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A Representatividade da Personagem Emília... - Silva Revista Diálogos set. / out. 2018 N.º 20 170 A REPRESENTATIVIDADE DA PERSONAGEM EMÍLIA NA PRODUÇÃO LOBATIANA Marta Maria da Silva 1 d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p170 Resumo: Esta pesquisa tem como finalidade a de realizar um estudo bibliográfico sobre a importância da personagem Emília na obra de Monteiro Lobato. Inicialmente traremos um resumo da vida e obra do autor, que iniciou sua carreira como escritor, foi um importante editor, mas que se consagrou quando resolveu escrever para o público infantil que estava necessitado de uma literatura diferenciada. Foi ele, o grande responsável pelas transformações ocorridas na literatura infantil no Brasil por volta do século XX. Abordaremos ainda, acerca do complexo universo fictício lobatiano, tendo em vista a relevância de conhecer e buscar entender o papel de sua personagem principal para que haja uma possível compreensão da obra. Através de Emília, Lobato transmitiu aos seus leitores todas as suas inquietações enquanto cidadão que sonhava com um país justo, mostrando o preconceito e as injustiças que existia e ainda existem na nossa sociedade. Apresentou ainda conceitos importantes sobre verdade e vida e repassou conhecimentos científicos e filosóficos. O estudo está fundamentado nas reflexões de Coelho (2000), Lajolo (2000), Nunes (2000), Saraiva (2001), Silva (2009), dentre outros. Palavras - chave: Monteiro Lobato. Literatura infantil. Emília. Abstract: This research aims to carry out a bibliographic study on a subject of the character Emília in the work of Monteiro Lobato. 1 Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL). Professora/monitora de Língua Portuguesa da Secretaria Estadual de Educação de Alagoas (SEDUC/AL).

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A Representatividade da Personagem Emília... - Silva

Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 170

A REPRESENTATIVIDADE DA PERSONAGEM EMÍLIA NA

PRODUÇÃO LOBATIANA

Marta Maria da Silva1

d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p170

Resumo: Esta pesquisa tem como finalidade a de realizar um estudo

bibliográfico sobre a importância da personagem Emília na obra de

Monteiro Lobato. Inicialmente traremos um resumo da vida e obra do

autor, que iniciou sua carreira como escritor, foi um importante editor,

mas que se consagrou quando resolveu escrever para o público infantil

que estava necessitado de uma literatura diferenciada. Foi ele, o grande

responsável pelas transformações ocorridas na literatura infantil no

Brasil por volta do século XX. Abordaremos ainda, acerca do complexo

universo fictício lobatiano, tendo em vista a relevância de conhecer e

buscar entender o papel de sua personagem principal para que haja uma

possível compreensão da obra. Através de Emília, Lobato transmitiu

aos seus leitores todas as suas inquietações enquanto cidadão que

sonhava com um país justo, mostrando o preconceito e as injustiças que

existia e ainda existem na nossa sociedade. Apresentou ainda conceitos

importantes sobre verdade e vida e repassou conhecimentos científicos

e filosóficos. O estudo está fundamentado nas reflexões de Coelho

(2000), Lajolo (2000), Nunes (2000), Saraiva (2001), Silva (2009),

dentre outros.

Palavras - chave: Monteiro Lobato. Literatura infantil. Emília.

Abstract: This research aims to carry out a bibliographic study on a

subject of the character Emília in the work of Monteiro Lobato.

1 Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL).

Professora/monitora de Língua Portuguesa da Secretaria Estadual de Educação de

Alagoas (SEDUC/AL).

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Initially, the company began its career as a writer, was an important

publisher, but that consecrated when it solved for the infantile public

that was needed of a differentiated literature. He was the one

responsible for the transformations that occurred in children's literature

in Brazil around the twentieth century. We will also discuss the

complex fictional Lobatian universe, considering a relevance of

knowing and seeking, understands the role of its main character so that

there is a possible understanding of the work. Through Emilia, Lobato

transmitted to his readers all as his anxieties as a citizen who dreamed

of a fair country, showing the prejudice and injustices that existed and

still exist in our society. He also presented important concepts about

truth and life and passed on scientific and philosophical knowledge.

Theoretically this study is based on the reflections of Coelho (2000),

Lajolo (2000), Nunes (2000), Saraiva (2001), Silva (2009), among

others.

Keywords: Monteiro Lobato. Children's literature. Emily.

1 Considerações iniciais

O presente estudo bibliográfico discute sobre a

representatividade da personagem Emília na obra de Monteiro Lobato.

Objetiva-se articular variados olhares que atribuem ênfase à

importância da protagonista do Sítio do Picapau Amarelo com a

finalidade de mostrar a visão da crítica literária em relação a boneca e a

sua influência como uma personagem completa, que mais parecia gente.

Monteiro Lobato, o criador de Emília, foi um grande

contribuinte para o desenvolvimento da literatura no Brasil. Começou

como escritor, depois como editor e após um fracasso em sua carreira

editorial volta a escrever, dedicando-se a literatura infantil onde se

consagrou juntamente com sua encantadora boneca Emília.

A motivação para o estudo dessa personagem deve-se ao fato de

sua relevância para se entender o universo fictício lobatiano. Através de

Emília e de suas aventuras somos levados a refletir o nosso papel

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enquanto cidadãos. A seu modo, a boneca tenta encontrar soluções para

problemas e explicar quase tudo de forma convincente, falando tudo o

que pensa com uma coragem surpreendente que falta em muitos de nós.

A pesquisa está estruturada em três tópicos. No primeiro,

mostra-se um pouco da trajetória de vida e obra de Lobato, sob a

justificativa de que o conhecimento dos dados biográficos do escritor é

de grande relevância para uma melhor compreensão de sua produção

literária. Mostra-se, ainda, de que forma surgiu o Sítio do Picapau

Amarelo e as principais características de seus moradores, destacando a

importância de Emília, sua mais encantadora personagem.

No segundo tópico constam as definições e conceitos de

literatura infantil e juvenil, destacando suas principais características.

Será feito uma abordagem desde o surgimento do gênero voltado para a

criança e o jovem na Europa por volta do século XVII até a sua chegada

ao Brasil nos fins do século XIX. Apresentaremos ainda, o panorama da

literatura infantil no Brasil, dando ênfase ao século XX, momento em

que Monteiro Lobato inaugura uma nova trilha nos caminhos da

produção literária infantil.

Por fim, no último tópico, trazem-se algumas considerações

sobre dois estudos que tratam de Emília, personagem central desta

pesquisa, com a finalidade de mostrar como a crítica literária vem

atribuindo olhares importantes sobre a boneca e a ascendência que ela

exerce sobre a sociedade enquanto protagonista da narrativa.

A pesquisa está fundamentada nas reflexões teóricas dos

seguintes estudiosos: Coelho (2000) no que diz respeito a compreensão

de literatura infantil como arte e no que se refere a importância de

conhecer Emília para compreender o universo de Lobato, Lajolo (2000)

quanto aos dados biográficos e o percurso literário de Lobato, Nunes

(2000) no que se trata das características das personagens centrais da

obra e Silva (2009) que aborda acerca do surgimento do Sítio do

Picapau Amarelo.

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2 A trajetória lobatiana

Visando discorrer sobre a trajetória de vida de Monteiro

Lobato¹, este item parte do princípio da presença marcante do escritor

na primeira metade do século XX. Apontando, para tanto, as

particularidades que o consagraram na literatura brasileira nas interfaces

entre literatura, cultura, sociedade e, com bastante ênfase, em estudos

educacionais em geral. Sob justificativa de que o conhecimento desses

dados biográficos possibilita uma melhor compreensão de sua produção

literária.

Brasileiro, homem estudioso, inquieto, que apostou em

múltiplos empreendimentos, e, com uma vida nada monótona, Lobato

foi o grande responsável pela revolução ocorrida na literatura infantil no

cenário nacional. Nasceu na cidade de Taubaté, em 18 de abril de 1882,

o filho primogênito de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia

Augusta Monteiro Lobato. Foi registrado com o nome de José Renato,

tratado pela família de Juca, mas, por volta dos onze anos, já

demostrando toda a ousadia daquele que viria a ser o famoso escritor e

editor Monteiro Lobato, opta por se chamar José Bento, cujas iniciais

estão gravadas na bengala do pai tão desejada por Juca. Sua infância foi

comum a de um menino do interior paulista, cheia de brincadeiras e

diversão, viveu na fazenda Santa Maria em Ribeirão das Almas com os

pais e as irmãs menores, Teca e Judite.

