a tradição viva

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  • 5/12/2018 A tradi o viva

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    8 _A tradicao vivaA. HAMPATE B A

    "A escrita e uma coisa, e 0 saber, outra. A escrita e a iotograiia do saber,mas nao 0 saber em si. 0 saber e uma lur. que existe no homem. A herancade tudo aquilo que nossos ancestrais vieram. a conhecer e que se encontraIatente em tudo a que nos transmitiram, assim como 0 baobd ; a existe empotencial em sua semente."Tierno Bokar 1

    Quando falamos de tradicao em relacao a historia africana, referimo-nosa tradicao oral, e nenhuma tentativa de penetrar a hist6ria e 0 espirito dospovos african os tera validade a menos que se ap6ie nessa heranca de conheci-mentos de toda especie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, demestre a discipulo, ao longo dos seculos, Essa heranca ainda nao se perdeue reside na mem6ria da ultima geracao de grandes depositarios, de quem sepode dizer silo a mem6ria viva da Africa.Entre as nacoes rnodernas, onde a escrita tern precedencia sobre aoralidade, onde 0 livro constitui 0 principal veiculo da heranca cultural,durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura.Felizmente, esse conceito infundado cornecou a desmoronar ap6s as duasultimas guerras, gracas ao notavel trabalho realizado por alguns dos grandesetnologos do mundo inteiro. Hoje, a ao:;aoinovadora e corajosa da Unescolevanta ainda urn pouco mais 0 veu que cobre os tesouros do conhecimentotransmitidos pela tradicao oral, tesouros que pertencem ao patrimonio culturalde toda a humanidade.Para alguns estudiosos, 0 problema todo se resume em saber se e pos-sfvel conceder a oralidade a mesma confianca que se concede a escrita quandose trata do testemunho de fatos passados. No rneu entender, nao e esta amaneira correta de se colocar 0 problema. 0 testemunho, seja escrito ouoral, no fim nao e rnais que testemunho humano, e vale 0 que vale 0 homem.Nao faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos seculoscomo no pr6prio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundoIoram 0 cerebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel,1Tierno Bokar SALIF, falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali).Grande rnestre da ordcrn muculrnana de Tijaniyya, foi icualmente tradicionalista emassunros africanos. Cf. HAMPATE BA, A. e CARDAlRE, M., 1957.

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    182 Metodologia e p,,-historia da Africaa escritor au 0 estudioso mantern urn dialogo secreta consigo mesmo. Antesde escrever um relata, 0 hornem recorda os fatos tal como lhe foram narradosou, no caso de experiencia pr6pria, tal como ele mesmo os narra.

    Nada prova a priori que a escrita resulta em urn relato da realidadernais fidedigno do que 0 testemunho oral transmitido de geracao a geracao.As cr6nicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz(na Africa), cada partido au nacao "enxerga 0 meio-dia da porta de suacasa" - atraves do prisma das paixoes, da mentalidade particular, dos inte-resses Oll, ainda, da avidez em justificar um ponto de vista. Alem disso, asproprios documentos escritos nem sempre se mantiverarn livres de Ialsificacoesou alteracoes, intencionais ou nao, ao passarern sucessivamente pelas maosdos copistas - Ienorneno que originou, entre outras, as controversias sabreas "Sagradas Escrituras".o que se encontra por detras do testemunho, portanto, e 0 proprio valordo homem que faz 0 testemunho, 0 valor da cadeia de transmissao da qualele faz parte, a fidedignidade das rnemorias individual e coletiva e 0 valoratribuido it verdade em uma determinada sociedade, Em suma: a ligacao entreo homem e a palavra.

    1 : : , pois, nas sociedades orais que nao apenas a funcao da memoria emais desenvolvida, mas tarnbem a ligacao entre 0 homem e a Palavra emais forte. La onde nao existe a esc rita, 0 homem esta ligado a palavra queprofere. Esta cornprometido por ela. Ele e a palavra, e a palavra encerraurn testemunho daquilo que ele e . A propria coesao da sociedade repousa novalor e no respeito pela palavra. Em compensacao, ao mesmo tempo quese difunde, vernos que a escrita poueo a pOllco vai substituindo a palavrafalada, tornando-se a (mica prova e 0 unico reeurso; vemos a assinaturatornar-se 0 iinico compromisso reconhecido, enquanto a laco sagrado e pro-fundo que unia a homem a palavra desaparece progressivarnente para darIugar a titulos universitarios convencionais,

    Nas tradicoes africanas - pelo menos nas que conheco e que dizernrespeito a toda a regiao de savana ao sul do Saara -, a palavra falada seempossava, alern de um valor moral fundamental, de urn carater sagradavinculado a sua origem divina e as Iorcas ocultas nela depositadas, Agentemagico por excelencia, grande vetor de "forcas etereas", nao era utilizadasem prudencia.

    Inumeros fatores - religiosos, magicos ou SOCialS - concorrem, porconseguinte, para preservar a fidelidade da transmissao oral. Pareceu-nosindispensavel fazer ao leiter uma breve explanacao sobre esses fatores, a fimde melhor situar a tradicao oral africana em seu contexto e esclarece-la, porassim dizer, a partir do seu interior.

    Se formulassernos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista > 1 'africano: "0 que e tradicao oral?", por cerro ele se sentiria muito embaracado,Talvez respondesse simplesrnente, apos longo silencio : "E a conhecimentototal".

    ~'O termo iradicionalista significa, aqui, detentor do conhecimento transmitido pelatradiciio oral (N. do T.).

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    A lradi{:iio viva 183o que, pais, abrange a expressao "tradicao oral"? Que realidades veicula,

    que conhecimentos transrnite, que ciencias ensina e quem sao os transmissores?Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradicao oral africana,com efeito, nao se limita a historias e lendas, ou mesmo a relatos mitologicos

    au historiccs, e os griots esrao longe de ser seus (micas guardiaes e trans-missores quaJificados.

    A tradicao oral e a grande escola da vida, e dela recupera e relacionatodos as aspectos. Pede parecer caotica aqueles que nao lhe descortinam asegredo e desconcertar a mentalidade cartesian a acostumada a separar tudoem categorias bem definidas. Dentro da tradicao oral, na verda de, 0 espirituale 0 material nao estao dissociados. Ao passar do esoterico para 0 exoterico,a tradicao oral con segue colocar-se ao alcance dos homens, Ialar-lhes deacordo corn 0 entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidoeshumanas, Ela e ao mesmo tempo religiao, conhecimento, ciencia natural,iniciacao a arte, historia, divertimento e recreacao, LIma vez que todo por-menor sempre nos permite remontar a Unidade primordial.

    Fundada na iniciacao e na experiencia, a tradicao oral conduz 0 homema sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criarum tipo de homem particular, para esculpir a alma africana.

    Villa vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da cornu-nidade, a "cultura" africana nao e, portanto, algo abstrato que possa serisolado da vida. Ela envolve urna visao particular do mundo, ou, melhordizendo, urna presence particular no mundo - um mundo concebido comourn Todo onde todas as coisas se religam e interagem.A tradicao oral baseia-se em uma certa concepcao do homem, do seulugar e do seu papel no seio do universe. Para situa-la melhor no contextoglobal, antes de estuda-la em seus varies aspectos devernos, portanto, retornarao proprio rnisterio da criacao do homem e da instauracao primordial daPalavra: 0 misterio tal como ela 0 revela e do qual emana.

    A origem divina da PalavraComo nao posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer tradicoes quenao tenha vivido ou estudado pessoalmente - em particular as relativasaos paises da floresta - tirarei os exemplos em que me ap6io das tradiccesda savana ao sui do Saara (que antigamente era chamada de Bafur e queconstitula as regi6es de savana da antiga Africa ocidental francesa).A tradicao barnbara do Komo ~ ensina que a Palavra, Kuma, e umaIorca fundamental que emana do pr6prio Ser Supremo, Maa Ngala, criadorde todas as coisas. Ela e 0 instrumento da criacao: "Aquila" que Maa Ngaladiz, e!", proclama 0 chantre do deus Korno.o rnito da criacao do universo e do hornem, ensinado pelo mestreiniciador do Komo (que e sempre urn Ier reiro ) aos jovens circuncidados,revela-nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou 0Primeiro Hornem: Maa.2 Uma das grandes escolas de iniciacao do Maude (Mali).

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    184 Metodologia e pre-historia da A/ricoAntigamente a hist6ria da genese costumava ser ensinada durante os63 dias de retiro imposto aos circuncidados aos 21 anos de idade; em seguida,passavarn m ais 21 anos estudando-a cada vez mais profundamente.Na orla do bosque sagrado, onde Komo vivia, 0 primeiro circuncidadoentoava ritmadarnente as seguintes palavras:"Maa Ngala' Maa Ngala!Quem e Maa Ngala?Onde esta Maa Ngala?"o chantre do Korno respondia:"Maa Ngala e a Forca infinita.Ninguern pode situa-lo no tempo e no espa

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    A tradiciio viva 185entre Maa Ngala, criador de tad as as coisas, e Maa, sirnbiose de todas ascoisas.

    Como provinham de Maa Ngala para a hom em , as palavras eram divinasporque ainda nao haviam entrada em contato com a materialidade. Ap6so cantata com a corporeidade, perderam urn pouco de sua divindade, masse carregaram de sacralidade, Assim, sacralizada pela Palavra divina, parsua vez a eorporeidade emitiu vibracoes sagradas que estabeleeeram a cornu-nicacao com Maa Ngala.

    A tradicao africana, portanto, eoncebe a fala como urn dam de Deus.Ela e ao mesmo tempo divina no sentida descendente e sagrada no sentidoaseendente.A fala humana como poder de criacaoMaa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as tres potencialidades dopoder, do querer e do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foicomposto. Mas todas essas Iorcas, das quais e herdeiro, permanecem silen-ciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso ate 0 instante em que afala venha coloca-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essasIorcas comecam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numasegunda, sam; e, numa terceira, fa1a.. A fala e, portanto, considerada comoa materializacao, au a exteriorizacao, das vibracoes das forcas.Assinalemos, entretanto, que, neste nivel, as termos "falar" e "escutar"reterem-se a realidades muito rnais amplas do que as que normalmente lhesatribuimos. De fato, diz-se que: "Quando Moo Ngala fala, pode-se ver, ouvir,cheirar, saborear e toear a sua Iala", Trata-se de uma percepcao total, deurn conhecimento no qual 0 ser se envclve na totalidade.

    Do mesrno modo, sendo a fala a exteriorizacao das vibracces das torcas,toda manifestacao de uma s6 torca, seja qual for a forma que assuma,deve ser considerada como sua fala. E par isso que no universo tudo fala:tudo e fala que gahhou corpo e forma.Em fulfulde, a palavra que designa "fala" (haala) deriva da raiz verbalhal, cuja ideia e "dar Iorca" e, par extensao, "materializar". A tradicao peu!ensina que Gueno, 0 Ser Supremo, conferiu torca a Kiikala, 0 primeiro ho-mem, falando com ele. "Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte",dizem as Silatigui (ou mestres iniciados peul).

    Se a fala e forca, e porque ela cria uma ligacao de vaivern (yaa-warta,em fulfulde) que gera movimento e ritma, e, portanto, vida e a~ao. Este movi-menta de vaivern e sirnbolizado pelos pes do tecelao que sobern e descem,como veremos adiante ao falarmos sabre os oticios tradicionais. (Com efeito,a simbolismo do olicio do tecelao baseia-se inteiramente na fala criativaem acao.)

