a sombra da cidade - perse - publique-se - publicar seu ... · e para dona carmem, sem ela, ... viu...

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ADAMS DAMAS A SOMBRA DA CIDADE 1ª. Edição

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ADAMS DAMAS

A SOMBRA

DA CIDADE

1ª. Edição

2

Capa e diagramação: Estúdio TNE

Revisão: João Berna

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, armazenada ou

transmitida de

qualquer modo ou por qualquer meio, seja mecânico, eletrônico, fotocópia,

gravação ou outros sem a prévia autorização escrita do autor.

Todos os personagens deste livro são de criação de Adams Damas.

Todos os direitos reservados.

adamsdamas.blogspot.com.br

ISBN: 978-85-8196-921-3

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Para Alexandre, Anderson, Rafael, Allan, Diego

e todos os amigos e amigas que sempre acreditaram

que heróis existissem.

E para Dona Carmem, sem ela,

poderíamos estar vivendo outra realidade.

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PRÓLOGO

A Lua. Um planetoide qualquer que orbita a Terra; satélite sem

vida para alguns... No entanto, rege parte da vida para outros. Solitária,

ilumina, com seu brilho alvo e despretensioso, qualquer um que se

aventure na noite fria e escura. Como naquela noite em que iluminava dois

acidentados: Augusto Dias, comerciante, dono de duas lojas de móveis e

seu filho, Fábio, voltavam de uma pescaria de final de semana e acabaram-

se por demorar pelas horas de conversa jogada fora que Augusto tivera

com amigos em Paraibuna. Se seguissem o planejado, estariam em casa

por volta de oito horas da noite; eram já nove e meia. Pegaram uma

estrada meia de terra, meia de asfalto para encurtar o caminho de volta e o

pneu do seu Santana Quantum branco resolveu estourar. Augusto estava

desacostumado com certos empenhos mecânicos, principalmente, troca de

pneus. Chegando perto dos cinquenta, alguns fios grisalhos no cabelo e

aquela barriguinha protuberante de microempresário bem sucedido

deixaram-no sedentário e com razão. Fábio ajudou no que lhe coube. Nos

seus treze anos, magrinho, gostava mesmo era de jogar videogame, um

pouco de futebol, ler gibis e só. Nunca se interessou por mecânica ou

qualquer assunto que seu pai o envolvia. Ajudou-o apenas a carregar o

pneu. Augusto, com essa pequena viagem, queria uma espécie de

aproximação maior com o filho que mal via por, na maior parte do tempo,

estar ocupado com as lojas o que lhe rendia sempre reclamações da

esposa. Havia se surpreendido com a aceitação de Fábio pela viagem.

Amava o filho, claro, só não o conhecia tão bem; tentou fazer daquela

situação uma espécie de lição de vida.

- Bom filhão, é isso aí, ele bufava um pouco enquanto colocava o

pneu novo; nós homens temos que aprender a caçar o próprio alimento e a

arrumar o próprio carro! – soltou uma gargalhada rouca que Fábio já

acostumara a ouvir.

- Tá conseguindo pai? – perguntou Fábio. – A mãe deve tá

preocupada com a gente.

- Sua mãe se preocupa com qualquer coisa, respondeu Augusto. –

Eu coloco isso aqui e a gente chega rapidinho em casa.

- Tá ficando frio...

- É... esquecemos de trazer casacos. Tem um cobertor velho no

porta-malas; pode pegar ele.

Fábio se dirigiu para a parte de trás do carro e abriu o porta-malas

procurando com certa dificuldade pelo cobertor. Debaixo da caixa de

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isopor, onde estava a orgulhosa pescaria, ele viu um tecido cinza escuro e

com a mão esquerda tentou puxá-lo.

- Pai, tá pesada a caixa! Não consigo tirar o cobertor! – reclamou

Fábio.

- Ô Fábio, eu tô ocupado agora! Não posso fazer tudo por você

filho; puxa com força! – depois que disse isso, Augusto pensou consigo

mesmo que foi uma grande ideia essa de pescar e também o fato de

ficarem ali, no meio de lugar nenhum, apesar de não ter exatamente

planejado. Seria uma verdadeira lição para Fábio e também uma

aproximação com o filho. Ele arrepender-se-ia minutos depois de sequer

ter pensado aquilo.