O menino Juca foi alfabetizado em casa pela mãe e, desde cedo,

já demonstra o encantamento pelos livros da biblioteca, nas visitas à

casa do avô materno José Francisco Monteiro, visconde de Tremembé.

Somente mais tarde passa a frequentar as poucas escolas de Taubaté: o

Colégio Americano, o Colégio Paulista e por último o Colégio São

João Evangelista no qual parece terminada a sua vida escolar em

colégios do interior paulista. Aproxima-se, o final do século XIX e Juca

agora parte para São Paulo estudar no Instituto Ciências e Letras da

capital, preparando-se para ingressar no curso de direito. Uma

reprovação na disciplina de Português o obriga a retornar para Taubaté

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e para o Colégio Paulista onde estreia auxiliando no jornalzinho infantil

chamado O Guarany.

Em 1896, retorna a São Paulo, agora aprovado e matriculado no

Instituto ciências e Letras onde fica por três anos preparando-se para o

ensino superior. Nas horas vagas, continua colaborando em jornais

estudantis até que cria seu próprio jornal. Nos dois últimos anos do

século XIX ocorre uma grande mudança em sua vida; com a morte do

pai em 1898 e da mãe no ano seguinte, fica sob a responsabilidade do

avô, o visconde de Tremembé que tinha o obrigado a ingressar na

Faculdade de Direito, curso tradicional para os jovens de sua classe

social naquele tempo. No entanto, o desinteresse do jovem pelos

estudos das leis era perceptível, mas, em obediência à ordem do avô,

enfrentava o curso de direito, apesar de sua vocação pelas artes e pela

literatura.

Conforme Marisa Lajolo (2000), no período de faculdade,

Monteiro Lobato conviveu com um grupo de colegas e amigos que o

aproximava do seu lado artístico. Naquele início de século a literatura

estava presente nas conversas dos jovens universitários. Compartilhou

uma república com Ricardo Gonçalves e Godofredo Rangel à qual

batizaram de “O Minarete”. “No Minarete, muita brincadeira, muita

literatura, muita literatice”. (LAJOLO, 2000, p. 17). O percurso

universitário se encerra com um escandaloso discurso durante a festa de

formatura, elaborado por Ricardo Gonçalves e pela irreverência de

Monteiro Lobato, o que leva autoridades a retirarem-se da festa

causando uma intensa comemoração por parte daqueles jovens.

Após a aquisição do título de doutor, Monteiro Lobato volta

para sua cidade natal onde é recebido com festa, mais não demora muito

para que o jovem doutor sinta-se entediado com a vida parada da cidade

pequena. Seus planos agora envolvem uma jovem professora que

conheceu em São Paulo, Maria Pureza da Natividade, neta de seu velho

professor, o doutor Quirino. Ficam noivos e, no auge da paixão,

Monteiro Lobato proclama em versos de poemas toda a sua admiração

pela amada. Desejando casar-se e formar uma família, o jovem

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promotor pensa em assumir um cargo público, disputa uma promotoria

numa das comarcas da zona, mas não obtém êxito.

Em 1907, Monteiro Lobato tem de contentar-se com uma

nomeação para Areias, cidadezinha (como Taubaté)

também do Vale do Parnaíba, onde escorre uma vida

morna de cidadezinha qualquer. O jovem promotor

transfere-se para Areias, onde fica na expectativa de

remoção que jamais chega. Areias transforma-se em

modelo de Oblívion, de Itaoca e de todas as cidades

mortas cuja imagem percorre a obra do escritor, dando

inclusive nome ao livro de contos que publica em 1919.

(LAJOLO, 2000, p. 20)

Entediado na pequena cidade de Areias, durante as horas vagas,

Monteiro Lobato escreve cartas de amor para a noiva, compartilha

comentários de leituras com o amigo Rangel e ainda tem tempo para

escrever alguns contos, posteriormente publicados. Segundo Silva

(2009, p. 102) “A carreira jurídica não o seduzia, sobretudo no difícil

início”. O então promotor doutor casa-se com Maria Pureza, em 1908,

em São Paulo, onde reside a família da noiva, retornando para Areias

apenas alguns meses depois. Paralelamente ao cargo que exercia,

Monteiro Lobato continua escrevendo para vários jornais e revistas e

ainda muito insatisfeito planeja uma mudança de vida radical.

De acordo com Lajolo (2000), no ano de 1990, inicia-se mais

uma das grandes mudanças na vida de Lobato. Com a morte do

visconde de Tremembé, seu avô, herda uma imensidão de terras de seu

avô e outras tantas de seu pai, o que o torna um grande fazendeiro. É

para a fazenda Buquira, herança deixada pelo avô que se muda com a

esposa e os dois filhos, a primogênita Marta (1909) e Edgar (1910), a

família ainda viria a aumentar com a chegada de Guilherme (1912) e

Ruth (1916). Seu principal objetivo era tornar suas terras rentáveis,

visto que esta estava exaurida, mas as suas tentativas acabam frustradas

por uma política econômica que, segundo os fazendeiros paulistas, não

beneficiava a lavoura. Insatisfeito com a má situação financeira, em

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1914, Monteiro Lobato publica uma carta intitulada “Velha Praga” no

jornal O Estado de São Paulo, onde faz uma crítica ao desastroso

costume do homem do campo de fazer queimadas, impedindo o

desenvolvimento da economia agrícola na região.

Essa carta é uma das explicações para o surgimento do caboclo

Jeca Tatu, personagem-símbolo da obra lobatiana. O protesto teve

grande repercussão, tornando Lobato um homem conhecido e muito

solicitado para escrever artigos em revistas e jornais. Posteriormente,

escreve outro artigo no mesmo tom impiedoso, intitulado “Urupês”,

onde na sua voz ecoa toda a insatisfação dos fazendeiros paulistas que

se julgavam prejudicados pela política em vigor. Conforme Lajolo

(2000, p. 26), “embora relativamente famoso e muito requisitado para

conferências e artigos, ou talvez exatamente por causa disso, Monteiro

Lobato está cada vez mais insatisfeito”, tais acontecimentos não são o

suficiente para acabar com o tédio da vida em Buquira. Inicia-se então

outra grande mudança na vida de Lobato, vende sua fazenda em 1917 e

vai viver em São Paulo com a família. De acordo com Vera Maria

Tieztmann Silva (2009 p. 101) “O gosto pelas letras e o desencanto com

a fazenda levaram o jovem escritor e sua família para São Paulo e para

os livros, sua nova paixão”. Em maio de 1918 dá um passo decisivo na

sua transformação de escritor para escritor-editor, com a compra da

prestigiosa Revista do Brasil, inaugurando com o livro de contos

“Urupês”, lançado com sucesso no mesmo ano.

A colaboração de Monteiro Lobato com a imprensa é recorrente

e os seus planos de lucrar com seus livros se fortalecem com o sucesso

de um livro escrito a partir de uma pesquisa sobre o Saci-Pererê para o

jornal O Estado de S. Paulo. Ao lançamento de Urupês sucedem-se

outros lançamentos com sucesso, seus e de seus amigos Godofredo

Rangel, Ricardo Gonçalves e Waldomiro Silveira. Para Lajolo (2000),

são notórias as mudanças vividas por Monteiro Lobato, “Foi primeiro

aprendiz de escritor, colaborador de jornaizinhos estudantis e

insignificantes. Depois escritor de verdade, colaborador de jornais e

revistas de prestígio. Depois escritor-editor de si mesmo, e finalmente

editor de obras alheias”. (p. 33). A carreira de Lobato como editor o

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afasta de vez da vida interiorana transformando-o em um cidadão

urbano, e essa nova realidade o levou em alguns momentos a um

sentimento nostálgico, no qual sentia saudades de quando lhe sobrava

mais tempo para a literatura.

