a s s u n t o e s p e c i a l d o u t r i n a s...d e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l...

22
Assunto Especial Doutrinas Algumas Observações Sobre a Ação Civil Pública e Outras Ações Coletivas HUMBERTO THEODORO JÚNIOR Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG, Desembargador Aposentado do TJMG, Doutor em Direito e Advogado. SUMÁRIO:1. A ação civil pública e sua pertinência objetiva ; 2. A Lei nº 7.347/85 não define o objeto da ação civil pública ; 3. Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos ; 4. Inadequação da ação civil pública para declarar nulidade de ato normativo abstrato (inconstitucionalidade) ; 5. Questões de natureza tributária ; 6. Atos administrativos discricionários ; 7. Direitos individuais homogêneos ; 8. Coisa julgada e limites territoriais da competência do órgão julgador ; 9. A coisa julgada coletiva e os direitos individuais ; 10. A ação coletiva e a litispendência em relação às ações individuais ; 11. Conclusões . 1. A ação civil pública e sua pertinência objetiva O século XX, especialmente sua segunda metade, assistiu a uma enorme mudança de rumos no direito processual civil. De instrumento concebido, com exclusividade, para propiciar o exercício individual do direito de ação, passou a servir de palco, também, para a tutela dos interesses da sociedade como um todo ou de grupos representativos de grandes parcelas do aglomerado social. Esse movimento da ordem jurídica para o social não se registrou apenas no campo do processo civil. Ao contrário, todos os ramos do direito o sentiram, pois em nosso século o que realmente se deu foi a implantação definitiva do Estado Social de Direito, em lugar do antigo Estado de Direito, onde apenas o indivíduo era objeto de tutela. Dentro da nova visão do Estado e suas funções, assumiram destaque os chamados interesses difusos e coletivos, para os quais o legislador dispensou especial atenção, tanto no plano material como processual. Naturalmente, não se desprezou nem abandonou o direito clássico, de proteção ao indivíduo, sua pessoa, seus bens e seus direitos individuais. Tudo que o homem, como pessoa central do organismo social, logrou conquistar no domínio do direito, persiste sob amparo da ordem jurídica tradicional. O que se fez foi ampliar o campo de atuação do direito para nele incluir situações coletivas que até então permaneciam à margem dos mecanismos de disciplina, garantia e sanção do direito positivo.

Upload: others

Post on 21-Jun-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

Assunto Especial Doutrinas

Algumas Observações Sobre a Ação Civil Pública e Outras AçõesColetivas

HUMBERTO THEODORO JÚNIORProfessor Titular da Faculdade de Direito da UFMG, Desembargador Aposentado do TJMG,

Doutor em Direito e Advogado.

SUMÁRIO:1. A ação civil pública e sua pertinência objetiva; 2. A Lei nº 7.347/85não define o objeto da ação civil pública; 3. Direitos difusos, coletivos eindividuais homogêneos; 4. Inadequação da ação civil pública para declararnulidade de ato normativo abstrato (inconstitucionalidade); 5. Questões denatureza tributária; 6. Atos administrativos discricionários; 7. Direitos individuaishomogêneos; 8. Coisa julgada e limites territoriais da competência do órgãojulgador; 9. A coisa julgada coletiva e os direitos individuais; 10. A ação coletiva ea litispendência em relação às ações individuais; 11. Conclusões.

1. A ação civil pública e sua pertinência objetiva

O século XX, especialmente sua segunda metade, assistiu a uma enorme mudança de rumos no direitoprocessual civil. De instrumento concebido, com exclusividade, para propiciar o exercício individualdo direito de ação, passou a servir de palco, também, para a tutela dos interesses da sociedade comoum todo ou de grupos representativos de grandes parcelas do aglomerado social.Esse movimento da ordem jurídica para o social não se registrou apenas no campo do processo civil.Ao contrário, todos os ramos do direito o sentiram, pois em nosso século o que realmente se deu foi aimplantação definitiva do Estado Social de Direito, em lugar do antigo Estado de Direito, onde apenaso indivíduo era objeto de tutela.Dentro da nova visão do Estado e suas funções, assumiram destaque os chamados interesses difusos ecoletivos, para os quais o legislador dispensou especial atenção, tanto no plano material comoprocessual.Naturalmente, não se desprezou nem abandonou o direito clássico, de proteção ao indivíduo, suapessoa, seus bens e seus direitos individuais. Tudo que o homem, como pessoa central do organismosocial, logrou conquistar no domínio do direito, persiste sob amparo da ordem jurídica tradicional. Oque se fez foi ampliar o campo de atuação do direito para nele incluir situações coletivas que até entãopermaneciam à margem dos mecanismos de disciplina, garantia e sanção do direito positivo.

Page 2: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

140 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL Dessa maneira passaram a conviver, no bojo do ordenamento jurídico contemporâneo, normas deconteúdo e objetivo muito diversos, governadas, por isso mesmo, por princípios jurídicos tambémdiferentes. Ao aplicador do direito atual, então, toca a tarefa de bem compreender o direito à luz de suateleologia e, principalmente, em função dos princípios fundamentais vigentes em cada segmento dacomplexa tessitura normativa, a fim de encontrar o ponto de equilíbrio entre a tutela dos interessesindividuais e a tutela dos interesses coletivos. É claro que todos eles têm de conviver no Estado Socialde Direito, não podendo uns anular os outros.Os remédios processuais concebidos para a garantia de um tipo de interesse não podem sertransplantados para solução de conflitos na área onde o interesse ostenta natureza diversa. A situação éidêntica à que se nota na terapêutica humana. O medicamento aplicado fora do caso para que foiprescrito tornase fonte de agressão ao organismo e de agravamento da enfermidade, em lugar decumprir sua natural função curativa.É para esse risco natural de disfunção dos remédios processuais coletivos que a doutrina atual faz umalerta sério: "O uso generalizado e indiscriminado das ACPs, como outrora do HC, dos interditospossessórios e do próprio mandado de segurança, pode constituir séria ameaça à ordem jurídica, eensejar um clima de litigiosidade, insegurança e contestação generalizada, que é nocivo aodesenvolvimento do País. O risco apresentado é proporcional à densidade e efetividade do remédio,como está ocorrendo em relação às armas atômicas e antibióticos já antes referidos. O uso desenfreadodos novos remédios pode ameaçar a manutenção da ordem jurídica e impedir o bom funcionamento daadministração, da justiça e da economia". 1Não basta, obviamente, a previsão da lei processual de existir uma certa ação e de o direito materialproteger um certo interesse individual ou coletivo, para que o Judiciário tenha de acolher todapretensão deduzida com fundamento no aludido direito subjetivo e com observância do rito da referidaação.É preciso que o fato invocado como gerador do pretenso direito subjetivo corresponda, em tese, àtipicidade do direito material positivo e que o remédio processual seja adequado ao fim proposto. Docontrário haverá carência de ação.A ACP prestase à tutela de direitos difusos e coletivos, mas não de qualquer interesse queteoricamente caiba a um grupo de pessoas, pois é forçoso reconhecer, antes de tudo, que nem todos os"interesses", individuais ou coletivos, se acham sob proteção da lei.É o direito positivo que tem a força de criar "normas destinadas a disciplinar a conduta dos homens naconvivência social", assegurandolhes proteçãocoerção por intermédio dos mecanismos de poder doEstado (norma agendi). É também no direito positivo que as pessoas, singulares ou coletivas,encontrarão a fonte de suas faculdades de agir de conformidade com as normas dispostas peloordenamento jurídico (facultas agendi). 2Portanto, seja o indivíduo, seja a coletividade, para reclamar a tutela estatal para um interesse, tem nãoapenas que demonstrálo, mas cumprelhe o ônus de comprovar que se trata de um interesseadequadamente previsto e aprovado pelo direito positivo.

