo, fustigado pelo remorso, não pudera resistir, suicidando-se, no mesmo dia em que Jesus subia o Gólgota.

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Maria parecia sentir-se com mais vida e dizia a si mesma: “Ninguém as faça, porque aqui as paga”. Bem dizia Jesus: “O mal desejado a outrem, pelo caminho vem”, “Conforme pensarmos, assim seremos”; “Cada um atrai aquilo em que pensa; o bem ou o mal”.

Maria Madalena chegou a Tiberíade, quase ao meio-dia, numa hora semideserta, por estarem os pescadores na pesca ou com suas famílias a festejar a Páscoa, em Jerusalém.

Evitando os casais e procurando os caminhos solitários, que bem conhecia, chegou a discípula de Jesus a um lugar selvagem, distante da praia, à borda de um lago, onde cresciam fetos verdejantes. Apeou da mula, tomou, a muito custo, o corpo de Jesus nos braços, e foi escondê-lo entre os fetos. Cansada e debilitada, não só pelas torturantes dores morais mas também pela falta de alimento e a viagem estafante, sentou-se meditativa.

Após longo repouso, busca pedras, faz uma parede em volta do corpo de Jesus, para resguardá-lo dos abutres, e volta a sentar-se.

Mergulhada em profunda concentração, fica como que adormecida, e vê, num sonho, a revelação de seu futuro. Encoraja-se, fita o lugar onde está Jesus, e diz:

“Repousa tranqüilo o corpo do grande homem. A sua alma de batalhador incansável continua a lutar; ela não podia ser compreendida, porque se batia por ideais elevados. Ainda por muitos séculos a sua obra não será compreendida, tal o egoísmo e a ignorância dos homens!

Alma da minha alma! Eu jamais te esquecerei. Continuarei a amar-te e a respeitar-te, e nunca trairei a Doutrina da Verdade por ti ensinada e pregada ao povo e aos teus discípulos que, covardes, te abandonaram todos. Nenhum te imitou na grandeza espiritual, pois foste o maior entre os maiores, e o mais humilde entre os humildes.

Agora, que estás na eternidade, entre os espíritos superiores, vês, ainda melhor, que só a alma que incitava uma mulher perdida soube, desinteressadamente, avaliar a elevação dos teus sentimentos e a vastidão infinita do teu amor espiritual, e que esses que te seguiam apenas foram movidos pelo interesse da bem-aventurança eterna.

Não te acompanhavam com a alma esclarecida, porque os cegava a ambição de uma vida melhor, depois da morte, ambição que não os deixava compreender o verdadeiro significado das tuas palavras.

Por isso te seguiam e ouviam maquinalmente. Esses que te perderam, meu Jesus, não revelaram qualidades superiores às da alma humana não esclarecida, e se mostraram bem dignos uns dos outros, os mandatários da tua morte física e os teus discípulos.

Ensinaste-me a conhecer a minha composição espiritual e material, e dizias-me haver alma e corpo, explicando ser essa também a composição de tudo quanto tem vida. Demorando o raciocínio sobre o estado da humanidade, e mesmo ignorando o fim de tua obra, prevejo nela oceanos de sangue e atrocidades malditas! Parece-me que sinto estremecer a terra sob os meus pés!

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Como foram perversos contigo os homens, que são as feras mais impiedosas e selvagens de toda a criação, porque o que eles te fizeram, nem os tigres fariam.

No fundo pestilento do “eu” humano, existem víboras medonhas que, sob o estímulo do ódio, do ciúme, da inveja e do egoísmo, dilaceram as carnes dos seus irmãos e os aniquilam, como te aniquilaram a ti!

Eu conhecia e conheço bem os homens, e porque os conheço bem, não posso acreditar na sua regeneração. Só tu, entre milhões, foste bom e puro, e soubeste afastar, com desprezo sincero, a tua límpida vista das pompas falsas do mundo. Quiseste salvar a humanidade, esclarecendo-a, e ela pregou-te numa cruz como o mais ignóbil dos ladrões e o mais repulsivo dos facínoras!

Foste o mais puro dos homens e entretanto – prevejo – hão de, em teu nome, praticar os mais hediondos e infamantes crimes!

Oh! meu Jesus, como me parece estar vendo e ouvindo homens e gritos agonizantes e espadas ensangüentadas! Vejo, vejo homens de rostos sinistros empunhando báculos e cruzes e fendendo crânios!

Pressinto que, por toda parte, se servirão do teu nome, como bandeira, para a prática de crimes bárbaros; queimarão em fogueiras, nas praças públicas, lindas mulheres, depois de as desonrarem e de lhes dar a beijar a cruz, com suposta efígie tua; centenas de vítimas agonizarão, publicamente, sobre piras esbraseadas, em presença de homens coroados e de mulheres rastejando mantos de púrpura. O meu olhar mergulha até o fundo de masmorras lúgubres; onde se, praticarão infâmias medonhas e atrocidades crudelíssimas.

Tu, que foste dos simples o mais simples e tão pobre que mal podias mudar de túnica, terás supostos representantes cobertos de ouro, de rendas e de púrpura, cada qual mais preocupado em ostentar falsas honrarias nas vestes do maior luxo, que se intitularão discípulos teus; tu ensinavas a amar a verdade e a simplicidade, e eles vão ensinar a mentira, a vaidade e a hipocrisia; tu pregavas a transitoriedade da vida terrena e a perpetuidade da espiritual, e eles falsearão a tua doutrina, pondo em tua boca palavras que nunca proferiste.

Repito: em teu nome roubarão, em teu nome desonrarão, em teu nome enclausurarão, em teu nome matarão! Até quando, até quando essa comédia, oh! Jesus de Nazaré?