    A imagem da fala de Maa Ngala, da qual e urn eco, a fala humanacoloca em movimento rorcas latentes, que sao ativadas e suscitadas par ela- como urn homem que se levanta e se volta ao ouvir seu nome.A Iala pode criar a paz, assirn como pode destrul-la. E como 0 fogo.Uma {mica palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmomodo que urn graveto em chamas pode provocar urn grande incendio. Diz 0

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    186 Metodologia e pre-his/aria da Africaadagio malincs: "0 que e que coloca uma coisa nas devidas condicoes (ouseja, a arranja, a dispoe favoravelmente)? A Iala. 0 que e que estraga umacoisa? A fala. 0 que e que mantem uma coisa em seu estado? A tala".A tradicao, pais, confere a Kuma, a Palavra, nao so urn poder criador,mas tarnbern a dupla tuncao de conservar e destruir. Par essa razao a Iala,par excel en cia, e 0 grande agente ativo da magia africana.A fala, agente ativo da magiaDeve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradicoes african aspostulam uma visiio religiosa do mundo . 0 universo visivel e concebido esentido como a sinal, a concretizacao ou 0 envoltorio de urn universo invisivele vivo, constituido de torcas em perpetuo movimento. No interior dessa vastaunidade cosrnica, tudo se liga, tudo e solidario, e 0 comportamento do ho-m em em relacao a si mesma e em relacao ao mundo que 0 cerca (mundomineral, vegetal, animal e a sociedade humana) sera objeto de uma regula-mentacao ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ouregioes,

    A violacao das leis sagradas causa ria uma perturbacao no equilfbriodas torcas que se manifestaria em disturbios de diversos tipos. Par isso aacao rnagica, ou seja, a manipulacao das Iorcas, geralmente almejava restau-rar 0 equilibria perturbado e restabelecer a harmonia, da qual 0Homem, comovimos, havia side designado guardiao par seu Criador.

    Na Europa, a palavra "rnagia" e sempre tomada no mau senti do, en-quanto que na Africa designa unicamente 0 controle das forcas, em si umacoisa neutra que pode se tamar benefice ou malefica conforme a direcao quese Ihe de. Como se diz: "Nem a magia nem 0 destine sao maus em si. Autilizacao que deles fazemos os torna bons ou rnaus".A magia boa, ados iniciados e dos "rnestres do conhecimento", visapurificar os hornens, os anirnais e as objetos a Iirn de repor as Iorcas emordern. E aqui e decisiva a forca da fala.Assirn como a fala divina de Maa Ngala animou as Iorcas c6smicas quedorrniam, estaticas, em Maa, assim tambern a fala humana anima, colocaern rnovimento e suscita as forcas q lie estao estaticas nas coisas. Mas paraque a fala produza urn efeita total, as palavras devem ser entoadas ritmica-mente, porque 0 mavimento precisa de ritrno, estando ele proprio fund amen-tado no segreda dos mimeros, A fala deve reproduzir 0 vaivern que e a essen-

    cia do ritmo.Nas cancoes rituais e nas formulas encantat6rias, a fal a e, portanto, arnaterializacao da cadencia. E se e considerada como tendo 0 poder de agir

    sobre os espiritos, e porque sua harmonia cria movimentos, movimentos quegeram forcas, forcas que agem sabre as esplritos que sao, por sua vez, aspotencies da acao.Na tradicao africana, a fala, que tira do sagrado 0 seu poder criador eoperative, encontra-se em relacao direta com a conservacao ou com a rupturada harmonia no homem e no mundo que 0 cerca.Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais consideraa mentira uma verdadeira lepra moral. Na Africa tradicional, aquele que falta

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    A tradiciio viva 187a palavra mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmoe da sociedade. Seria preterivel que morresse, tanto para si proprio comopara os seus,o chantre do Kama Dibi de Kulikoro, no Mali, cantou em urn de seuspoemas rituais:

    "A Iala e divinamente exata,convem ser exato para com ela","A lingua que falsifica a palavravicia 0 sangue daquele que mente."o sangue simboliza aqui a forca vital interior, cuja harmonia e pertur-

    bad a pela mentira. "Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si pr6-prio", diz a adagio. Quando alguern pensa uma coisa e diz outra, separa-sede si mesmo, Rompe a unidade sagrada, reflexo da unidade c6smica, criandodesarmonia dentro e ao redor de si,

    Agora podemos compreender melhor em que contexto magico-religiosoe social se situa 0 respeito pela palavra nas sociedades de tradicao oral, espe-cialmente quando se trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais aude pessoas idosas. 0 que a Africa tradicional mais preza e a heranca ances-tral. 0 apego religioso ao patrim6nio transrnitido exprime-se em frases como:"Aprendi com meu Mestre", "Aprendi com meu pai", "Foi 0 que sugueino seio de minha mae".as tradicionalistasOs grandes depositaries da heranca oral sao as chamados "tradicionalistas",Memoria viva da Africa, eles sao suas melhores testernunhas. Quem sao essesmestres?Em barnbara, chamam-nos de Doma ou Soma, as "Conhecedores", auDonikeba, "fazedores de conhecimento"; em fulani, segundo a regiao, deSilatigui, Gando ou Tchiorinke, palavras que possuem a mesrno sentido de"Conhecedor". Podem ser Mestres iniciados (e iniciadores) de urn ramo tra-dicional especifico (iniciacoes do ferreiro, do tecelao, do cacador, do pes-cador, etc.) ou possuir a conhecimento total da tradicao em todos os seusaspectos. Assim, existem Domas que conhecem a ciencia dos ferreiros, dospastores, dos teceloes, assim como das gran des escolas de iniciacao da savana- par exernplo, no Mali, a Kama, a Kore, 0 Nama, 0 Do, 0Diarrawara, 0Nya, a Nyaworole, etc.

    Mas nao nos iludamos: a tradicao africana nao corta a vida em fatiase raramente 0 "Conhecedor" e urn "especialista". Na rnaioria das vezes, eurn "generalizador". Por exemplo, urn mesmo velho conhecera nao apenas aciencia das plantas (as propriedades boas au mas de cada planta), mas tam-hem a "ciencia das terras" (as propriedades agricolas ou medicinais dos dife-rentes tipos de solo), a "ciencia das aguas", astronomia, cosmogonia, psico-logia, etc. Trata-se de uma ciencia da vida cujos conhecimentos sempre podemfavorecer uma utilizacao pratica. E quando Ialarnos de ciencias "iniciat6rias"au "ocultas", termos que podem confundir 0 leiter racionalista, trata-sc sern-pre, para a Africa tradicional, de uma ciencia eminentemente pratica que

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    Metodologiu e pre-hist oria do Alricconsiste em saber como entrar em relacao apropriada com as forcas quesustentarn 0 mundo visivel e que podem ser colocadas a service da vida.

    Guardiao dos segredos da Genese c6smica e das ciencias da vida, a tradi-cionalisra, geralmente dotado de uma memoria prodigiosa, norrnairnente tam-b e r n e a arquivista de fatos passados transrnitidos pela tradicao, au de Iatoscontempcraneos.

    Uma hist6ria que se quer essencialrnente africana devers necessariarnente,portanto, apoiar-se no testernunho insubstituivel de africanos qualificados. "Naose pode pentear urna pessoa quando ela esta ausente", diz 0 adagio.

    Os grandes Doma, os de conhecimento total, erarn conhecidos e vene-rados, e as pessoas vinham de longe para recorrer ao seu conhecimento e asua sabedoria.

    Ardo Dembo, que me iniciou nas coisas fulani, era urn Doma peul (urnSilatigui). Hoje e falecida .. Ali Essa, ourro Silatigui peul, ainda vive.

    Danjo Sine, que trequentava a casa de meu pai, na minha infancia, eraum Doma quase universal. Nao sornente era urn grande Mestre iniciado doKomo, mas tarnbern possuia todos os outros conhecimentos de seu tempo -historicos, iniciat6rios au relatives as ciencias da natureza. Era conhecidopar todos na regiao que se estende de Sikasso a Bamako, isla e , os antigosreinos de Kenedugu e de Beledugu.

    Seu irrnao mars jovern, Latii, que havia experirnentado as m esm as ini-ciacoes, era tarnbern urn grande Doma. Alern do mais, tinha a vantagem deler e escrever arabe e de ter prestado a service militar (nas Iorcas francesas)no Chade, a que the perrnitira coletar grande quantidade de conhecimentosna savana chadiana, que se revelararn analogos aos ensinados no Mali.

    Iwa, pertencente a casta dos griots, e urn dos rnaiores tradicionalistas doMande vivos no Mali, assim como Banroumana; 0 grande rrnisico cego.

    Neste ponto e preciso esc1arecer que urn griot nao e necessariarnente urntradicionalisra "conhecedor", mas que pode tornar-se urn, se for essa suavocacao. Nao podera, entretanto, rer acesso a iniciacao do Kama, da qualos griots sao excluidos ;1.De maneira geral, as tradicionaJistas foram postos de parte, senao perse-guides, pelo poder colonial que, natur almente, procurava extirpar as tradicoeslocais a fim de implantar suas proprias ideias, pais, como se diz, "Nao sesemeia nem em campo plantado nem em terra alqueivada", Por essa razao,a iniciacao geralrnente buscava refugio na mata e deixava as grandes cidades,charnadas de Tubabudugu, "cidades de brancos" (ou seja, dos colonizadores).No entanio, nos diversos paises da savana africana que formam a antigoBafur - e, sem duvida, outras partes tarnbern - ainda existern "Conhece-dares" que continuarn a Iransmitir a heranca sagrada aqueles que aceitamaprender e ouvir e que se mostram dignos de receber os ensinarnentos porsua paciencia e discrecac, regras basicas exigidas pelos deuses.Dentro de [0 au 15 anos, as ultimos grandes Doma, os ulrirnos anciaosherdeiros dos varies ramos da Tradicao provavelmente terao desaparecido.Se nao nos apressarmos em reunir seus testernunhos e ensinamentos, todo

    ~ A respeiio dos grlots, ver rnais adiante.

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    A tradiciio viva 189o patrimonio cultural e espiritual de um povo carra no esquecimento junta-mente com eles, e uma geracao jovem sem rafzes Iicara abandonada a pr6priasorte.Autenticidade da transmissaoMais do que todos os outros homens, as tradicionalistas-dcsxc, grandes oupequenos, obrigam-se a respeitar a verdade, Para eles, a mentira nao e simples-mente urn defeito moral, mas uma iruerdiciio ritual cuja violacao lhes impos-sibilitaria 0 preenchimento de sua funcao,Urn mentiroso nao poderia ser urn iniciador, nem urn "Mestre da Iaca",e muito menos urn Doma. Se, excepcronalmente, acontecesse de urn tradi-cionalista-uome revelar-se urn mentiroso, jarnais voltaria a receber a confiancade alguern em qualquer dominic e sua funcao desapareceria imediatamente.

    De modo geral, a tradicao africana abomina a mentira, Diz-se: "Cuida--te para nao te separares de ti mesmo, E rnelhor que 0 mundo fique separadode ti do que tu separado de ti rnesmo". Mas a interdicao ritual da mentiraafeta, de modo particular, todos as "oficiantes" (ou sacrificadores au mestresda faca, etc.) 4 de todos as graus, a cornecar pelo pai de familia que e 0sacrificador ou a oficiante de sua Iamflia, passando pelo ferreiro, pelo tecelaoau pelo artesao tradicional - sendo a pratica de urn oticlo uma atividadesagrada, como veremos adiante. A proibicao atinge todos os que, tendo deexercer uma responsabilidade magico-religiosa e de realizar os atos rituais,sao, de algum modo, os intermediaries entre as mortais comuns e as forcastutelares; no topo estao 0 oficiante sagrado do pals (par exemplo, 0 Hogan,entre os Dagon) e, eventualmente, 0 rei.