Fábio, como seu pai lhe sugeriu, puxava com mais força o

cobertor, mas com uma das mãos segurando a caixa. O tecido já estava na

metade de seu comprimento quando ele virou para sua esquerda por causa

de um farfalhar que ouviu vindo do matagal ao lado; pensou que fosse o

vento e continuou a puxar. Ouviu novamente o barulho e quando olhou,

desejou realmente que tivesse sido o vento. Já tinha visto lobos antes em

fotos nas revistas e em reportagens e filmes na T.V., porém, nunca

imaginou que veria um tão perto. Ele era enorme – pelo menos para Fábio

– tinha uma pelugem acinzentada e em seus olhos havia uma expressão

raivosa que se assemelhava a dos humanos. Ele rosnava baixo deixando

suas presas a mostra e Fábio paralisou de medo. Queria chamar por seu pai

ou correr dali o mais longe que pudesse, mas não conseguiu; e tudo foi tão

rápido... O lobo deu três passadas para alcançá-lo, mas pareceram uma; e

quando Fábio tombou no chão com seus caninos presos em seu ombro,

ainda assim, não conseguiu gritar; abriu a boca, mas apenas engoliu saliva

e um tanto de pavor. Não entendeu, portanto, como seu pai chegou ali tão

depressa. Ele estava gordo, sedentário, mas tirou o lobo de cima do filho

com uma força digna de um animal protegendo sua prole. A força de

Augusto, no entanto, foi tanta que arrancou carne e sangue do garoto e só

então ele gritou. O ferimento causou uma dor tão lancinante que Fábio

quase desmaiou. Teria sido melhor. Pois assim, ele não teria visto seu pai

rolando com o lobo pelo chão e este cravando seus longos caninos em seu

pescoço esmagando sua traqueia como se fosse meros ossos de galinha;

não teria visto seu pai estrebuchar-se até a última gota de sua vida esvair-

se por completo. No entanto, não veria o caminhão que se aproximara com

seu Valdomiro e sua esposa, Adelina, espantar a tal criatura para a espessa

noite fazendo-a voltar para o mesmo inferno do qual saíra. O casal, quando

constatou a cena, desesperou-se. Enquanto dona Adelina ficou cuidando

de Fábio, seu Valdomiro foi buscar ajuda médica para ele e seu pai, apesar

de que era tarde para Augusto. Talvez por isso, pela sua dor física e

sentimental, Fábio nunca se esqueceu daquela noite.

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PARTE UM

1

Fábio Augusto Dias Filho acordou como que levado um susto.

Por um ou dois segundos achou que estava ainda no hospital rodeado de

enfermeiros e médicos. Mas quando sentiu um leve vento frio no rosto e

olhou para o céu azul claro riscado com fios amarelos do amanhecer que

se pronunciava, situou-se no tempo.

Olhou ao redor e percebeu que estava entre uma árvore e um

matagal descuidado; viu ao longe um senhor apenas que caminhava a

passos cadenciados na direção oposta de onde Fábio se encontrava. Ainda

bem, pensou. Ele estava nu! Imaginou que se alguém o visse daquele jeito,

ainda mais Fábio, nos seus vinte e oito anos, negro, alto, de um porte físico

considerável, poderia chamar muita atenção o que ele não precisava

naquele momento. Levantou-se e deu alguns passos para a sua direita;

atrás do mato alto encontrava-se uma mochila grande com suas roupas e

pertences. Quis agradecer a Deus por estar tudo lá do jeito que ele deixou,

mas parou de acreditar Nele há muito tempo; e se ainda acreditasse,

acharia que não tinha o direito.

Vestiu seu jeans surrado, uma camiseta branca, uma malha azul

com capuz, calçou seus tênis, colocou a mochila nas costas, um boné na

cabeça e saiu olhando para todos os lados vendo se ninguém mesmo tinha-

o notado. Pensou consigo que agora que começou não poderia mais parar.