XXIV

Maria, absorta, esquecida do mundo, terminou assim a contemplação de Jesus e cobriu as pedras com fetos e ervas silvestres.

Cheia de fraqueza, colhe tâmaras maduras na frondosa árvore ali existente, come-as, leva a mula, que pastava, a beber água no poço, amarra-a no tronco de uma palmeira e deita-se na relva para refazer a vida anímica, pois estava exaurida de forças.

Adormeceu. Quando acordou, era sol posto. Ao longe, recolhiam-se alguns barcos de pesca.

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A mula, cansada, havia-se deitado também, e dormia, tranqüila. Maria desperta-a, dá-lhe alguns punhados de erva, leva-a, novamente, a beber água, monta-a, em seguida, e dirige-se à estrada, a caminho de Jerusalém, chegando à casa de José de Arimatéia ao amanhecer.

O bom homem estava inquieto pela sua ausência.

—Ainda bem que voltaste! – exclamou.

—Volto para me despedir, mais uma vez, do túmulo de Jesus, e ver se os discípulos se dispõem a levar por diante a sua missão.

—José de Arimatéia fez que a não percebia, e prosseguiu:

—Foste a Jerusalém?

—Fui – respondeu ela, com voz firme. – Tinha de falar com Cláudia.

A este tempo, batem à porta do Horto. José foi abri-la.

Eram Joana, Maria Salomé e Cleofas que, prevenidos por Nicodemos, vinham orar junto ao túmulo do Mestre.

José de Arimatéia guiou-os até lá, mas, chegando, verificou que a lápide não estava como ele e Nicodemos a tinham deixado.

Com a alavanca que estava no mesmo local onde a pusera, arredou a pedra e recuou, espavorido, soltando um grito de espanto. O túmulo estava vazio!

—Ressuscitou!! – bradou Maria Salomé, erguendo as mãos e como que tomada por uma força estranha.

—Ressuscitou – gritaram as demais mulheres, caindo de joelhos e rojando a face na terra.

Oleitor sensato compreende que a chamada “Semana Santa” e a apregoada ressurreição de Jesus, não passam de uma comédia barata, apenas digna de quem a urdiu e representa. Ela merece a censura de todos aqueles que respeitam espiritualmente Jesus, o qual ensinou que no Universo apenas Força e Matéria existem, que esta é efeito e não causa de coisa alguma e aquela a causa de tudo que tem vida e faz da matéria, em obediência às leis universais, tudo quanto lhe apraz.

Aos olhos dos que vivem e não vegetam, rapidamente chega a luz que se projeta da inteligência para clarear a razão e o raciocínio, repugnando tudo o que esteja fora das leis da natureza, como, no caso, a ascensão do corpo de Jesus.

Ascender para onde, e por quê? Pois não é o corpo humano constituído, apenas, para que o espírito se sirva dele, na trajetória terrena? Na idéia de ascensão, predomina a materialíssima concepção religiosa de que no hipotético céu todos vivem em carne e osso; e como, para tais pseudo-espiritualistas, Jesus partiu para o céu, precisava levar o seu corpo físico para lá servir-se dele, pois, do contrário, teria de esperar, como os demais

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pecadores, o dia do Juízo Final, em que os corpos dos “justos” dos “escolhidos do Senhor” (que, no caso, são eles, os religiosos), hão de levantar-se das catacumbas, para ascenderem aos céus!

Para sustentar essa grosseira intrujice, é preciso fechar o raciocínio à lógica ou à razão, negar o espiritualismo e abater-se, como um pesado fardo, sobre a face dura da matéria.

Ninguém pode alterar as leis da criação, mutação e decomposição. As leis da Natureza não são as dos homens, criadas a bel-prazer de uns e desfeitas a bel-prazer de outros. Perante a Natureza, as leis são fixas e imutáveis, iguais para todos, desde o nascimento até à desencarnação.

Vede o filho do monarca. Não nasce como o filho do humilde pescador?

Ninguém pretenda deturpar as leis da Natureza!

Para que atrofiar a inteligência humana?

Por que não admitir o progresso e a eternidade do espírito e a transitoriedade do corpo?

O ser humano deve viver com simplicidade, naturalidade, integridade e respeito.

Se tudo tem a mesma fonte de origem – a Força Criadora – por que não a estudam, procurando a união pelo esclarecimento, pela cultura do espírito, pelo trabalho, pelo amor nascido da realidade do fato de sermos todos irmãos em essência?

“Só a Verdade fará livre o homem” – disse Jesus.

Por que, então, não sermos verdadeiros, despidos de hipocrisia, a seguir o caminho da honra e do trabalho, não vivendo à custa da ignorância do semelhante?

Os templos não devem ser utilizados para difundir mistérios e sobrenaturais. Os verdadeiros templos deveriam ser escolas a ensinar a Verdade sobre a vida, tal qual fez Jesus.

Esse espírito merece mais respeito. Portanto, vamos respeitá-lo, dizendo e praticando a Verdade. Em vez de se criarem, em nome de Jesus, fanáticos ou crentes, preparem-se homens e mulheres para a luta pela vida, ensinando-lhes princípios racionais e mostrando o caminho por onde devem trilhar, sem receio de errar.

O homem e a mulher esclarecidos serão inimigos do erro e do crime. O homem e a mulher ignorantes, fertilizarão sempre o crime.

Jesus nasceu e desencarnou como todos os viventes humanos. Da sepultura foi o seu corpo retirado por Maria Madalena, para enterrá-lo em Tiberíade. Isto foi realmente o que aconteceu.

Ame-se a obra de Jesus, propagando-a e praticando-a.

