a tributação estratégica. introdução à teoria dos jogos no

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University of Sao Paulo, Brazil From the SelectedWorks of Cristiano Rosa de Carvalho 2014 A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no Direito Tributário. Cristiano Carvalho Available at: hps://works.bepress.com/cristiano_carvalho/31/

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Page 1: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

University of Sao Paulo, Brazil

From the SelectedWorks of Cristiano Rosa de Carvalho

2014

A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dosJogos no Direito Tributário.Cristiano Carvalho

Available at: https://works.bepress.com/cristiano_carvalho/31/

Page 2: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

A Tributação Estratégica.

Introdução à Teoria dos Jogos no Direito Tributário

Cristiano Carvalho1

Introdução. 1. Breve histórico da teoria dos jogos. 2. Axiomas e conceitos

fundamentais. 3. Alguns jogos clássicos. 3.1. Dilema do prisioneiro e o equilíbrio de

Nash. 3.2. Caça ao cervo (Stag Hunt) e o jogo do covarde (Chicken Game). 4.

Algumas aplicações na tributação. 4.1. Tributação, Contrato Social, Caça ao Cervo e

o Dilema do Prisioneiro. 4.2. Reforma tributária e guerra fiscal. 4.3. O jogo do

covarde e a transação tributária. 4.3 Jogos dinâmicos. Conclusões. Referências

bibliográficas

Introdução

Primeira parte: crítica da atual doutrina tributária brasileira

O objetivo deste artigo é introduzir o campo de análise estratégica conhecido como

Teoria dos Jogos aos operadores do direito tributário brasileiro. Interessante perceber

que, não obstante tal teoria quase um século de existência, é ainda pouquíssimo

conhecida no Brasil. Poder-se-ia pensar que isso deve-se ao tradicional

conservadorismo de nossos juristas, mas mesmo no campo econômico não são muitos

os acadêmicos que realmente lidam com essa bem-sucedida área de investigação.

No que se refere ao Direito, e, notadamente o tributário, percebe-se certa estagnação

teórica que é compreensível se a analisarmos à luz da teoria econômica e da teoria da

evolução sociocultural (pela qual o trabalho seminal de Thomas Kuhn é sobremodo

influenciado). Há algumas décadas, a tributação era estudada em nossas plagas sob

forte influência da ciência das finanças, tão forte que não permitia haver uma

1 Livre-Docente em direito tributário (USP); Mestre e doutor em direito tributário (PUC-SP); Pós-

doutor em direito e economia (U.C. Berkeley). Advogado.

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autonomia universitária da disciplina, que acabou por ocorrer apenas em meados dos

anos 1960.

À época, a reação (ou, talvez – com um pouco de exagero – “quebra de paradigma”,

no léxico de Kuhn) deu-se com trabalhos pioneiros de Rubens Gomes de Souza,

Amílcar Falcão e, principalmente, o gaúcho Alfredo Augusto Becker, com o seu

magistral Teoria Geral do Direito Tributário. A partir desses esforços e sob os

auspícios da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a doutrina tributária

pátria passou a ser fortemente influenciada pelo posivitismo kelseniano, bem como

demais autores latino-americanos influenciados pelo mestre austríaco, principalmente

os da Escola Analítica de Buenos Aires (Vernengo, Alchourroun, Bulygin, dentre

outros).

Assim, a doutrina tributária brasileira tornou-se de cunho formalista, centrada na

teoria da norma jurídica e seus desdobramentos. Paradoxalmente, o que foi um grande

avanço para a época acabou por tornar-se espécie de dogma, sendo que praticamente

todos os trabalhos acadêmicos (que chegam aos milhares, entre dissertações, teses e

artigos) da área decorrem de algum desdobramento da teoria da norma, centrando-se

na estrutura do sistema jurídico e em técnicas de interpretação dos textos normativos

(do texto à norma, sempre a norma).

Ironicamente, na mesma época que esta tendência começava a se solidificar por aqui,

outro notório positivista italiano, Norberto Bobbio, passou a perceber que apenas

investigar a estrutura normativa não era o suficiente, sendo tão ou mais importante

saber a função do ordenamento jurídico. Ora, se o Direito é um objeto cultural que

visa alcançar certos objetivos, o jurista deve então deve ser capaz de escrutinar que

objetivos são esses e como obtê-los.

A partir desse movimento, da “estrutura à função” do Direito, já ocorrido na teoria

jurídica norte-americana desde os primórdios do século passado, passa-se então a

estudar não apenas norma, fato, relação e sistema jurídicos, mas a sua funcionalidade

em face da sociedade. Quais são os fins (seja quais forem, mas, ao menos em sistemas

democráticos, tais objetivos usualmente são a liberdade, a segurança e o bem-estar

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social) e como alcançá-los. Do law in books movemo-nos, assim, para o law in action,

com um viés consequencialista e pragmático no Direito.2

Segunda parte: a importância de teorias interdisciplinares

Assim como aconteceu com o realismo jurídico norte-americano e movimentos

decorrentes, como a Análise Econômica do Direito, Pragmatismo Jurídico, Escola

Crítica e outros, percebe-se que a teoria jurídica não se basta em si mesma,

necessitando dramaticamente de ferramentas de outros campos do conhecimento,

porém sempre filtradas pelos valores binários do sistema normativo: lícito e ilícito. A

argumentação que fundamenta decisões, no entanto, nutre-se de ferramentas e

conceitos de outras áreas do conhecimento, como as citadas acima e também, da

Teoria dos Jogos.

Como veremos em tópico seguinte, a teoria em questão é uma intersecção entre a

Economia e a Matemática, cujo objeto é o agir humano estratégico. Por “estratégico”

quer se dizer tão-simplesmente a forma de atuar levando em conta as ações de

terceiros. Esse agir pode se dar em contextos tão diversos como a guerra, transações

no mercado, comportamento social e, last but not the least, no Direito.