Durante alguns anos a carreira editorial de Monteiro Lobato vai

muito bem, mas devido à grande crise dos anos 20, paulistas veem um

grande tropeço. Mesmo com a falência da Gráfica Editora Monteiro

Lobato, ele não desiste e, em 1925, muda-se para o Rio de Janeiro e, em

sociedade com Octales Marcondes, funda a Companhia Editorial

Nacional, a primeira das grandes editoras modernas brasileiras. Foi aí

então que surgiu sua maravilhosa invenção: O Sítio do Pica-pau

Amarelo, que começou a circular em 1921, ano em que foi publicado A

menina do narizinho arrebitado. Com a essa criação que Lobato

inaugura a literatura infantil brasileira, com personagens inesquecíveis

como relata Lajolo:

A história de Dona Benta, aquela velha de mais de

sessenta anos, óculos de ouro no nariz, que mora na

companhia da mais encantadora das netas, mergulha na

eternidade. Junto com ela, tia Anastácia, Emília, Pedrinho

e Visconde insuflam vida nova às personagens com que

contracenam, imprimindo dimensão fantástica ao cenário

brasileiro do sítio. Ao desdobrar-se nas aventuras

contadas nos livros que até o fim da vida Monteiro Lobato

publicou aqui e na Argentina, o Sítio do Pica-pau

Amarelo marca a imaginação de gerações e gerações de

brasileiros. (2000, p. 59-60)

Essas personagens seduziram o público infantil e ainda

representam a face de Monteiro Lobato. O seu interesse agora era,

especificamente, a produção de obras infantis, apostando alto na

fantasia e em uma linguagem voltada para os pequenos leitores. Com o

enorme sucesso de seu lançamento para o público infantil, Lobato

concebe a relevância da escola e do estado na propagação da leitura.

Lajolo (2000. p, 61) ainda assinala que “Particularmente nas obras

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produzidas nos anos 30, o sítio se transforma numa grande escola, onde

os leitores aprendem desde gramática e aritmética até geologia e o bê-á-

bá de uma política nacionalista de petróleo”. Pensando nisso, mandou

distribuir gratuitamente quinhentos livros nas escolas públicas paulistas,

levando, posteriormente, o governador paulista Washington Luís a fazer

uma compra de trinta mil exemplares.

Silva (2009) afirma que o grande diferencial da literatura infantil

lobatiana é o registro da linguagem, onde o coloquialismo predomina

em seu discurso, como marca dominante. Lajolo (2000, p, 62) lembra

que: “[...] o narrador de Monteiro Lobato manifesta o gosto moderno

pela oralidade, pelo despojamento sintático, pela criação vocabular”.

Sua intenção era a aproximação com o leitor e com esse perfil moderno

conquistou a fidelidade de seu público. Silva (2009. p, 104) aborda que:

A grande revolução operada por Monteiro Lobato na

literatura infantil brasileira decorre de sua postura

inovadora, da relação de respeito que tinha com seu

jovem leitor. Ele constata aquilo que os demais autores

ainda não tinham percebido: a criança é um ser inteligente

e capaz de juízos críticos. Deste olhar sobre o leitor

partem as inovações propostas por Lobato e que

inauguraram uma nova trilha nos caminhos da produção

literária orientada para a criança e o jovem.

Lobato fortalece cada vez mais o seu perfil revolucionário e

moderno, descobrindo na criança o seu público ideal. Suas obras

infantis constituem uma série, na qual reaparecem os personagens e

espaços, no qual diferentes histórias se referem à outra. Tal

característica foi de fundamental importância para atrair seus leitores.

Comprovando o mérito do seu conceito de série, Monteiro Lobato

deixou de fora da obra completa organizada por ele em 1945 e 1946 a

obra O Garimpeiro do Rio das Garças, isso se explica porque talvez “...

a história não transcorre no sítio e nenhum habitante de Picapau

Amarelo participa dela”. (LAJOLO, 2000 p. 63)

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No ano de 1926, Monteiro Lobato concorre a uma vaga na

Academia Brasileira de Letras e, por falta de entusiasmo, é derrotado.

No ano seguinte, o rumo é os Estados Unidos, muda-se com a família

para Nova York exercendo o cargo de adido comercial brasileiro.

Visando o mercado norte americano, levava consigo o folhetim O

choque de raças ou O presidente negro com o subtítulo Romance

americano do ano de 1928, uma obra polêmica por tratar do preconceito

racial, tema pouco discutido na época.

Lobato se encanta com o progresso americano e sonha com um

Brasil desenvolvido, declarava toda a sua admiração nas

correspondências enviadas aos amigos brasileiros. A mesma autora

descreve que a estada de Lobato em Nova Iorque foi marcada por vários

acontecimentos, o casamento da filha Marta e a doença grave de um dos

filhos não diminuíram o seu fascínio pelos Estados Unidos. Seus planos

incluíam a criação de uma empresa brasileira utilizando técnicas

modernas para converter ferro em aço.

Ele joga na Bolsa de Valores de Nova Iorque e com ela

quebra quando, em 1929, estão no ar os primeiros

sintomas da crise mundial. A mesma crise torna precária a

estabilidade do governo de Washington Luís e

consequentemente, a permanência de Monteiro Lobato no

cargo de confiança que ocupava no exterior. (LAJOLO,

2000, p. 73).

Após perder o cargo no exterior e todo dinheiro que possuía,

Monteiro Lobato retorna ao Brasil onde trabalha duro na revisão de

alguns de seus textos e na criação de outras histórias do sítio. Contudo,

o seu sonho de ver um desenvolvimento no Brasil a partir do

beneficiamento do minério de ferro e da extração do petróleo continua

vivo (ibidem). Mas o projeto e as tentativas de Lobato de convencer as

autoridades sobre a importância desse empreendimento são um

fracasso, o que levou o escritor a publicar no ano de 1936 O escândalo

do petróleo, obra onde ele expõe as dificuldades que enfrentou com o

seu projeto frente a política governamental. Em uma carta dirigida ao

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presidente Getúlio Vargas, Lobato faz uma crítica à política brasileira

de minério, a cada dia a sua convivência com as autoridades torna-se

mais tensa e, em março de 1941, é preso, acontecimento que não

diminui sua coragem de satirizar as autoridades.

Apesar de toda força demonstrada durante o período em que

esteve detido Lobato sai da prisão um homem angustiado e

decepcionado, “... seus dois filhos morrem muito jovens, seu cunhado

suicida-se, sua situação financeira é precária”. (ibidem, p. 78). É em

meio a tantas desilusões que escreve Zé Brasil, seu último texto. Lobato

tornou-se um homem descrente das autoridades brasileiras. Em 1946

vai para a Argentina, onde deposita suas últimas esperanças, juntamente

com alguns amigos, lá ele cria a editora Acteon. Mesmo assim, não se

adapta por lá, sente-se solitário e retorna para o Brasil em 1947.

Monteiro Lobato apresenta reais problemas de saúde, reside no

último andar de um edifício em São Paulo juntamente com a mulher e a

filha, onde recebe a visita de amigos e escreve suas últimas cartas. No

dia 4 de julho de 1948 se encerra a trajetória de vida de Monteiro

Lobato. Como vimos, o escritor teve uma vida marcada por grandes

acontecimentos e transformações como sua carreira política e sua

carreira de editor de sucesso até chegar a sua mais encantadora criação:

Emília, a boneca que encanta leitores de diferentes gerações.

Acreditamos que o conhecimento de tais dados biográficos é de extrema

importância para o entendimento de sua produção.

2.1 O criador do Sítio do Pica-pau Amarelo

É comum entre os que admiram a produção lobatiana, entre eles,

crianças e adultos, certa reverência aquela que foi sua mais conhecida

criação: O Sítio do Picapau Amarelo, por ser considerada uma obra

bem acabada e conhecida do público em geral. Uma das explicações

possíveis sobre a criação desta obra nos vem por intermédio das

considerações de Vera Maria Tieztmann Silva (2009). Segundo ela:

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Uma conversa de fim de tarde em sua editora (lá

acontecia o que hoje se chama happy hour), um caso

contado por um amigo sobre um peixinho que morre

afogado, foi o germe que logo se transformaria no seu

primeiro livro infantil, A menina do narizinho arrebitado

(1921). Esta história, que ele argutamente faz circular nas

escolas, vai-se ampliando com a criação de novos

episódios, e consolidando seu sucesso junto ao seu

público leitor. Lobato embarca nessa aventura, e os títulos

se sucedem. As primeiras histórias ganham sua versão

definitiva como Reinações de Narizinho, em 1931,e, até

meados dos anos 40, as aventuras do Sítio do Picapau

Amarelo se multiplicam e adquirem o status de marco

inaugurador de uma nova literatura para crianças. São

textos que atiçam a imaginação, que instigam o leitor a

pensar, a criticar, a tirar conclusões sobre o mundo a sua

volta. (p. 101-102)

A Menina do Narizinho arrebitado, portanto, foi o pontapé

inicial na carreira de Lobato como escritor de literatura para o público

infantil. Ele sentiu a necessidade de uma adequação para uma maior

compreensão da criança, o que não existia na sua época, onde quase não

existiam obras infantis e as poucas que havia apresentavam uma

linguagem inadequada a compreensão do leitor infantil.