Page 3: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 141 É que qualquer que seja a norma de conduta, ela para o direito só adquire eficácia e legitimidade"quando declarada e sancionada pelo Estado". Tratase de um requisito "formal, solene eindispensável". 3Para se identificar um interesse jurídico capaz de configurar direito subjetivo, temse de partir da idéianão só de norma, como também de seu objeto.Como é sabido, as normas jurídicas têm como objeto as relações entre as pessoas, ou entre elas e osgrupos sociais, ou, ainda entre os grupos ou entidades a que se reconhece a capacidade de adquirir eexercitar direitos subjetivos.Daí dizerse que a relação de direito se compõe de dois elementos essenciais, ou seja, a regra jurídicae o fato do homem, o que para SAVIGNY, 4 deve ser assim entendido:

"Cada relação de direito nos aparece como relação entre pessoa epessoa, determinada por uma regra de direito; e esta regra determina, fixa, paracada indivíduo, um domínio dentro do qual a sua vontade reinaindependentemente de outra vontade estranha. Em conseqüência, toda relaçãode direito se compõe de dois elementos: 1º uma determinada matéria, isto é, aprópria relação; 2º a idéia de direito, que regula esta relação.

O primeiro pode ser considerado como elemento material da relação dedireito, ou seja, como simples fato; o segundo como elemento formal, quedestaca o fato e lhe atribui forma jurídica.

Mas, nem todas as relações entre os homens incidem no domínio dodireito; nem todas podem ou precisam ser determinadas por uma regra destanatureza. E, aqui, cabe distinguir três casos: ora a relação é inteiramentedominada pela regra de direito, ora o é em parte, ora ao domínio desta regraescapa totalmente." 5

Em suma, "é ao direito positivo de cada povo que compete determinar, diz ainda SAVIGNY, quais eaté que ponto as relações de fato são disciplinadas pelo direito". 6

2. A Lei nº 7.347/85 não define o objeto da ação civil pública

Na fonte do ordenamento jurídico localizamse tanto leis de natureza material como de naturezaformal: "aquelas (também chamadas de direito substantivo) são as que têm por fim definir e regular asrelações e criar direitos, estas (também chamadas de direito adjetivo), as que regulam o modo derealizar as relações, ou fazer valer os direitos, quando ameaçados ou violados". 7

Page 4: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

142 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL No primeiro caso de tutela de interesses difusos, que foi ter ao STF, a ACP havia sido aforada pelo MPdo Rio de Janeiro, em defesa da clientela do sistema bancário. Argüíase interesse difuso deconsumidor, em data anterior ao respectivo Código (isto é, antes da L. 8.078/90), e com base apenas naprevisão genérica da L. 7.347, de 24.07.1985, que previa o cabimento da ACP para defesa dosconsumidores, sem, entretanto, definir, materialmente, quais seriam os direitos materiais de que ditosconsumidores seriam titulares em face dos fornecedores.O parecer da PGR foi, então, no sentido de que a aplicação da L. 7.347/85, no caso concreto, esbarravana "limitação ao âmbito da função jurisdicional, que não permite ao Juiz prestar tutela na ausência, emcontrário, ou além da autorizada pela norma de direito material incidente". 8Acompanhando a linha de raciocínio da Procuradoria Geral, o Pleno da Suprema Corte assentou quenão bastava a lei conceder ao MP a titularidade da ACP para defender os consumidores, se a prestaçãoque se exigia em tal defesa não correspondia, ainda, a uma definição em lei de direito material.Do mesmo parecer, o voto vencedor do Relator do Acórdão, Min. SYDNEY SANCHES, extraiu oreconhecimento de que a L. 7.347/85, audaciosa, atendeu aos imperativos da "proteção adequada deinteresses metaindividuais".Advertiuse, porém, que "é preciso demarcar com precisão o alcance inovador da lei de interessesdifusos", deixando claro que:

"Cuidase, é certo, de uma revolução no processo, na medida em queviabiliza a proteção de direitos coletivos que se frustraria, se submetida às regrasindividualísticas de legitimação para a causa e da relatividade dos efeitos decausa julgada.

Não, porém, de uma revolução no campo da repartição constitucional decompetências, seja entre a União, os Estados e os Municípios, seja entre osdiferentes poderes de cada órbita estatal." 9

Se, pois, a função jurisdicional é sempre a de "individualização e especificação de uma normapreexistente", e se os interesses difusos ou coletivos não são mera soma dos interesses dos indivíduosque compõem o grupo social protegido, parece claro que a simples criação de uma ação coletiva oupública para tutelar interesses difusos não torna objeto do processo judicial toda e qualquer situaçãofática de relações metaindividuais.O que o Juiz acerta, no exercício da função jurisdicional, é simplesmente uma situação de fato quetenha correspondido a uma definição jurídica contida em norma preexistente. À sentença toca a funçãode aplicar dita norma, mesmo quando se trate de chegar, como no caso dos interesses difusos, a umasentença de efeitos erga omnes.Tanto como os direitos individuais, os interesses difusos para alcançarem, in concreto, a tutelaprocessual, têm de atingir a natureza de direito previsto em norma de natureza material. A leiprocessual não é, por si, fonte de direitos subjetivos materiais, mas apenas instrumento de proteção erealização daqueles criados pelas normas de natureza material.

Page 5: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 143 Nesse sentido CAPPELLETTI, tratando das ações coletivas, ensina que o que se protege, nesse novotipo de processo civil é "o interesse difuso, na medida em que a lei substantiva o transforma emdireito" ... direito que "não é privado, nem público; nem completamente privado, nem completamentepúblico". 10Segundo o mestre italiano, a evolução da tutela jurídica dos interesses difusos, tal como também se dá,aliás, com os interesses individuais, envolve dois momentos sucessivos, encadeados de maneira lógicae necessária:a) num primeiro estágio, normas constitucionais e infraconstitucionais tomam o rumo de defender osinteresses difusos e, assim, surgem "leis de direito substancial que protejam o consumidor, o ambiente,as minorias raciais, civil rights, direitos civis, etc."; 11b) no segundo estágio, sentese a necessidade de alterar o sistema tradicional de tutela processual,criandose ações adequadas aos interesses difusos transformados em direito pelas leis materiais. 12A L. 7.347/85 inserese na preocupação de proteger processualmente os direitos difusos já definidosentre nós por outros diplomas legais, tanto ordinários como constitucionais.Vale, porém, a advertência do STF: tratase de lei, em sua quase totalidade, de conteúdo normativo denatureza processual. 13Daí que a definição e caracterização dos direitos difusos não serão encontrados na Lei da ACP, masterão de ser buscadas em outras fontes do direito material.A lição de HELY LOPES MEIRELLES é muito clara, a respeito do tema: "A L. 7.347/85 éunicamente adjetiva, de caráter processual, pelo que a ação e a condenação devem basearse emdisposição de alguma norma substantiva, de direito material, da União, do Estado ou do Município,que tipifique a infração a ser reconhecida e punida pelo Judiciário, independentemente de qualqueroutra sanção administrativa ou penal, em que incida o infrator". 14Nessa ordem de idéias é que nos parece evidente que a previsão genérica do novo texto atribuído aoart. 1º da L. 7.347/85 de cabimento da ação civil pública para demandar reparação de danos a "outrosdireitos e interesses difusos" não passa de norma em branco, a prever remédio processual parasituações indeterminadas, mas que deverão, em outros textos de direito substantivo, se identificar.Do contrário, chegarseia ao extremo absurdo de confiar ao próprio titular da ação o poder de definir,sem parâmetro algum, o interesse merecedor da tutela jurisdicional. A ACP de mecanismo de garantiados direitos e interesses difusos se transformaria em um instrumento do arbítrio daqueles que estãolegitimados a propôla.