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As mistificações que forem feitas em seu nome, somente sofrimentos acarretarão aos mistificadores.

Não nos esqueçamos de que ele nunca aceitou pompas e honras como homem, quanto mais hoje, como espírito!

Lembremo-nos de que a sacerdotes como Antônio Vieira, Francisco de Assis, Francisco Xavier, Nóbrega, Anchieta, Gusmão, Monte Alverne, Júlio Maria, Aguiar Café, Monsenhor Moreira e outros, já repugnava a adoração de estátuas ou efígies, principalmente ao primeiro, que contra elas tanto se bateu, publicamente, desde o púlpito até à imprensa. Esses espíritos traziam amortalhados os seus corpos com uma batina, mas pregavam o amor ao trabalho e o respeito às boas obras.

Nunca deslustraram o confessionário. Em obediência às leis canônicas, confessavam, mas gostavam mais de fazê-lo fora do confessionário, dando conselhos sensatos, baseados na experiência natural que tinham da vida. Pregavam a doutrina de Jesus pela prática das boas ações, mas nunca pelas adorações a manipansos ou dádivas de dinheiro para os altares e festas.

Esses e outros grandes vultos da Igreja viveram e fecharam os olhos da matéria respeitando a Jesus pela prática do bem; ensinando, desculpando e irradiando amor e não ódio ao seu semelhante, por mais que os houvesse feito sofrer.

Sejamos verdadeiros para com Jesus como o precursor do Racionalismo Cristão que há de espiritualizar a humanidade

UM VALOROSO SOLDADO DE JESUS

XXV

O que a seguir vamos transcrever, pertence à história. O grande rei D. Afonso Henriques, fundador da nação portuguesa, atestou, por escrito, diante de testemunhas idôneas, a sua veracidade. D. Afonso foi o mais corajoso e valente general da sua época. O seu sentimento profundamente religioso, aliado à convicção de que estava ao serviço de Jesus, em luta contra os inimigos da sua doutrina, e que o mal não poderia vencer o bem, triplicou-lhe a força e a disposição para a luta.

As aparições narradas por D. Afonso Henriques não têm nada de extraordinário, nem mesmo a imagem de Jesus crucificado que lhe apareceu no espaço. Essa imagem era uma forma astral superior destinada a fortalecer a confiança de D. Afonso na causa que defendia e no auxílio espiritual que não lhe faltaria.

Com a faculdade da audição e da vidência, de que era portador, pôde o fundador do reino luso ver e ouvir o espírito que se apresentava, em corpo astral, diante dos seus olhos, na forma de um ancião, dizendo-lhe ser mensageiro de Jesus e garantindo a vitória das suas armas.

O que para D. Afonso Henriques foi um milagre, obedecia rigorosamente às leis naturais que regem o Universo, de altíssima mas compreensível transcendência e sabedoria. É claro que os conhecimentos espirituais daquela época (recuada cerca de 10 séculos) não

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se comparavam com os de hoje. Naquele passado longínquo eles eram praticamente nulos e as criaturas viviam mergulhadas no mais fundo misticismo, repletas de ignorância e superstição.

Essas mesmas imagens astrais formadas por Espíritos Superiores apareceram, por diversas vezes, a Joana D’Arc, uma delas com o corpo astral representando Santa Catarina de Fierbois, da qual era devota, ordenando-lhe que se pusesse à frente de tropas contra os inimigos da França, e fizesse coroar Carlos VII, o que ela, depois de muito hesitar, cumpriu, “levada pelas suas vozes”, e depois de tomar várias praças fortificadas, fez coroar o rei, com a maior solenidade, em Reims, no dia 17 de julho de 1429.

Acrescente-se o fato de que a maior heroína dos franceses não passava de uma simples e ignorante pastora, jamais havendo, antes, saído da sua aldeia e nada entendendo, até então, do manejo de armas.

Jesus foi um grande filósofo, um grande sábio doutrinador, cujos princípios não poderiam deixar de fazer eco na alma portuguesa, datada de profundo amor à liberdade.

Em sua magnífica obra “Os Portugueses Perante o Mundo”, diz o Dr. Melo Morais:

(...) Vendo os senhores do mundo que o povo lusitano não largava as armas e antes queria morrer livre do que ser escravo de Roma, procuraram, afinal, cativar-nos com esses mesmos dons de liberdade pela qual nunca tínhamos deixado de pelejar.

Sim, cativaram-nos com essas honras e privilégios que a sagacidade romana sempre tinha de reserva quando lhe falhavam as armas, isto é, com os foros de colônia e município; foros que nos faziam quase trocar o nome de cidadãos romanos, e ao que o mundo desse tempo dava a maior estimação.

Por esta maneira, conseguiram, pela liberdade, um domínio que nunca tinham podido conseguir pelas armas, e assim também deixaram a todos os governantes futuros do brioso povo lusitano a grande e luminosa lição de que um tal povo pode, sim, por anos ser privado de suas liberdades, mas não pode ser eternamente escravo de ninguém; porque, cedo ou tarde, toma a heróica resolução de as recobrar.

Continuando, escreve, ainda, o Dr. Melo Morais:

Para não sermos precipitados no que temos de dizer, mister é que tomemos a história de mais longe, para mostrar, com a ordem dos tempos, que a celebridade dos portugueses vem de eras tão remotas, que parece fabulosa a memória da sua história. No entanto, ela vem do berço com eles, e como que solidária nos anais do gênero humano.