O desejo de produzir para as crianças torna-se cada vez mais

evidente levando o escritor a transferir-se para o gênero infantil. Em

1931, organizou a publicação de várias histórias infantis, lançando

Reinações de Narizinho, onde reuniu as histórias do Sítio já publicadas,

expressando na obra seus projetos culturais básicos.

Conforme Sônia Salomão Khéde (1986) é em Reinações de

Narizinho é que Lobato exibe os traços das personagens centrais de sua

obra: Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde

de Sabugosa, Rabicó, Faz-de-Conta e o Burro falante. Fato que

demonstra sua aguda capacidade criadora na elaboração dos perfis de

seus personagens, uma vez que no decorrer da obra encontramos seres

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que representam a natureza humana, aspectos do maravilhoso entre

outros aspectos.

Desse modo, percebe-se a presença de dois planos: O plano real,

com personagens representados por Dona Benta, Tia Anastácia,

Narizinho e Pedrinho e o plano do maravilhoso com criaturas

fantásticas como a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa, um

sabugo de milho que adquire sabedoria. Os personagens intermediários

da obra são em sua maioria, os animais falantes.

Monteiro Lobato foi um dos poucos autores de seu tempo que

conseguiu levar seu leitor a uma viagem para um mundo fascinante

repleto de sonho e magia. Ele conseguiu resgatar o universo mágico que

existe no universo da criança e as fez sonhar com um mundo que só

existe na fantasia infantil. Assim, ajudou muitas crianças na boa

formação do caráter, uma vez que suas obras além de conter muita

criatividade, retratam o certo e o errado de maneira sutil e delicada para

que a criança consiga interpretar.

Este mundo encantado fica localizado no Sítio de Dona Benta,

uma senhora serena e cheia de simpatia. Cada personagem desse sítio

possui suas virtudes, contudo, o grande encanto da fábula vem da

imaginação e astúcia das crianças: Narizinho e Pedrinho. Personagens

emblemáticos que marcaram diversas gerações de públicos das mais

variadas classes sociais no Brasil.

Sobre esses personagens mágicos que seduziram os leitores

brasileiros de diversas faixas etárias e continuam seduzindo até os dias

atuais, Cassiano Nunes (2000) traz as seguintes apreciações:

Na saga Lobatiana, Narizinho representa a feminilidade

com discrição e encanto. Pedrinho tem caráter forte e é

simpático. Dona Benta une o caminho materno (ser avó é

ser mãe duas vezes) a lição de ética e saber. Tia Nastácia

tem sentimentos igênuos e puros. A boneca Emília

constitui o protesto contínuo, a rebeldia criadora, como o

próprio Lobato seu inventor [...] O Marquês de Rabicó é a

sujeição aos instintos orgânicos. O visconde de sabugosa

tem os lados bom e mau da erudição (p. 23 - 25).

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Monteiro Lobato aposta alto na fantasia, proporcionando às

crianças, seus principais leitores, personagens cujas ações se pautam

pela curiosidade, pela imaginação, pela independência, pelo espírito

crítico e pelo humor. São essas características das personagens de

Lobato que vem assegurando o grande êxito do Sítio do Picapau

Amarelo ao longo das gerações.

O autor anteriormente citado ainda destaca que no Sítio, tudo é

descrito vivamente e de forma rápida, trata-se de um lugar onde a

realidade e a fantasia não se diferenciam. O autor antes de tudo louva a

vida e acredita na inteligência da criança. A rapidez com que as

histórias são narradas e a credibilidade que o escritor ofereceu as

crianças constituem-se nas grandes responsáveis pelo sucesso da obra

até os dias atuais.

Silva (2009) afirma que é na série infantil de Lobato que iremos

encontrar a criança como de fato ela é, “[...] meninos, meninas e

bonecos dotados de vontades e ideias próprias, às vezes obedientes,

outras vezes rebeldes, inquiridores, curiosos (“reinadores”, diria

Lobato), dotados de grande imaginação”. (p. 104). Dessa maneira, ele

foi o primeiro escritor brasileiro a enxergar a criança como ela

realmente é e a constatar a sua inteligência e capacidade de criticidade,

o que os demais autores da época ainda não haviam percebido. A partir

dessa visão sobre o seu leitor, originam-se as inovações propostas por

Lobato, inaugurando uma nova trilha nos caminhos da produção

literária infantil/juvenil.

Como destaca Gregorin Filho (2009) “A contestação e a

irreverência infantis sem barreiras começam a ter espaço e a ser lidas e,

adquirem maior concretude com as ilustrações das personagens do Sítio

do Picapau amarelo” (p. 28). Dessa forma, é possível constatar que

Lobato proporcionou a criança o direito de voz ativa, e isso pode ser

visto na ênfase que é dada à Emília, a boneca de pano que encanta não

só as crianças, mais o público em geral.

As mudanças que Lobato trouxe para a literatura infantil

aconteceram de forma gradual, estabelecendo nesse cenário literário

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uma discussão sobre o papel do homem num mundo em constante

transformação. Mudanças que deram lugar de destaque as vozes de

variados contextos sociais e culturais presentes na formação do povo

brasileiro e, acima de tudo, representaram o imaginário infantil nos

livros, através de imagens e variadas formas de linguagens destinadas

ao público infantil.

Uma das maiores descobertas na obra de Lobato foi unir o

imaginário com o real, demonstrando que o maravilhoso pode ser

vivido por qualquer pessoa, ele torna possível acontecimentos que

normalmente seriam impossíveis de acorrerem no mundo real. Com

relação a esta fusão do real com o maravilhoso nas obras de Lobato,

Coelho (2000) traz as seguintes considerações:

Evidentemente a linguagem que expressava tal fusão foi

elemento fundamental. Fluente, coloquial, objetivo,

despojado e sem retórica ou rodeios, o discurso que

constrói a efabulação de A Menina do Narizinho

Arrebitado é dos que agarram de imediato o pequeno

leitor. Principalmente pelo humor que o impregna. À

medida que os livros vão-se sucedendo, mais dinâmico

vai se tornando o humor lobatiano (outra das grandes

novidades que a literatura infantil trazia...) (p. 138).

Mediante o que foi destacado pela autora não resta dúvidas que

Lobato foi o grande responsável pelas grandes inovações que ocorreram

com o texto literário infantil. O primeiro diferencial da sua obra foi o

registro da linguagem, onde o coloquialismo predomina em seu

discurso. Além do poder da linguagem, o humor foi outra característica

que também marcou a individualidade do escritor, obtido de várias

maneiras, como por exemplo, pelos trocadilhos, por neologismos, pela

quebra de simetria numa enumeração etc. A origem desse humor é

proveniente sempre da mesma personagem, Emília, espécie de boneca

de ventríloquo, falando por seu criador.

No entanto, Monteiro Lobato não fez o uso do maravilhoso

desde o início de sua obra infantil. Na primeira versão de A Menina do

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Narizinho Arrebitado percebe-se que o autor se restringe mais aos fatos

reais. Atitude compreensível, levando em consideração que o escritor

foi formado com um pensamento materialista/positivista e ainda

enxergava o mundo real e o fantástico completamente delimitados. Isso

pode ser também explicado pelo fato de a obra ter sido escrita com a

finalidade de leitura escolar, o que a obrigava nesse início de século a

ser um exemplo para a criança, apresentando “modelos” de

comportamento exigidos na época.

Entretanto, em sua versão Reinações de Narizinho é visível a

fusão do elemento real com o maravilhoso. Nessa época, o escritor já

estava bem mais qualificado e seguro para definir seu estilo e procurar

mais criatividade para seus textos. Lobato passou a expressar em suas

obras, de uma forma leve, muita imaginação e magia, elementos

capazes de levar o leitor a sonhar e a viajar para um mundo fantástico.