Page 6: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

144 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL A dispensarse as lindes da lei substantiva para configuração do direito coletivo ou difuso, chegarseiaao absurdo lembrado pelo voto do Min. FRANCISCO REZEK no CA 35/RJ, proferido em julgamentodo Pleno do STF: "Amanhã o curador de interesses difusos, no Rio de Janeiro, dirigese a uma dasVaras cíveis da Capital, com toda a forma exterior de quem pede a prestação jurisdicional, e requer aoJuiz que, em nome do bem coletivo, exonere o Ministro da Fazenda e designe em seu lugar outrocidadão, cujo luminoso curriculum viria anexo". 15Em semelhante hipótese, como bem ponderou o Min. REZEK, não estaria a parte pedindo tutelajurisdicional, mas pretendendo que, à falta de lei, o Juiz solucionasse a pretensão a que se atribui ocaráter de coletiva ou difusa, ou seja, in verbis: "a parte postulante não pediu ao magistrado queaplicasse a Legislação existente o produto do labor legislativo ao caso concreto, mas que criassenorma". 16Reclamouse da Justiça, na palavra do Min. CÉLIO BORJA, que se exercesse "atribuições de outroPoder da República. Isto, porém, é defeso ao Juiz pela ordem constitucional em vigor no País". 17Para exercer os poderes que a LACP lhe atribui, o Juiz terá de situarse no plano do ordenamentojurídico existente, onde irá buscar a presença da norma que atribuiu juridicidade ao interesse coletivo atutelar. Sem essa juridicização do interesse coletivo, não está ele apto a merecer a proteçãojurisdicional. Já que, mesmo em se tratando de ACP: "Não lhe confere a lei o poder de criar o direitomaterial, dizendo qual é a 'atividade devida' ou qual é a 'atividade nociva'. Obviamente, há de chegar àconclusão a respeito do que é devido e do que é nocivo, em face do direito material preexistente àdecisão ou julgamento". 18Enfim, segundo sábia advertência de ROGÉRIO LAURIA TUCCI, a não se exigir a definição em leimaterial das atividades nocivas aos interesses difusos tuteláveis na ação civil pública, será transformála em uma autêntica "panacéia geral para toda e qualquer situação". 19 A ACP não é instrumento deeqüidade, de direito alternativo ou de proteção de interesses que não se inserem no âmbito legal de suaatribuição.Deste modo, o MP "somente pode utilizar o importante instrumento de tutela de interesses públicos esociais relevantes nos casos expressamente previstos em lei. E, mesmo assim, dada a excepcionalidadede sua atuação, mediante a ação civil pública, quando, a par do suporte legal, seja oportuna econveniente a sua propositura, que deverá concretizarse, objetivamente, sem qualquer conotaçãopersonalística, e, obviamente, sem um mínimo de paixão; vale dizer, com absoluta exação". 20

Page 7: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 145

3. Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos

Ao instituir a ACP, a L. 7.347/85 previu, originariamente, sua utilização para a tutela dos interessesdifusos (art. 1º). Pela CF de 1988, seu aspecto objetivo foi ampliado para compreender todos osinteresses difusos e coletivos (art. 129, II). O CDC (L. 8.078/90), por sua vez, alargou mais o âmbitodas ações coletivas, admitindoas, nas relações de consumo, também, para defesa de direitosindividuais homogêneos (art. 81, parágrafo único, III).A partir de então, as figuras tuteladas pelas ações coletivas que vinham sendo especuladas e definidasapenas em sede de doutrina, receberam clara conceituação legal, visto que o CDC não se limitou ainvocálas, pois teve o cuidado de expressamente identificálas (art. 81, parágrafo único, I, II e III).Interesses ou direitos difusos, na dicção da L. 8.078/90, são os "transindividuais, de naturezaindivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato" (I).Coletivos, por sua vez, são os "transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo,categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base"(II).E, por último, os individuais homogêneos, que não se apresentam nem como transindividuais, nemindivisíveis, são os "decorrentes de origem comum" (III).Há entre os direitos difusos e coletivos traços comuns como a transindividualidade e a indivisibilidadedo objeto. Isso significa que o bem jurídico pertence a todo o grupo social e que o indivíduo não podese beneficiar de seu uso senão como parte integrante do grupo. Vale dizer: "A fruição de bem, porparte de um membro da coletividade, implica necessariamente sua fruição por parte de todos, assimcomo sua negação para todos. A solução do conflito é, por natureza, a mesma para todo o grupo". 21A distinção entre direitos difusos e direitos coletivos se faz em função do vínculo que mantéminterligados os membros do grupo interessado. No grupo titular do direito difuso não se registravínculo jurídico ligando os indivíduos entre si ou à parte contrária. Os interessados são"indeterminados e indetermináveis" e apenas "circunstâncias de fato" os unem, tais como morar namesma região, consumir os mesmos produtos, participar da mesma atividade econômica. 22 Já o grupotitular do direito coletivo tem sua formação ligada a uma relação jurídica, seja entre os indivíduos, sejaentre a comunidade, à parte contrária, como, por exemplo, os usuários da Ponte RioNiterói diante daempresa que a administra. Esses usuários são indetermináveis e o que reivindicam beneficiaráindistintamente a qualquer pessoa que use a Ponte. Todos, porém, se ligarão à referida administradorapor um vínculo jurídico (e não apenasde fato), quando se valerem do respectivo serviço público.Também será coletivo o direito defendido por uma categoria ligada a um sindicato. O grupo obterábenefícios para todos os que representarem entre si o vínculo jurídico comum de associados à mesmainstituição.