Se tomarmos como premissa que toda ciência comportamental tem como objeto a

ação humana e que essa, por seu turno, origina-se a partir da escolha racional

(oportunamente esclareceremos o que significa “racional” para os propósitos da

teoria), em quase todas as situações da vida, ao agir levamos em conta como os

demais indivíduos reagirão ou possivelmente se anteciparão às nossas ações,

considerações que influenciarão a nossa tomada de decisão. Portanto, o campo de

investigação que modela tais situações chamadas “estratégicas” é a teoria dos jogos.

1. Breve histórico da Teoria dos Jogos

No mundo das ideias, muitas vezes é difícil identificar um marco objetivamente zero

para o surgimento de um pensamento original, de uma teoria revolucionária ou de

uma quebra de paradigma científico. O calcanhar de Aquiles da teoria de Thomas

Kuhn, qual seja, que a história da ciência se move não linearmente, mas aos “trancos

2 Para uma aplicação mais extensa das categorias aqui apresentadas, ver nossa obra Teoria da Decisão Tributária (São Paulo: Saraiva, 2013)

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e barrancos” , com súbitas inovações que mudam abruptamente a forma de concepção

das ciências sobre seus objetos, através de abandono de terias e substituição por

outras radicalmente distintas, é justamente não levar em conta que a história do

pensamento é muito mais evolucionário do que revolucionário.

Assim, a visão do mundo evolui, mas sem abandono total de teorias até então eficazes

na explicação de fenômenos objeto de suas teses. Por mais inovadoras que tenham

sido a teoria geral da relatividade e a mecânica quântica, a física newtoniana segue

válida e aplicável em diversas situações, principalmente naquelas que não lidam com

velocidades altíssimas e grandes campos gravitacionais (teoria geral da relatividade)

ou no mundo infinitesimalmente pequeno das subpartículas atômicas e as forças que

as regem (mecânica quântica). Outras vezes, no entanto, na exata dinâmica

evolucionária darwiniana, teorias são realmente abandonadas (v.g. o “éter” como

componente do espaço foi descartado pelo vácuo, um vazio banhado de partículas:

fótons, neutrinos etc.). E a seleção da teoria mais “apta” a descrever e explicar o

mundo que sobrevive no mundo da ciência. Evolução e não revolução.

Porém, como toda ciência deve arbitrariamente efetuar um “corte” no seu objeto de

investigação, a História não poderia ser diferente. Nesse sentido, poder-se-ia, num

primeiro momento, identificar esse marco zero na década de vinte do século passado.

Em 1928, o matemático e físico húngaro, naturalizado estadunidense, Jon von

Neumann desenvolve soluções para jogos de soma zero, resultando no teorema

minimax, pelo qual o jogador age levando em conta o comportamento do outro

jogador, buscando então minimizar as suas perdas.

Posteriormente, em 1944, em coautoria com o economista alemão Oskar

Morgeinstein, publica o pioneiro Theory of Games and Economic Behavior,

introduzindo o campo de conhecimento interdisciplinar denominado Teoria dos

Jogos, inovação intelectual que seria aplicada a áreas como a microeconomia,

estratégia militar, finanças e negócios, assim como ao próprio Direito.

Em 1950, o matemático norte-americano John Forbes Nash, Jr. finaliza a sua tese de

doutorado na Universidade de Princeton, um manuscrito de apenas vinte e oito

páginas que, entretanto, lhe tornaria mundialmente famoso e frutificaria cerca de

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quatro artigos seminais 3 para a Teoria dos Jogos, trabalhos responsáveis por sua

láurea com o prêmio Nobel, em 1994. Nash tornou-se conhecido do grande público

por sua biografia lançada em 1994, intitulada Uma mente brilhante, de autoria de

Silvia Nasar, que, posteriormente (2001) seria lançada em grande produção

hollywoodiana, de título homônimo (porém com demasiada licença poética, pouco

restrita aos fatos históricos), vencedora de vários prêmios Oscar.

Essa é a história oficial, que usualmente não considera fato consideravelmente

anterior mas tão significativo para a teoria quanto os esforços dos grandes pensadores

citados acima. O fato em si é uma passagem famosa no Discurso sobre esta questão

proposta pela Academia de Dijon: qual é a origem da desigualdade entre os homens,

e se é autorizada pela lei natural, de autoria do filósofo contratualista francês Jean

Jacques Rousseau, publicado em 1754. A passagem encontra-se no início da segunda

parte da obra, na seguinte seção:

“Eis como os homens puderam, insensivelmente, adquirir uma ideia

grosseira dos compromissos mútuos e da vantagem de os cumprir,

mas somente na medida em que podia exigi-lo o interesse presente e

sensível; porque a previdência nada era para eles; e, longe de se

ocuparem com um porvir afastado, nem mesmo pensavam no dia

seguinte. Se se tratava de pegar um cervo, cada qual sentia bem que,

para isso, devia ficar no seu posto; mas, se uma lebre passava ao

alcance de algum, é preciso não duvidar de que a perseguia sem

escrúpulos e, uma vez alcançada a sua presa, não lhe importava que

faltasse a dos companheiros”.4

Ao tratar da cooperação entre os indivíduos por meio do contrato social, Rousseau

anteviu o que viria a ser um dos jogos clássicos da teoria, o Caça ao Cervo (Stag

Hunt), espécie de contraface de outro clássico jogo (e mais difundido), o Dilema do

Prisioneiro.

3 "Equilibrium Points in N-person Games", Proceedings of the National Academy of Sciences (36): 48–9, 1950; "The Bargaining Problem", Econometrica (18): 155–62, 1950; "Non-cooperative Games", Annals of Mathematics (54): 286–95, 1951; "Two-person Cooperative Games", Econometrica (21): 128–40, 1953. 4 Livro disponível em:

<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000053.pdf>. Acesso em: 03.03.2013

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Seja como for, a Teoria dos Jogos, como tal, passou a ser intensamente desenvolvida

a partir da segunda metade do século passado, tendo enorme impacto na própria

Economia, na inteligência e estratégia militar, na Biologia, mas ciências sociais e

diversas outras áreas.

Na área jurídica, por meio de jusfilósofos e analistas econômicos do Direito, a teoria

dos jogos passou a ser intensamente aplicada, principalmente nos Estados Unidos da

América, juntamente com trabalhos empíricos e com métodos quantitativos. No

direito continental europeu a aplicação da teoria é consideravelmente menor, assim

como na América Latina, notadamente influenciada pela doutrina continental.