    Essa interdicao ritual existe, de meu conhecimento, em todas astradicoesda savana africana,A proibicao da mentira deve-se ao fato de que se urn oficiante mentisse,estaria corrornpendo as atos rituals, Nao mais preencheria 0 conjunto dascondicoes rituals necessarias ji realizacao do ato sagrado, sendo a principalestar ele proprio em harmonia antes de maoipular as forcas da vida. Naonos esquecamos de que todos os sistemas rnaglco-religiosos africanos tend ema preservar ou restabelecer oequilfbrio das forcas, do qual depende a har-monia do mundo material e espiritual.Mais do que todos os outros, os Doma sujeitam-se a esta obrigacao,pais, enquanto Mestres iniciados, sao os grandes detentores da Palavra, prin-cipal agente ativo da vida humana e dos espiritos, Sao as herdeiros das

    palavras sagradas e encantat6rias transmitidas pela cadeia de ancestrais, pa-lavras que podem rernontar as primeiras vibracoes sagradas emitidas par Maa,o primeiro homem.Se a tradicionalista-doma e detentor da Palavra, os demais homens saoos depositarios do palavrorio ...

    4 Ncrn rodas as cerimcnias rituais inclularn necessariarnente 0 sacrificio de urn animal.o "sacrificio" podia consistir em urna oferenda de painco, leite au algum outro produtonatural.

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    190 Metodologia e pre-historia da AfricaCitarei 0 caso de urn Mestre da faca dogon, do pals de Pignari (departs-mente de Bandiagara) que conheci na juventude e que, certa vez, foi Iorcado

    a mentir a fim de salvar a vida de urna mulher procurada queele haviaescondido em sua casa, Apos 0 incidente, renunciou espontanearnente aocargo, supondo que ja nao rnais preenchia as condicoes rituais para assurni-lolidimamente.Quando se trata de questoes religiosas e sagradas, os grandes mestrestradicionais nao ternem a opiniao desfavoravel das massas e, se acaso come-

    tern urn engano, admitem 0 erro publicamente, sem desculpas calculadasouevasivas, Para eles, reconhecer quaisquer faltas gue tenham cometido e umaobrigacao, pois significa purificar-se da protanacao.Se 0 tradicionalista ouvConhecedor"e tao respeitado na Africa, e por-

    que ele se respeita a si proprio. Discipiinado interiorrnente, uma vez quejarnais deve mentir, C urn homem "bern equilibrado", mestre das Iorcas quenele habitarn. Ao seu redor as coisas se ordenarn e as perturbacoes se aquietam ..

    Independentemente da interdicao da rnentira, eie pratica a disciplina dapalavra e nao a utiliza imprudentemente. Pois se a fala, como vimos, econsiderada uma exteriorizacao das vibracoes de Iorcas interiores, inversa-mente, a forca interior nasce da interiorizacao da fala.

    A partir dessa optica, pode-se compreender melhor a importancia quea educacao tradic ional africana atribui ao autocontrole. Falar poueo e sinalde boa educacso e de nobreza. Muito cedo, 0 jovern aprende a dorninar arnanilestacao de suas ernocoes ou de seu sofrimento, aprende a center asforcas que nele existem, a sernelhanca do Maa primordial que continha denlrode si, submissas e ordenadas, todas as forcas do Cosmo.

    Dir-se-a de urn "Conhecedor" respeitado au de urn hornem que e mestrede si mesmo: "E urn Maa!" (ou urn Neddo, em fulfulde ), quer dizer, urnhomem complete.

    Nao se deve confundir as tradicionalistas-doma, que sabem ensinarenquanto divertern e se colocarn ao alcance da audiencia, com os trovadores,contadores de historia e animadores publicos, que em geral pertencem acasta dos Dieli (griots ) au dos Woloso (Ucativos de casa") '-'. Para estes, adiscipline da verdade nao existe; e, como veremos adiante, a tradicao Ihesconcede o direito de travesti-la ou de embelezar os f'atos, mesmo que gros-seiramente, contanto que consigarn divertir au interessar 0 publico. "0 griot"como se diz - "pode ter duas linguas."

    Ao contrario, nenhurn africano de formacao trad icionalista sequer sonha-ria em colocar em duvida a veracidade da fala de um tradicionalista-doma,especialmente quando se trata da transmissao dos conhecimentos herd adosda cadeia dos ancestrais.Antes de faiar, 0 Doma, por deferencia, dirige-se as a!mas dos antepas-sados para pedir-lhes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a linguatroque as palavras au que ocorra um lapse de memoria, que 0 levari a aalguma omissao.r, Os WO/".IO (I iterul men te "os nascidos nn cusa"}, ou "ca Ivos de casa" ,e ra m ernpr egadosO C I familins de ernpregados ligados h a geracoes a lima mesrna familia. A tr adiciio conce-dia-Ihes liberdade total de a\ruo e expressjio hem como consideraveis direitos rnateriaissobre os be [IS tie sellS scnhores,

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    1. Musico tukulor toeandoo "ardin" (Kayes, Mali,N." AO-292).2, Cantor Mvet(Documentation Francaise ) . -

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    192 Metodologia e pre-his/aria da AfricaDania Sine, 0 grande Doma barnbara que conheci na intancia em Bou-gouni e que era a Chantre do Komo, antes de iniciar uma historia au licao

    costumava dizer:"Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem SarnakelOh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos teceloes,Prirneiros ancestrais iniciadores vindos do Leste!Oh, Jigi, grande carneiro que por prirneiro soproua trombeta do Korno,Vindo sabre 0 Jeliba (Niger)!Acercai-vos e escutai-rne.Em concordancia com vossos dizeresVou contar aos meus ouvintesComo as coisas aconteceram,Desde vas, no passado, at e n6s, no presente,Para que as palavras sejam preciosamente guardadasE fielmente transrnitidasAos hornens de amanhaQue serao nossos fiIhosE as filhos de nossos filhos.Segurai I i rme, 6 ancestrais, as redeas de minha lingua!Guiai 0 brotar das minhas palavrasA fim de que possarn seguir e respeitarSua ordem natural".Em seguida, acrescentava:"Eu, Danio Sine, do cia de Samake (elefante) , vou eontar tal comoo aprendi, na presenca de minhas duas testemunhas Makara e Manifin" G ."OS dais como eu conhecem a trama 7. Eles serao a urn tempo

    meus fiscais e meu apcio."Se 0 contador de historias cornetesse urn erro ou esquecesse algo, suatestemun ha 0 interrornperia : "Homem! Presta atencao quando abres a boca!"Ao que ele resporideria: "Desculpe, foi minha lingua fogo sa que me traiu".Urn lradicionalista-doma que nao e ferreira de nascenca, mas que co-nhece as ciencias relacionadas a forja, por exernplo, dira, antes de falar sobreela: "Devo isto a fulano, que deve a beltrano, etc.". Ele renders homenagemao ancestral dos ferreiros, curvando-se em sinal de devocao, com a pontado cotovelo direito apoiada no chao e 0 antebraco erguido.o Doma tarnbem pode eitar sell mestre e dizer: "Renda hornenagem atodos os intermediaries ate Nunjayri ... "N, sem ser obrigado a citar todosas nomes.

    Existe sempre referencia a cadeia da qual 0 proprio Doma e apenasurn elo.

    Em tad as os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissiiose reveste de uma irnportancia primordial. Nao existindo transrnissao regular,

    Ii Makoro e Manifin erarn seus dois condiscipulos,; Uma narrativa tradicional possui sernpre lima trarna ou base imutavel que nan devejarnais ser rnodificada, mas a partir da qual pode-se acrescentar desenvolvirnentos Ollembelezarnentos, segundo a inspiracao au a atencao dos ouvintes .., i\ncest 1 ' , 1 1 tins f e rrei ros.

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    193nao existe "magis", mas sornente conversa ou histories, A fala e , entao, ino-perante. A palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissaooriginal, um a torca que a lorna operants e sacramental.Esta nocao de "respeito pela cadeia" ou de "respeito pela transmissao"determina, em geral, no africano nao aculturado a tendencia a relatar umahistoria reproduzindo a mesma forma em que a ouviu, ajudado pela memoriaprodigiosa dos iletrados, Se alguem 0 contradiz, de simplesrnente respon-dera: "Fulano me ensinou assirn!", sempre citando a fonte.

    Alem do valor moral proprio dos tradicionalistas-doma e de sua adesaoa uma "cadeia de transmissao", uma garantia suplernentar de autenticidadee fornecida pelo contra le permanenie de seus pares ou dos anciiios que asrodeiarn, que velam zelosarnente pela autenticidade daquilo que transmiteme que as corrigem no menor erro, como virnos no caso de Dania Sine.No curse de suas excursoes rituais pelo mato, a chantre do Komo podeacrescentar as pr6prias rneditacoes ou inspiracoes a s palavras tradicionaisque herdou da "cadeia" e que canta para seus cornpanheiros. Suas palavras,novos elos, vern, entao, enriquecer as palavras dos predecessores. Mas eleprevine: "ISla e 0 que estou acrescentando, isto e a que estou dizendo, Naosou infalfvel, posso estarerrado. Se estou, nao se esque9am de que, comovoces, vivo de urn punhado de painco, de uns goles de agua e de algunssopros de ar. 0 hornern nao e infalivell"

    Os iniciados e os neofitos que 0 acompanham aprendem essas novaspalavras, de modo que todos os cantos do Komo sao conhecidos e censer-vades na memoria.o grau de evolucao do adepto do Komo nao e medido pela quantidadede palavras aprendidas, mas pela coniormidade de sua vida a essas palavras,Se urn homem sabe apenas dez ou quinze palavras do Komo, e . as vive,entao ele se torna urn valoroso adepto do Komo dentro da asscciacao. Paraser chantre do Komo, portanto Mestre iniciado, e necessaria conhecer todasas palavras herdadas, e vive-las.

    A educacao tradicional, sobretudo quando diz respeito aos conhecirnentosrelatives a uma iniciacao, liga-se a experiencia e se integra a vida. Poressemotivo 0 pesquisador europeu ou africano que deseja aproxirnar-se dos fatosreligiosos africanos esta fadado a deter-se nos limites do assunto, a menosque aceite viver a iniciacao correspondente e suas regras, 0 que pressupoe,no minimo, urn conhecimento da lingua. Pois existem coisas que nao "seexplicarn", mas que se experimentam e se vivem.

    Lembro-me de que em 1928, quando servia em Tougan, urn jovem etn6-logo chegara ao pais para fazer urn estudo sobre a galinha sacrifical porocasiao da circuncisao, 0 comandante frances apresentou-se ao chefe de can-ta o indigena e pediu que tudo fosse feito para satisfazer ao etnologo, insistindopara que "lhe contassem tudo", Por sua vez, 0 chefe de cantao reuniu osprincipais cidadaos e expos-lhes os fatos, repetindo as palavras do cornandante.o decano da assembleia, que era 0 Mestre da faca local, e, portanto,o responsavel pelas cerirnonias de circuncisao e da iniciacao correspondente,pergun tou-lhe:

    " Ele quer que Ihe contemos tudo?""_ Sim" _ respondeu 0 chefe de cantao.

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    194 Metodologia e pre-Iris/aria da Africa_ _ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~Mas ele veio para ser circuncidado?"N ao, veio busca r info rrn acoes, "

    a decano voltou 0 rosto para 0 outre lado e disse:"-- Como podemos contar-lhe tudo se ele nao quer ser circuncidado?

    Voce bem sabe, chefe, que isso nao e possivel. Ele tera de levar a vida doscircuncidados para que possamosensinar-Ihe todas as li!,

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    A tradiciio viva 195as rnisterios da unidade da Vida, que e inteiramente animada pela Se, aForca sagrada primordial, ela mesrna urn aspecto do Deus Criador,

    Na Africa, tudo e "Hist6ria". A grande Hist6ria da vida compreende aHist6ria das Terras e das Aguas (geografia), a Hist6ria dos vegetais (botfi-nica e tarmacopeia), a Hist6ria dos "Filhos do seio da Terra" (rnineralogia,metais), a Historia dos astros (astronomia, astrologia), a Hist6ria das aguas,e assim por diante.