Page 8: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

146 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL Quando, porém, se cogita de direitos individuais homogêneos, desde a origem se pode identificar atitularidade do direito pelo indivíduo, sem conotação alguma com o grupo que posteriormente seconfirmou apenas para efeito de atuação em juízo. A reunião dos interessados decorre apenas demedida de economia processual, tal como ocorre tradicionalmente com o litisconsórcio. É claro,porém, que uma ação coletiva, mesmo de tutela de direitos individuais homogêneos não se confundecom o litisconsórcio, porque não se trata de simples reunião de várias pessoas para defenderem, emconjunto, seus direitos individuais. É certo que a previsão de ação coletiva na espécie não anula apossibilidade do indivíduo preferir o exercício da ação individual, nem impede que a solução dademanda possa ser diferente para algum interessado figurante do grupo. Justamente porque, na raiz, osdireitos congregados são individuais e podem, caso a caso, sofrer reflexos de circunstâncias pessoais.Numa ação coletiva para indenizar as vítimasde defeito de um produto, pode o fornecedor, afinal obterêxito, na fase de execução de sentença, demonstrando que determinado usuário, pretendente a recebera reparação de seu dano, teve seu prejuízo causado não pelo defeito do produto, mas por usoinadequado.Os direitos, na categoria do inc. III, do art. 81, parágrafo único, do CDC, são, portanto, divisíveis epessoais. São os clássicos direitos subjetivos individuais. Quando tratados coletivamente, formam umfeixe de interesses e não uma unidade como a que se nota nos direitos difusos e coletivos. Daí podercoexistirem as ações individuais ao lado da coletiva, quando a hipótese é de direitos individuaishomogêneos.Na lição de BARBOSA MOREIRA, "os interesses difusos e coletivos são ontologicamente coletivos,enquanto os interesses individuais homogêneos se apresentam como coletivos apenas acidentalmente".23 Quer isto dizer que aqueles somente podem ser tratados de forma coletiva enquanto estes tantopodem ser tutelados coletivamente como individualmente.Não se resume, porém, a ação coletiva a um cúmulo de ações individuais, porquanto a lei não só aconfere a entidades que agem em nome próprio (substituição processual) como trata do problema deforma coletiva, buscando efeitos erga omnes, para todo o grupo, independentemente de préviaidentificação individual de seus componentes, o que, à evidência, não seria possível no sistema comumdas ações singulares tradicionais.

4. Inadequação da ação civil pública para declarar nulidade de atonormativo abstrato (inconstitucionalidade)

Não se nega ser a ACP para tutela de interesses difusos e coletivos uma grande conquista da sociedadebrasileira. Todavia, esta que deveria ser o instrumento de garantia da coletividade, tornouse uminstrumento de repressão desenfreada, dado o seu constante desvirtuamento.

Page 9: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 147 Assistese, nos dias atuais, a uma proliferação de ACPs, ajuizadas pelo MP sob alegação de proteçãode interesses difusos, onde se verifica o seu total distanciamento dos regramentos jurídicos.Um desses abusos que se tem constatado é o freqüente manejo da ACP como instrumento paralelo dedeclaração de inconstitucionalidade de atos normativos. Ou nos termos do constatado por ARNOLDOWALD, "em várias oportunidades, a ACP tem sido utilizada como verdadeiro substituto da ação diretade inconstitucionalidade, com a diferença de ser a competência para o seu julgamento do juiz singulare não do STF, como manda a CF". 24É certo que, no direito brasileiro, o controle de constitucionalidade das lei e atos normativos frente àCF pode se fazer através de dois mecanismos: a) o controle concreto, no qual todo magistrado, noexercício da atividade jurisdicional, está autorizado a reconhecer a inconstitucionalidade da lei. Nestahipótese, a declaração produz seus efeitos apenas inter partes, isto é, entre aqueles que figuraramcomo partes no processo; b) o controle abstrato, relegado apenas ao STF cujo pronunciamento temeficácia erga omnes para todo o território nacional. Justamente por isso tem restrita as hipóteses de seucabimento e daqueles que são legitimados à sua propositura.Podese dizer que o controle abstrato de constitucionalidade tem caráter excepcional: "O controle deconstitucionalidade in abstracto (principalmente em países como o nosso, se admite sem restrições oincidenter tantum) é de natureza excepcional, e só se permite nos casos expressamente previstos peloprópria CF, como consectário, aliás, do princípio da harmonia e independência dos Poderes doEstado". 25A CF de 1988, por sua vez, somente prevê como instrumento de veiculação de pretensão de controleabstrato de constitucionalidade as seguintes medidas judiciais: a) Ação Direta deInconstitucionalidade; b) Ação Declaratória de Constitucionalidade e, mais recentemente; c) Argüiçãode Descumprimento de Preceito Fundamental.Observase, pois, que a ACP não está arrolada entre as ações adequadas ao controle deconstitucionalidade. Muito menos não se confere a qualquer membro do MP a legitimidade para aargüição de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes, mas apenas ao Procurador Geral de Justiça(art. 103, CF).Deste modo, a ação civil pública jamais pode ter por objeto pretensão de declaração de nulidade dediploma normativo por vício de inconstitucionalidade. Isto se deve ao fato de que a sentença proferidana ACP é de natureza condenatória (art. 3o, L. 7.347/85), não meramente declaratória. De outro lado, asentença proferida na ação civil pública é dotada de eficácia erga omnes. Sendo assim, qualquerpretensão de declaração de inconstitucionalidade de ato normativo, em sede de ACP, terá idênticaeficácia de uma decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade. Ou seja, impossível é sepensar em controle concreto de constitucionalidade na ação civil pública, dada a eficácia da sentençade procedência nela proferida.

Page 10: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

148 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL Ora, tendo efeitos erga omnes a sentença prolatada no bojo de ACP equivalentes àqueles da açãodireta, representa a declaração de inconstitucionalidade verdadeira usurpação da competência do STF.É que a ACP é proposta perante os magistrados de primeira instância. São eles que, desta forma,proferirão decisão decretando a inconstitucionalidade de ato normativo em lugar da Suprema Corte.Admitirse, portanto, o manejo da ACP para discutir a inconstitucionalidade de atos normativos éautorizar que magistrados de primeira instância exerçam o controle concentrado (abstrato) deconstitucionalidade, o que se mostra incompatível com o sistema adotado pelo ordenamento jurídicobrasileiro. E o mais sério, com risco de decisões conflitantes.Por fim, autorizarse o uso da ACP para a finalidade de declaração de inconstitucionalidade de normaé, ainda, burlar o rol daqueles legitimados a tanto, traçado no art. 103 da CF/88, visto que apenas oProcurador Geral de Justiça detém legitimidade ativa a tanto.O nãocabimento da ACP em que se veicula pretensão de afastar norma inconstitucional, à vista de suamanifesta desconformidade com o sistema jurídico nacional, felizmente, tem sido objeto dereconhecimento pelos tribunais pátrios.Nesse sentido, vários são os precedentes que se podem citar, versando, inclusive, pretensão deargüição de inconstitucionalidade da cobrança de tributos instituídos pelos Entes da Federação:

"Não se dá a nulidade do acórdão por violação ao art. 535, II, do CPC,quando a questão é enfrentada na instância estadual, apenas quedesfavoravelmente à tese sustentada pela parte, por entender o TJ, aliás, comprecedente confirmado pelo STJ, de que 'a ACP é a via imprópria para afastar acobrança de ICMS sobre o fornecimento de água, não sendo substitutivo domeio processual adequado, qual seja, a ação de inconstitucionalidade'." 26

"A ACP não se presta como meio adequado a obstar a cobrança de taxade iluminação pública instituída por lei municipal face ao fato de que a relaçãojurídica estabelecida desenvolvese entre a Fazenda Municipal e o contribuinte,não revestindo este último o conceito de consumidor constante do art. 21, da L.7.347/85, a autorizar o uso da referida ação.