Em uma outra parte da cidade, a poucos quilômetros de onde

Fábio estava, um homem, que também encontrava-se deitado no chão, não

acordou e definitivamente nunca mais acordará. A polícia apenas

conjecturava o que Marcelo Pereira da Costa fazia por ali antes de ser

atacado e morto; e talvez não tivesse tanta importância quanto descobrir a

identidade do suposto assassino. A rua onde encontraram o corpo não era

tão movimentada: local com algumas residências e um ou outro comércio

que provavelmente estavam fechados no momento do assassinato. E

ninguém viu ou ouviu nada. Nem mesmo Maria de Fátima das Dores.

Senhora de sessenta e dois anos saíra com sua cachorrinha poodle marrom

pela calçada quando esta começou a latir freneticamente para o outro lado

da rua. Ela viu perto de um poste, em frente a um bar, o que a princípio

achou ser um mendigo dormindo; quando chegou mais perto percebeu

uma quantidade enorme de sangue derramado pela calçada invadindo a

guia devido a um profundo corte que havia no pescoço do rapaz morto

vestindo um social-esporte com paletó e jeans mostrando não tratar-se

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realmente de um mendigo. Maria de Fátima não pensou duas vezes: pegou

Barbi no colo, correu para sua casa e ligou para a polícia.

Quinze minutos depois a primeira viatura havia chegado; mais

quinze e já havia quatro viaturas, uma ambulância da emergência e um

camburão do IML. A vizinhança atônita observava aquela cena que até

então tinham visto apenas nas reportagens da T.V. Alguns viam dentro de

suas casas como Maria de Fátima; alguns na rua, mas respeitando o

isolamento feito pelos policiais. Pedro Alcântara, investigador da polícia

civil, também observava, porém, mais próximo, ao lado dos peritos

aguardando estes darem seu primeiro parecer.

- Então? – perguntou Alcântara a Flávio Toledo, um deles.

- A morte ocorreu por volta de quatro e vinte da manhã,

respondeu sisudamente.

- E o ferimento no pescoço?

- As marcas sugerem terem sido causadas por dentes... dentes de

um animal.

- Animal! – exclamou Alcântara. – Que tipo de animal?

- De espécie canídea.

- Um cão! De que raça?

- E isso importa? – perguntou Josué Matias, um dos colegas mais

próximo de Alcântara.

- Saber se o cara foi assassinado por um chihuahua ou um

pittbull, Alcântara respondia com um sorriso no rosto; determina com

certeza se quem controlava o animal foi um senhor baixinho de oitenta

anos ou um destes filhinhos-de-papai mimados que andam por aí! Tô

certo, Flávio? – dirigiu a pergunta para o perito criminal. Era um tipo bem

comum Toledo. De estatura média, deixava seus cabelos de um loiro-

escuro sempre impecavelmente penteados; o olhar sério por trás das

grandes lentes dos óculos, e o avental branco que usava, lhe imprimiam

uma expressão igualmente circunspecta.

- Possivelmente, respondeu lacônico.

- Possivel... E se for um cachorro louco que o atacou? –

perguntou Matias.

- Não houve casos ainda deste tipo envolvendo cães raivosos,

respondeu Toledo; e o tipo de ferimento não condiz, até onde podemos

observar, com nenhuma espécie canídea criada aqui na cidade – concluiu.

- Estão dizendo que não podem determinar a espécie que o

atacou? – perguntou mais uma vez Alcântara.

- Calma, Pedro. Quando o levarmos ao instituto, teremos maiores

condições de fazer um exame completo, disse.

- Certo, certo... e o que dissemos à imprensa? – perguntou Matias.

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- Um latrocínio, respondeu Alcântara; até sabermos direitinho

como esse cara foi morto... Essa história de cachorro louco está muito

estranha.

- Muito bem então, mais um latrocínio para as estatísticas!

*

Algumas horas depois, em um sobrado da periferia sul de São

Paulo, que serve de sede para a ONG Luzes do Amanhã, onde jovens e

crianças encontram apoio educacional e social, seu fundador, André

Nascimento Dias, estava no quintal dos fundos da casa ensinando judô

para algumas crianças, quando Márcia, sua irmã e sócia na ONG, chamou-

o:

- André, telefone! – gritou da porta da cozinha.