Todavia, considerando a importância da visão pragmática e consequencialista, poucas

áreas poderiam envolver mais ação estratégica que o Direito, onde interesses

subjetivos entram em conflito, cabendo a uma autoridade decidir qual das partes tem

razão, por intermédio de regras previamente postas por um legislador. A

aplicabilidade da teoria dos jogos passa então a ser crucial para o Direito, seja na

criação de leis, como na celebração de contratos, sejam nas decisões judiciais etc.

Se lembrarmos que a tributação é segmento do Direito que mais afeta a nossa vida,

incidindo direta e indireta em praticamente todas as atividades que realizamos, mais

importante passa a ser uma teoria que permite modelar situações estratégicas, tanto

para descrever quanto para prever consequências advindas das escolhas perante as

regras cogentes do sistema jurídico.

2. Axiomas e conceitos fundamentais

O principal pressuposto ou axioma da teoria dos jogos e também da ciência

econômica é que as pessoas são racionais. A racionalidade, no sentido aqui

empregado, é instrumental, i.e., pensar e escolher de modo a atingir de modo mais

eficiente (menos custoso) os objetivos pretendidos, seja lá quais forem.

Não temos espaço aqui para adentrar em todas as inúmeras questões envolvendo essa

concepção de racionalidade. Cabe dizer, entretanto, que não obstante as críticas

advindas dos estudos da racionalidade limitada (bounded rationality), da Heurística e

Vieses (heuristics and biases) e da Economia Comportamentalista (behavioral

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economics), o fato é que o paradigma dominante nas ciências sociais, principalmente

a Economia, é o da racionalidade instrumental.

Neste paradigma, os indivíduos efetuam escolhas racionais, o que significa

dizer: 1) buscam maximizar o próprio bem-estar (utilidade marginal); 2) suas

escolhas são consistentes, mediante as informações de que dispõem, buscando

alcançar de forma mais eficiente os objetivos almejados; 3) reagem a

incentivos.

Suas preferências, apreensíveis epistemicamente pelos comportamentos

adotados, devem seguir determinadas regras lógicas, quais sejam: 1)

Estabilidade: para que a escolha seja racional, as preferências devem ser

manifestadas de forma estável, o que significa dizer razoavelmente

constantes. Exemplificando, o indivíduo não pode alternar preferências

frequentemente, ou seja, dado momento preferir A a B e no momento

seguinte, B a A; 2) Consistência: para que as escolhas sejam racionais,

necessitam ser consistentes. A consistência concerne à escala de preferências

do indivíduo, que deve atender aos seguintes requisitos: a) Completude: a

preferência deve ser completa, o que significa que o indivíduo deve ser capaz

de dizer como ordena as suas preferências. Deve poder dizer que prefere A >

B, ou que prefere B > A ou que é indiferente a A e a B; b) Assimetria: a

preferência deve ser assimétrica, ou seja, se o indivíduo prefere A a B, não

pode simultaneamente preferir B a A (A>B V B>A); c) Transitividade: a

preferência deve ser transitiva, ou seja, se o indivíduo prefere A a B, e prefere

B a C, necessariamente deve preferir A a C (A>B . B>C →A>C).

A Teoria da Escolha Racional, sumarizada acima, não retrata fidedignamente todas as

vicissitudes e falhas do indivíduo, pois trata-se somente de um modelo, um corte

epistemológico que visa simplificar a imensa complexidade da consciência,

intencionalidade e agir humanos. Tal modelo, contudo, tem o condão de sintetizar, de

forma elegante (o que, pela Navalha de Okham, significa simplicidade e capacidade

descritiva e explicativa) a forma pela qual os indivíduos tomam suas decisões.

Como bem aponta Richard Posner (2007), enquanto correntes contemporâneas de

teoria econômica (v.g. Behavioral Economics) buscam relativizar este modelo,

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criticando seus postulados e apontando, através de estudos empíricos, falhas na

racionalidade humana, a teoria dos jogos vai na direção oposta, tomando os

indivíduos como hiperracionais. Como dito acima, trata-se de um modelo, ainda não

superado ou suplantado por qualquer alternativa viável. O fato é que, na maior parte

das vezes, as pessoas de fato efetuam escolhas racionais, consoante o modelo

proposto, seja de forma consciente e planejada, seja de forma intuitiva. E, quando

levam em consideração as possíveis escolhas e ações de outros indivíduos, suas

escolhas tornam-se também estratégicas.

A teoria dos jogos, segundo a definição de Herbert Gintis (2009, p. 45), é uma teoria

da decisão de múltiplos jogadores, em que as escolhas de cada jogador afetam as

recompensas do outro, e os jogadores consideram isso ao escolherem – e agirem.

Um jogador de xadrez, um boxeador ou um general de um exército agem buscando

antecipar o que os seus oponentes farão. Da mesma forma, em interações negociais,

sociais e jurídicas, os indivíduos frequentemente levam em conta o que acreditam

serão as escolhas dos outros ao decidirem como agir.

O preço que determinada indústria cobrará por seus produtos levará em conta os

preços de seus concorrentes. Convidar alguém para algum evento social levará em

conta se haverá reciprocidade em futuros eventos realizados pelo convidado. Mover

ação judicial levará em conta como os advogados do réu agirão no curso do litígio.

Em todas essas situações, assim como em inúmeras outras, o agir estratégico é

fundamental se o agente buscar maximizar a sua utilidade, ou seja, alcançar o

resultado pretendido.

Seja qual for a situação estratégica, ou, mais simplesmente, o jogo, alguns caracteres

se farão presentes. Por exemplo, um jogo pode conter dois jogadores, como o xadrez,

ou vários, como o futebol. Pode também ter quantidade indefinida, como um mercado

qualquer. Denominaremos os indivíduos, nesse contexto estratégico, de jogadores, ou

agentes.