Falar contra os fatos sem conhecimentos certos, e maldizer dos homens sem um motivo veemente, unicamente com o gosto de deprimir, ocultando o merecimento, é justificar em péssima prosa o que disse Felinto Elísio em belos e candentes versos:

“Não vive o néscio, bem que a vida alongue;

Viver é tomar gosto à formosura,

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Ao esplêndido universo;

Não se gosta do que se não conhece.”

A Nação portuguesa, conforme a ela se referem vários cronistas, desde que teve o nome de Lusitânia até à juventude de D. Sebastião (que mediou o longo espaço de três mil anos), realizou tantos prodígios na paz como na guerra, que se tornou, sem dúvida, o terror e a admiração de muitos Impérios.

Paira nos anais do mundo e na história dos primeiros povoadores da Europa que Luso (lago), antes da vinda de Cristo, mil e quinhentos anos, deu o seu nome ao reino lusitano; e contam as tradições que Tabul, quinto filho de Jafé, neto de Noé, navegando, com os recursos de então, pelo Mediterrâneo, atravessou o estreito (hoje Gibraltar) e veio à parte mais ocidental da Europa e, em um sítio ameno e delicioso, fundou, com os seus poucos companheiros a primeira povoação da península, a que chamou, por corruptela, Setúbal (ajuntamento de Tubal). Por muitos anos governou Tabul esses lugares (pelos anos da criação do mundo, 1800, e 136 depois do dilúvio, 2208 antes da vinda de Nosso Jesus Cristo).

E para que se sinta bem a irradiação de Jesus sobre Portugal, e para que se varram pensamentos menos dignos das mentes humanas; para que fique bem claro o que podem fazer os Espíritos Superiores e, ainda, para que dúvidas não pairem sobre o motivo por que Portugal e Brasil vivem tão ligados pelo espírito e pelo sangue, continuemos com as lições dadas pela História, através do Dr. Melo Morais:

PORTUGAL INDEPENDENTE DA ESPANHA, E SOB SEUS REIS

Invadida a Península, os adoradores do Alcorão e Henrique de Borgonha (bisneto de Jugo Capeto, rei de França), à frente de cavaleiros franceses, vieram ajudar a Afonso IV de Castela a defender a fé na Redenção. Afonso, reconhecendo tão bondoso serviço, assentou pagar-lhe, casando-o com Teresa, filha do seu amor (1095), acrescentando ao dote tudo o que sobre a Espanha possuíssem os infiéis. Portugal (Porto Calo) era então ocupado pelos discípulos de Maomé, e depois de 17 vitórias, que a eles ganhou Henrique de Borgonha, os expeliu para longe, apossou-se do território e se reconheceu conde de Portugal, titulo mais honorífico, naquelas eras, que o de duque.

Os altos e incompreensíveis decretos da Providência puseram termo ao viver de Henrique (1 de novembro de 1112, na idade de 77 anos), e os seus amplos projetos desceram com ele para o túmulo; porém, ficando-lhe um filho digno de o suceder, não tardou muito que os negócios de Portugal mudassem de face.

Ao episódio, se refere, assim, o Grande Camões:

“Um rei por nome Afonso, foi na Espanha

Que fez aos sarracenos tanta guerra,

Que por armas sanguíneas, força e manha

A muitos fez perder a vida e a terra.

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Voando deste rei a fama estranha

Do Herculano Calpe à cáspea serra,

Muitos, para na guerra esclarecer-se,

Vinham a ele, e à morte oferecer-se.

E com amor intrínseco acendidos

Eram de várias terras conduzidos,

Deixando a pátria amada e os próprios lares

Depois que em feitos altos e subidos

Se mostraram nas armas singulares,

Quis o famoso Afonso que obras tais

Levassem prêmio digno e dons iguais.

Destes Henrique, dizem que segundo

Filho de um rei da Hungria experimentado,

Portugal houve em sorte que no mundo

Então não era ilustre nem prezado,

E, para mais sinal de amor profundo,

Quis o rei castelhano que casado

Com Teresa, sua filha, o conde fosse

E com ele das terras tomou posse.

Este depois que contra o descendente

Da escrava Agar vitória grandes teve,

Ganhando muitas terras adjacentes,

Fazendo o que a seu forte peito deve;

Em prêmios destes feitos excelentes

Deu-lhe o Supremo Deus em tempo breve

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Page 82: A Verdade Sobre Jesus

Um filho, que ilustrasse o nome ufano

Do belicoso reino Lusitano.

Abramos aqui um ligeiro parêntesis para dizer que: Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, herdeiro das virtudes e da bravura de seu pai, ainda que sob a tutela de Teresa, achava-se em idade e principiou a aumentar seus estados, e em guerra com Castela, viu-se forçado a fazer a paz, depois da intervenção do delegado pontifício. Os sentimentos de seu pai nunca o deixavam e, por isso, em continuadas guerras com os infiéis, em 1140 ganhou a célebre batalha de Ourique (no Alentejo), contra cinco reis mouros, sendo, na mesma ocasião, aclamado rei de Portugal por seus companheiros de armas, título que foi confirmado pelas cortes de Lamego.

As magnas leis de Portugal foram promulgadas nesse reinado.

Veja-se como as escreveu Camões:

“Mas já o príncipe Afonso aparelhava

O Lusitano exército ditoso

Contra o mouro, que as terras habitava

D’além do claro Tejo deleitoso;

Já no campo de Ourique se assentava

O arraial soberbo e belicoso

Defronte do inimigo sarraceno;

Posto que em força e gente tão pequeno.

Em nenhuma outra coisa confiado,

Se não no sumo Deus que o céu regia.

Que tão pouco era o povo batizado,

Que para um só cem mouros haveria.

Julga qualquer juízo sossegado

Por mais temeridade que ousadia

Cometer um tamanho ajuntamento,

Que para um cavalheiro houvesse cento.