- Quem é Má, tô ocupado, respondeu ofegante.

- É o Fabinho!

- Fábio! – olhou surpreso para ela. – Não tô acreditando; eu já

vou, peraí! Crianças uma pausa para uma água; já, já continuamos! – disse

André para os garotos e se dirigiu rapidamente para dentro da casa onde

Márcia o aguardava com o telefone na mão. Ela fez um sinal dizendo que

queria falar com ele depois. André concordou com a cabeça e falou ao

aparelho.

- Fábio! È você cachorrão? – perguntou André entusiasmado.

Fábio demorou cerca de cinco ou seis segundos para responder.

- Que isso, André? Parece que a gente não se fala há uns vinte

anos!

- Não foi tudo isso, mas chegou perto!

- Quê? E os e-mails não contam?

- E-mails, Fábio... Tô falando de conversa mesmo, cara a cara. E

aí, onde cê tá?

- No flat.

- Cê tá em São Paulo e só liga agora! Muy amigo você...

- Qualé, só cheguei alguns dias atrás. Vai ficar de marcação? – os

dois riram antes de André continuar.

- Certo, não vou ficar de marcação. Mas e aí, o que conta de

novo?

- Olha só, a gente pode almoçar e então trocamos uma ideia, que

cê acha?

- Beleza, a gente almoça sim, mas você paga! Onde cê pensa em

ir?

- Tem um lugar bacana aqui perto... Me encontra próximo da

estação República, mais ou menos meio-dia e quinze.

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- Combinado. Tenho que ir, meus alunos tão me chamando. A

gente se vê depois.

- Certo, até depois, André chamou Márcia e lhe entregou o

telefone antes de seguir para sua aula; Fábio, em seu flat, sentou-se na

cama para conversar com sua prima e com uma das mãos na cabeça soltou

um suspiro de arrependimento esperando que ela não percebesse.

*

Tarde da manhã, por volta de onze e quarenta e cinco, uma

mulher com ares de garota encontrava-se sentada na calçada em frente ao

Instituto Médico Legal com uma garrafinha de suco de laranja do seu lado

esquerdo, uma pequena mochila do seu lado direito e em cima do colo um

laptop onde digitava algo freneticamente. A cada pausa Cristina Wagner

sugava por um canudo o suco preferido e, depois de dar uma olhadinha

para cima batucando de leve os dedos no teclado do computador, voltava

ao seu afazer. Quem a olhasse por mais de trinta minutos, perceberia que

esse era um ritual próprio seu. Perceberia também que a imagem de

garotinha que tinha restringia-se apenas ao seu rosto de traço levemente

arredondado e ao biquinho que fazia, quando estava concentrada, deixando

seus lábios negros mais carnudos. Contudo, os cabelos ainda mais negros e

encaracolados, apressadamente, presos com uma tiara; os grandes olhos

castanho-claros que invariavelmente estavam escondidos atrás de óculos

escuros; e a silhueta esbelta de um metro e setenta e cinco vestindo uma

camisa branca sob uma jaqueta de couro marrom com calça jeans e botas

de salto alto já demonstravam uma mulher feita de vinte e cinco anos.

Um rapaz, branco e com vestes simples (uma camiseta cinza,

calça azul e botas pretas) aproximou-se de Cristina e sentou-se ao seu

lado. Esperou que ela terminasse de digitar para lhe falar, no entanto, sem

parar de teclar ou tirar os olhos da tela, perguntou-lhe:

- Vai ficar me olhando até quando, Mário? Fala logo!

- Posso ter uma coisa pra você.

- O que é?

- Um homem chegou morto hoje com um baita corte no pescoço!

– nesse momento ela parou repentinamente de teclar e olhou para o seu

informante oficial e que, não por acaso, era também auxiliar de limpeza do

IML.

- Mário, depois que eu te ajudei você me vem com notícia velha!

Eu já sei do que ocorreu no centro, acontece o tempo todo, tô atrás de

novidade, Sérgio, novidade! – e como que não tivesse parado, ela retornou

ao que estava fazendo.

- Você não me deixou terminar...

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- Então termina, não tenho o dia todo.

