a resistência uetacá

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1 A Resistência Uetacá Em um primeiro momento de recolha de alguns vestígios de povos antepassados, resolvi apresentar aqui a figura de um povo, nem sempre difundida, que não cedeu aos processos de colonização. Quando estudamos História do Brasil na escola, nem sempre aprendemos que o processo de invasão e colonização não foi um processo pacífico e, por outro lado, também não somos levados ao conhecimento de que alguns povos nunca admitiram contato com o estrangeiro europeu, e por isso foram caracterizados como bárbaros e ferozes. Isto é o que se deixa atestar pela descrição de Jean de Léry: um calvinista francês que, tendo vindo ao Brasil e vivido entre os Tupinambás no litoral do estado que hoje chamamos Rio de Janeiro, região do Rio Guanabara para os Tupinambás, escreveu-nos um relato de sua viagem e sua estadia de um ano entre os Tupinambás. Ele esteve no Brasil em 1557, e publicou seu livro Viagem à Terra do Brasil em 1578 na França, livro que foi reeditado por Paul Gaffarel na França em 1878. Aproveito a oportunidade para registrar meu sincero agradecimento à Biblioteca do Colégio Estadual Santa Bernadete, que foi muito gentil em ceder-me um exemplar do livro de Léry para a minha pesquisa. Os Uetacá, que viviam entre às margens do Rio Paraíba do Sul e do Rio Macaé, são descri tos por Jean de Léry como “índios tão ferozes que não podem viver em paz com os outros e se acham sempre em guerra aberta, não só contra os vizinhos, mas ainda contra todos os estrangeiros” (LÉRY, 1967 [1578,1878], p. 70). Vale salientar que, nesta época (1557) os Margaiá (ou Tupiniquins) já haviam se aliado aos Potugueses, e os Tupinambás (que chamavam os portugueses de Perô-angaipá, que significa portugueses maus,, ruins, desalmados, cruéis) tinham se tornado aliados dos Franceses. Jean de Léry não atenta para a situação circunstancial dos Uetacá quando os caracteriza como ferozes e fala de sua impossibilidade de viver em paz com seus vizinhos. Não podemos garantir, mas é possível conjecturar que a inimizade com os vizinhos (se é que havia antes da invasão e colonização européia) pode muito bem ter se acirrado em função das alianças estabelecidas pelos Tupinambás e pelos Margaiás. Sua ferocidade é certamente muito mais um signo de resistência do que de barbarismo selvagem, como Léry apresentou. Jean de Léry acrescenta, de maneira mais detalhada ainda, ampliando sua descrição, que:

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História

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Page 1: A Resistência Uetacá

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A Resistência Uetacá

Em um primeiro momento de recolha de alguns vestígios de povos antepassados,

resolvi apresentar aqui a figura de um povo, nem sempre difundida, que não cedeu aos

processos de colonização. Quando estudamos História do Brasil na escola, nem sempre

aprendemos que o processo de invasão e colonização não foi um processo pacífico e,

por outro lado, também não somos levados ao conhecimento de que alguns povos nunca

admitiram contato com o estrangeiro europeu, e por isso foram caracterizados como

bárbaros e ferozes. Isto é o que se deixa atestar pela descrição de Jean de Léry: um

calvinista francês que, tendo vindo ao Brasil e vivido entre os Tupinambás no litoral do

estado que hoje chamamos Rio de Janeiro, região do Rio Guanabara para os

Tupinambás, escreveu-nos um relato de sua viagem e sua estadia de um ano entre os

Tupinambás. Ele esteve no Brasil em 1557, e publicou seu livro Viagem à Terra do

Brasil em 1578 na França, livro que foi reeditado por Paul Gaffarel na França em 1878.

Aproveito a oportunidade para registrar meu sincero agradecimento à Biblioteca do

Colégio Estadual Santa Bernadete, que foi muito gentil em ceder-me um exemplar do

livro de Léry para a minha pesquisa.