Cinco reis mouros são os inimigos,

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Page 83: A Verdade Sobre Jesus

Dos quais o principal Ismar se chama,

Todos experimentados nos perigos

De guerra, onde se alcança ilustre fama.

................................................................................

A matutina luz serena e fria

As estrelas do pólo já apontava

Quando na cruz o filho de Maria,

Amostrando-se a Afonso o animava,

Ele adorando quem lhe aparecia,

Na fé todo inflamado, assim gritava:

- “Aos infiéis, senhor, aos infiéis,

E não a mim, que creio que o podeis!

Com tal milagre os ânimos da gente

Portuguesa, inflamados, levantaram

Por seu rei natural, este excelente

Príncipe, que do peito tanto amaram:

E diante do exército potente

Dos inimigos gritando o céu troaram

Dizendo em alta voz: - Real! Real!

Por Afonso, alto rei de Portugal.

Já fica vencedor o Lusitano,

Recolhendo os troféus e presa rica.

..............................................................................

Aqui pinta no branco escudo ufano,

Que agora esta vitória certifica,

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Page 84: A Verdade Sobre Jesus

Cinco escudos azuis esclarecidos,

Em sinal deste cinco reis vencidos.

E nestes cinco escudos pinta os trinta

Dinheiros porque Deus fora vendido,

Escrevendo a memória em várias tintas

Daquele de quem foi favorecido;

Em cada um dos cinco, cinco pinta,

Porque assim fica o número comprido,

Contando duas vezes o do meio

Dos cinco azuis, que em cruz pintá-lo veio.

.................................................................................

De tamanhas vitórias triunfava

O velho Afonso, príncipe subido,

Quando quem tudo enfim vencido andava,

Da larga e muita idade foi vencido,

A pálida doença lhe tocava

Com fria mão o corpo enfraquecido;

E pagaram seus anos deste jeito

A triste Litibina seu direito.

Os altos promontórios o choraram,

E dos rios as águas saudosas

Os semeados campos alargaram,

Com lágrimas correndo piedosas.

Mas tanto pelo mundo se alargaram

Com fama suas obras valorosas;

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Page 85: A Verdade Sobre Jesus

Que sempre no seu reino chamarão,

Afonso, Afonso, os ecos; mas em vão!

Continua o Dr. Melo Morais:

“Prosseguiu o Santo Rei” – diz Azevedo, nas “Conquistas da Beira e Estremadura Portuguesa” – passou ao Alentejo, onde triunfou de cinco reis mouros e quinze régulos, cujo principal imperador era Ismael, com infinita multidão de bárbaros. Afonso, cheio de piedade e confiança em Deus, atendia à oração e lição santa entre o maior estrondo das armas. Leu, alta noite, a vitória milagrosa de Gedeão com trezentos homens sem armas contra o formidável exército dos Madianistas. Elevou o pensamento a Jesus, e disse: “Senhor Todo-Poderoso, bem sabeis que só para glória do vosso adorável nome tomei as armas contra os inimigos da fé; igualmente podeis dar a vitória a muitos ou a poucos. Se quereis que eu seja morto às mãos dos inimigos, cumpra-se a vossa vontade; se me concedeis a vitória, será vossa toda a glória”. Adormeceu vestido, inclinando no livro a cabeça, e viu em espírito o núncio do Rei Eterno, que lhe dizia:

“Confia, que vencerás esses infiéis, e o Senhor te manifestará a sua misericórdia”.

A esse tempo, D. João Fernandes de Souza, camarista do Príncipe, o despertou, dizendo:

— Aí está um venerável ancião a procurar-vos.

Respondeu:

— Entre, se é cristão.

Tanto que o viu, conheceu ser o que na visão se lhe mostrara, ao qual ouviu dizer:

— Tende bom ânimo, vencereis e não sereis vencido. Sois amado por Deus, que tem posto os olhos de sua misericórdia em vós. Deus me envia, e ao toque da campainha de minha cela, esta noite, no deserto em que vivi entre os bárbaros, há sessenta anos, guardado pelo Senhor, ides, sem testemunhas, gozar as maravilhas do Altíssimo.

Venerou Afonso ao Senhor e seu enviado. Disposto em oração, ao toque finalizado, foi e viu de repente, fora dos arraiais, ao nascente, um raio de luz mais brilhante que o Sol, no meio do qual vinha Jesus Cristo Crucificado. Largou armas e sapatos, prostrado em terra, banhado em terníssimas lágrimas, e exclamou:

— Para que vindes a mim, Senhor? Quereis aumentar minha fé, nela educado desde menino? Ide manifestar-vos aos infiéis, para que todos em vós creiam.

Sem nada se turbar, rogava ao Senhor que confortasse seus vassalos.

— Confia, Afonso – diz-lhe Jesus. Venho estabelecer os princípios do teu reino sobre pedra firme. Vencerás, não só agora, mas sempre que tomares armas contra os inimigos. Acharás os teus alegres; aceita o título de rei que te derem, pois eu quero em ti e teus descendentes estabelecer um elo puro, para que sejam levados os meus ensinamentos às Nações estranhas.

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Quem poderá explicar os dons que acompanharam tão estupenda mercê do Senhor? Foi aclamado Afonso I, rei de Portugal, dizendo-se antes Infante, Príncipe ou Duque, e ainda, em algumas escrituras, estava já intitulado rei.

Seguiu-se a vitória a 25 de julho de 1139, no campo de Ourique, em que mortos ou fugidos, os demais vencidos, voltou Afonso para Coimbra, com muitos mil cativos. Destes, foram dois reis mouros – D. Joas e D. Geraldo de Sia – entregues a D. Teotônio, convertidos, o primeiro cônego e sacerdote, e o segundo, Irmão converso no Real Mosteiro de Santa Cruz, onde floresceram em virtudes.