- Isso foi o que disseram à imprensa; os peritos têm outra ideia

sobre o que causou o ferimento.

- E...

- Segundo eles, foi uma mordida, uma mordida forte, uma

mordida de um... lobo!

Ela parou de novo e olhou para Mário que estampou um sorriso

de orelha a orelha. Cristina demonstrou apenas uma expressão de surpresa,

mas, por dentro, era toda contentamento e satisfação quando se lembrou o

que seu pai sempre lhe dizia quando ainda era verdadeiramente uma

garotinha: são sempre os mortos que contam as melhores histórias.

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O verão em uma grande metrópole, por uma série de razões, era

sempre mais quente. O asfalto, os prédios, o enorme número de carros,

caminhões e ônibus soltando de seus escapamentos uma fumaça quase

preta, deixavam na cidade, ainda mais no centro, a sensação de estarem

passando dois verões ao mesmo tempo.

No entanto, dentro de um restaurante próximo a uma estação de

metrô, Fábio e André almoçavam tranquilamente, em grande parte, devido

ao ar-condicionado do estabelecimento. Fábio comia dois pedaços de bife

temperado com cebola e molho de tomate apimentado; André preferiu um

prato de spaghetti com pouco molho e queijo parmesão ralado. Os dois

dividiam uma garrafa de cerveja e, entre uma garfada e outra, colocavam

em dia o que lhes ocorreu recentemente.

- Poxa, eu, às vezes, paro pra pensar e não acredito que você é

dono de uma ONG, disse Fábio. – Como estão as coisas por lá?

- A gente vai levando... A cada dia estamos conseguindo tirar as

crianças das ruas, quer dizer, mostrando uma opção melhor do que seguir

carreira na criminalidade, disse André.

- Precisando de ajuda, conta comigo.

- Pode deixar. E você? Descansou bem durante essas férias de

sessenta dias? – André perguntou com um sorriso no rosto.

- Não vem não... Eu trabalho bastante para merecer esse

descanso! Essa é uma das vantagens de ser sócio majoritário da minha

empresa.

- Há! Você aceita provocação muito rápido! Pra onde foi desta

vez?

- Itumbiara.

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- Sério! Você curte mesmo o interior hein! Da outra vez você foi

pra onde mesmo? Joanópolis?

- É, é... – Fábio cortou com mais afinco seu pedaço de bife – E

você? Só tem trabalhado na ONG? Não tem feito mais nada? – ele olhou

diretamente para André quando perguntou.

- Hã... sim... Vez ou outra ajudo um vizinho ou um garoto com

alguma coisa, mas na maior parte do tempo estou com a atenção toda na

ONG, André olhava rapidamente para Fábio enquanto lhe respondia. Este

pareceu não se importar ou, pelo menos, não perceber o comportamento

evasivo do primo. Ambos se conheciam, na verdade. Desde crianças

andavam juntos, tinham a mesma idade e se consideravam mais do que

primos ou mesmo amigos. Seus pais eram irmãos, portanto, era assim que

também se sentiam; e seja um jogo de futebol, um passeio no shopping ou

até namoricos, a dupla não se separava. No entanto, aconteceu. Primeiro

Fábio, que perdera o pai e logo depois fora André, que perdeu sua

liberdade. Eles se afastaram tanto fisicamente, como emocionalmente e,

quando voltaram a se ver, não foi mais como antes. Mantiveram a

amizade, os bate-papos, mas algo estava diferente. Eram bem jovens,

porém, de alguma forma, sabiam disso. Eles nunca conseguiram

preencher aquela lacuna que se abrira. Entretanto, procuraram deixar isso

de lado e seguir com suas vidas da melhor forma que puderam.

E enquanto os dois trocavam suas respectivas vivências durante o

tempo que passaram afastados, não muito longe dali, em um edifício de

número cento e três da Rua Xavier de Toledo – onde se sedia o jornal

Diário Paulistano – Cristina Wagner encontrava-se em frente ao seu

computador digitando um texto, como sempre, freneticamente. Ao mesmo

tempo, pesquisava, via internet, casos de assassinatos envolvendo animais

de algum tipo e também cruzando dados com reportagens envolvendo as

ações de quem a população em geral chamou de Sombra da Noite.