A escrita lobatiana incorpora o sonho e magia nos livros,

fazendo com que o imaginário se apresente de modo verossímil,

transportando seu leitor para o mundo encantado das histórias infantis, e

assim, fazer parte da história de um sítio onde tudo pode acontecer. O

Sítio é o espaço da imaginação e, portanto, longe do formalismo, das

regras e dos rumores contínuos da cidade grande que começam e

terminam todas as aventuras vividas pela turma.

Nessa fantástica viagem há de tudo, vários personagens e

situações inusitadas que aguçam a imaginação dos leitores. De acordo

com Silva (2009) a extensão da obra infantil lobatiana, bem como a

pluralidade de interesses e inventividade de seu criador faz com que se

multipliquem os personagens presentes na sua obra. A autora cita como

exemplo Reinações de Narizinho, que se trata de uma narrativa

aglomerada de personagens.

No entanto, há um núcleo de destaque que se mantém ao longo

de todas as obras e que forma efetivamente “o pessoal do sítio”. Trata-

se e personagens que pertencem ao domínio da realidade: Dona Beta,

Tia Nastácia, Pedrinho e Narizinho; e aqueles que pertencem ao mundo

fantástico: os bonecos Emília e Visconde, Rabicó, Conselheiro e

Quindim, animais falantes.

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Ao proporcionar todas essas aventuras incríveis, Lobato assume

uma grande responsabilidade, uma vez que por meio da literatura ele irá

adentrar no universo das crianças e debater assuntos que até então eram

inadequados para esses leitores utilizando-se de elementos mágicos ou

maravilhosos. Desse modo, a autora citada anteriormente destaca que

“para Lobato não existia uma fronteira que separasse assuntos de adulto

e assuntos de criança”. (p.118)

Considerando as palavras de Silva, nota-se que Lobato acreditou

na inteligência da criança e na sua capacidade de compreender qualquer

assunto, desde que, seja produzido de acordo com o seu entendimento e

numa linguagem compatível com a sua. Foi a partir dessa nova visão

em relação a criança que o escritor cria tramas em torno de temas que

eram considerados inadequados para o leitor infantil.

Outra contribuição de Monteiro Lobato para a literatura, foi

reunir duas modalidades paralelas de leitura: a do aprendizado e a da

diversão. Para Silva (2009) “Lobato acreditava firmemente que, para as

crianças, aprender coisas novas era também uma modalidade de prazer”

(p. 105). Dessa forma, percebe-se um esforço na criação de obras que

ensinam disciplinas escolares, onde a informação e a aprendizagem se

unem a aventura.

Portanto, as histórias presentes no Sítio do Picapau Amarelo

além de cumprir uma função didática, também contribuíram no

desenvolvimento e formação humanizadora dos pequenos leitores, que

passam a questionar e a tirar conclusões, características, que até aquele

momento não haviam sido postas em primeiro plano no cenário da

literatura e educação.

3 Literatura infantil x literatura juvenil

Conforme Lajolo (1982) já foram várias as tentativas de definir

literatura e identificar as características de um texto literário e não

literário. Quando finalmente parecem chegar a uma conclusão quanto o

seu conceito, surgem novas e diferentes formas de produção que exigem

novas teorias e novas discussões. A autora argumenta que: “Não existe

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uma resposta correta, porque cada tempo, cada grupo social tem sua

resposta, sua definição para Literatura”. Portanto, dificilmente se

chegará a uma definição única e exata, as respostas podem variar de

acordo com a ideologia de cada indivíduo.

A literatura infantil surgiu na Europa por volta do século XVIII,

ligada as transformações estruturais que aconteceram na sociedade;

período esse, onde se estabeleceu o modelo burguês de família

unicelular, causando uma modificação na forma de se enxergar a

criança e todas as instituições com ela relacionadas, entre as quais, a

família e a escola passaram a ser vistas como as mais importantes. É

importante destacar que até o século XVII a infância não era vista como

uma fase onde se constituía a mentalidade do homem, isso só começou

a acontecer a partir do século XVIII com as mudanças estruturais

ocorridas na sociedade europeia, onde a infância passou a ser vista

como uma fase de grande valor no desenvolvimento e constituição do

adulto que está porvir.

Desse modo, compreende-se que a literatura infantil está

diretamente ligada a um modelo de texto exclusivo para as novas

práticas pedagógicas que estavam se estabelecendo na educação. O

gênero literário infantil surgiu como uma forma literária menor, visto

como uma espécie de brincadeira, entretenimento ou como um auxílio

no processo de aprendizado das crianças. Inicialmente, os textos foram

produzidos a partir de modificações de textos direcionados ao leitor

adulto, nesse sentido, a linguagem era adaptada para uma maior

percepção infantil. Como destaca Nelly Novaes Coelho (1985),

popularmente a expressão “Literatura Infantil” já está associada a ideia

de livros lindos, cheios de cores e ilustrações, destinados a diversão e

prazer da criança no ao de ler, folhear ou ouvir as estórias contadas por

alguém. Trata-se de um gênero literário marcado por características

inverossímeis, repleto de magia, brincadeiras, diversões e sonhos.

Sendo assim, Hênio Tavares (1967, p. 15) assinala que:

A criança na fase inicial da existência, ignorando sua

própria individualidade e a realidade externa, refugia-se

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nos meandros de seu espírito ingênuo e curioso buscando

nele a concepção simbólica da vida e do universo.

Passando por essa refração, o universo despoja-se de seu

realismo objetivo, impregnando-se de espanto e

admiração, e transformando-se num mundo encantado e

de brinquedo.

Dessa forma é possível perceber a imensidão da natureza lúdica,

repleta de sonhos e magias que constituem o universo da Literatura

Infantil. A criança, com toda sua inocência idealiza um mundo

fantástico, portanto ela há de se sentir bem nesse universo maravilhoso

cheio de criaturas imaginárias que compõe essas obras literárias. Esse

contato com o imaginário, o lúdico e o fantástico é de fundamental

importância para a criança, pois ao ler ela estará trabalhando a mente e

estimulando o aprendizado. Mesmo com a intensa imaginação do autor,

que na grande maioria das vezes se distancia da sua realidade, a criança

através do contato com o texto literário infantil passa a entender e dar

um significado ao mundo real.

Diante do que foi abordado, logo surge uma discussão por parte

da maioria dos autores que abordam o tema: A literatura infantil é uma

prática pedagógica ou uma arte literária? Coelho (1985, p. 45) inicia

com a seguinte reflexão sobre o assunto:

Literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é

arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o

homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a

vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua

possível/impossível realização.

Nas palavras da autora a literatura infantil é uma arte que através

da palavra proporciona ao homem a possibilidade de descobrir seu

mundo real por maio do universo da ficção, ou seja, é o resumo da vida

real transformada em arte. A grande responsabilidade pela constituição

do conhecimento de mundo das crianças e jovens é atribuída ao livro, e

é a literatura infantil que assume essa difícil responsabilidade, com a

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função de atuar em uma sociedade que vive em constante mudança,

exercendo o papel de agente formador de cidadãos.

A mesma, ainda assinala que ao longo dos séculos, uma das

principais questões quanto a natureza da literatura infantil é chegar a

uma conclusão quanto a sua forma literária ou pedagógica. As ideias

quanto a esse problema se diferenciam e parece não está perto de se

chegar a uma conclusão.

Entretanto, se analisarmos as grandes obras que através

dos tempos se impuseram como “literatura infantil”,

veremos que pertencem simultaneamente a essas duas

áreas distintas (embora limítrofes e as mais das vezes,

interdependentes): a da Arte e a da Pedagogia. Sob esse

aspecto, podemos dizer que, como “objeto” que provoca

emoções, dá prazer ou diverte e, acima de tudo,

“modifica” a consciência-de-mundo de seu leitor, a

Literatura Infantil é Arte. Por outro lado, como

“instrumento” manipulado por uma intenção “educativa”,

ela se inscreve na área da Pedagogia. (COELHO, 2000. p.