Mandou o santo rei fazer pelos mais primorosos artífices uma perfeita imagem do crucifixo, como lhe apareceu. A primeira, não agradou, por muito encorpada; está na Capela de Jesus, a um canto do claustro principal de Santa Cruz. A segunda, pareceu menor do que devia ser; ela é venerada no altar-mor da Igreja de Santa Justa, em Coimbra, com fama de milagrosa. A terceira, que mais agradou, esteve na igreja de São João das Donas.

O Rei de Castela não se opôs ao título de rei de Portugal, quando soube, ainda, que depois o pretendesse sujeitar às cortes. O Papa Inocêncio II o reconheceu, no ano de 1142, e Alexandre III o confirmou. Nas cortes de Lamego, estabeleceram logo as leis fundamentais da monarquia.

Fundou o incomparável monarca a Ordem Militar de Aviz, que ainda existe, a da Ala, que acabou com o tempo, dedicada a São Miguel Arcanjo, que viu o Rei com braço, asa e espada, prostrando, diante de si, milhares de mouros, para entrar, vitorioso. A primeira praça que D. Afonso Henriques tomou aos mouros, na Estremadura, Leiria, reedificou logo em terra deserta e deu a São Teotônio, que aí mandou fundar o seminário de seus Cônegos Regulares e Missionários, para que instruíssem na fé e virtude os povos da província.

Vieram, de improviso, os mouros, que queimaram na igreja os Santos Cônegos, levando cativos os moradores da praça, em cuja satisfação S. Teotônio mandou seu sobrinho D. João com os caseiros do Mosteiro de Santa Cruz, que sem armas, avistando Arrouches, praça fortíssima dos Mouros, a renderam. Restaurou, o monarca português, Leiria, e continuou com as conquistas.

Com igual facilidade, rendeu os Mouros em Torres Novas. Entrou vitorioso em Mafra, Cintra e outras praças. Para conquistar Lisboa, ajudou-o a esquadra de catorze mil soldados alemães, ingleses e franceses, que acaso aí chegaram com ânimo militar contra os turcos na Palestina. Dominado aquele empório do mundo, passou Afonso, em triunfo, pelo Tejo, rendeu Alcácer, Serpa, Moura e as mais praças, até Beja. Com sessenta lanças, tomada Cesimbra, descobriu o campo, quando se avistou com o Rei Mouro de Badajós, a quem seguiam sessenta mil infantes e quatro mil cavalos; foram acometidos e rendidos num instante, por Afonso, para quem era o mesmo ver e vencer.

Casou o Rei, no ano de 1146, com a Rainha D. Mafalda filha de Amadeu III, Conde de Sabóia e Mauriana. Dela teve os seguintes filhos: D. Henrique e D. João, que faleceram meninos; D. Sancho, que herdou o reino; Dona Urraca, infanta de Portugal, Rainha de Leão, que, por ser parente, se apartou do Rei D. Fernando II; D. Mafalda, que morreu

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quando estava justa para casar com o Rei de Aragão; D. Teresa, casada com Felipe, Conde de Flandres, e, na segunda vez, com Eudo III, Duque de Borgonha, e D. Sancho.

Fora do matrimônio, teve este primeiro Rei de Portugal quatro filhos; Fernando Afonso, alferes-mor do Reino; D. Afonso, grão-mestre da Ordem de São João Batista, que, de Jerusalém, passou a Rodes e depois a Malta; D. Teresa e D. Urraca. Esta e outras faltas que Deus permitiu ao grande Afonso, bem ficam riscadas, pela penitência heróica em que, exemplarmente, perseverou até à morte. Sua esposa mandou fazer a ponte de Canavezes, com um hospital junto ao rio Tâmega; edificou o Mosteiro de Costa, em Guimarães, de Cônegos Regulares, que, depois, cedeu à Ordem de São Jerônimo. Faleceu, com as virtudes de Santa, a 4 de novembro do ano de 1157, e seu corpo foi depositado em Santa Cruz de Coimbra.

Lançados os mouros de Santarém, Óbidos, Alemquer, Palmela e Évora, fez trasladar o Rei, do Promontório Sacro no Algarve, o corpo de São Vicente, Diácono Mártir, a Lisboa, do qual é padroeiro. Entrou Afonso em triunfo pelo Reino de Leão, para despicar-se da má vizinhança que lhe havia seu genro, rei daquele Reino. Tomou Badajós aos mouros. Seguido pelo genro D. Fernando, quis aparecer Afonso, mas, ao sair da cidade, quebrou uma perna no ferrolho. Presa dos leoneses, deixou-lhe as terras que ocupara naquele Reino, e prometeu as que ocupara naquele vale, o que nunca mais fez, para manter sua real palavra, andando depois em carruagem. Sabendo Albojaque, Rei Mouro de Sevilha, do infeliz sucesso do grande Afonso, foi com formidável exército sitiar Santarém. Foi num instante destroçado, antes de chegar socorro dos leoneses, que desejavam ajudar o Rei de Portugal, esquecidas as desavenças passadas.

Chegou a Sevilha o exército dos portugueses, em que o Rei mandava seu filho, o Príncipe D. Sancho, por general, aonde, desde a entrada dos mouros em Espanha, se não haviam visto armas cristãs. Estas, em breve espaço, voltaram triunfantes de todo o poder dos bárbaros, arrastadas suas bandeiras. Chegando a Porto de Mós, o Rei Mouro de Valença aí foi destroçado pelo valoroso D. Fuas Roupinho, que desfez também duas armadas inimigas e limpou de corsários as costas do mar de Portugal, seguindo as ordens do Santo Rei.