Há aproximadamente cinco anos, surgiu em São Paulo algo fora

do comum somente pensado em filmes ou histórias em quadrinhos: um

vigilante. Houvera na cidade vários relatos de assaltos malsucedidos,

roubos às pessoas, carros, casas frustrados e todos diziam que um homem

misterioso, vestido de preto, era quem estava realizando as tais proezas;

porém, foi num caso de sequestro que se tornou, se não público, notória a

sua presença. As pessoas mal o viam, vestia preto, só aparecia à noite e

uma manchete do jornal ajudaram a lhe dar o apelido.

Cristina, que a recém começara a fazer reportagens, foi uma das

poucas a levá-lo a sério e dar a ele destaque em uma das suas primeiras

matérias, o que lhe rendeu algumas chacotas por parte dos seus colegas de

profissão.

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Mas ela não desistiu. Essa era Cristina Wagner: persistente e

curiosa. Qualidades que puxou do pai, James da Rocha Wagner, jornalista

reconhecido que não pode ver sua filha única formar-se na mesma

faculdade que estudou – exatamente no ano em que Cristina entrara, James

Wagner, como era conhecido no meio jornalístico, teve um infarto

fulminante. Contudo, passou tudo o que sabia para ela; ensinamentos estes

que tentava sempre colocar em prática. Claro que não acreditava que o

vigilante mudou seus hábitos de combate ao crime, apenas queria saber se

ele também se envolvia com casos deste tipo, sendo que seu nome, até

agora, aparecia apenas em notícias envolvendo assaltos, sequestros e

tráfico de drogas.

Alessandra, a secretária do redator-chefe do jornal, aproximou-se

dela e, baixinho no seu ouvindo, disse-lhe:

- Cris, meu amor, tá me ouvindo?

- Alê? Que susto! O que foi?

- Seu chefinho querido vai atendê-la agora. Não me ouviu te

chamando não?

- Desculpa, Alê, é que eu tava tão concentrada aqui...

- Sei... É o seu namorado de novo?

- Ele não é meu namorado! Posso ir dona Alessandra?

- À vontade minha querida, disse ela com um sorriso irônico no

rosto enquanto Cristina encaminhava-se para o escritório de Altair Ribeiro.

Ele foi um grande amigo e colega de seu pai neste e em outros jornais em

que trabalharam. Conhecia a desde pequena e, verdade seja dita, conseguiu

seu estágio e o emprego por sua influência; o que ela não negava, porém,

tentava remediar buscando reportagens que a destacasse profissionalmente

independente de quem a apadrinhou; reportagens estas que o deixavam

incomodado, principalmente, quando envolvia um famigerado vigilante

urbano. Ele batucava os dois polegares com as mãos entrelaçadas

enquanto lia o lead de Cristina. Ribeiro parecia não respirar e a cabeça

baixa deixando a mostra sua acentuada calvície só aumentava sua

apreensão.

- Não, disse ele seco.

- Não? Não digo eu! – rebateu Cristina. – Chefinho, se a polícia

não quis divulgar esse caso em detalhes, é que aí tem alguma coisa.

- Está me parecendo notícia do tipo daquele maluco que você

insiste em defender... – ela abriu a boca com intenção de dizer alguma

coisa, mas parou, respirou fundo e disse:

- Por acaso o senhor está vendo o nome do maluco que eu

defendo?

- Não, Cris... Mas um lobo!

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- Não fui eu quem chegou a essa conclusão, foram os peritos do

IC e...

- Então eu vou querer uma declaração oficial, interrompeu

Ribeiro.

- Mas chefinho, se eles não querem dizer...

- Fatos, Cris, disse ele; só trabalhamos com fatos! Ou isso ou não

tem matéria!

- Tá, disse de forma resignada; eu vou ver isso e trago pro

senhor...

- Cris, Ribeiro deteve-a antes mesmo que ela se levantasse; está

na hora, se quer ser uma repórter tão boa quanto foi seu pai, está na hora.