    Na tradicao da savana, particularmente nas tradicoes bambara e peul,o conjunto das manifestacoes da vida na terra divide-se em tres categoriasau "classes de seres", cada uma delas subdividida em tres grupos:

    Na parte inferior da escala, as seres inanimados, os chamados seres"mudos", cuja linguagem e eonsiderada oculta, uma vez que e in-cornpreensivel ou inaudivel para 0 eomum dos mortais. Essa classede seres inclui tudo 0 que se encontra na superficie da terra (areia,agua, etc ..) au que habita 0 seu interior (rninerais, metais, etc.).Dentre os inanimados mudos, encontramos os inanimados solidos,Iiquidos e gasosos (Iiteralmente, "tumegantes").No grau medic, as "animados imoveis", seres vivos que nao se des-locam. Essa e a classe dos vegetais, que podem se estender ou sedesdobrar, no espaco, mas eujo pe nao pode mover-se. Dentre asanimados imoveis, encontrarnos as plantas rasteiras, as trepadeirase as verticais, estas ultimas constituindo a classe superior.Finalmente, as "anirnados moveis", que cornpreendem todos os ani-mais, inclusive 0 homern. Os animados moveis inc1uem os animalsterrestres (com e sem OSS08), as animais aquaticos e os animaisvoadores.

    Tudo a que existe pode, portanto, ser incluido em uma dessas categories."De todas as "Histories", a maior e mais significative e a do pr6prio

    Homem, simbiose de todas as "Historias", uma vez que, segundo 0 mito, foifeito com uma parcela de tudo a que existiu antes dele. Todos os reinosda vida (mineral, vegetal e animal) encontram-se nele, conjugados a forcasmultiplas e a faculdades superiores, Os ensinarnentos referentes ao homembaseiam-se em mitos da cosmogonia, determinando seu lugar e papel no uni-verso e revelando qual deve ser sua relacao com a mundo dos vivos e dosmortos. Explica-se tanto a simbolismo de seu corpo quanta a complexidadede seu psiquismo: "As pessoas da pessoa sao numerosas no interior dapessoa", dizern as tradicoes barnbara e peu!. Ensina-se qual deve ser seucomportamento frente a natureza, como respeitar-lhe a equilibria e nao per-turbar as Iorcas que a animam, das quais nao e mais que 0 aspecto visfvelA iniciacao a fara descobrir a sua pr6pria relacao com a mundo das forcase pouco a pouco 0 conduzira ao autodomfnio, sendo a finalidade ultimatornar-se, tal como Maa, urn "hornem completo", interlocutor de Maa Ngalae guardiao do mundo vivo.

    fl Cf. HAMPATE BA, A., 1972. p. 23 e segs,

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    19 6 Metodologia e pre-historia da AfricaOs ofidos tradicionaisOs offcios artesanais tradicionais sao os grandes veto res da tradicao oral.Na sociedade tradicional africana, as atividades humanas possulam fre-qiienternente urn carater sagrado ou oeulto, principalmente as atividades queconsistiam em agir sobre a materia e transforma-la, uma vez que tudo econsiderado vivo.

    Toda funcao artesanal estava ligada a urn conhecimento esoterico trans-mitido de geracao a geracaoe que tinha sua origem em urna revelacao inicial.A obra do artesao era sagrada porque "imitava" a obra de Moo Ngala ecompletava sua criacao. A tradicao barnbara ensina, de Iato, que a criacaoainda nao esta acabada e que Maa Ngala, ao criar nossa terra, deixou ascoisas inacabadas para que Maa, seu interlocutor, as completasse ou modifi-casse, visando conduzir a natureza a perfeicao, A atividade artesanal, emsua operacao, deveria "repetir" 0 misterio da criacao. Portanto, ela "focali-zava" uma forca oculta da qual nao se podia aproximar sem respeitar certascondicoes rituais,

    Os artesaos tradicionais acompanharn 0 trabalho com cantos rituais oupalavras rftmicas sacramentais, e seus pr6prios gestos sao considerados umalinguagem. De Iato, os gestos de cada ofieio reproduzem, no simbolismo queIhe e proprio, 0 misterio da criacao primeira, que, como foi mostrado ante-riormente, ligava-se ao poder da Palavra. Diz-se que:

    "0 ferreira Iorja a Palavra,o tecelao a tece,o sapateiro amaeia-a curtindo-a",Tomemos 0 exernplo do tecelao, cujo oficio vincula-se ao simbolismo daPalavra criadora que se distribui no tempo e no espa

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    A tradiciio vivu 197A morte do av6 e 0 nascimento do neto,Brigas de divorcio misturadas ao barulho de uma festa de casa-menta ... "

    De sua parte, diz a naveta:"Eu sou a barca do Destine,Passe par entre os recites dos fios da tramaQue representam a Vida.Passo do lado direito para 0 Iado esquerdo,Desenrolando meu intestine (0 fio)Para contribuir a construcao.E de novo passo do lado esquerdo para 0 lado direito,Desenrolando meu intestino.A vida e eterno vaivern,Permanente doacao de si".

    A tira de tecido que se acumula e se enrola em urn bastao que repousasobre a ventre do tecelao representa 0 passado, enquanto 0 rolo do fio aser tecido simboliza 0 misterio do amanha, a desconhecido devir, 0 tecelaosempre dira: "6 amanhal Nao me reserve uma surpresa desagradavell"No total, 0 trabalho do tecelao representa oito movimentos de vaivern(movimentos dos pes, dos braces, da naveta e 0 eruzamento rftrnico dos fiosdo tecido) que eorrespondem as oito pecas da armacao do tear e as oitoparas da aranha mitica que ensinou sua ciencia ao ancestral dos teceloes.Os gestos do tecelao, ao acionar 0 tear, representam 0 ato da criacao eas palavras que Ihe acompanham os gestos sao 0 proprio canto da Vida.Quanto ao ferreiro tradicional, ele e 0 depositario do segredo das trans-mutacoes. Por excelencia, e 0 "Mestre do Fogo". Sua origem e mitica, e,na tradicao barnbara, chamarn-no de "Prirneiro Filho da Terra". Suas haoi-lidades remontam a Maa, 0 primeiro homem, a quem 0 criador Maa Ngafaensinou, entre outros, os segredos da "forjadura". Por isso a forja e charnadade Fan, 0 mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo 0 universoe que foi a prirneira forja sagrada.Os elementos da forja estao ligados a urn simbolismo sexual, sendoesta a expressao, ou a reflexo, de urn processo cosmico de criacao. Dessemodo, os dois foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, sao com-parades aos testiculos masculinos. 0 ar com que sao enchidos e a substanciada vida enviada, atraves de lima especie de tuba, que represents 0 Ialo, paraa fornalha da forja, que representa a matriz onde age 0 fogo transformador.o ferreiro tradicional s6 pede entrar na forja ap6s urn banho ritual depurificacao preparado com 0 cozimento de certas folhas, caseas au raizesde arvores, escolhidas em funcao do dia. Com efeito, as plantas (como osminerais e os anirnais ) dividem-se em sete classes, que correspondem aosdias da sernana e estao ligadas pela lei de "correspondencia analogica". 10Em seguida, 0 ferreiro se veste de modo especial, uma vez que nao podeentrar na forja vestido com roupa cornum.10 A rcspeito da lei de correspond en cia analogica, v. HAM PATE B A , A. Aspects de facivilisation ajricalne, Presence africalne, Paris, 1972, p. 120 e segs,

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    198 Metodologia e pre-historic da A/ricaTodos os dias pela manha, purifica a forja com defurnacoes especiais

    feitas com plantas que ele conhece.Terminadas essas operacoes, lavado de todos os contatos com o exterior,a ferreira encontra-se emeslado sacramental. Voltou a ser pura e asseme-

    lha-se agora ao ferreira primordial. So entao, a sernelhanca de Maa Ngala,pode ele "criar", madificando e moldando a materia. (Em fulfulde, ferreiratraduz-se por bay/a, palavra que literalmente signifies "transforrnador".)

    Antes de cornecar 0 trabalho, invoca as quatro elementos-mae da criacao(terra, agua, af e fogo), que estao obrigatoriarnente representados na forja:existe sernpre urn receptacula com agua, 0 fogo da fornalha, 0 or enviadopelos fales e urn montlculo de terra ao lado da Iorja.

    Durante a Irabalha, 0 ferreira pronuneia palavras especiais a medidaque vai tocando cada ferramenta. Ao tomar a bigorna, que simboliza a recep-tiv idade ferninina, dizr v'Nao sou Maa Ngala, mas 0 representante de MaaNgala. Ele equem cria, nao eu", Em seguida, apanha urn poueo de agua,ou urn ova, oferece-a a bigorna e diz: "Ei5 teu dote".

    Pega 0 martelo, que simboliza 0 Ialo, e aplica alguns golpes na bigornapara "sensibiliza-la", Estabelecida a cornunicacao, ele pode cornecar atrabalhar.o aprendiz nao deve Iazer perguntas. Deve apenas observar com atencaoe soprar. Esta e a fase "muda" do aprendizado, A medida que vai avancandona assimilacao do conhecimento, 0 aprendiz sopra em ritrnos cada vez maiscomplexes, cada urn deles possuindo urn significado. No decorrer da faseoral do aprendizado, 0 Mestre transmitira gradualmenle todos as seus conhe-cimentos ao discipulo, treinando-o e corrigindo-o ate que adquira a mestria.Ap6s urna "cerim6nia de liberacao", 0 novo ferreira podera deixar a mestree insta!ar a sua propria forja. Comumente, 0 ferreira envia as pr6prios filhospara outro ferreira a fim de iniciarem seu aprendizado. Como diz a adagio:"As esposas e as filhos do Mestre nao sao sells melhores discipulos".

    Assim, 0 artesao tradicional, imitando M aa Ngala, "repetindo' com sellsgestos a criacao primordial, realizava nao urn "trabalho" no sentido pura~mente econ6mico da p alavra, mas urna funcao sagrada que ernpregava as forcasIundarnentais da vida e em que se ap licava todo 0 seu ser. Na intirnidadeda oficina all da forja, participava do misterio renovado da criacao eterna.

    Os conhecirnentos do ferreira devem abranger urn vasto setor da vida.Renomado ocultista, a rnestria dos segredos do fogo e do ferro faz dele a unicapessoa habilitada a praticar a circuncisao, e, como vimos, 0 grande "Mestreda faea" na iniciacao do Komo e invariavelmente urn ferreira. Nao apenassabe tudo a que diz respeito a rnetais, como tarnbem conhece perfeitarnentea classificacao das plantas e suas propriedades.o ferreira de alto-forno, que ao mesmo tempo extrai e funde 0 mineral,e 0 rnais avancado em conhecimentos. A ciencia de ferreiro fundidor, acres-cen ta 0 can hecirnento perfeito dos "Fi Ihos do seio da Te rra" ( mineralogia)e dos segredos das plantas e da mara, De fato, ele conhece < IS espccies devegetais que cobrcm a terra que contern determinado metal e detect a urnveio de Duro simpiesmente examinando as plantas e os seixos, Conhece asencantacoes da terra e as encantacoes das plantas. Uma vez que se consideraa natureza como viva e animada pelas forcas, todo ato que a perturba deve

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    A tradicdo viva 199ser acompanhado de urn "comportamento ritual" destinado a preservar esalvaguardar 0 equilfbrio sagrado, pois tudo se liga, tudo repercute em tudo,toda acao faz vibrar as Iorcas da vida e desperta uma cadeia de conseqiienciascujos eteitos sao sentidos pelo hornem.