Foi mais ilustre o triunfo do grande Afonso no ano precedente à sua morte. Miramolim de Marrocos e outros treze reis chegaram para sitiar Santarém, aonde estava D. Sancho, permanecendo em Coimbra o invencível pai. Corre a este a notícia e imediatamente vai de encontro aos bárbaros, que foram atacados pelo Rei de uma parte, e da outra pelo Príncipe. Morrem na batalha Miramolim, e ficam muitas léguas juncadas de cadáveres de mouros, ricos os portugueses com os despojos e seus soberanos gloriosos com as vitórias.

Disposto com os mais ternos sentimentos de piedade, recebidos os sacramentos com exemplar devoção, entregou Afonso sua alma a Deus, em Coimbra, a 6 de dezembro, ano de 1185, com 76 anos de idade, 57 de Governo e de Rei, 46. Foi sepultado no seu Real Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde tem culto imemorial de Santo e pendentes em seu túmulo insígnias alcançadas. Guarda-se a espada do Rei como preciosa relíquia. Até depois de morto foi visto, com seu filho D. Sancho, segundo a crença, a ajudar o Rei D. João I a tomar aos mouros Ceuta, na África. Em Alcobaça, com paramentos de festa, fazem-se as exéquias ao Rei Santo, e como a Santo Bem-Aventurado lhe rezavam a Antífona e a oração, que anda escrita nos livros do coro e a traz a obra Monarquia Lusitana, parte 3, livro II, cap. 39.

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JURAMENTO DE D. AFONSO HENRIQUES ACERCA DA VISÃO QUE TEVE

Eu, Dom Afonso, Rei de Portugal, filho do ilustre conde Dom Henrique, neto do grande Rei Dom Afonso, sendo presente vós, o Bispo de Braga, e o Bispo de Coimbra e o Teotônio, e os Magnates, Oficiais e Vassalos do meu Reino: Juro por esta Cruz de metal e por este livro dos Santíssimos Evangelhos, em que ponho a mão, que eu, mísero pecador, com estes meus olhos indignos, vi a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, posto em uma Cruz, nesta forma. Eu estava com meu Exército nas terras de Alentejo, no campo de Ourique, para pelejar com Ismael e outros quatro Reis Mouros, que tinham consigo infinitos milhares de homens. E a minha gente, atemorizada com esta multidão, estava enfadada e muito triste; em tanto, que muitos diziam ser temeridade começar a guerra.

E eu, triste por aquilo que ouvia, comecei a cuidar, comigo, o que faria; e tinha um livro na minha tenda, no qual estava escrito o Testamento Velho e o Testamento de Jesus Cristo. Abri-o e li nele a Vitória de Gedeão, e disse entre mim: — “Vós sabeis, Senhor Jesus Cristo, que por vosso amor faço esta guerra contra vossos inimigos, e que na vossa mão está dar-me a mim e aos meus fortaleza, para que vençamos aqueles blasfemadores do vosso nome”.

E dizendo isto, adormeci sobre o livro; e logo vi um velho, que se vinha para mim e me dizia: — “Afonso, confia, porque viverás e desbaratarás estes Reis, e quebrantarás os seus poderes, e o Senhor se te há de mostrar”. Estando eu vendo isto, chegou a mim João Fernandes de Sousa, Vassalo de minha Câmara, e disse-me: —“Senhor, levantai-vos; está aqui um homem velho, que vos quer falar”. — “Entre” — disse eu então — “se é fiel”. E entrando ele, onde estava, conheci ser aquele mesmo que eu tinha visto na visão. O que me disse: — “Senhor, estai de bom ânimo, vencerás e não serás vencido; és amado, Senhor, porque sobre ti e sobre teus descendentes, depois de ti, tem posto os olhos de sua misericórdia até a décima-sexta geração, na qual se diminuirá a descendência; mas na mesma assim diminuída, o mesmo Senhor tornará a pôr os olhos e ver. Ele me manda dizer-te que logo que ouvires esta noite que vem tanger a campainha da minha Ermida, na qual vivi sessenta e seis anos entre os infiéis, guardado com o favor do Altíssimo, sairás do teu arraial só, e sem companheiros, e mostrar-te-á sua muita piedade”.

Obedeci, e com reverência, posto em terra, venerei o embaixador e a quem o mandara. E estando em oração esperando o som da campainha, já na segunda vigília, da noite, a ouvi. Então, armado com a espada e escudo, saí do arraial, e vi subitamente na parte direita contra o Oriente, um raio resplandecente, e o resplendor crescia pouco e pouco em mais; e quando, naquela parte, pus os olhos, com eficácia, logo, no mesmo raio, mais claro que o Sol, vejo o sinal da Cruz, e Jesus Cristo nela crucificado, e de uma e outra parte multidão de mancebos alvíssimos, que eu creio eram os Santos Anjos, a cuja visão, tanto eu a vi, posta à parte a espada e o escudo, e deixados os vestidos e calçado, humilhado me lancei em terra; e aí, derramando muitas lágrimas, comecei a rogar pelo esforço de meus vassalos.

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E, nada turbado, disse: — “Vós a mim, Senhor! Por quê? A quem já crê em vós, quereis acrescentar a Fé? Melhor será que vos vejam os fiéis e creiam, e não eu”. A Cruz era de admirável grandeza, e levantada da terra quase dez côvados. O Senhor, com um suave órgão de voz, que meus indignos ouvidos receberam, me disse: — “Não te apareci desta maneira para te acrescentar a Fé, mas para fortalecer o teu coração neste conflito. E para estabelecer e confirmar sobre firme pedra os princípios do teu reino. Confia, Afonso, porque não somente vencerás esta batalha, mas todas as outras, em que pelejares contra os inimigos da Cruz.