Ela acenou com a cabeça e saiu do seu escritório. Seus olhos

queriam derramar algumas gotas de lágrimas, contudo, ela os pressionou

raivosamente e conseguiu contê-los, por hora.

3

Na manhã seguinte, na sede do DHPP, estavam reunidos numa

sala vários policiais e entre eles Pedro Alcântara. Sentado numa cadeira,

bem em um dos cantos do recinto, com uma pasta contendo um bolo

considerável de papéis com relatórios sobre recentes assassinatos apoiada

em uma das pernas e, em suas mãos, segurava mais alguns com o parecer

preliminar do IC sobre a morte ocorrida no centro. Apesar dos exames

apontarem que uma espécie de canídeo – possivelmente um lobo – causou

o ataque, ainda não tinham definindo se alguém ordenou que o animal

atacasse ou se ele o fez sozinho respondendo a algum tipo de provocação

ou ameaça. Enquanto lia, espocavam, em sua mente, os casos ocorridos

com o Sombra da Noite. Perguntava-se se o vigilante de alguma forma

tinha relação com esta morte absurda. Tinha já há algum tempo formulado

uma ideia a seu respeito: este Sombra da Noite agia, sem dúvida, à

margem da lei, no entanto, com o rumo que a criminalidade vem tomando

ao longo dos anos, muito mais violenta, cada vez mais armada, mais

agressiva e mais organizada; e a justiça com leis que na verdade são

muito mais permissivas com o crime do que punitivas, talvez alguém, que

aja na fronteira do certo e do errado, torne esta guerra um pouco mais

justa. Não!, concluía por fim. Recuava-se dessa ideia e retomava os

princípios que escolheu defender, porque sem lei e ordem, mesmo que

ainda defeituosas, o país e também o mundo voltariam à selvageria,

pensava. Mas teria que deixar seus conflitos pessoais para depois; naquele

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momento a delegada Silvana Bianchini chamou todos para que

discutissem os próximos passos do caso.

- Pessoal, por favor... Muito bem, chamei vocês aqui por dois

motivos: primeiro sobre o caso da morte no centro. O IC ainda não deu um

parecer completo, mas tudo indica que foi um ataque de um cachorro

provavelmente doente, portanto, sem assassinato, sem crime, sem

investigação do departamento.

Houve um burburinho e uma iniciativa de protestos de alguns

policiais, logo anulada com um gesto de mão da delegada.

- Segundo motivo: o secretário pediu hoje de manhã ao delegado-

geral e a todos os delegados dos departamentos que se auxiliem na procura

deste tal justiceiro de preto...

- Mas ele não é um justiceiro. – Alcântara interrompeu a delegada

de forma tão despretensiosa que olhava ainda para os relatórios quando o

fez. Foi mais um pensamento alto; no entanto, silenciou a sala e, quando

notou, levantou seus olhos constrangido, fitando cada policial que o

encarava, incluindo ela e Matias.

- Pode repetir, Pedro? – perguntou. Ele respirou fundo antes de

responder.

- Apenas disse que ele não é um justiceiro (um justiceiro executa

seus alvos) o Sombra da Noite está mais para um vigilante: combate o

crime assim como nós.

- Como nós Pedro? – retrucou Bianchini. – Usamos máscaras por

acaso?

- Não, mas usamos armas, armas de fogo; o que, até onde

sabemos, ele não usa.

- Falou bem, Pedro, até onde sabemos. Não sabemos nada a

respeito deste homem; vai saber o que ele fez ou faz quando ninguém

mesmo está olhando e é por isso que vamos prendê-lo antes que ele faça

algo pior! Ou você está achando que esse sujeito é algum tipo de super-

herói, Pedro?

A pergunta retórica da delegada veio com um ar de irritação e

provocação, o que causou sorrisos esboçados nos colegas de Alcântara

deixando-o ainda mais constrangido.

- Silvana, só estou dizendo...

- Acho que já dissemos muito hoje, Pedro – interrompeu. – Gente,

a ordem é essa: investigamos nossos casos e ajudamos no que for preciso

para prender esse marginal! Fui clara? – ela olhou diretamente para

Alcântara e todos responderam quase em uníssono um sim. Ele também

disse sim, porém, mais para ele mesmo.