'A ACP não pode servir de meio para a declaração, com efeito ergaomnes, de inconstitucionalidade de lei'." 27

"Na sentença declarouse a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº70.1989. Impossibilidade do uso da ACP para substituir a ação direta deinconstitucionalidade. A unidade de direito substantivo é estabelecida pela CF.Admitida a ACP para impedir a cobrança de tributo taxado de inconstitucional,possibilitaria a prolação de sentenças contraditórias com efeitos erga omnes, oque é absurdo. Recurso não conhecido." 28

Diverso não tem sido o entendimento do próprio STF em interpretando a Magna Carta e os limites deatuação do MP:

Page 11: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 149

"MP. ACP. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE RIONOVO/MG. EXIGIBILIDADE IMPUGNADA POR MEIO DE AÇÃO PÚBLICA,SOB ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACÓRDÃO QUECONCLUIU PELO SEU NÃOCABIMENTO, SOB INVOCAÇÃO DOS ARTS.102, I, A, E 125, § 2º, DA CF.

Ausência de legitimação do MP para ações da espécie, por nãoconfigurada, no caso, a hipótese de interesses difusos, como tais consideradosos pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos membros dasociedade, como um bem não individualizável ou divisível, mas, ao revés,interesses de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos de uma exigênciatributária cuja impugnação, por isso, só pode ser promovida por eles próprios, deforma individual ou coletiva. Recurso não conhecido."

"Não se admite ação que se intitula ACP, mas, como decorre do pedido,é, em realidade, verdadeira ação direta de inconstitucionalidade de atosnormativos municipais em face da CF, ação essa não admitida pela CartaMagna. Agravo a que se nega provimento." 29

Destarte é que, se destinando a ACP intentada à declaração de nulidade de ato normativo por vício deinconstitucionalidade, caracterizada estará a manifesta carência de ação, a impor a sua pronta extinçãopor impossibilidade jurídica do pedido e falta de interesse de agir. A ordem jurídica, não admite, emabstrato, o uso da ação civil para o fim de que seja deduzida pretensão de reconhecimento deinconstitucionalidade de norma. A via adequada a tanto será a ação direta de inconstitucionalidade.Daí o acerto da decisão do STJ no sentido de que "identificada a intenção contida na ACP de verdeclarada a inconstitucionalidade de dispositivo do Código Tributário do Estado de Goiás" acertado "oacórdão a quo que extinguiu o processo por impropriedade da via eleita". 30

5. Questões de natureza tributária

A ACP, em princípio, não se presta a tutelar direitos individuais, ainda que presente o interessepúblico, pois este não se confunde com interesses difusos: "A lei cuida sem dúvida dos interessesdifusos propriamente ditos ... os interesses difusos não são interesses públicos no sentido tradicional dapalavra". 31Justamente porque toda pretensão de questionar a sistemática de tributação prevista pelos entestributantes envolve direitos perfeitamente cindíveis e resultantes de relação definida e heterogêneadestes com o contribuinte, a MP 1984 estatuiu no parágrafo único de seu art. 1º que: "'Não será cabívelACP para veicular pretensões que envolvam tributos', contribuições previdenciárias, o FGTS ou outrosfundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados".

Page 12: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

150 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL Embora argüido de inconstitucional, em sede de ADIn, o STF entendeu, ao menos provisoriamente, demantêlo, já que reflete a orientação que já vinha sendo adotada naquele e em outros Tribunais.Já houve ACP, em matéria tributária, tanto por excesso de exação como por redução de arrecadação,tendose como lesados os interesses dos contribuintes, no primeiro caso, e, os da administraçãopública, no segundo.Em se tratando de exigência tributária, inconfigurável é a situação de ofensa coletiva a direitoshomogêneos de consumidor, porque obviamente a relação tributária não é relação de consumo, o queafasta, em princípio, o cabimento da ação coletiva de defesa dos direitos individuais homogêneosconcebida pelo CDC.Quanto à política de reduzir o montante exigível a título de certo tributo, não pode evidentemente sercensurada ou analisada na via especial da ACP, ao simples argumento de que tal diminuição implicariaprejuízo para o patrimônio público.Se a função geradora de receita é imanente ao tributo, não é, porém, a única que a lei lhe reconhece.No seu âmbito, existe também a parafiscalidade por meio da qual o Poder Público pode se valer deinstrumentos tributários para exercer o controle e a regulação da economia, do mercado, edesempenhar outras políticas sociais. Assim, ora opta o Poder Público pelo aumento de alíquota eampliação da base de cálculo, ora pela redução respectiva. A política de arrecadação tributária,portanto, inserese na função privativa do Ente Tributante, sendo resultado de um juízo deconveniência e oportunidade. Apenas se exige a observância, no exercício de suas funções edesenvolvimento das políticas tributárias, que respeite os princípios gerais da ordem tributária.Integra, portanto, a política tributária o mérito da função conferida à Administração Pública e como talnão está sujeito à intromissão do Poder Judiciário e menos ainda do MP.De qualquer maneira, parece que a jurisprudência vai se consolidando no sentido de que contribuintenão é consumidor e, portanto, não cabe ao MP usar de ACP para questionar cobrança de tributos, nempode transformála em ação direta de declaração de inconstitucionalidade de lei tributária. 32

6. Atos administrativos discricionários

A conveniência e oportunidade da prática de ato não vinculado do Poder Público não podem serquestionadas pelo MP por meio de ACP, como é óbvio, ainda que presente o interesse difuso oucoletivo em torno de certa obra ou serviço público. 33

Page 13: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 151 Em Minas Gerais, no entanto, aforouse, com deferimento de liminar, ação para impedir licitação deserviço público de transporte coletivo, ao pretexto de que estando longe o término da concessãovigente não seria conveniente, nem oportuna, a concorrência pública aberta pelo Poder Concedente.Ora, a deliberação em torno do momento adequado para a realização de licitação tendente a introduzirum novo sistema de transporte na cidade, envolve o mérito de ato eminentemente discricionário. Quemmelhor do que o administrador público pode decidir a respeito da conveniência e das condições emque se deve dar a implantação de novos métodos no serviço de transporte urbano? Quem podeaquilatar qual o tempo necessário para promover a transição de um sistema para outro econseqüentemente qual a antecedência com que a licitação para o novo serviço deve ser realizada,senão os órgãos técnicos da própria administração?Mais uma vez é importante lembrar que não basta a configuração do interesse difuso ou coletivo parajustificar a ACP; é indispensável que a tal interesse corresponda um direito contemplado pela ordemjurídica positiva.As obras e serviços públicos em geral não correspondem, só pela sua utilidade, a direitos dacomunidade que possam ser impositivamente exigidos da Administração. Na maioria das vezes, suarealização depende de planejamento, disponibilidade de verbas orçamentárias, prioridades políticoadministrativas, e de decisão quanto a conveniência e oportunidade do empreendimento, tema que porsua natureza pertence ao mérito do ato administrativo, em que reina a soberania do Poder Executivo,não sendo dado aos demais Poderes ingerir.Chamase discricionariedade administrativa "a possibilidade que tem o poder público de praticar oudeixar de praticar determinado ato conforme entenda esse ato conveniente ou inconveniente para aAdministração". 34 No âmbito do poder discricionário da Administração, a decisão sobre oportunidadee conveniência de determinada obra é tão exclusiva do Poder Executivo como é exclusiva do PoderJudiciário a decisão soberana de um litígio. Assim como o Executivo não pode interferir na prolaçãode uma sentença, o Judiciário também não pode intrometerse na deliberação das matérias que sãoobjeto do poder discricionário da Administração.Se o princípio da legalidade não foi ofendido, o mérito do ato discricionário é terreno do domínioúnico e exclusivo da Administração. Nele só a Administração "é o juiz dos próprios atos". Daí que"nenhum ato, editado com base no poder discricionário, é suscetível de revisão no que tange àoportunidade e conveniência das providências". 35Completamente injurídico é, pois, o manejo da ACP para remanejo de verbas orçamentárias ou paraalterar as prioridades administrativas quanto à aplicação das disponibilidades do tesouro, dandopreferência a um investimento em lugar de outro, ou simplesmente impondo à Administração o deverde realizar uma obra pelo só fato de ser de interesse coletivo. 36, 37