Tua gente a acharás alegre para a guerra, e forte, pedindo-te que, com nome de Rei, entres nesta batalha; não duvides, mas concede-lhes liberalmente o que te pedirem. É minha vontade edificar sobre ti, e sobre tua geração depois de ti, um império para a verdade”.

Tanto que ouvi estas coisas, prostrado em terra o adorei, dizendo: — “Senhor, por que merecimentos me anunciais tanta piedade? Farei o que mandais; e vós, ponde os olhos de misericórdia em os meus descendentes, como me prometeis; e a gente de Portugal guardai e salvai; e se contra eles algum mal tiverdes determinado, antes o convertereis todo em mim, e meus sucessores, e o meu povo, que amo tanto como único filho, absolvei”.

Consentindo, o Senhor, disse: — “Não se apartará deles, nem de ti a alguma hora em minha misericórdia, porque por eles tenho aparelhado para mim grande sementeira, porque os escolhi por meus semeadores para terras mui apartadas e remotas”. E dizendo isto, desapareceu; e eu, cheio de confiança e suavidade, tornei ao exército. E que tudo se passou assim, eu, El-Rei D. Afonso, o juro pelos Santíssimos Evangelhos de Jesus Cristo, em que ponho a mão.

Pelo que mando a meus sucessores que tragam por divisa e insígnia cinco escudos partidos em cruz, por amor da cruz, e cinco chagas de Jesus Cristo; e, em cada uma, trinta dinheiros de prata e, em cima, a serpente de Moisés, por ser figura de Cristo. E esta será a divisa de nossa nobreza em toda a nossa geração. E se alguma coisa intentar, será maldito do Senhor, e com Judas traidor atormentado no inferno. Feita em Coimbra, a vinte e oito de outubro da era de Cristo, mil cento e cinqüenta e dois.

Eu, D. Afonso, Rei de Portugal.

D. João, Bispo de Coimbra

D. Gonçalo de Souza, Procurador de Guimarães

D. João, Metropolitano de Braga

D. Teotônio, Prior

Paio Mendes, Procurador de Braga

Soeiro Martins, Procurador de Coimbra

D.Fernando Pires, Mordomo-Mor

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Pedro Pais, Alferes-Mor

Vasco Sanches

Alonso Mendes, Alcaide-Mor de Lisboa

Mendo Pires, por Mestre Alberto, Chanceler-Mor.

Afonso Henriques não poderia falar diferente, porque na época assim era necessário desbravar ele o solo adusto, com denodo e coragem, brandindo a sua invencível espada, não a serviço das glórias pessoais e nem das conquistas territoriais, mas sim, empenhado na implantação dos sublimes ideais cristãos, inspirado que fora pela irradiativa visão de Jesus.

Por singular e providencial coincidência a outro luso valoroso, Luiz de Mattos, estaria reservado dar continuidade, em solo brasileiro, à gloriosa trajetória do Cristianismo, livre já do ranço místico e sectárico, erigindo em corpo doutrinário o Racionalismo Cristão, a espargir para o mundo inteiro o esclarecimento da humanidade. Registrando, textualmente, os fatos históricos do povo português, visamos apenas esclarecer as criaturas para que, de análise em análise, concluam que os espíritos desencarnados não têm pátria. Eles irradiam e encarnam onde se faz preciso para incentivar a cultura dos povos e a sua irmanação pelos sentimentos elevados.

Se o mundo tem sido sacudido por tremendas guerras, é porque o nível espiritual da humanidade ainda está longe de ser o desejado.

Só os espíritos de inferior evolução provocam guerras; uma vez, porém, desencadeadas, não podem os homens de espírito mais evoluído cruzar os braços.

O dever de conservação e defesa ordena empregar a inteligência para a criação de tudo que lhe permita vencer quem o provocou.

Certo será, entretanto, o evoluir humano, e por isso é que os homens se reúnem em conferências, para deliberar sobre os interesses dos povos.

Se forem influenciados pelo amor fraternal, hão de entender-se e, com o decorrer dos anos, melhor justiça será feita a Jesus, que passará a ser tido como portador de ensinamentos utilíssimos, e não mais como um ser divino, como a encarnação de um deus, como muitos se atreveram a apresentá-lo a uma parte da humanidade.

O Racionalismo Cristão defenderá sempre a verdade.

É preciso ver o homem como um engenho acionado por uma Força Inteligente em evolução, sem qualquer coisa de sobrenatural.

Jesus, como homem, sofreu, lutou e venceu pelo desprendimento com que soube conduzir-se entre os seus semelhantes.

E porque venceu, possibilitou a criação de uma era, a de Jesus, e o dever dos homens bem formados de caráter consiste em procurar imitar os exemplos desse grande espírito, cuja

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irradiação sobre a Terra foi sempre para espiritualizar e jamais embrutecer os sentimentos, com o apego aos bezerros de ouro.

A verdade sobre Jesus:

Ligeiro histórico da vida de Jesus, na sua passagem por Jerusalém; suas prédicas, sua prisão e condenação; o abandono pelos discípulos; Madalena acompanha-o até a crucificação; Nicodemus e José de Arimatéia exigem a entrega do cadáver; Jesus ainda tem vida, abre os olhos mas expira; Madalena, altas horas da noite, foge para Betânia levando o corpo de Jesus.

Racionalismo Cristão: Um novo conceito do Universo e da Vida

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