25)

Por meio das considerações da autora é possível perceber que

mesmo em quantidades diferentes a diversão e o ensino estão presentes

nos mais diferentes tipos de textos da literatura infantil. Em certos

momentos da história um aspecto se impõe em relação ao outro, mas

par que haja um equilíbrio já existe uma produção literária para o

público infantil e juvenil que conseguiu unir a diversão, o prazer e a

emoção a transmissão de conhecimentos. O mesmo texto que leva a

criança a viajar para um mundo fantástico e imaginário tem o poder de

despertar novas formas de pensar e se preparar a vida em um mundo

cheio de diferenças.

Ainda em relação a sua forma, Maria José Palo e Maria Rosa D.

Oliveira (1986) destacam que, desde seu surgimento, o papel utilitário-

pedagógico da literatura infantil a transformou em uma prática mais

pedagógica do que literária. Para as autoras: “Dentro do contexto da

literatura infantil, a função pedagógica implica a ação educativa do livro

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sobre a criança”. (p. 13) A pedagogia surge, portanto, como um método

de capaz de interferir no universo da criança por meio do livro infantil,

dirigindo e orientando o texto literário adequado para a criança nas mais

diferentes fases de seu raciocínio. Através dos livros, os valores sociais

poderão ser propagados de tal forma, a desenvolver na criança a

capacidade de associar a ficção com a realidade, ou seja, através do

contato com o texto literário infantil, o jovem leitor poderá vir a

assimilar a verdade social.

Observando as diferentes fases do raciocínio da criança, Coelho

(1985) classifica o leitor infantil da seguinte forma:

a) Pré-leitor: (dos 15 meses aos cinco anos) Trata-se da fase

inicial onde o indivíduo ainda não possui capacidade para decifrar a

linguagem verbal escrita, portanto, a presença do adulto é

indispensável, uma vez que a criança irá começar a reconhecer a

realidade do mundo em que vivem através do toque, do afeto e das

imagens que possuem um domínio absoluto nesse primeiro momento da

formação do leitor.

b) O leitor iniciante: (a partir dos seis anos) Nessa fase a criança

já começa a adquirir a capacidade de leitura, é o momento onde se

inicia o processo de socialização e de racionalização da realidade,

portanto, a presença do adulto ainda se faz necessária. Embora a palavra

escrita já tenha adquirido algum espaço, a imagem ainda exercerá

predominância nesse momento.

c) O leitor em processo: (a partir dos oito anos) Nessa fase a

criança já tem o domínio dos mecanismos de leitura e o interesse pelo

conhecimento do mundo é estimulado pela organização do pensamento

lógico A presença do adulto como agente motivador e estimulador é de

grande importância.

d) O leitor fluente: (a partir dos 10 anos) Fase onde o leitor

passa a refletir e amadurecer, nesse momento o domínio dos

mecanismos de leitura é consolidado e desenvolve-se a capacidade de

compreender o universo presente no livro. A presença do adulto não é

mais necessária, a partir desse momento o leitor desenvolve sua

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capacidade de concentração e o pensamento hipotético dedutivo,

aprofundando ou ampliando seu conhecimento e percepção de mundo.

e) O leitor crítico: (a partir dos 12 anos) Fase de completo

domínio do processo de leitura, onde o pensamento crítico e reflexivo

do leitor alcança uma maior profundidade e o leitor adquire a

capacidade de refletir e atingir sua visão de mundo presente no texto.

Portanto, para que haja uma maior intimidade entre leitor os

diferentes tipos de texto, faz-se necessário que sejam adequados as

diferentes fases do desenvolvimento infantil/juvenil. Lembrando que a

formação desse leitor vai além do ato de alfabetizar, uma vez que a

criança tem seus primeiros contatos com a literatura desde os primeiros

meses de vida ao ouvir uma cantiga, uma poesia ou uma historinha e

conforme vai amadurecendo irá desenvolvendo o gosto pelo texto

literário escrito. Para que a criança adquira afeição e sinta-se

intimamente a uma obra é necessário que a escolha seja adequada a sua

categoria de leitor, considerando que o texto literário traz consigo uma

linguagem exclusiva e sua interpretação pode variar de acordo com os

conhecimentos e experiências de cada criança/jovem. Essa escolha

torna-se uma tarefa complexa, uma vez que, mudam-se os tempos e as

crianças também passam por transformações, portanto, torna-se

necessário que os escritores acompanhem essas mudanças, oferecendo

obras que estejam adequadas a maturidade da criança de cada época.

Tavares (1967) apresenta as seguintes características que

diferenciam a Literatura Infantil da Infanto-juvenil:

Fase infantil: mundo fantasmagórico, habitado por entes

fantásticos, despido de qualquer indício de similaridade

ou verossimilhança, império absoluto do sonho e da

magia.

Fase infanto-juvenil: mundo mítico já sustentado sob

certo aspecto na realidade externa, em que perpassam as

aventuras audazes e heroicas (para os garotos), e os

entrechos meigos e galantes (para as mocinhas). (p. 402)

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O autor classifica como idade infantil o período que vai dos dois

aos dez anos de idade, dividido em três fases: período maternal, onde a

imaginação da criança ainda não tem se manifestado e ela é atraída

apenas pelos seres, objetos e pessoas com quem convivem; pré-

primário, fase em que surgem a magia e a fantasia na imaginação da

criança, onde entram em cena as estórias clássicas como Chapeuzinho

Vermelho, Dona Baratinha etc. e fase escolar, onde a criança inicia suas

primeiras experiências de leitura, geralmente as estórias de animais, de

aventuras e de encantamentos são a preferência nesse momento. A

idade juvenil, ainda segundo Tavares (1967), é a fase que vai dos dez

aos dezoito anos, onde o jovem desperta seu interesse para o universo

das aventuras, romances, mistérios, dramas amorosos, obras de caráter

informativo etc.

Diante do que foi abordado, é possível perceber que por

intermédio da literatura a criança busca se proteger em um mundo de

sonhos criado por meio de sua própria fantasia. Inicialmente, os sonhos

e a magia serão superiores a qualquer semelhança com a realidade, a

relação com o real virá a surgir à medida que essa criança vai

amadurecendo, surgindo assim, a necessidade de descoberta do mundo

ao seu redor. Portanto, a literatura infanto-juvenil, principalmente

contemporânea, é constituída diante de personagens com características

reais, trazendo para esse leitor a possibilidade de se identificar e

compreender melhor o mundo real.

Nesse sentido, Antônio D’Ávila (1961) assegura que: a

Literatura Infanto-Juvenil “[...] é a literatura acomodada a psicologia

infantil e juvenil, capaz de ser por eles, crianças e adolescentes

compreendida e apreciada” (p.25). No entanto, para que esse objetivo

seja alcançado se faz necessário que os autores que dirigem esse público

preencham as mais precárias condições de sua psicologia,

disponibilizando uma literatura capaz de despertar a imaginação da

criança e escrita com um léxico exclusivo adaptado a sua compreensão,

atendendo as exigências intelectuais e espirituais do jovem leitor. Isso

não significa que escrever literatura infantil e literatura juvenil seja

apenas escrever de uma forma simples ou infantil, considerando que

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atualmente, na era da informática em que estamos vivendo, a criança

vive rodeada de informações e tem se transformado em um público

difícil de satisfazer. Portanto a literatura, em especial a infantil, deve ser

encarada como o caminho fundamental para a formação do pensamento

de uma sociedade que vive em constante transformação.

3.1 Panorama da literatura infantil no Brasil

A literatura infantil começou a ser produzida no Brasil nos fins

do século XIX. Inicialmente, os textos infantis eram importados, sendo

a maioria obras traduzidas, vindas de Portugal, apresentando um estilo

europeu completamente distante da realidade da criança brasileira.

Tratava-se de uma literatura de alto custo financeiro devido a falta de

editoras no país, portanto, poucos tinham acesso.

No que se refere ao surgimento do gênero, D’Ávila (1961)

ressalta que a literatura para crianças e adolescentes no Brasil,

inicialmente era de cunho didático, não existia a pretensão de criar e

redigir obras direcionadas especificamente a esse leitor, o caráter

recreativo foi deixado de lado. Ainda predominava a velha concepção

psicológica de que a criança é um adulto em miniatura e a infância era a

redução da idade adulta. Dessa forma, eram poucos os textos escritos

direcionados especialmente para o leitor infantil/juvenil, a grande parte

das leituras dirigidas a esse grupo de leitores era as obras de literatura

adulta, adaptadas ou em sua versão original.