As ações dos jogadores podem ser simultâneas ou sucessivas, assim como os

jogadores podem ter informação sobre o comportamento do oponente ou não. Além

disso, os jogadores também podem ter informação sobre as recompensas (pay offs)

disponíveis se ganharem a disputa, assim como também podem desconhecê-las. No

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jargão da teoria, os jogos podem ser estáticos ou dinâmicos, bem como de informação

completa ou incompleta, respectivamente.

Todas as combinações dessas características formam uma extensa variedade de

situações estratégicas reais da vida modeladas em jogos. Considerando que os agentes

são racionais, sejam eles comerciantes, casal de namorados, contribuintes ou juízes,

buscarão sempre alcançar a maior recompensa, i.e., o resultado que maximize mais a

sua utilidade, ou seja, que aumente o seu bem-estar.

Como todas as teorias, a dos jogos é uma simplificação da realidade. Como lembram

Baird, Gertner e Picker, em sua seminal obra sobre teoria dos jogos aplicada ao

direito,5 o teste de qualquer modelo científico deve considerar se ele incrementa a

nossa intuição iluminando as forças fundamentais que operam em situações

interacionais do mundo real. Nesse sentido, não é necessário introduzir no modelo

todas as vicissitudes e todos os detalhes que acompanham a complexidade do dia a

dia, mas tão somente os seus elementos fundamentais de interações sociais, jurídicas e

econômicas, que em muito lembram a estrutura de simples jogos.

3. Alguns jogos clássicos

3.1. Dilema do prisioneiro e o equilíbrio de Nash

Provavelmente o pilar da teoria dos jogos, ou ao menos a sua interação mais famosa é

o “dilema do prisioneiro”, jogo estático (posteriormente modelado como repetitivo

também), de informação completa. Criado em 1950 pela Rand Corporation, entidade

norte-americana sem fins lucrativos, responsável por grande parte da estratégia militar

na guerra fria (estratégia esta, em boa parte, modelada pela teoria dos jogos), o dilema

ilustra uma interação não cooperativa, onde os incentivos mútuos (pay offs) são

“pegar carona” nas escolhas do outro jogador.

A ilustração mais comum é esta: dois acusados são presos como cúmplices em um

crime, sendo mantidos isolados, sem nenhuma possibilidade de se comunicarem.

Interrogados separadamente, ao prisioneiro Antônio e à prisioneira Beatriz são

oferecidas as seguintes alternativas:

5 Game Theory and the Law. University of Chicago Press, 1994.

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1) se ambos confessarem o crime, serão sentenciados a cinco anos de prisão;

2) se ambos negarem o crime, serão sentenciados a um ano de prisão (porque o

promotor só conseguirá provar um crime de menor importância);

3) se um confessar e o outro negar, o acordo com o promotor é que aquele que tiver

confessado ficará livre e o que tiver negado receberá dez anos de prisão.

As opções apresentadas a cada um dos “jogadores” são confessar ou negar a autoria

do crime. Vejamos agora a matriz do jogo:

Na matriz acima, típica forma de ler jogos estáticos, os possíveis resultados aparecem

da seguinte maneira (os pay offs de Antonio encontram-se à esquerda, os de Beatriz, à

direita):

Antônio precisa decidir se confessa ou nega a autoria do crime. Como se trata de uma

situação estratégica, ele escolherá levando em conta como Beatriz escolheria, dados

os pay offs conhecidos. Portanto, se Beatriz confessar, Antônio precisa decidir qual é

a melhor opção para ele. Olhando a matriz, o melhor pay off (menos anos de prisão) é

confessar também (cinco anos). Por outro lado, se Beatriz negar, a melhor opção para

Antônio continua sendo confessar (zero ano, ou liberdade).

Beatriz, por sua vez, enfrenta as mesmas escolhas. Se Antônio confessa, é melhor

confessar (cinco anos) do que negar (dez anos de prisão). Da mesma forma, se

Antônio negar, a melhor opção para Beatriz continua sendo confessar (zero ano, ou

liberdade).

5, 5

0, 10

10,0

1, 1

confessa

nega

confessa nega Beatriz

Antônio

Page 12: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

Note-se que para ambos os jogadores a opção mais racional (portanto maximizadora,

dada a possível escolha do outro) é sempre confessar. Diz-se que tal estratégia é

dominante, no jargão da teoria dos jogos. O resultado é que ambos acabarão

confessando e pegando cinco anos de cadeia cada um (conforme se vê nos pay offs

sombreados na matriz).

A estratégia dominante, que sob o ponto de vista de cada jogador é uma escolha

maximizadora, acaba levando a um resultado inferior ao que poderia ser obtido caso

tivesse havido cooperação.

Tal resultado é denominado “equilíbrio de Nash”, por conta do matemático norte-

americano John Forbes Nash que o formalizou em 1951. No dilema do prisioneiro

ilustrado acima, o equilíbrio de Nash encontra-se no quadrado superior esquerdo

(5,5), cujo resultado é sub-ótimo se comparado ao quadrado inferior direito (1,1).

Entretanto, a escolha de cada um dos prisioneiros foi a melhor possível, portanto

plenamente racional, levando em conta a escolha provável (segundo o juízo de cada

um deles) do outro.6 Em síntese, tivessem confiança mútua a ponto de cooperarem,

cumpririam apenas um ano de prisão, em vez de cinco.

Há jogos em que existe mais de um equilíbrio de Nash, assim como situações em que

não há nenhum. Seja como for, passa a ser tarefa do legislador erigir sanções

punitivas ou premiais que incentive os indivíduos a escolher de modo que atenda

melhor aos objetivos sociais, da mesma forma que os juízes necessitam compreender

como suas decisões em casos concretos podem igualmente estabelecer pay offs para

as demais pessoas em uma sociedade.

O dilema do prisioneiro é o clássico exemplo de um jogo estático, não-cooperativo e

de informação completa. Estático porque é “jogado” apenas uma vez; não-cooperativo

porque não possibilita aos jogadores barganharem ou combinar seus esforços; e de

informação completa porque os jogadores conhecem de antemão os pay offs.

Todavia, há jogos dinâmicos (ou sequenciais) que se repetem, são cooperativos

porque há incentivos para acordo entre as partes, e de informação incompleta pelo

Page 13: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

fato de os indivíduos frequentemente não terem conhecimento dos pay offs dos outros

jogadores, i.e., não sabem o que os motiva.