Page 14: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

152 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL

7. Direitos individuais homogêneos

A ACP não foi concebida para a defesa de todos os direitos que possam se referir a múltiplos titularesnem aos direitos públicos em geral. A L. 7.347, ao introduzila no sistema processual positivobrasileiro, a destinou claramente a tutela de bens indivisivelmente considerados, como o meioambiente, os interesses gerais do consumidor, o patrimônio artístico, histórico, cultural, paisagístico,etc.Quando o CDC ampliou o âmbito das matérias cogitáveis na ACP, não o fez senão para queabrangesse todos os interesses difusos e coletivos. É verdade que o CDC tutela, também de formacoletiva, alguns direitos individuais, aos quais atribui a denominação de direitos individuaishomogêneos. Mas ao fazer a adaptação da L. 7.347/85 ao seu próprio sistema, o CDC não o fez demodo a permitir que todas as ações coletivas de defesa do consumidor, na modalidade de "direitosindividuais homogêneos" pudesse ser, sistematicamente, inserida na esfera processual da ACP.Eis o texto do inciso IV da L. 7.347, introduzido por força do CDC (art. 110): "Art. 1º Regemse pelasdisposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais epatrimoniais causados: (...) IV a qualquer outro interesse difuso ou coletivo".É certo que o art. 21 da LACP, criado pelo CDC, prevê a aplicação à ação da L. 7.347, dos dispositivosdo título III da lei protetiva dos consumidores, e esse título cuida da ação coletiva relativa tanto adireitos transindividuais (coletivos ou difusos) como individuais (homogêneos). Mas, o texto legal(novo art. 21 da LACP) não manda simplesmente transplantar para a ACP todo o título III do CDC.Diz o artigo analisado que essa aplicação deverá darse "no que for cabível".Daí porque algumas conclusões se impõem:a) uma vez que a figura dos direitos individuais homogêneos só se concebe na esfera das relações deconsumo, o art. 21 da L. 7.347/85 somente se aplica a interesses individuais inseridos no plano dadefesa dos direitos nascidos de relação de consumo, ou seja: "não é qualquer interesse ou direitoindividual que repousa sob a égide da ação coletiva, mas só aquele que tenha vinculação direta com oconsumidor, porque é a proteção deste objetivo da legislação pertinente". 38

Page 15: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 153 b) sendo a ACP exercida originariamente pelo seu primeiro titular o MP não pode versar sobredireito ou interesse individual que não se inclua entre as atribuições tutelares que a CF lhe reservou, ouseja: os "interesses sociais e individuais indisponíveis" (CF, art. 127). Especificamente, quanto a açãocivil pública, a Lei Magna dispõe que é função institucional do MP promovêla "para proteção dopatrimônio público e social, do meio ambiente ou de outros interesses difusos e coletivos" (art. 129,III). Não se previu, portanto, na CF, pudesse o MP utilizar ACP para simples proteção de interessesindividuais homogêneos. 39Daí porque ao Parquet não cabe usar ACP quando se trate apenas de proteger direitos individuaisafetos a determinado grupo. Não basta que o CDC tenha previsto a ação coletiva para tutela judicialdos direitos individuais homogêneos. Sendo a ACP titulada pelo MP, somente poderá ser manejadaquando interesses individuais homogêneos ultrapassarem a esfera dos prejudicados, para afetar a"coletividade como um todo". 40Em outras palavras: "em relação aos interesses individuais homogêneos, falece legitimidade ao MPpara a propositura de ações civis, salvo em situações excepcionais em que se vislumbre interesse dacoletividade como um todo". 41Concluindo: os direitos individuais homogêneos não são totalmente incompatíveis com a ação civilpública. O que se deve exigir para que o MP os defenda, pelas vias do aludido remédio processualcoletivo, é a sua maior repercussão social. Não é apenas a pluralidade de indivíduos interessados deforma homogênea em determinado provimento jurisdicional que constituirá objeto idôneo para a ACP.É necessário uma repercussão social maior. 42 Esse tipo de interesse social capaz de mudar osinteresses individuais homogêneos em interesse de toda coletividade tem sido reconhecido, porexemplo, em ações coletivas sobre educação, saúde, previdência social, por concernirem a direitosfundamentais. 43Em alguns casos, porém, mesmo versando sobre problemas de educação, já se negou cabimento à ACPjustamente porque sendo diminuto o número de interessados (alunos de um só colégio), não sevislumbrava interesse social necessário para justificar a demanda coletiva. 44

Page 16: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

154 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL

8. Coisa julgada e limites territoriais da competência do órgão julgador

Uma vez que o CDC cogitara de ações coletivas para cuidar de "danos de abrangência nacional",prescrevendo quais seriam os órgãos judiciários competentes para essas demandas (art. 93, II), e sendoas sentenças de tais ações dotadas de eficácia erga omnes (art. 103), assentou o STJ, em decisão nãounânime, mas que encontrou receptividade na doutrina e na jurisprudência, que a regionalização daJustiça Federal não constituía óbice a que os efeitos de uma sentença de juiz do Distrito Federal ou daCapital de um Estado pudesse produzir efeitos além dos limites do próprio território onde o magistradoexerce jurisdição. Mesmo na Justiça Estadual, observou o decisório do STJ, "nada impede que umadeterminada decisão proferida por juiz com jurisdição num Estado projete seus efeitos sobre pessoasdomiciliadas em outro". 45Sentindose, porém, impedido o Governo Federal de levar avante o seu projeto de privatização daeconomia pela sucessão infindável de liminares em ACPs ajuizadas nos mais diversos foros da JF, oproblema foi contornado por meio da MP 1.570/97, convertida, posteriormente, na L. 9.494/97.Por força dessa nova legislação, o art. 16 da L. 7.347/85 passou a dispor que a sentença da ACP "farácoisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator".Houve, sem dúvida, um grave erro de técnica jurídicoprocessual porque, em princípio, a coisa julgadase limita pelo pedido (demanda) e não pela competência. Assim, segundo a tradição de nosso direito epelas exigências do próprio bom senso, o réu domiciliado em qualquer ponto do território nacional,desde que regularmente inserido na relação processual, está sujeito a suportar os efeitos da coisajulgada oriunda de sentença de juiz de qualquer parte do território brasileiro.Mas isto não impede que haja litígios que somente devam ser decididos pelo juízo do foro do réu ou dasituação da coisa ou da verificação do fato. A lei pode, dentro de sua soberania normativa, regular dasmais diferentes maneiras o problema da competência. Se não o faz segundo a melhor técnica, podemerecer a censura ou a crítica dos doutos. Nem por isso deixará de ser eficaz enquanto não revogadaou alterada por outra lei.Apenas quando a regra legal ofender uma ordem superior de legitimação ou eficácia é que o erro detécnica lhe comprometerá a validade. Isto é, não é a ofensa à ciência doutrinária, mas apenas a lesão àConstituição que compromete a validade de uma lei.Como não há regra alguma de nível constitucional que obrigue a existir ações coletivas com forçanacional, a L. 9.494, art. 2º, continuará a fazer com que cada juiz apenas disponha de autoridade paratutelar direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos dentro do território de sua jurisdição.