O texto infantil durante um longo período foi utilizado pela

escola como um transmissor de ensinamentos e de regras

comportamentais, a fim de ensinar e doutrinar as crianças. Mais ao

longo dos tempos esse quadro foi se modificando, cada época conteve e

apresento uma literatura de forma diferente. Com o surgimento de

muitos autores novos, o gênero infantil foi se transformando e

oferecendo obras diferenciadas para seus leitores.

A primeira fase do desenvolvimento da literatura infantil no

Brasil ocorreu do século XIX ao início do século XX, período onde se

delinearam as tentativas iniciais de formação de um público leitor

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infantil. Saraiva (2001, p. 36) constata que “o compromisso

pedagogizante, que marca a produção dessa época, revela a posição

assumida pelos intelectuais, preocupados nesse momento histórico com

um projeto: a modernização do país”. Portanto, acreditava-se que

somente por meio da escola haveria a possibilidade de alcançar esse

objetivo de modernizar a nação e estimular a valorização da pátria

começando pelas crianças. Enxergou-se a literatura infantil como um

dos principais caminhos para alcançar essa meta.

Conforme Albino (2011, s/p)

No final do século XX, vários elementos convergem pra

formar a imagem do Brasil como um país em processo de

modernização, entre os quais se destacam a extinção do

trabalho escravo, o crescimento e a diversificação da

população urbana e a incorporação progressiva de levas

de imigrantes à paisagem da cidade. Visto que essas

massas urbanas começam a configurar a existência de um

virtual público consumidor de produtos culturais, o saber

obtido por meio da leitura passa a deter grande

importância no emergente modelo social que se impõe,

fazendo com que a escola exerça papel fundamental para

a transformação de uma sociedade rural em urbana.

Essa nova realidade brasileira desperta o interesse de intelectuais

e de educadores para um modelo de produção didática e literária

direcionada exclusivamente para a criança. Com isso, propaga-se uma

inquietação devido a ausência de obras adequadas para a leitura do

público infantil do país, uma vez que as obras disponíveis eram somente

os clássicos infantis europeus, adaptados ou traduzidos, apresentando

uma linguagem completamente diferenciada da língua materna do leitor

brasileiro.

Portanto, o processo de instauração da literatura infantil no

Brasil foi marcada por uma série de problemas, devido não só o

distanciamento linguístico entre o português que esses textos eram

impressos e o falar típico dos brasileiros, mas também quanto a

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representação de mundo, resultando em problemas de identidade

cultural.

A segunda fase da consolidação da literatura infantil brasileira

ocorreu nos anos de 1920 a 1945, período de agitação política,

intelectual e artística. A educação foi afetada por uma efervescência

social, a realidade precária de um sistema escolar debilitado foi

denunciada e com isso desenvolve-se o pensamento da necessidade de

uma melhor formação do homem brasileiro a fim de que o país fosse

inserido entre as maiores nações do mundo. Fundou-se então a Escola

Nova, trazendo uma série de mudanças na educação, propondo um

ensino intelectual, mais também pragmático, no intuito de educar o

indivíduo também através de trabalhos pragmáticos e pela atuação em

atividades desportivas.

Albino (2011, s/p) apresenta dois conceitos determinantes no

processo de produção da literatura infantil brasileira do início do século

XX: modernização e modernismo. A consolidação da classe média, o

crescimento da escolarização dos grupos urbanos e a nova situação da

literatura e da arte motivam o aumento de obras infantis e a adesão de

escritores envolvidos com o aspecto novo da arte nacional, tornando o

mercado a favor dos livros como nunca havia se visto antes. Durante os

anos 20 e 30 o gênero se consolida e recebe prestígio por parte das

editoras, o que causa um grande crescimento da produção e a adesão de

novos escritores da geração modernista, que trazem algumas inovações

para as obras literárias, como a valorização da cultura nacional e a

oralidade.

No entanto, mesmo com a renovação e o sucesso do gênero, o

que predominava nas obras era o caráter pedagógico. A produção era

estimulada apenas para suprir às necessidades do mercado escolar, que

por sua vez exigia dos escritores a adequação de seus textos para

atender apenas as necessidades educativas que estava em vigor na

sociedade brasileira da época, restringindo a fantasia e a criatividade,

em decorrência da determinação do Estado.

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No início do século XX, o surgimento de um escritor inovador

viria a mudar essa situação e marcar a literatura infantil brasileira, como

destaca Saraiva (2001):

O percurso da literatura infantil foi marcado pelo

momento histórico-cultural e, especialmente, pelo ano de

1921, quando nascia oficialmente pelas mãos de Monteiro

Lobato. Ela recebeu uma roupagem nova, visível na

inovação temática das histórias e na aproximação entre

linguagem e o tom coloquial que caracterizava a fala

brasileira. (p.37)

A partir da produção lobatiana, nasce aquilo que podemos

considerar como o preâmbulo da literatura infantil no Brasil. O escritor

com uma visão inovadora enxerga na criança um ser inteligente e capaz

de juízos críticos, propondo e inaugurando uma nova trilha nos

caminhos da produção literária infantil. Lobato trouxe para esse cenário

uma transformação de pensamento em relação ao tipo de texto

produzido para a criança e o jovem, rompendo com convenções

estereotipadas e inovando seus textos com uma linguagem coloquial e

popular, bem próxima da realidade de seu leitor.

Lobato, através de termos adequados passa a escrever para as

crianças sobre temas que pertenciam apenas ao mundo do adulto, sendo

o primeiro escritor brasileiro a dar crédito na inteligência da criança, na

sua curiosidade intelectual e capacidade de compreensão. Sua obra

insere o leitor em um projeto de exercício de consciência crítica,

constituindo uma nova literatura que permite o desenvolvimento da

criticidade do leitor. Além de despertar o interesse da criança através do

imaginário, Lobato conscientiza com sua literatura denunciadora,

tratando de forma leve fatos políticos, econômicos e sociais através de

seus personagens contemporâneos.

José Nicolau Gregorin Filho (2009) enfatiza que do final do

século XIX até o surgimento de Monteiro Lobato, os modelos que

estavam em vigor a Educação e na prática de leitura no Brasil eram o

nacionalismo, o intelectualismo, o tradicionalismo cultural com seus

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modelos de culturas a serem imitados e o moralismo religioso, com as

exigências de retidão de caráter, de honestidade, de solidariedade e de

pureza de corpo e alma em conformidade com os preceitos cristãos. Por

intermédio da obra lobatiana a criança passa a ter voz e espaço no

cenário da literatura.

O autor apresenta dois momentos bem distintos vividos pela

literatura infantil brasileira:

a) Momento anterior a Monteiro Lobato: responsável

por veicular valores com o individualismo, a

obediência absoluta aos pais e às autoridades, a

hierarquia tradicional de classes, a moral dogmática

ligada a concepções de cunho religioso, vários tipos

de preconceito, como o racismo, uma linguagem

literária que visa a imitar padrões europeus. Desse

modo, a literatura para crianças se torna um mero

instrumento pedagógico, elaborada para uma criança

vista como um adulto em miniatura.

b) Momento atual, pós-lobatiano: momento em que a

literatura para crianças mostra uma individualidade

consciente, mundo com antigas hierarquias em

desagregação, moral flexível, luta contra os

preconceitos, linguagem literária que busca a

invenção e o aspecto lúdico da linguagem, ou seja,

uma literatura que mostra um mundo em construção

para uma criança que passa a ser vista como um ser

em formação. (2009, p. 31 e 32)

A partir da produção de Lobato, uma nova literatura infantil é

inaugurada. Por meio das inovações que o escritor trouxe para o gênero

foi que surgiu uma produção literária artística para o leitor infantil, onde

as funções principais são o lúdico, o catártico e o libertador, além do

cognitivo e do pragmático, que busca preparar a criança para viver em

um mundo cheio de diferenças, bem diferente da produção anterior, que

era tratada apenas como um simples recurso pedagógico.

Por se tratar de um entusiasmado nacionalista, o autor rompe

com o círculo das dependências dos padrões literários provindos da

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Europa desenvolvendo para seu leitor infantil e juvenil, aventuras com

características bem brasileiras, valorizando a vida do campo e

resgatando a tradição folclórica do país. É possível perceber claramente

essas características em O Sítio do Picapau Amarelo, onde Lobato dar

ênfase a vida do homem no campo e a cultura brasileira.