No direito tributário, assim como no dilema do prisioneiro, os indivíduos são

constantemente tentados a “desertar” (outro jargão dos jogos), uma vez que os freios

morais ao descumprimento das obrigações tributárias são consideravelmente mais

fracos do que outras condutas mais fortemente regidas pela moral e pelos costumes.

O fenômeno do “carona” (free rider) ocorre frequentemente entre os contribuintes,

seja por meio de busca de incentivos (mediante o rent seeking dos grupos de pressão),

seja pela elisão tributária, seja pela própria ilicitude da evasão de tributos. Disso

decorre a importância fundamental de uma boa estrutura de incentivos normativos que

motive os contribuintes a cumprir com os objetivos do sistema jurídico tributário,

considerando, por certo, que não bastam sanções punitivas para tanto, conforme

veremos mais adiante.

3.2. Caça ao cervo (Stag Hunt) e o jogo do covarde (Chicken Game).

Não obstante ser possível construir modelos bastante complexos, com múltiplos

jogadores e variáveis, algumas jogos ilustram de forma tão primordial o

comportamento humano que logram o status de clássicos.

Exemplo de jogo clássico é o “caça ao cervo” (stag hunt), a interação cooperativa que

funda o contrato social. A caça ao cervo foi primeiramente idealizada por um dos

grandes contratualistas sociais, o francês Jean Jacques Rousseau, em seu “Discurso

sobre a Desigualdade dos Homens”, em parábola que ilustra a cooperação (ou não)

entre os homens. Nela, dois caçadores encontram-se em uma floresta, onde podem

individualmente caçar lebres ou unir esforços para caçar um cervo, animal grande,

forte, arisco e veloz, porém com muito mais carne.

O jogo ilustra um dilema de confiança, pois os caçadores sabem que cooperar poderão

obter uma recompensa maior – o cervo (excedente econômico) –, porém existe a

tentação de desertar e pegar carona no esforço do outro. Contudo, os jogadores sabem

Page 14: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

que, se desertarem, o máximo que conseguirão individualmente é apanhar uma lebre,

substancialmente inferior a um cervo, em termos de recursos. Sendo assim, há

incentivos tanto para desertar quanto para cooperar, o que resulta em dois equilíbrios

de Nash.

A caça ao cervo é comumente confundida com o dilema do prisioneiro. Contudo, a

diferença fundamental entre eles é que, enquanto neste o melhor resultado é se eu

desertar e você não (e a recíproca é verdadeira), em vista dos pay offs, naquele o

melhor resultado será nenhum de nós desertar (FARSNWORTH, 2009, p. 117).

Ainda assim, só caçarei o cervo se você também caçar; se você não cooperar, a minha

última opção, na ordem transitiva de preferências racionais, será caçar o cervo

sozinho. É também a escolha mais ineficiente, pois as chances de êxito serão

consideravelmente menores e o esforço muito maior, portanto um desperdício de

recursos.

A matriz desse jogo é assim: As alternativas e os respectivos pay offs demonstram que o jogo é estático (jogado

simultaneamente e sem que os jogadores saibam o que o outro fará), de informação

completa (os pay offs são conhecidos) e, principalmente, cooperativo: há incentivos

para que os jogadores ajam no sentido de maximizarem conjuntamente suas

utilidades, pois os pay offs sinalizam nessa direção. A diferença fundamental entre o

Caça ao Cervo e o Dilema do Prisioneiro são os incentivos à cooperação, portanto.

Portanto, ao caçador 1 há duas possibilidades: caçar sozinho a lebre ou juntar forças

com o caçador 2 para caçar o cervo (e, em vez de ter uma lebre, ter meio cervo). O

5, 5

1, 2

2,1

2, 2

Cervo

Lebre

Cervo Lebre

Caçador 1

Caçador 2

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jogador 1 deve avaliar as ações do jogador 2: se este caçar o cervo, o jogador 1 pode

se aliar a ele (pay off “5”) ou desertar (pay off “2”). Logo, é racional caçar o cervo.

Entretanto, se o caçador 2 resolver caçar a lebre, o resultado melhor para o caçador 1

é também caçar a lebre (pay off “2”), situação igualmente racional, porém com

resultado inferior.

Se virmos a matriz pelo ponto de vista do jogador 2, o resultado será o mesmo. Note-

se que há dois equilíbrios de Nash (pay offs sombreados na matriz): ambos caçarem

individualmente uma lebre (pay offs “2” para ambos) ou se unirem para abaterem o

cervo (pay offs “5” para ambos). Como os jogadores sabem quais são as suas

recompensas, a sua busca pela maximização os levará a cooperar em busca do

resultado mais eficiente, que é o “ótimo de Pareto”. Ambos saem igualmente

beneficiados e ninguém fica em desvantagem.

O Caça ao Cervo é a metáfora para o contrato social, ficção da filosofia política que

ilustra a cooperação entre os indivíduos, no sentido de abdicarem parcialmente de

suas liberdades transferindo parcela delas para uma autoridade central, que a exercerá

igualmente sobre todos. De forma a evitar o Estado da Natureza hobbesiano e o homo

homini lupis (homem como “lobo” do homem), onde a liberdade irrestrita de todos é

autocontraditória e entrópica, acarretando a sua usurpação pelo indivíduo ou grupo de

indivíduos mais forte, o contrato social requer uma autoridade que seja o fruto desse

acordo coletivo.

Se considerarmos que não há sociedade organizada sem tributação, a cooperação

necessária para o contrato social tem como preço a cobrança compulsória de tributos,

como veremos adiante.

Outro jogo clássico é o do “covarde”.7 Nessa situação, dois jogadores precisam se

enfrentar, e, caso levem às últimas consequências as suas iniciativas, o resultado será

o pior possível, tanto para ambos quanto para a sociedade.

7 “Chicken”, em inglês.