Page 17: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 155 Dirseá que o CDC continua, em seu art. 93, a sustentar a viabilidade de ações coletivas para eficáciaem todo território nacional, desde que aforadas no foro do Distrito Federal ou da Capital de cadaEstado. O que, todavia, se acha regulado no art. 93 é apenas a competência para certas ações coletivas,em função do objeto da lide, não a extensão da "competência territorial". A base territorial dajurisdição de cada órgão judicial é permanente e resulta da divisão do território nacional emcircunscrições judiciárias, sendo cada uma delas atribuídas a foros de 1º grau e 2º grau. Essaorganização judiciária não sofre, jamais, qualquer tipo de alteração, seja qual for o conteúdo do litígioa resolver.Se contra a melhor técnica processual, o legislador entendeu de confundir numa só regra acompetência territorial com os limites da força da sentença, o certo é que lei existe e, como tal, deveráser acatada pelo Poder Judiciário. À jurisdição, a não ser como guardiã da supremacia constitucional,não é dado rever a obra legislativa para modificála ou revogála, ainda que sustentada por critérios deconveniência ditados pela melhor técnica jurídica.Reafirmando a mens legis de restringir territorialmente a eficácia sentencial nas ações coletivas, o art.2ºA da L. 9.494/97 (introduzida pela MP 1.984/17, de 04.05.2000) dispõe que "a sentença civilprolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses edireitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham na data da propositura daação, domicílio no âmbito da competência territorial de órgão prolator". Sendo a ação coletiva movidacontra a Administração direta, autárquica e fundacional, em qualquer nível do Poder Público, a petiçãoinicial, quando subscrita por entidade associativa, deverá ser instruída com a ata da assembléia quetenha autorizado o procedimento judicial e a relação nominal de seus membros associados, comrespectivos endereços (parágrafo único do art. 2ºA).Aqui há de ser feita a distinção entre as entidades associativas que têm por finalidade estatutária adefesa de certos direitos coletivos dos associados e as que o fazem por eventualidade. A autorizaçãoassemblear só será exigível na última hipótese, já que na primeira terá sido dada no próprio ato deconstituição da entidade.Quanto ao rol de associados e seus endereços, prendese à preocupação de limitar a atuação deassociações em juízo à defesa de seus sócios, tal como a prevê o art. 5º, XXI, da CF. A norma éexpressiva nas demandas sobre direitos individuais homogêneos, e é despida de significação nas açõessobre direitos difusos e coletivos pela simples razão de que nestas últimas os interesses tutelados sãogerais e não atribuíveis individualmente a ninguém.Constatamse dois graves defeitos técnicos na nova disposição legal, que, entretanto, não conduzem àsua irremediável invalidade: a) insiste o legislador em manter o fracionamento territorial das causascoletivas que, em nome da economia processual, poderiam ser tratadas e solucionadas de uma só vezpor uma só sentença de eficácia nacional (caput); b) cuida de disciplinar apenas a propositura de açõescoletivas contra a Administração Pública, quando as ações da espécie tanto podem ser manejadascontra pessoas de direito público como de direito privado (parágrafo único). Não há, obviamente,razão alguma para justificar a quebra da isonomia num caso e noutro.

Page 18: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

156 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL Repitase, mais uma vez, enquanto perdurar a vigência da regra mal concebida tecnicamente pelolegislador, não é tarefa própria do Judiciário negarlhe aplicação ou modificarlhe o sentido, se nãoestiver a norma de direito comum em atrito com a ordem constitucional.

9. A coisa julgada coletiva e os direitos individuais

Uma das grandes diferenças entre o regime jurídico das ações coletivas e das ações individuaislocalizase na coisa julgada.Segundo a tradição do processo civil comum, a coisa julgada limitase às partes do processo, nãoprejudicando ou beneficiando terceiros (CPC, art. 472). Apenas, portanto, os sujeitos da relaçãoprocessual ficarão inibidos de voltar a discutir em juízo a lide definitivamente julgada.Em se tratando de ACP ou de ação coletiva, um mesmo fato lesivo pode atingir o interesse coletivo e ointeresse individual de certos membros da comunidade. Quando isto se dá, a coisa julgada formada noprocesso coletivo não fica restrita às pessoas que ocuparam as posições de parte na relação processual.Seus efeitos podem manifestarse erga omnes, propiciando benefícios a terceiros cujos interessesindividuais se enquadrem na hipótese apreciada de forma coletiva.Nem sempre, porém, a sentença coletiva tem eficácia em relação a terceiros. A de procedência da açãocoletiva produz, invariavelmente, efeitos erga omnes. Os indivíduos, titulares de interesses individuaislesados, poderão valerse da coisa julgada coletiva apara apoiar suas pretensões particulares contra aparte vencida, beneficiandose da "indiscutibilidade" da causa debendi (L. 8.078/90, arts. 97 e 103).Se a sentença for de improcedência, a coisa julgada operará plenamente no âmbito da ação coletiva, senão se tratar de insuficiência de prova, mas de inexistência mesma do direito material manejada naação res iudicata secundum eventum litis. Nenhuma outra ação coletiva poderá ser proposta seja peloautor, seja por outro legitimado. Isto, porém, não prejudicará os direitos subjetivos "individuais" deterceiros, isto é, de quem não figurou no processo coletivo a nenhum título (litisconsorte, assistente,etc.). Os efeitos da sentença coletiva operam sempre no terreno da ação coletiva e não necessariamenteno dos interesses individuais. Os particulares se beneficiam das vantagens advindas da sentença, masnão se prejudicam por suas desvantagens (L. 8.078, art. 103, § 3º). Também aqui se observa a regra resiudicata secundum eventum litis.Em se tratando, pois, de ação sobre interesses difusos ou coletivos, "há coisa julgada no plano da açãocivil coletiva, exclusivamente"; em outros termos, "essa coisa julgada no plano da ação coletiva nãointerfere no agir individual", se o particular interessado não chegou a figurar no processo, nos termosdo art. 94 c/c o art. 103, § 2º, do CDC. 46Em resumo, a relação entre a coisa julgada na ação coletiva e os interesses individuais dos membros dacoletividade representada na causa pode ser assim sintetizada:

Page 19: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 157 a) se a ação coletiva é rejeitada, seja por insuficiência de prova ou não, os particulares não serãoalcançados pela coisa julgada que se manifestará apenas entre os legitimados para a ação coletiva;poderão os particulares exercitar suas ações individuais para buscar ressarcimento para os danospessoalmente suportados (L. 8.078, art. 103, § 3º);b) se a ação coletiva é julgada "procedente", os particulares poderão valerse da "coisa julgada",ficando dispensados de nova ação individual condenatória; apenas terão de liquidar o montante de seusprejuízos individuais em procedimento de "liquidação de sentença" (L. 8.078, arts. 97 e 100). Aexemplo do que se passa com a sentença penal condenatória, também a sentença de procedência daação civil coletiva representa para as vítimas uma coisa julgada acerca da causa petendi da pretensãoindenizatória. 47 Dáse o "transporte, à ação individual, da sentença coletiva favorável", ampliando alei "o objeto da ação coletiva" para nele incluir a indenização de danos sofridos individualmente. 48Há um caso, porém, em que os benefícios da coisa julgada erga omnes deixam de operar. É o que sepassa com a vítima do dano comum que, diante da ação coletiva, se abstém de suspender sua açãoindividual nos trinta dias seguintes à ciência da causa comum. A concorrência entre ação coletiva eações individuais não é vedada pela lei. Mas a pessoa que quiser se beneficiar dos efeitos da coisajulgada da ação coletiva terá de requerer, oportunamente, a suspensão da demanda individual (CDC,art. 104).

10. A ação coletiva e a litispendência em relação às ações individuais

Coisa julgada e litispendência, como restrição legal a repetição de ações, são fenômenos processuaisque se assentam nos mesmos pressupostos, ou seja: buscase impedir que entre as mesmas partes serepita a mesma discussão em juízo. Assim, prevê o art. 267, V, do CPC, que se dará a extinção doprocesso sem julgamento do mérito quando se verificado a litispendência ou a coisa julgada. E o art.301 completa a disposição restritiva, proclamando que se verifica a litispendência ou a coisa julgada"quando se reproduz ação anteriormente ajuizada" (art. 301, § 1º).A diferença entre os dois impedimentos (pois ambos são pressupostos processuais negativos) situaseapenas no estágio em que se encontra o processo anterior: haverá exceção de litispendência quando anova ação repetir ação ainda em curso; e coisa julgada, quando renovar (§ 3º) ação já decidida porsentença de que não mais caiba recurso.Se a razão de ser da exceção processual de litispendência é a mesma da exceção da coisa julgada, e sea lei nega a configuração da última entre a ação coletiva e as ações individuais, tanto que estas podemser livremente manejadas mesmo depois de a improcedência da primeira passar em julgado, não sepode imaginar que pela simples pendência de uma ação coletiva se possa inibir o indivíduo de manejara ação de defesa de seu interesse singular.

Page 20: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

158 RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL Correta, nessa ordem de idéias, a jurisprudência do STJ, que afirma: "Não há litispendência entre aACP e as ações individuais", circunstância que não se altera nem mesmo quando se tenha deferidoliminar na ação coletiva, beneficiando a pretensão deduzida na ação individual pois "continua a existiro legítimo interesse processual dos autores". 49 Do mesmo teor foram os precedentes dos REsp nºs131.047/PR e 126.229/RS, julgados em 15.09.1997. 50 Todos esses arestos cuidaram de demandascoletivas sobre direitos individuais homogêneos: correção monetária de depósitos do FGTS.Embora a primeira parte do art. 104 do CDC reconheça, expressamente, a inocorrência delitispendência apenas nos casos dos incisos I e II do parágrafo único do art. 81 isto é, em ação sobredireitos difusos e coletivos , o certo é que a interpretação sistemática de todo o conteúdo dodispositivo legal autoriza a conclusão lógica de que nenhum tipo de ação coletiva inibe, porlitispendência, as ações individuais. 51Com efeito, o referido art. 104 do CDC prevê, in fine, que o autor da ação individual que não requerersua suspensão, diante da concorrência de ação coletiva, perderá o direito de beneficiarse do eventualefeito benéfico da coisa julgada erga omnes, quando cabível. Logo, se se admite a hipótese de o autorda ação individual não requerer sua suspensão é evidente que, sem tal requerimento será viável o seuprosseguimento, não obstante o curso paralelo da ação coletiva. Afastada, portanto, se revela oimpedimento da litispendência também no campo das ações coletivas pertinentes a interessesindividuais homogêneos, no regime do art. 104 do CDC.Não me parece que seja diferente a situação de prejudicado individual por fato tratado em ação dedefesa de direitos difusos ou coletivos daquela configurada em ação de defesa de direitos individuaishomogêneos. Para ADA PELLEGRINI GRINOVER, não existirá litispendência no primeiro casoporque o objeto da ação proposta pela coletividade seria diverso daquele perseguido pelo indivíduo.Nas ações coletivas relativas a direitos individuais homogêneos o pedido de cada indivíduo já estariaincluído no todo da ação coletiva. Darseia uma identidade de partes, sujeitos e objeto, embora ovolume do pedido fosse maior na ação coletiva do que na individual. Daí reconhecer a ilustreprocessualista a presença de uma espécie de continência que forçaria a paralisação das açõesindividuais e sua reunião com a coletiva, ou pelo menos sua obrigatória suspensão, em virtude deprejudicialidade, para aguardar a solução da causa coletiva, tal como dispõem as regras gerais do CPC.52

A meu ver, porém, não se deve analisar a litispendência ou a continência, in casu, segundo regras eprincípios do CPC (art. 265, IV, a, do CPC). Desde que a lei especial criou um regime próprio para acoisa julgada e a litispendência, é nas regras próprias desse sistema especial que o problema terá de serenfrentado e solucionado.E no texto do art. 104 do CDC, que repele a litispendência entre as ações coletivas e singulares, nadahá que discrimine as causas de direitos individuais homogêneos das relativas a direitos difusoscoletivos. Ao contrário, tudo revela que a negativa legal de litispendência é geral. E que a suspensãoeventual de ações individuais ou sua reunião com a coletiva, são questões postas à iniciativa apenas daparte. Ela será, pois, o juiz da conveniência de suspender, ou não, a demanda individualmente aforada.

Page 21: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r

RDC Nº 9 JanFev/2001 ASSUNTO ESPECIAL 159 Naturalmente, a pessoa que deu seqüência à sua demanda e que se submeteu à coisa julgada formadapor força de sua ação individual não poderá, no caso dessa, serlhe contrária, buscar abrigo na coisajulgada coletiva. Ele, para tanto, no regime do CDC, teria de abdicar da autonomia de sua açãoindividual, paralisandoa para aguardar a sentença da ação coletiva, conforme dispõe o art. 104. Se nãoo fez, assumiu o risco de ficar fora da coisa julgada erga omnes do pleito coletivo.

11. Conclusões

Enquanto manejadas e julgadas dentro de suas relevantes finalidades e com respeito às importantesmatérias que lhes são pertinentes, as ações coletivas realizam indiscutível e notável missão cívica.Fora, porém, do âmbito dos interesses coletivos que tenham realmente sido tutelados pelo direitopositivo, o emprego desse importante remédio processual tornase incômodo e inconveniente,apresentandose como verdadeiro abuso de direito, que convém reprimir com energia, para prestígiodo próprio instituto jurídicoprocessual.

Page 22: A s s u n t o E s p e c i a l D o u t r i n a s...D e i ns t r um e nt o c onc e bi do, c om e xc l us i vi da de , pa r a pr opi c i a r o e xe r c í c i o i ndi vi dua l do di r