Os Uetacá, que viviam entre às margens do Rio Paraíba do Sul e do Rio Macaé,

são descritos por Jean de Léry como “índios tão ferozes que não podem viver em paz

com os outros e se acham sempre em guerra aberta, não só contra os vizinhos, mas

ainda contra todos os estrangeiros” (LÉRY, 1967 [1578,1878], p. 70). Vale salientar

que, nesta época (1557) os Margaiá (ou Tupiniquins) já haviam se aliado aos

Potugueses, e os Tupinambás (que chamavam os portugueses de Perô-angaipá, que

significa portugueses maus,, ruins, desalmados, cruéis) tinham se tornado aliados dos

Franceses. Jean de Léry não atenta para a situação circunstancial dos Uetacá quando os

caracteriza como ferozes e fala de sua impossibilidade de viver em paz com seus

vizinhos. Não podemos garantir, mas é possível conjecturar que a inimizade com os

vizinhos (se é que havia antes da invasão e colonização européia) pode muito bem ter se

acirrado em função das alianças estabelecidas pelos Tupinambás e pelos Margaiás. Sua

ferocidade é certamente muito mais um signo de resistência do que de barbarismo

selvagem, como Léry apresentou.

Jean de Léry acrescenta, de maneira mais detalhada ainda, ampliando sua

descrição, que:

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Quando apertados e perseguidos por seus inimigos, os quais entretanto, nunca os

puderam vencer ou domar, correm tão rápidos a pé que não só escapam da morte como

apanham na carreira certos animais silvestres, veados e corsas. Andam nus como todos

os brasileiros e usam cabelos compridos e pendentes até as nádegas (LÉRY, 1967

[1578,1878], p. 70).

Jean de Léry diz serem os “Uetacá invencíveis nessa região” e também

praticantes da antropofagia, e acrescenta ainda que eram “donos de uma linguagem que

seus vizinhos não entendem” (LÉRY, 1967, p. 70). Léry procura em sua descrição

retratar os Uetacá como “os mais cruéis e terríveis” que se podiam encontrar por essas

terras. Chama-os de “diabólicos” e caracteriza sua antropofagia dizendo que são

“comedores de carne humana, como cães e lobos” (LÉRY, 1967, p. 70), parecendo

também referir-se aos Uetacá quando mais à frente em uma comparação refere-se “à

maneira dos selvagens guaitaká[1], que mastigam e engolem a carne crua” (LÉRY,

1967, p. 82). É preciso, porém, colocar entre parênteses essa descrição, uma vez que,

diante das circunstâncias do início da colonização, isso que está sendo chamado de

conduta terrível, diabólica, cruel, animalesca e indomável, pode ser muito mais, na

verdade, um signo da resistência dos Uetacá, que não se deixaram enganar e dominar,

ainda que a antropofagia ritual seja um costume dos povos nativos dessas nossas terras

ancestrais, a maneira grotesca apresentada pelos Uetacá pode exprimir uma revolta

violenta diante da situação em que se encontram.

Em notas do livro de Jean de Léry, Plínio Ayrosa caracteriza os Uetacá como

um povo que foi considerado famoso “pela rusticidade de costumes e pela crueldade

com que tratavam seus inimigos” (AYROSA, in LÉRY, 1967, p. 70, nota 118),

insistindo que a conduta que tornou os Uetacá famosos entre os invasores era aquela

que estes chamavam de “crueldade”. Em que sentido histórico-contextual, porém, esta

“crueldade” pôde ser caracterizada não é algo que venha à tona na mente dos invasores.

Parece que nunca conseguiram se questionar: Por que os Uetacá estão se mostrando

perante nós tão cruelmente? Foram eles sempre assim? Será que essa crueldade não era

também uma conduta circunstancial da experiência de vida dos Uetacá? Certamente

essa pergunta tende a ficar sem resposta. Ninguém sabia sua língua, ao que parece, pela

descrição de Léry, nem mesmo os povos seus vizinhos. Como conquistar a autêntica

auto-interpretação de sua vida fática sem poder comunicar-se com eles? Eles não

permitiram aproximação estranha. Os motivos ficaram calados no silêncio histórico

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sobre seus motivos. Será possível pelo menos pensa-los de outro modo, isto é, como

signo de resistência? Designar a experiência dos Uetacá como sinal de resistência é uma

outra possibilidade de auto-interpretação de nossa historicidade ancestral.

Plínio Ayrosa oferece-nos outras indicações a respeito dos Uetacá. Diz que eles

“eram de avantajada estatura e muito destros no manejo do arco” e que, “do ponto de

vista linguístico, ao lado de várias outras tribos, são incluídos no grupo – Línguas

Isoladas” (AYROSA, in LÉRY, 1967, n. 118, p. 70).

REFERÊNCIAS

LÉRY, Jean de [1967 (1578, 1878)]. Viagem à terra do Brasil, trad. Sérgio Millet. 4 ed.

São Paulo: Martins, 1967.