    A relacao do homem tradicional com 0 mundo era, portanto, uma relacaoviva de participaciio e nao uma relacao de pura utilizacao. E compreensivelque, nesta visiio global do universo, 0 papel do profano seja rninimo.No antigo pais Barile, por exemplo, 0 ouro, que a terra of ere cia emabundancia, era considerado metal divino e nao chegou a ser explorado exaus-tivamente. Empregavam-no sobretudo na confeccao de objetos reais ou cultuais,mas igualmente 0 utilizavam como moeda de cambio e objeto de pre-sente. Sua extracao era livre a todos, mas a ninguern era permitida a apro-priacao de pepitas que ultrapassassem certo tamanho; toda pepita com pesosuperior ao padrao era devol vida ao deus e se destinava a aumentar a "ouroreal", deposito sagrado do qual as proprios reis nao tinham 0 direito deusufruir, Certos tesouros reais foram desta maneira transmitidos intactos atea ocupacao europeia. A terra, acreditava-se, pertencia a Deus, e ao homemcabia 0 direito de "usufruir" dela, mas nao a de possui-la.

    Voltando ao artesao tradicional, ele e a exemplo perfeito de como aconhecimento pode se incorporar nao somente aos gestos e acoes, mas tam-bern a totalidade da vida, uma vez que deve respeitar urn conjunto de proibi-~6es e obrigacoes ligadas a sua atividade, que constitui urn verdadeiro codigode comportamento em relacao it natureza e aos semelhantes.Existe, desse modo, 0 que se chama de "Costume dos ferreiros" (nurnu-

    sira ou numuya, em bambara) , "Costume dos agricultores", "Costume dosteceloes", e assim por diante, e, no plano etnico, 0 que se chama de "Costumedos Peul" (Lawol fulfulde), verdadeiros c6digos morais, sociais e juridicospeculiares a cada grupo, transmitidos e observados fielmente pela tradicao oral.

    Pode-se dizer que 0 offcio, ou a atividade tradicional, eseulpe 0 ser dohomem. Toda a diferenca entre a educacao moderna e a tradicao oral en-contra-se ai. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais util queseja, nem sempre e vivido, enquanto 0 conhecimento herdado da tradicaooral encarna-se na totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas deurn offcio materializam as Palavras sagradas; a contato do aprendiz com 0ofieio 0 obriga a viver a Palavra a cada gesto.

    Por essa razao a tradicao oral, tomada no seu todo, nolo se resume atransmissao de narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela e geradorae [ormadora de urn tipo particular de homem. Pode-se afirmar que existe acivilizacao dos Ierreiros, a civilizacao des teceloes, a civilizacao dos pastores,etc.

    Limitei-me aqui a .exarninar os exemplos particularmente tipicos dosferreiros e dos teeel6es, mas, de urn modo geral, toda atividade tradicionalconstitui uma grande escola iniciatoria ou rnagico-religiosa, uma via de acessoa Unidade, da qual, para as iniciados, e urn reflexo au uma expressao peculiar.

    Geralmente, a fim de conservar restritos a linhagem os conhecimentossecretos e os poderes rnagicos deles deeorrentes, todo grupo devia observarproibicoes sexuais rigorosas em relacao a pessoas estranhas ao grupo e pra-ticar a endogamia. A endogamia, portanto, nao se deve a ideia de intocabi-

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    200 Metodologiu e pre-historia da Africalidade, mas ao desejo de manter dentro do grupo os segredos rituais, Assim,podemos perceber como esses grupos, rigorosamente especializados e harmo-nizados com as "funcoes sagradas", gradual mente chegaram a nocao de "cas-ta", tal como existe atualmente na Africa da savana. "A guerra e 0 nobrefazem 0 escravo" - diz 0 adagio -, "mas e Deus quem faz 0 artesao (0nyamakala) ."

    A nocao de castas superiores au inferiores, par conseguinte, nao sebaseia em uma realidade sociologica tradicional. Ela surgiu com 0 decorrerdo tempo, apenas em determinados lugares, provavelmente como consequen-cia da aparicao de alguns irnperios onde a funcao de guerreiro, reservada aosnobres, Ihes eonferia uma especie de suprernacia. No passado distante, anocao de nobreza era sem diivida diferente, e 0 poder espiritual tinha prece-dencia sobre 0 poder temporal. Naquele tempo, eram os Silatigui (rnestresin iciados peul ), e nao os A rdo (chefes, reis) que governavam as comuni-dades peul.

    Contrariamente ao que alguns escreverarn ou supuseram, 0 ferreira emuito mais temido do que desprezado na Africa. "Primeiro filho da Terra",mestre do Fogo e manipulador de forcas misteriosas, e temido, acima de tudo,pela seu poder.

    De qualquer maneira, a tradicao sempre atribuiu aos nobres a obri-gacao de garantir a conservacao das "castas" ou classes de nyamakala (embambara; nyeenyo, pI. nyeeybe, em fulani). Tais classes gozarn da prerroga-tiva de obter mercadorias (au dinheira) nao como retribuicao de urn traba-Iho, mas como 0 reclamo de um privilegio que 0 nobre nao podia recusar.

    Na tradicao do Mande, cujo centra se acha no Mali, mas que cobremais ou menos todo 0 territ6rio do antigo Bafur (isto e, a antiga Africaocidental francesa, com excecao das zonas de floresta e cia parte oriental daNigeria), as "castas", ou nyamakala cornpreendern:

    as ferreiros (numu em bambara, baylo em fulfulde);as teceloes (maabo em bambara e em fulfulde);os trabalhadores da madeira (tanto 0 lenhador como 0 marceneiro;saki em bambara, [abba em fulfulde);os trabalhadores do couro (garanke em barnbara, sakke em fulfulde);as anirnadores publicos (diell em bambara; em fulfulde, eles sao de-sign ados pelo nome geral de nyamakala au membro de uma casta,isto e, nyeeybe) . Mais conhecidos pelo nome frances de griot,

    Embora nao exista nocao de "superioridade" propriamente dita, as qua-tro classes de nyamakala-artesaos tern precedencia sobre as griots, pois de-mandam iniciacao e conhecimentos especiais, 0 ferreira est a no topo da hie-rarquia, seguido pelo tecelao, pais seu oficio implica 0 mais alto grau deiniciacao, Ambos podem escolher indistintamente esposas de uma ou de outracasta, pais as mulheres sao oleiras tradicionais, tendo, portanto, a mesmain iciacao Ierninina.

    Na classificacao do Mande, os nyamakala-artesaos dividem-se em gruposde tres:

    Existern tres tipos de Ferreiro (numu em bambara, baylo em fulfulde):

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    A tradicoo viva 201a ferreira de rnina (au de al to- forno), que extrai as minerios e fundeo metal. Os grandes iniciados entre eles podem, igualmente, traba-lhar na forja;o ferreira do ferro negro, que trabalha na forja mas nao extraiminerios:a ferreira dos metais preciosos, au joalheiro, que geralmente e cor-tesao e, como tal, instala-se nos patios externos dos palacios deurn chete au nobre.

    Existern tres tipos de teceloes (maabo):o tece1iio de la, que possui 0 maior grau de iniciacao, Os motivosdos cobertores sao sempre simbolicos e estiio associados aos miste-rios dos nurneros e da cosmogonia. Todo desenho tern urn nome;o tecelao de kerka, que tece imensos cobertores, mosquiteiros ecortinas de algodao que podem ter ate 6 m de cornprimento comuma infinita variedade de motivos. Cheguei a examinar uma dessascortinas com 165 motivos. Cada motivo recebe urn nome e tern urnsignificado. 0 proprio nome e urn simbolo que representa variasrealidades;o tecelao comum, que confecciona faixas simples de tecido bran coe que nao passa par uma grande iniciacao,

    As vezes ocorre de a tecelagem comum ser feita par nobres. Assim,alguns Bambara confeccionam Iaixas de tecido branco sem serem teceloes decasta. Como nao sao iniciados, porern, nao podem tecer nern kerka, nem H i,nem mosquiteiros.Existem tres tipos de carpinteiros (saki em bambara, labbo em fulfulde):

    aquele que Iaz almofarizes, piloes e estatuetas sagradas. 0 almofariz,onde os remedies sagrados sao triturados, e urn objeto ritual feitoapenas com determinados tipos de madeira. Como na ferraria, acarpintaria simboliza as duas Iorcas fundamentais: almofariz repre-senta, como a bigorna, 0 polo feminine, enquanto 0 pilao representa,comO a martelo, 0 p610 masculine. As estatuetas sagradas sao exe-cutadas sob 0 comando de urn iniciado-doma, que as "carrega" deenergia sagrada prevendo algum uso particular. Alem do ritual de"carregamento", a escolha e 0 corte da madeira tambern devem serrealizados sob condicoes especiais, cujo segredo so 0 lenhador co-nhece.o proprio artesao corta a madeira de que preeisa. Portanto, e tam-bern urn lenhador e sua iniciacao esta ligada ao conhecimento dossegredos das plantas e da mata. Sendo a arvore considerada vivae habitada par outros espiritos vivos, nao pode ser derrubada oueortada sern determinadas precaucoes rituais conhecidas peloJenhador;aquele que faz utensilios au moveis domesticos de madeira;aquele que fabrica pirogas, devendo sec iniciado tambem nos segre-dos da agua,No Mali, as Somono, que se tornaram pescadares sem pertencer aetnia Bozo, tambem cornecaram a fabricar pirogas. Sao eles que po-demos ver trabalhando as margens do Niger entre Kulikoro e Mopti,

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    202 Metodologia e pre-historic da AfricaExistem tres tipos de trabalhadores do couro (garanke em barnbara,

    sakke em fulfulde):as que fazem sapatos;.,----as que fazem arreios, redeas, etc.;

    - os seleiros ou correeiros.o trabalho do couro tarnbem envolve uma iniciacao, e os garanke geral-mente tern a reputacao de feiticeiros.

    Os cacadores, as pescadores e os agricultores nao correspondem a castas,mas sim a etnias. Suas atividades eseao entre as mais antigas da sociedadehumana: a "colheita" (agricultura) e a "caca" (que compreende "duas cacas",uma na terra e outra na agua) represent am tarnbem grandes escolas de ini-ciacao, pois nao ha quem se aproxime imprudentemenle das Iorcas sagradasda Terra-Mae e dos poderes da mata, onde vivem os animais. A exemplodo ferreiro de alto-Iorno, 0 cacador, de modo geral, conhece todas as "encan-tacces da mata" e deve dominar a fund a a ciencia do mundo animal.

    Os curandeiros (que curarn por meio de plantas au pelo "dom da fala")podem pertencer a qualquer classe au grupo etnico. Normalmente eles saoDoma.

    Cada povo possui como heranca dons particulates, transmitidos de ge-ra

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    Tocador de Valiha .o instrumento e de madeiracom cordas de a~o (fotoMuseu do Homeml.