Page 16: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

A ilustração mais conhecida desse confronto é o desafio entre jovens norte-

americanos, usualmente caipiras, bem ilustrado no filme “Juventude Transviada”

(Rebel without a cause, de 1955, estrelando o ator James Dean). Nele, dois sujeitos se

enfrentam com o intuito de demonstrar bravura perante outros membros de seu grupo

social, mostrando, portanto, a importância da reputação. O jogo se dá com ambos

dirigindo automóveis, em uma via de mão única cercada de barrancos; um em direção

contrária ao outro. As alternativas são: 1) manter-se no trajeto, sem desistir, cujo pay

off é afirmar a valentia para os expectadores; ou 2) desviarem em direção ao barranco,

cujo pay off é preservar a integridade física a custo de sinalizar a covardia aos

presentes.

A matriz, com os pay offs semanticamente postos em vez de numericamente,

segue abaixo:

Analisando a situação, se o jogador 2 desviar, a escolha maximizadora para o jogador

1 será seguir em frente e vencer o desafio. Por outro lado, se o jogador 2 seguir em

frente, a escolha racional para o jogador 1 será desviar, de modo a salvar a pele. A

recíproca é verdadeira, contendo os mesmos pay offs.

Nesse jogo não-cooperativo há (como o caça ao cervo) dois equilíbrios de Nash. A

cooperação (desviar) é pouco incentivadora, pois sinaliza covardia de ambos. Pior

ainda é a opção colidir, pois levará ao pior resultado possível socialmente: ambos

resultarão seriamente feridos, senão mortos. Os dois equilíbrios de Nash estão nos

cantos superior direito e inferior esquerdo da matriz, ou seja, quando um dos pilotos

desvia e outro segue, e vice-versa. Se ambos desviassem, o resultado seria o mesmo,

Empatar, Empatar

Perder, Ganhar

Ganhar, Perder

Colidir, Colidir

Desviar

Seguir em frente

Desviar Seguir em

frente

Jogador 1

Jogador 2

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porém, se ambos seguirem em frente, a consequência será a pior possível do ponto de

vista de custo social – ambos os jogadores sofrerão danos a sua integridade física.

A aplicação desse jogo se dá diretamente a situações de conflito.8 Negociações em

conflitos intersubjetivos envolvem invariavelmente sinalizações similares ao jogo do

covarde. Ambas as partes querem os melhores resultados possíveis para si, o que

envolve ameaçar (explícita ou implicitamente), ceder, pactuar etc. Exemplos clássicos

são a corrida armamentista na guerra fria e, ainda mais especificamente, a crise entre

Cuba e Estados Unidos, por conta dos mísseis instalados pela União Soviética na

referida ilha caribenha, em 1962.9

4. Algumas aplicações na tributação

4.1. Tributação, Contrato Social, Caça ao Cervo e o Dilema do Prisioneiro

A sociedade civilizada, fundada no contrato social, é a concretização do jogo Caça ao

Cervo, onde a cooperação é incentivada de modo a permitir a vida em comum. O

plexo de direitos e deveres institucionais que sustenta a civilização necessita da

atuação de diversas organizações que lhes dão exequibilidade, organizações estas que

agem por competência atribuída pelo sistema jurídico, e que reunidas são

denominadas “Estado”. Uma vez que tal autoridade central possua legitimidade10

perante os cidadãos, diz-se que existe então uma anuência tácita de que deve haver

renúncia parcial da liberdade individual, de modo a justamente possibilitar e garantir

essa própria liberdade. Essa é a essência, mutatis mutandis, do contrato social.

Entretanto, essa autoridade central não sai de graça, pelo contrário, consome recursos

que lhes são repassados via tributação.

8 A obra clássica sobre teoria dos jogos e estratégia de negociações em conflito, com ênfase no

contexto da guerra fria, chama-se The Strategy of Conflict (Harvard University Press, 1981), de

Thomas C. Shelling, ganhador do Nobel de Economia em 2005. 9 Como o Presidente americano John Kennedy não cedeu em momento algum, ameaçando com

medidas militares imediatas, a União Soviética acabou por desistir e retirar os mísseis nucleares da ilha

caribenha. O Chicken Game é o jogo insculpido na estratégia denominada “brinkmanship”, pela qual as

Nações envolvidas aumentam paulatinamente suas ameaças (que necessitam ser críveis), até que uma

delas desista do confronto. 10 Nesse sentido o já clássico livro Why people obey the law, de Tom R. Tyler (1990).

Page 18: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

O paradoxo é que a principal fonte de receitas para o Estado, mantenedor da

civilização e garantidor de direitos individuais, a tributação, é um dilema do

prisioneiro.

Os incentivos que o sistema tributário gera ao comportamento dos indivíduos são

típicos do dilema: desertar da cooperação coletiva, aproveitando-se dos esforços de

terceiros. A deserção se dá tanto de forma lícita, como é o caso da elisão fiscal, como

ilícita, pela evasão, e mesmo física, quando a tributação excessiva acaba afugentando

cidadãos para outros países com menor carga11.

Interessante perceber que os freios morais em relação ao cumprimento das obrigações

tributárias não possuem a mesma força, por exemplo, que os freios relativos ao

cumprimento de crimes contra a vida. Se a regra penal que pune o cometimento do

crime de homicídio fosse simplesmente revogada, dificilmente a maioria dos cidadãos

simplesmente sairia às ruas matando uns aos outros. Existem outros fatores, como a

moral e a cultura que impedem tal conduta, ainda que a sanção penal objetivamente

imponha um preço jurídico (pena de reclusão) alto12 para esse ilícito.

Por outro lado, por questão de análise custo-benefício intertemporal, os indivíduos

tendem a atribuir maior valor às recompensas a curto prazo do que as de longo prazo,

e considerando que sequer essa recompensas são certas – uma vez que o retorno dado

pelo Estado na forma de serviços públicos é bastante falho, em nosso país – a

racionalidade impõe a deserção do indivíduo quanto às suas obrigações tributárias.