    2. Grio! hUIU" irn ita nd oa "mwarni" caldot foto B. Nan ret l.

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    204 Metodologia e pre-historia da A/riClI

    liberdade de Ialar. Podem manifestar-se a vontade, ate mesmo impudente-mente e, as vezes, ehegam a trocar das coisas rnais serias e sagradas sern queisso acarrete graves consequencias, Nao tern cornpromisso algum que os obri-gue a ser discretos au a guardar respeito absolute para com a verdade. Podernas vezes contar mentiras descaradas e ninguem os tomara no sentido proprio."Isso e 0 que 0 dieli diz! Nao e a verdade verdadeira, mas a aceitamos assim."Essa maxima rnostra multo bern de que modo a tradicao aceita as inven-coes dos dieli, sem se deixar enganar, pois, como se diz, eles tern a "bocarasgada",Em toda a tradicao do Bafur, 0 nobre ou 0 chefe nao s6 e proibidode tocar rnusica em reunifies publicas, mas tambern deve ser moderado naexpressso e na fala. "Muita conversa nao convem a urn Heron", diz 0 pro-

    verbio, Assim, as gnots ligados a s farnilias acabam por desernpenhar natural-mente 0 papel de mediadores, ou mesmo de embaixadores, caso surjarn pro-blemas de menor au maior importancia. Eles sao "a lingua" de seu mestre,Quando ligados a uma familia ou pessoa, geralmente ficam enearregadosde alguma rnissao corriqueira e particularmente das negociacoes matrimoniais.Para dar urn exemplo, urn jovem nobre nao se dirigira diretamente a umajovem para dizer-lhe de seu arnor. Fara do griot 0 porra-voz que entrara emcontato com a rnoca ou com sua griote para falar dos sentirnentos de seurnestre e louvar-lhe os meritos.Uma vez que a soeiedade africana esta Iundamentalmente baseada nodialogo entre os individuos e na cornunicacao entre comunidades ou gruposetnicos, os griots sao as agentes ativos e naturais nessas conversacoes, Auto-rizados a ter "duas linguas na boca", se necessario podem se desdizer semque causern ressentirnentos. Isso jamais seria possivel para urn nobre, a quemnao se permite voltar arras com a palavra ou mudar de decisao. Urn ghat

    chega ate rnesmo a arcar com a responsabilidade de um erro que nao come-teu a fim de remediar uma situacao OLl de salvar a reputacao dos nobres,J : . aos velhos sabios da cornunidade, em suas audiencias secretas, quecabe 0 diffcil dever de "olhar as coisas pela janela certa"; mas cabe aosgriots eumprir aquila que as sabres decidirarn e ordenaram.Treinados para colher e fornecer inf'ormacoes, eles sao os grandes porta-dares de noticias, mas igualmente, rnuitas vezes, grandes difamadores.o nome dieli em bambara signifiea sangue: De fato, tal como 0 sangue,

    eles cireulam pelo corpo da sociedade, que podem curar ou deixar doente,con forme atenuem ou avivem os conflitos atraves das palavrase das cancdes.E necessaria acrescentar, entretanto, que se trata aqui apenas de carac-terfsticas gerais e que nem todos os griots sao necessariarnente desavergo-nhados ou cinicos. Pelo cnntrario, entre eles existern aqueles que sao cha-mados de dieli-jaama, ou seja, "griols-reis". De rnaneira nenhuma estes saoinferiores aos nobres no que se refere a ccragern, moralidade, virtudes e sabe-

    doria, e jarnais abusam dos direitos que lhes foram concedidos por costume.Os griots foram importante agente ativo do comercio e da cultura hu-mana.Em geral dotados de consideravel inteligencia, desempenhavam urn papelde grande irnportancia na sociedade tradicional do Bafur devido a sua influen-cia sobre os nobres e as chefes. Ainda hoje, em toda oportunidade, estirnularne suscitarn 0orgulho do cla dos nobres com suas cancoes, normalmente para

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    A tradiciio viva 205ganhar presentes, mas rnuitas vezes para tambern encoraja-Ios a enfrentaralguma situacao diffcil.

    Durante a norte de vigilia que precede 0 rito da circuncisao, par exemplo,eles encorajam a crianca au 0 jovem a rnostrar-se digno de seus antepassadospermanecendo impassivel. Entre os Peul, canta-se 0 seguinte: "teu pai 11, Fula-no, que rnorreu no campo de batalha, engoliu 0 'mingau do ferro incandes-cente' (as balas) sem piscar. Espero que amanha tu nao sintas medo daponta da faca do ferreiro" .. Na cerim6nia do bastao, au Soro, entre os PeulBororo do Niger, as cancoes do griot animam a jovem que deve provar suacoragem e paciencia mantendo urn sorriso e sem tremer as palpebras, enquantorecebe fortes golpes de bastao no peito.

    Os griots tomaram parte em todas as batalhas da historia, ao lado deseus rnestres, cuja coragem estimulavam relembrando-lhes a genealogia e asgrandes feitos dos antepassados, Para 0 africano, a invocacao do nome defamilia 6 de grande poder, Ademais, e pela repeticao do nome da linhagemque se sauda e se louva um africano.

    A influencia exercida pelos dieli, ao longo da historia, adquiria a quali-ficacao de boa ou r n a , conforme suas palavras incitavam 0 orguino nos lIue-res e as impeliam a excessos ou, como era a case mais freqirente, chamavam--nos ao respeito de seus deveres tradicionais.Como se ve, os griots participant efetivamente da historia dos grandesirnperios africanos do Bafur, e papel desernpenhado por eles merece urnestudo em profundidade.o segredo do poder da influencia dos Dieli sabre os Horon (nobres)reside no conhecimento que tern da genealogia e da hist6ria das familias,Alguns deles chegaram a tazer desse conhecimento uma verdadeira especia-lizacao. Os griots dessa categoria raramente pertencem a uma familia e viajampelo pais em busca de informacoes hist6ricas cada vez rnais extensas. Dessemodo, certamente adquirem uma capacidade quase magica de provocar 0entusiasmo de urn nobre ao declamar para ele a propria genealogia, os objetosheraldicos e a historia familiar, e, oonseqiientemente, de receber dele valiosospresentes. Urn nobre e capaz de se despojar de tudo 0 que traz consigo epossui dentro de casa para presentear a urn griot que conseguiu the moveros sentimentos. Aonde quer que vao, estes griots genealogistas tern a sobrevi-vencia largamente assegurada.Nao se deve pensar, entretanto, que se trata de uma "retribuicao". Aideia de remuneracao pelo trabalho realizado e contraria a nocao tradicionalde direlto dos nyamakala sobre as classes nobres 12. Qualquer que seja suafortuna, os nobres, mesmo as mais pobres, sao tradicionalmente obrigados a

    oferecer presentes aos dieli ou a qualquer nyamakala au woloso 13 - mesmoII "Ten pai", em linguagern africana, pode muito bern designar urn tio, urn avo ou urnantepassado, Significa toda a linha paterna, inclusive as cclaterais.12 "Nobr e" e urna traducao bastante aproxirnativa de Horon. Em verdade, Horon c todapessoa que nfio pertence nem a classe dos nyamakala nern a classe dos jon ("cativos'),sendo esta ultima constituida por descendentes de prisioneiros de guerra. 0 Horan ternpor dever asscgurar a defesa dacomunidade, dar sua vida por ela, assim como garantira conscrvaeao das outras classes.13Sobre Woloso, "cativo de casa", d. n. 5.

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    206 Metodologia e pre-historia da Africaquando 0 dieli e infinitarnente mais rico do que 0 nobre. De um modo geral,e a casta dos Dieli a que mais reclama presentes. Quaisquer que sejam seusganhos, porern, 0 dieli sempre e pobre, pois gasta tudo 0 que tern, contandocom os nobres para sen sustento, "O!" canta 0 dieli solicitante, "a mao deurn nobre nao esta grudada ao seu pescoco com avareza; ela esta semprepronta a buscar em seu bolso algo para dar aquele que pede." E, se poracaso isso nao ocorrer, e melhor que 0 nobre se precavenha contra os pro-blemas que tera com a "homem da boca rasgada", cujas "duas Ifnguas''podem arruinar negocios e reputacoesl

    Do ponto de vista economieo, portanto, a casta dos Dieli, como todasas classes de nyamakala e de woloso, e dependente da sociedade, especial-mente das classes nobres. A progressiva transformacao das condicoes econo-micas e dos costumes alterou, ate certo ponto, esta situacao, e antigos nobresou griots passaram a aceitar funcoes remuneradas. Mas 0 costume nao morreu,e as pessoas ainda se arrufnam por ocasiao de festas de batismo au casa-mento para darem presentes aos griots que vern animar as Iestas com suascancoes, Alguns governos modernos tentaram por fim a esse costume, mas,que se saiba, ainda nao conseguiram,

    Os dieli, sendo nyamakala, devem em princfpio casar-se dentro dasclasses de nyamakala.B tacil ver como os griots genealogistas, especializados em historias defamilias e geralmente dotados de memoria prodigiosa, tornaram-se natural-mente, par assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente,grandes hisloriadores. Mas e importante lernbrarmos que eles nao sao osunicos a possuir tal conhecimento. Os griots historiadores, a rigor, podemser chamados de "tradicionalistas", mas com a ressalva de que se trata deum ramo puramente historico da tradicao, a qual possui muitos outros ramos.o Iato de ter nascido dieli nao faz do hornem necessariamente urn histo-riador, embora 0 incline para essa direcao, e muito menos que se tome umsabio em assuntos tradicionais, urn "Conhecedor". De urn modo geral, a'casta dos Dietl e a que mais se distancia dos dominies iniciat6rios, que reque-rem silenci 0. , . discrecao e controle da Iala.

    A possibilidade de se tornarem "Conhecedores" esta ao alcance deles,tanto quanta ao de qualquer outro indivfduo. Assim como urn tradicionalista--doma (a "Conhecedor" tradicional no verdadeiro sentido do terrno ) podevir a ser ao mesmo tempo urn grande genealogista e historiador, urn griot,como todo membra de qualquer categoria social, pode tornar-se urn tradicio-nalista-doma se suas aptidoes 0 perrnitirem e se ele tiver passado pelas inicia-~6es correspondentes (com exeecao, no entanto, da iniciacao do Komo, quelhe e proibida).

    No desenvolvimento deste estudo, mencionamos 0 exemplo de dois griots"Conhecedores" que atualmente vivern no Mali: lwa e Banzoumana, sendoque este ultimo e ao rnesrno tempo grande musico, historiador e tradiciona-lista-doma.o griot que e tambem tradicionalista-doma constitui uma fonte de infor-macoes de absoluta confianca, pois sua qualidade de iniciado lhe confere umalto valor moral e 0 sujeita a proibicao da mentira. Torna-se um outro ho-

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    A tradiciio II;VII 207memo E ele 0 "griot-rei" do qual falamos anteriormente, a quem as pessoasconsultarn por sua sabedoria e seu conhecimento, e que, embora capaz dedivertir, jamais abusa de seus direitos consuetudinarios.Quando um griot conta uma historia, geralmente lhe perguntam: "Euma historia de dieli ou uma historia de doma?" Se for uma historia dedieli", costuma-se dizer: "Isso e 0 que 0 dieli diz!", e entao se pode esperaralguns embelezamentos da verdade, com a intencao de destacar 0 papel destaou daquela familia - embelezamentos que nao seriam feitos por urn tradi-cionalista-doma, que se interessa, acima de tude, pela transmissao fiel.E necessario fazer uma distincao: quando estamos na presenca de umgriot historiador, canvern sabermos se se trata de um griot comum au deurn griot-doma. Ainda assim deve-se admitir que a base dos fatos raramentee alterada; serve de trampolim a inspiracao poetica ou paneglrica, que, se naochega a Ialsifica-la, pelo menos a "ornamenta",Urn mal-entendido que ainda tern sequela em alguns dicionarios francesesdeve ser esclarecido, Os franceses tomavam os dieli, a quem chamavam de"griots", por feiticeiros (sorcier), 0 que nao corresponde a realidade. Podeacontecer de urn griot ser korte-tigui, "lancador de rna sorte", assim comopode acontecer de urn griot ser doma, "conhecedor tradicional", nao porquenasceu griot, mas porque foi iniciado e adquiriu sua proficiencia, boa auruim, na escola de um mestre do offcio.o mal-entendido provaveImente advern da ambivalencia do termo fran-ces "griot", que pode designar 0 conjunto dos nyamakala (que incluem asdieli) e, mais freqtien temente, apenas a casta dos Dieli.A tradicao declara que os nyamakala sao todos subaa, terrno que designaurn homem versado em conhecimentos ocultos a que so tern acesso as ini-ciados, uma especie de "ocultista". A tradicao exclui desta designaeao osdieli, que nao seguem uma via iniciatoria propria. Portanto, os nyamakala--artesaos sao subaa. Dentre estes, encontra-se 0 garanke, trabalhador docouro, que possui a reputacao de ser urn subaga, feiticeiro no mau sentidodo termo.Quante a mim, sou propenso a acreditar que os primeiros interpreteseuropeus confundiram as dais termos subaa e subaga (semelhantes na pro-nunda) e que a arnbivalencia do termo "griot" fez 0 resto.Uma vez que a tradicao declara que "todos os nyamakala sao subaa(ocultistas) ", os interpretes devem ter entendido "todos as nyamakala saosubaga (Ieiticeiros) ", 0 que, devido ao duplo usa, coletivo ou particular, dapalavra "griot", tomou-se "todos os 'griots' sao Ieiticeiros". Dai 0 mal-en-tendido.Seja como for, a importancia do dieli nao se encontra nos poderes debruxaria que ele possa ter, mas em sua arte de manejar a fala, que, alias,tarnbem e uma forma de magia.Antes de deixarmos as griots, assinalemos algumas excecoes que podemcausar confusao. Par vezes, alguns tecel6es deixam de exercer seu oficiotradicional para se tornarem tocadores de guitarra. as Peul chamam-nos deBammbaado, literalmente "aqueJe que e carregado nas costas", porque suasdespesas sao sempre pagas por outrem ou pela comunidade. Os Bammbaado,