No caso da elisão e evasão fiscal, o contribuinte espera usufruir de bens públicos13 e

de bens privados. Os bens públicos serão supridos pelo Estado, em troca do

11 O que se pode verificar empiricamente, com o aumento do imposto de renda na França, chegando a

alíquotas de mais de 75%. Os franceses mais ricos, como o ator Gerard Depardieu, mudaram-se para

países com tributação mais favorecida. Seria tal conduta “antipatriótica” ou “insensível com os mais

pobres”, ou qualquer outro bordão do gênero? De forma alguma, trata-se tão-somente da auto-

maximização, inerente a todo indivíduo racional. 12 Porém, com baixíssimo “enforcement” no Brasil, onde a taxa de solução para crimes de homicídio é

de cerca de 5%, contra 65% nos EUA e 85% no Reino Unido, consoante reportagem do Jornal O

Globo. Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/no-brasil-so-5-dos-homicidios-sao-elucidados-

7279090. 13 “Públicos” no sentido econômico, ou seja, de uso não-rival e não-excludente, portanto, uma das

clássicas falhas de Mercado. Como o consumo de um individuo não esgota o bem (não é rival) e,

principalmente, não é possível excluir terceiros de usufrui-lo, há poucos incentivos para o Mercado

Page 19: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

pagamento de tributos. Os bens privados serão usufruídos por meio dos rendimentos

líquidos do contribuinte, i.e., após a tributação.

Na lógica do dilema do prisioneiro, o autointeresse racional incentiva o contribuinte a

buscar, de forma lícita (elisão) ou ilícita (evasão), evitar o máximo que puder a

incidência fiscal sobre sua riqueza (pelo problema da escolha intertemporal descrito

acima). O resultado ótimo14 se daria se todos os contribuintes cumprissem com suas

obrigações tributárias, pois: 1) mais bens públicos seriam produzidos (segurança,

saúde, educação, infraestrutura etc.); 2) a observância geral possibilitaria a diminuição

da tributação per capita, uma vez que haveria pouca deserção e a arrecadação

aumentaria – sem que houvesse necessidade, pelo menos, de aumento de tributos

(teoricamente, seria possível a diminuição da carga tributária).

Se o resultado não é eficiente no critério de Pareto15 (pois os contribuintes, em um

primeiro momento, sairiam prejudicados individualmente em prol do bem comum),

seria ao menos eficiente no critério Kaldor Hicks, pois o ganho social superaria em

muito o custo individual – e os contribuintes teriam retorno superior, em bens

públicos, em relação aos seus custos individuais. Este é o melhor dos mundos, algo

que beira à utopia. Por que esse cenário idílico não ocorre? Porque os indivíduos (em

média) racionalmente buscam a situação que lhes traga maior recompensa imediata,

gerando o equilíbrio de Nash, que é inferior em termos de eficiência caso resolvessem

cooperar. Obviamente que o Estado deveria igualmente fazer sua parte, por meio do

desenho de um sistema tributário que oferecesse de forma mais objetiva e clara as

recompensas sociais pelo pagamento dos tributos, motivando os contribuintes

racionais a optarem pelo cumprimento.

4.2. Reforma tributária e guerra fiscal

suprir a oferta de modo eficiente, i.e., de acordo com a demanda. Portanto, caberia ao Estado intervir

para suprir ele próprio, ou incentivar, via subsidies, o Mercado a faze-lo. Como exemplo desses bens, a

segurança pública. 14 Para fins de simplificação, vamos considerar que o Estado seja eficiente na gestão dos recursos

públicos e que o desperdício – para não mencionar desvios ilícitos de dinheiro público – seja mínimo. 15 O ponto “ótimo” da eficiência de Pareto se dá quando não é possível mais haver nenhuma troca sem

que uma das partes saia prejudicada. Já o critério Kaldor-Hicks permite que uma das partes saia

perdendo na transação, contanto que haja a possibilidade de compensação posterior.

Page 20: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

O mesmo problema de cooperação típico do dilema do prisioneiro ocorre na interação

entre os entes da federação. Uma reforma (até hoje não empreendida) que

simplificasse o sistema tributário, eliminando ou alterando tributos implica

cooperação para a sua aprovação, pois seria necessário Emenda Constitucional para

tanto.

A racionalização do sistema tributário, no entanto, poderia acarretar possíveis perdas

imediatas para os entes federativos – como por exemplo, antigo projeto de reforma

tributária que pretendia tornar o ICMS estadual em imposto federal, eliminando assim

diversos dos problemas deste tributo, notadamente os que se referem aos créditos e

débitos nas operações interestaduais e a complexa legislação respectiva. Não é

coincidência, portanto, que até hoje a reforma não tenha saído do papel e dificilmente

se tornará realidade, salvo sejam alteradas as variáveis e os pay offs desse jogo.

A guerra fiscal, entendida como benefícios, isenções ou subsídios oferecidos por

municípios e estados, de modo a atrair para si investimentos privados, é outra faceta

do mesmo problema. A competição entre indivíduos, assim com entre Estados, tende

a gerar frutos positivos, desde que os custos nas transações não sejam repassados a

terceiros, ou seja, externalizados, como ocorre muitas vezes com os benefícios

relativos ao ICMS acima citados, bem como os relativos ao imposto sobre serviços

municipal.

4.3. O jogo do covarde e a transação tributária

Vimos que o “jogo do covarde” (chicken game) é a interação típica para estratégia em

conflitos, assim como também para negociações. Na tributação, vislumbram-se

diversas aplicações, desde tratados internacionais até transações entre fisco e

contribuinte. Tomando este último, em transações previstas em lei, o fisco acaba

sempre saindo em vantagem em relação ao contribuinte. Da mesma forma como na

referida película norte-americana, em que o protagonista não consegue (ainda que o

queira) pular do veículo, pois sua vestimenta encontra-se enganchada a este (o que

sinaliza, inadvertidamente, bravura inédita). Negociações entre a Fazenda e o

contribuinte costumam beneficiar a primeira.

Page 21: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

Como o próprio instituto de transação fiscal (caso venha a ser implementado 16 )

deveria ser estritamente vinculado à lei, o agente administrativo, representante do

interesse público, encontrar-se-ia restrito a poucas possibilidades. Os recursos

públicos não são seus, e sim da coletividade que representa e, portanto, sua margem

de negociação é limitada. Sendo assim, o contribuinte não visualiza muitas

alternativas, salvo aquelas que lhes são ofertadas pelo agente público: em linguagem

mundana, “pegar ou largar”.