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    208 Metodologia e pre-historia da Africaque sao sernpre conradores de histories, tarnbem podem ser poetas, genealo-gistas e historiadores,

    Alguns lenhadores tambern podem trocar suas ferramentas por uma gui-tarra e se tornar exeelentes musicos e genealogistas .. Bokar 110 e Idriss Ngada,que, pelo que sei, se encontravam entre os grandes genealogistas do AltoVolta, eram lenhadores que se tornararn rmisicos. Mas trata-se aqui deexceeoes.

    Do mesmo modo, alguns nobres desacreditados podem se tornar anima-dares publicos, mas nao rnusicos I~, e sao chamados de Tiapourta (em bam-bara e em fulfulde). Assim, sao rnais impudentes e cinicos do que 0mais irnpu-dente dos griots, e ninguern leva a serio seus cornentarios. Pedern presentesaos griots com tal insistencia que estes ultirnos chegam a fugir ao ver urnTiapourta ...

    Se a musica e, em geral, a grande especialidade dos dieli, existe tam-bern uma rnusica ritual, toeada por iniciados, que acornpanha as cerimoniasou as dancas rituais, Os instrumentos dessa musics sagrada sao, portanto,verdadeiros objetos de culto, que tornam possivel a cornunicacao com as for-cas invislveis. Por serern instrumentos de corda, sopro ou percussao, encon-trarn-se em conexao com os elementos: terra, ar e agua.

    A musica propria para "encantar" os espiritos do fogo e apanagio daassociacao dos comedores de fogo, que sao chamados de Kursi-kolonin ouDonnga-soro.

    Como tornar-se urn tradicionalistaNa Africa do Bafur, como ja foi diio, qualquer urn podia tornar-se tradieio-nalistadoma, isto e, "Conhecedor", em uma ou mais materias tradicionais.o conhecimento estava . a disposicao de todos (sendo a iniciacao onipresenresob uma forma ou outra ) e sua aquisicao dependia sirnplesmente das aptid6esiad ividu ais.o conhecimento era tao valorizado, que tinha precedencia sabre tudoe conferia nobreza. 0 conhecedor, em qualquer area, podia sentar-se no Con-selho dos Anciaos encarregado da adrninistracao da comunidade, a despeitode sua categoria social - horon, nyamakala ou woloso, "0 conhecimenton ao dis tingue raca nem 'po rta pale rn a' (0 cl a). Ele eno brece 0 homem",diz 0 proverbio,A educacao african a nao tinha a sistematica do ensino europeu, sendodispensada durante toda a vida. A propria vida era educacao, No Bafur, ateas 42 anos, urn homem devia estar na escola da vida e nao tinha "direito apalavra" em assernblcias, a nao ser excepcionalrnente .. Seu dever era ficar

    "ouvindo" e aprofundar 0 conhecimento que veio recebendo desde sua ini-ciacao, aos 21 anos, A partir dos 42 anos, supunha-se que ja tivesse assimi-lado e aprofundado os ensinarnentos recebidos desde a inf3ncia. Adquiria 0direito a palavra nas assernbleias e tornava-se, por sua vez, urn rnestre, para

    H Cabe lernbrar que os Horon (nobres ) , peul ou barnbara, jamais tocarn musica. pelornenos em publico. Os Tiapourta conservararn, em geral, esse costume.

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    devolver a sociedade aquilo que dela havia recebido. Mas isso nao 0 impediade continuar aprendendo com os mais velhos, se assim 0 desejasse, e de lhespedir conselhos. Um homem idoso encontrava sernpre outro mais velho oumais sabio do que ele, a quem pudesse solicitar urna informacao adicionalou uma opiniao. "Todos os dias", costuma-se dizer, "0 ouvido ouve aquiloque ainda nao ouviu." Assim, a educacao podia durar a vida inteira.Ap6s aprender 0 oficio e seguir a iniciacao correspondente, 0 jovem

    nyamakala - artesao, pronto para voar com suas pr6prias asas, ia geral-mente de cidade em cidade, a fim de aumentar seus conhecimentos apren-dendo com novos mestres. "Aquele que nao viajou, nada viu", diz-se. Assim,ele ia de oficina em oficina, percorrendo, a mais extensamente possivel, 0pais. Os homens das montanhas desciarn as planicies, os das planicies subiama s montanhas, os do Beledugu vinham ao Mande, e assim par diante.Com 0 prop6sito de logo se Iazer reconhecer, 0 jovem ferreiro, em via-gem, trazia sempre a fole a tiracolo; 0 lenhador, 0 machado ou a enx6; 0tecelao carregava as costas 0 tear desmontado, mas mantinha a naveta auo carretel bem a rnostra, nos ombros; a trabalhador do couro levava seuspequenos potes de tinta. Quando 0 jovern chegava a uma cidade grande, ondeos artesaos viviam em corporacoes agrupadas por oficio, era automaticamenteconduzido ao local dos trabalhadores do couro ou dos teceloes, etc.

    No curse das viagens e investigacoes, a extensao do aprendizado de-pendia da destreza, da memoria e, sobretudo, do carater do jovem. Se eracortes, simpatico e servical, os velhos the contavam segredos que nao con-tariam a outros, pais se diz: "0 segredo do velho nao se compra com di-nheiro, mas com boas maneiras",

    Quanto ao jovem horon, passava a infancia na corte do pai e na cidade,onde assistia a todas as reunioes, ouvia as historias que se contavam e retinhatudo 0 que podia. Nas sessoes noturnas de sua "asscciacao de idade", cadacrianca contava as hist6rias que havia escutado, foss em elas de carater hist6-rico ou iniciat6rio - neste ultimo caso, sem compreender bern todas as impli-cacoes. A partir dos sete anos, automaticamente fazia parte da sociedade deiniciacao de sua cidade e cornecava a receber os ensinamentos, que, como jaexplicamos, abrangiam todos os aspectos da vida.

    Quando um velho conta uma historia iniciat6ria em uma assembleia,desenvolve-Ihe 0 simbolismo de acordo com a natureza e capacidade de com-preensao de seu auditorio. Ele pode fazer dela simples historia infantil comfundamento moral educativo au uma fecunda licao sobre os misterios danatureza human a e da relacao do homem com os mundos invisiveis. Cadaurn retern e compreende conforme sua capacidade.o mesmo ocorre com os relatos historicos que dao vida a s reuni5es,narrativas em que os grandes feitos dos antepassados, ou dos herois do pais,sao evocados nos minimos detalhes, Umestranho de passagem contara hist6-rias de terras distantes. A crianca estara imersa em urn arnbiente culturalparticular, do qual se impregnara segundo a capacidade de sua memoria.Seus dias sao marcados por hist6rias, contos, fabulas, proverbios e maximas.

    Via de regra, 0 jovem horon nao viaja para 0 exterior, uma vez queesta preparado para a defesa do seu pais. Trabalha com 0 pai, que podeser agricultor, alfaiate ou exercer qualquer outra atividade reservada a classc

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    210 Metodotogia e pre-his/orin da Africados horon. Se 0 jovem e Peul, rnuda-se de acampamento com os pais, aprendemuito eedo a cuidar sozinho do rebanho em plena mata, tanto durante 0 diaquanto a noite, e recebe a iniciacao peul relativa ao simbolismo do gado.De modo geral, uma pessoa nao se torna tradicionalista-doma perrnane-cendo em sua cidade, Urn eurandeiro que deseja aprofundar seus conheci-mentos tern de viajar para conhecer as diferentes especies de plantas e seinstruir com outros "Conhecedores" do assunto,o homem que viaja descobre e vive outras iniciacoes, registra diferencase sernelhancas, alarga 0 campo de sua cornpreensao. Onde quer que va, tomaparte em reunioes, ouve relatos historicos, demora-se com urn transmissor detradicao espeeializado em iniciacao ou em genealogia, entrando, desse modo,em contato com a historia e as tradicoes dos paises por onde passa.

    Pode-se dizer que 0 homem que se tornou tradicionalista-doma foi urnpesquisador e urn indagador durante toda a vida e jarnais deixara de se-lo,o africano da savana cosrumava viajar muito. 0 resultado era a troeae a circulacao de conhecimentos, E par esse motive que a memoria hist6rieacoletiva, na Africa, raramente se limita a urn unico territorio. Ao contrario,esta ligada a linhas de familia ou a grupos etnicos que migraram pelo con-tinente.

    Muitas caravanas abriam carninho pela regiao servindo-se de uma redede rotas especiais, protegidas tradicionalmente por deuses e reis e nas quaisse estava livre de pilhagens e ataques. De outro modo, arriscavarn-se ou aurn ataque ou a violacao involuntaria, por desconhecirnento, de algum tabulocal e a pagar caro pelas consequencias. Quando da chegada a urn paisdesconhecido, os viajantes iam "confiar sua cabeca" a algum hornem deposicao que dali em diante se tcrnava seu garante, pois "tocar 0 'estrangeiro'e tocar 0 pr6prio anfitrifio".o grande genealogista e sempre urn grande viajante. Enquanto urn griotpode contentar-se em conhecera genealogia da familia a que esta ligado, 0verdadeiro genealogista - seja griot ou nao -, a fim de aumentar seusconhecimentos, devera necessariamente via jar pelo pais para se informar sobreas principais ramificacoes deum grupo etnico, e depois viajar para 0 exteriorpara tracar a hist6ria dos rarnos que emigraram,

    Assim, Molom Gaolo, 0 maior genealogista peul que tive 0 privilegiode conhecer, conhecia a genealogia de todos os Peul do Senegal. Quando aidade avancada nao rnais the permitiu que viajasse para 0 exterior, ele enviouo filho Mamadou Molom para continuar 0 levantamento junto as farniliaspeul que haviam migrado pelo Sudao (Mali) com al-Hadjdj'Umar. Naepoca em que eonheei Molorn Gaolo, ele havia conseguido eompilar e fixara historia passada de quase quarenta geracoes,Ele tinha como habito ir a todos os batizados ou funerals das principaisfamflias, a fim de registrar as circunstancias do:' nascimentos e mortes, queacrescentava ao rol ja guardado em sua mem6ria Iabulosa. Era capaz, tam-bern, de declamar para qualquer Peul importante: "Voce e 0 filho de Fulano,nascido de Beltrano, descendente de Sicrano, ramo de Fulano. .. que mor-reram em tal lugar, por tal causa, e que foram enterrados em tal local", eassim por diante. "Fulano foi batizado em tal dia, a tal hora, pelo rnarabutal e tal ... " Logicamente toda essa informacao era, e ainda e, transrnitida

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    A tradiciio viva 211oral mente e registrada apenas na memona do genealogista. Nao se podefazer ideia do que a memoria de urn "iletrado" pode guardar. Urn relatoouvido uma vez fica gravado como em uma matriz e pode, entao, ser repro-duzido intacto, da primeira a ultima palavra, quando a memoria 0 solicitar.Molom Gaolo, parece-me, faleceu por volta de 1968, aos 105 anos.Seu filho, Mamadou Gaolo, agora com 50 anos, vive no Mali, onde continuao trabalho do pai, pelo mesmo metodo, exclusivamente oral, sendo tarnbemele iletrado.Wahab Gaolo, contemporaneo de Mamadou Gaolo, e ainda vivo, reali-zou urn levantamento das etnias de lingua fulfulde (povos Peul e Tukulor)no Chade, Camaroes, Republica Centro-Africana e ate no Zaire, para infor-mar-se sabre a genealogia e a hist6ria das familias que emigraram para aquelespalses.as Gaolo nao sao dieli, mas uma etnia de lingua fulfulde semelhante aclasse dos nyamakala e que desfruta das mesmas prerrogativas. Muito maisoradores e declamadores que rruisicos (salvo suas mulheres, que cantam como acompanhamen to de instrumentos rudirnen ta res), podem ser con tadores dehist6rias e animadores, existindo, entre eles, muitos genealogistas.Entre os Marka (etnia mande), os genealogistas tern 0 nome de"Guessere".Dizer genealogista e dizer historiador, po is urn born genealogista conhecea hist6ria, as proezas e os gestos de todas as personagens que cita OU, pelomenos, das principais. Essa ciencia se encontra na pr6pria base da historiada Africa, po is 0 interesse pela historia esta ligado nao a cronologia, masa genealogia, no sentido de se poder estabelecer as linhas de desenvolvimentode urna fam ilia, cla ou etnia no tempo e no espaco.

    Assim, todo africa no tern urn pouco de genealogista e 6 capaz de remontara urn passado distante em sua propria linhagern. Do contrario, estaria comoque privado de sua "carteira de identidade". No antigo Mali, nao havia quemnao conhecesse pelo menos 10 ou 12 geracoes de antepassados. Dentre todosos velhos tukulor que vierarn para Macina com aJ-Hadjdj'Umar nao haviaurn que nao soubesse sua genealogia no Futa Senegal (seu pais de origem)e se u parentesco com as fam ilias que 1

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    212 Metodologia e pre-historia do A f r i C r Io conhecimento genealogico nao e, portanto, exclusividade dos griotse gaoto, mas sao eles os unicos especialistas em declarnar genealogias pe-

    rante os nobres para obter presentes.Influencia do IslaAs pecullaridades da memoria africana e as modalidades de sua transmissaooral nao foram afetadas pela islamizacao, que atingiu grande parte dos paisesda savana ou do antigo Bafur. De fato, por onde se espalhou, 0 Isla naoadaptou a tradicao africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrario,adaptou-se a tradicao africana quando - como norrnalmente oeorria - estanao violava seus principios fundamentais. A simbiose assim originada foi taogrande, que por vezes torna-se diffcil distinguir 0 que pertence a uma au aoutra tradicao.

    A grande familia arabe-berbere dos Kunia islamizoua regiao bern antesdo seculo XI. Logo que aprenderarn 0 arabe, os autcctones passararn a seutilizar de suas tradicoes ancestrais para transmitir e explicar 0 Isla.Grandes escolas islarnicas puramente orais ensinavam a religiao nas lin-guas vernaculas (exceto a Corao e os textos que fazem parte da oracaocanonica ). Podemos mencionar, entre muitas outras, a escola oral de Djelgodji(chamada Kabe), a escola de Barani, a de Amadou Fodia em Farimake

    (distrito de Niafounke, no Mali), a de Mohammed Abdoulaye Souadou emDilli (distrito de Nara, no Mali) e a do xeque Usman dan Fodio na Nigeriae no Niger, onde todo 0 ensino era rninistrado em fulfulde. Mais proximas den6s estavam a Zauia de Tierno Bokar Salif, em Bandiagara, e a escola doxeque Salah, a grande marabu dogon, ainda vivo.Das criancas que salam das escolas coranicas a maio ria era capaz dereciter de cor 0 Corao inteiro, em arabe e no salrno desejado, sem entendero sentido do texto, 0 que demonstra a capacidade da memoria africana,Em todas essas escolas os principios basicos da tradicao africana naoeram repudiados, mas, ao contrario, utilizados eexplicados a luz da revelacaocoranica, Tierno Bokar, tradicionalista em assuntos africanos e islamicos,

    tornou-se tarnoso pela intensa aplicacao deste metodo educacional.Independentemente de uma visao sagrada comum do universo e de uma

    mesma concepcao do homem e da familia, encontrarnos, nas duas tradicoes,a mesma preocupacao em citar as fontes (isnad, em arabe) e nunca modifiearas palavras do rnestre, 0 mesrno respeito pela cadeia de transmissao iniciatoria(silsila, 011 "cadeia", em arabe ) e a mesmo sistema de caminhos inieiat6rios(no Isla, as grandes congregacoes Sufi ou Tariga, plural turuq, cuja cadeiaremonta ao proprio Profeta), que tornam possi vel aprofundar, atraves daexperiencia, aquilo que seconhece pela Ie.

    As categorias de "Conhecedores' tradicionais ja existentes vieram jun-tar-se as dos marabus (letrados em arabe ou em jurisprudencia islamica) edos grandes xeques Sufi, embora as estruturas da sociedade (castas e offciostrad iciona is) fossem preservad as, incl usi ve nos meios rnais isl amizados, eccntinuassern a veicular suas iniciacoes particulares, 0 conhecimento deassuntos islamicos constituia uma nova fonte deenobreeimento. Assim, Alfa

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    A tradiciio viva 213Ali, falecido em 1958, gaolo de nascimento, foi a maior autoridade emassuntos islamicos no distrito de Bandiagara, assim como seus antepassadose seu filho 15.Hist6ria de uma coletaPara dar uma ilustracao pratica de como narrativas hist6ricas, entre outras,vivern e sao preservadas com extrema fidelidade na mem6ria coletiva de umasociedade de tradicao oral, contarei de que maneira consegui reunir, unica-mente a partir da tradicao oral, as elementos que me permitiram escrever aHistoria do Imperio Peul de Macina no Seculo XVIII 16.

    Pertencendo a familia de Tidjani, chefe da provincia, tive, desde a in-fancia, condicoes ideais para ouvir e reter. A casa de Tidjani, meu pai, emBandiagara, estava sempre cheia de gente. Noite e dia havia gran des reunioesonde todos falavam sobre uma grande variedade de assuntos tradicionais.Estando a familia de meu pai muito envolvida nos acontecimentos da epoca,os relatos eram normal mente sobre hist6ria, e cada pessoa narrava urn epi-sodio bern conhecido de alguma batalha ou de outro acontecimento memo-ravel. Sempre presente ness as reunioes, eu nao perdia uma palavra sequer,e minha memoria, como cera virgem, gravava tudo.

    Foi la que, ainda crianca, conheei Koullel, a grande contador de his-tori as, genealogista e historiador de lingua fulfulde. Eu 0 seguia por todaparte e aprendia muitos contos e narrativas que orgulhosamente recontavaaos camaradas de rneu grupo de idade, a ponto de me apelidarem "Arnkoullel",que significa "pequeno Koullel".

    Circunstancias alheias a minha vontade levaram-rne a viajar, seguindominha familia, par diversos pafses onde pude sempre estar em contato comgrandes tradicionalistas. Assim, quando meu pai se viu obrigado a fixar resi-dencia em Bougouni, para onde Koullel nos havia acompanhado, travei conheci-mento com 0 grande doma barnbara, Danfo Sine, e, em seguida, com seu irmaomais novo, Latif.Mais tarde, em Bamaco e em Kati, a corte de meu pai foi praticamentereconstituida, e tradicionalistas chegavam de todos os paises para se reunirem sua casa, sabendo que la encontrariam outros "Conhecedores" em cujacompanhia poderiam avaliar ou rnesmo alargar seus pr6prios conhecimentos,pois sempre se encontra alguem mais sabio.

    Foi ali que cornecei a aprender muitas coisas referentes a hist6ria doImperio peul de Macina, tanto na versao macinanke (isto e, a versao do povooriginario de Madna, partidarios da familia de Sheikou Amadou) , como naversao dos Tukulor, seus antagonistas, e ainda na versao de outras etnias(Bambara, Soninke, Songhai, etc.) que haviam presenciado au participadodos aeontecimentos.

    15De modo geral, a islarnizacao, vinda do norte e do leste, afetou mais particularmenteos paises da savana, enquanto que a cristianizacao, vinda por mar, tocou mais as regi5esde floresta da costa. Niio podernos falar do encontro entre a tradicfio e 0 cristianisrnopor nao possuirmos nenhuma inforrnacao sobre 0 assunto.)0 HA MI'ATE "SA, A. e DAGET, J., 1962.

  • 5/12/2018 A tradi o viva

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    214 Metodologia e pre-historia cia AfricaTendo, assirn, adquirido uma formacao basics bastante s6lida, decidicoletar inforrnacoes sistematicamente. Meu metodo consistia em gravar, pri-

    rneirarnente, todas as narrativas, sem me preocupar com sua veracidade aucom uma possivel exageracao. Em seguida, comparava as narrativas dos Ma-cinanke com as dos Tukulor ou com as de outras etnias envolvidas. Dessamaneira, sempre se pode encontrar, em qualquer regiao, etnias cujas narra-tivas permitam controlar as declaracoes dos principais interessados,Foi urn trabalho de foiego. A coleta de informacoes exigiu-me mais de15 anos de trabalho e de jornadas que me levavam do Futa Djalon (Guine)a Kano (Nigeria), a fim de retracar as rotas que Sheikou Amadou e al--Hadjdj'Urnar haviam percorrido em todas as suas viagens. Desse modo, re-gistrei as narrativas de pelo menos mil informantes. No final, mantive apenasos relatos concordantes, os que eram conformes tanto as tradicoes macinankee tukulor, como tarnbem as das demais etnias envolvidas (cujas fontes citeino livro).Constatei que, no conjunto, meus mil inform antes haviam respeitado averdade dos fatos. A trama da narrativa era sempre a mesma. As diferencas,que se encontravam apenas em detalhes sern irnportancia, deviam-se a quali-dade da mem6ria ou da verve peculiar do narrador. Dependendo do grupoetnico a que pertencia, podia tender a minimizar certos revezes ou a tentarencontrar alguma justificativa para eles, mas nao mudava os dados basicos.Sob a influencia do acompanhamento musical, 0 contador de historias podiadeixar-se levar pelo entusiasmo, mas a linha geral perrnanecia a mesma: aslugares, as batalhas, as vitorias e as derrotas, as conferencias e dialogos man-tidos, os prop6sitos dos personagens principiais, etc.

    Essa experiencia provou-me que a tradicao oral era perfeitamente validado ponto de vista cientifico . .f : posstvel comparar as versoes de diferentesetnias, como fiz, a titulo de controle, mas a propria sociedade exerce urn auto-controle permanente. Com efeito, nenhum narrador poderia permitir-se mu-dar os fatos, pais a sua volta haveria sempre companheiros ou anciaos queimediatamente apontariam erro, fazendo-lhe a seria acusacao de mentiroso.o Professor Montet certa vez referiu-se a mim como tendo relatado, noImperio Peul de Maci