Portanto, de forma semelhante a um advogado que negocia com a parte adversa

declarando que os seus limites para acordar são apenas os que o seu cliente autorizou,

o agente público que porventura transacionasse com o contribuinte encontrar-se-ia

numa posição ainda mais confortável. Só poderia ofertar aquilo que lhe é estritamente

permitido pela lei.

4.3 Jogos dinâmicos

No mundo real, é mais comum e factível a ocorrência de jogos sequenciais ou

dinâmicos, que se repetem diversas vezes. Enquanto o dilema do prisioneiro clássico

é considerado um jogo “não-cooperativo”, repetidas sessões do dilema podem gerar

cooperação, baseada no altruísmo recíproco, em outras palavras, na cooperação

autointeressada ou tit for tat, no jargão da teoria dos jogos. O tit for tat é, portanto, a

estratégia racional para jogos infinitamente repetidos (BAIRD, GERTNER, PICKER,

1994, p. 316), em que o jogador coopera se o outro jogador cooperou no jogo anterior,

ou deserta se o outro tiver desertado. Como a punição pela deserção é ser vítima da

mesma conduta no próximo jogo, o equilíbrio acaba sendo a cooperação 17 ,

incentivada pela reciprocidade.

16 Pois até o presente momento a transação só existe enquanto forma de extinção da obrigação

tributária, prevista no artigo, 156, III, e 171do Código Tributário Nacional, que exige lei para sua

regulação. 17 O tit for tat é considerado uma espécie de “heurística” (GIGERENZER, 2006, p. 19), ou seja, estratégia

simples e adaptativa quando a informação é incompleta e a capacidade cognitiva limitada. Criação de

Robert Axelrod (The Evolution of Cooperation, Basic Books, 2006) como estratégia a ser utilizada por

computadores em torneios de xadrez (em que as possíveis jogadas são infinitas, portanto incalculáveis

em sua completude, mesmo pelo mais potente supercomputador), o tit for tat foi aplicado em um

torneio de 1979, tendo obtido a vitória sobre o oponente.

Page 22: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

Na tributação, os jogos dinâmicos são aplicáveis nas mesmas já referidas elisão e

evasão fiscais, na guerra fiscal e na reforma tributária, bem como na negociação de

tratados internacionais. A diferença em relação aos jogos estáticos é que os dinâmicos

permitem modelar interações mais realistas, repetidas no tempo histórico, onde passa

a ser possível prever o comportamento futuro dos agentes baseado em seu

comportamento passado.

Os jogos dinâmicos, também chamados de sequenciais ou repetitivos, são

representados graficamente na maneira extensiva. 18 De forma a ilustrar um jogo

dinâmico, podemos imaginar situação que envolva tratados comerciais entre países,

onde se aplicam barreiras tarifárias como formas de protecionismo a indústrias locais,

ao mesmo tempo em que se pretende que o outro país abra ao máximo o seu mercado.

O tit for tat opera pela repetição comum nas relações comerciais entre os países,

assim como pela possibilidade de retaliação em forma de barreiras tarifárias, (i.e.,

tributos sobre a importação de determinados bens) regulada por entidades

internacionais, como a Organização Mundial do Comércio.

18 Jogos estáticos também podem ser representados na forma extensiva, porém o costume é representá-

los em matrizes.

Page 23: A Tributação Estratégica. Introdução à Teoria dos Jogos no

Em formas extensivas aplica-se a chamada indução retroativa, que significa ler o jogo

do fim para o começo. Na árvore acima, começa-se pelos pay offs, e os da esquerda

correspondem ao “País 1” e os da direita, ao País 2.

Nesse jogo dinâmico, observa-se pelos pay offs que o melhor resultado individual

(pay offs dos centros, 20, 0 e 0, 20, respectivamente) é tipicamente um dilema do

prisioneiro, qual seja, um país tributar os bens produzidos pelo outro, ou seja, ser

protecionista (desertar) e o outro, não – e a recíproca é verdadeira.19 No entanto, o

resultado maximizador para ambos é que nenhum tribute investimentos estrangeiros

(pay offs 10, 10), ao passo que o resultado pior é ambos tributarem (pay offs 5,5).

Fosse esse um jogo estático, como o dilema clássico, a racionalidade individual

imporia a deserção a ambos os jogadores, sendo que este seria o único equilíbrio de

Nash. Como se trata de um jogo dinâmico e repetido, em que um observa a jogada do

País 1

Impõe tributo

Não impõe tributo

País 2 País 2

Impõe

tributo

Não Impõe

tributo

Impõe

tributo

Não Impõe

tributo

5, 5 20, 0 0, 20 10, 10

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outro e as interações são reiteradas no tempo – como são as relações internacionais –,

há o incentivo à cooperação, pois o comportamento de um dos países no jogo prévio

possibilitará a retaliação do outro no futuro, assim como a cooperação no jogo prévio

criará o incentivo para o mesmo comportamento futuro, como se pode verificar pelo

outro equilíbrio onde os pay offs são ambos “10”.

Conclusões

Com essa breve introdução, buscamos mostrar ao leitor uma pequena amostra do

potencial que teorias interdisciplinares, notadamente as do comportamento, têm para

o Direito. A Teoria dos Jogos guarda especial importância, pois trata-se da abordagem

que modela comportamentos estratégicos dos agentes racionais. Poucas interações são

tão estratégicas quanto as que operam na tributação, entre contribuintes e autoridade

fiscal, entre particular e Estado. Conhecer, compreender e, principalmente, aplicar

essa teoria ao fenômeno tributário não só fará os operadores do Direito mais cientes

da complexidade tributária, como os possibilitará obter resultados mais eficientes,

sejam aqueles que atendam aos seus interesses privados, sejam aqueles que cumpram

com os interesses da coletividade.

Referências bibliográficas

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natural. Livro disponível em:

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SCHELLING, Thomas C. The strategy of conflict. Cambridge: Harvard University

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TYLER, Tom R. Why people obey the law. New Have: Yale University Press, 1990.