Segundo Cavéquia (2012), a publicação de A menina do

narizinho arrebitado de Monteiro Lobato em 1921 foi um fato que viria

a mudar para sempre e irremediavelmente o rumo da literatura infantil e

juvenil brasileira. Lobato propôs inovações linguísticas, dando

prioridade a uma linguagem coloquial, neologismos e onomatopeias,

buscando aproximar-se o máximo do estilo infantil. Em suas obras, o

autor também estimula a criticidade do seu leitor, incitando-lhes a

enxergar a realidade social, política, econômica e cultural através de

seus próprios conceitos a partir das reflexões e discussões trazidas pelos

personagens. Dessa forma, observa-se que o escritor foi um grande

revolucionário, rompendo com paradigmas de uma literatura

pedagógico-conservadora, tornando-se a maior referência da literatura

infantil brasileira.

Nas décadas de 40 a 60 inicia-se um novo ciclo da literatura

infantil no Brasil. Foi um período marcado por uma fértil produção

literária, onde os autores se profissionalizaram, as editoras e os

escritores se especializaram e o mercado literário se expandiu. O grande

prestígio adquirido pelas publicações dessa época provocou certo

conflito. Ao mesmo tempo em que se ver o setor editorial progredir,

apareceram obras repetitivas, buscando manter o sucesso, apresentando

características culturais estrangeiras, principalmente da cultura norte-

americana. Conforme Albino (2011, s/p):

Em termos gerais, a literatura do período destinada ao

público jovem afirma-se pela negação: além de não

abdicar de sua tradicional missão patriótica não deu lugar

à expressão popular, nem a ruptura das cadeias de

dominação. Por isso, sentiu-se à vontade para copiar

processos da cultura de massa, não apenas porque eles a

beneficiavam, mas também porque correspondiam ao

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padrão de qualidade a ser atingido segundo as exigências

do mercado.

Dessa forma, se comparada com a geração de Lobato, é possível

perceber que a produção literária desse período representa uma falha

quanto a sua qualidade no que diz respeito à produção infantil no Brasil.

As obras desse período apresentam características menos popular, para

um público específico e culturalmente mais qualificado.

Nas décadas de 60 a 80 a literatura infantil vem a se consolidar,

tanto no aspecto de sua produção e consumo, como no conteúdo das

obras. Nesse período, a produção de literatura para crianças foi marcada

por um grande aumento de autores e de obras disponíveis ao público.

Contudo, o saldo mais positivo que se pôde observar, está relacionado

com os caminhos seguidos pela narrativa e pela poesia e com o

tratamento dispensado por ambas aos temas e a linguagem. O caráter

didático pedagógico foi deixado de lado e a linguagem reencontrou os

caminhos inovadores abertos por Monteiro Lobato. Distanciando-se da

linguagem culta, o coloquialismo voltou a ser privilegiados, com a

presença de gírias, dialetos e falares regional. Como mostra Albino

(2011, p.), a seguir:

Em termos de renovação, a literatura infantil dos anos 60

e 70 assumiu também traços que a aproximam tanto de

uma produção literária não infantil contemporânea,

quanto a fazem recuperar o atraso por meio da

incorporação de conquistas já presentes na literatura

adulta desde o Modernismo de 22. Caracteriza-se ainda

essa produção o “desaparecimento” do compromisso com

a História oficial e com os conteúdos escolares mais

ortodoxos e a adesão a uma vertente originada na cultura

de massa, como a história policial e a ficção científica.

Conforme vimos, nota-se que a literatura infantil brasileira

passou por uma série de transformações ao longo de diferentes épocas.

Em alguns momentos constatou-se o predomínio da quantidade, em

outros o da qualidade. Entretanto, a literatura infantil produzida

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atualmente segue o caminho proposto por Lobato no ano de 1921. A

qualidade estética que reveste as produções destinadas à criança na

atualidade permite ao professor a possibilidade de apresentar o mundo

mágico da literatura como suporte para as atividades de alfabetização.

4 Olhares da crítica sobre Emília

As considerações aqui expostas constam de olhares críticos

sobre estudos que tratam da personagem Emília do Sítio do Pica-pau

amarelo, mostrando como a crítica literária vem atribuindo olhares

importantes sobre a boneca e a sua influência enquanto personagem do

sítio.

O estudo de Izabel Cristina Vieira Antônio (2005), após uma

breve explanação sobre a obra de Monteiro Lobato, aponta algumas

questões importantes no contexto da obra Memórias de Emília

enfatizando que a obra possui diversas particularidades que retomam

definições filosóficas sobre verdade e vida e, também, o que tange a

língua e a esperteza da personagem Emília.

A primeira informação importante que o autor apresenta é a

visão de Lobato sobre os seus personagens, onde Emília é representada,

em toda a sua constituição, pela ficção, ou seja, sabendo que se trata de

uma boneca de pano, o escritor trás para a sua protagonista,

particularidades ficcionais que nunca poderiam existir no mundo real.

Antônio (2005) lembra que em sua essência, Emília já

surpreende os leitores da forma em que avança em cada obra.

Primeiramente, aparece como uma boneca qualquer, totalmente

dependente de Narizinho, sua dona, e recebe cuidados de Tia Nastácia,

que a fez com retalhos de pano, quando necessário. Dessa forma, com o

passar do tempo, toma uma pílula falante que a faz falar, andar e se

comportar como um ser humano, porém, com uma esperteza que

surpreende o leitor a cada obra.

Por meio da personagem Emília, Lobato vem mostrar a sua

visão de mundo e como ele queria que a sociedade fosse impactada. Na

fala da personagem, o autor apresenta os seus modos de pensar, faz suas

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críticas e, ao mesmo tempo, se diverte em pensar que o mundo seria

melhor e mais democrático se esses pensamentos fossem levados a

sério.

Antônio (2005) ressalta outro ponto importante que é sobre o

jogo de palavras na escrita lobatiana no decorrer da narrativa, isto é, a

maneira em que, por meio do texto, faz com que haja uma viagem em

meio à leitura do texto. Essa característica é também responsável pela

sua magnitude na literatura infanto-juvenil brasileira, em que é

consagrado como escritor.

Um dos aspectos citados por Izabel Cristina Vieira Antônio

(2005) que mostra a capacidade crítica de Lobato na fala de Emília se

dá quando a boneca põe em questão a sua definição de verdade, como

sendo “uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém

desconfia” (LOBATO, 1987, p. 8). Nesse trecho da obra, pode-se

observar que, na época, a verdade era tida pelo discurso da classe

dominante, e que isto inquietava, e muito, o autor.

Acreditando nisso, Emília, em diferentes obras da saga Sítio do

Pica-pau Amarelo, desconfia de muitas verdades que lhe são ditas; até

quando são realmente verdades. E, com o seu extinto investigativo,

acaba desvendando muitos mistérios que lhe são confiados, sem temer

personagens folclóricos como a cuca, o saci Pererê entre outros.

Entre as diversas características que norteiam a personagem

lobatiana, a que mais surpreende o leitor é o fato de o criador ter dado

voz ativa a sua criatura, ou seja, Emília não é apenas uma boneca

falante, ela vai se desenvolvendo dentro da narrativa, transformando-se

em uma personagem dotada de dinamismo e cheia de vontades próprias.

Mesmo sendo uma boneca de pano, Emília se apresenta como

uma protagonista de muita influência no sítio. Isso mostra, levando a

discussão à crítica social feita por Lobato, a pensar o quão sutil foi o

autor em pensar o papel de um ser até então de menor expressividade

com voz ativa, podendo interferir em decisões tomadas pelos seres

humanos.

Mais a frente, Antônio ressalta que a boneca apresenta um

discurso tão influente que chega a fazer o uso da linguagem de forma

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convincente, pois é por intermédio da linguagem que se faz conquistas

significativas, uma vez que ela chega a referenciar a frase de Dom

Pedro II em sua fala em um dos trechos na narrativa: “Independência ou

morte!”.

Outra questão apresentada na já referenciada seção do texto é

que o momento em que Emília começou a falar, ela conquista a

independência, e, nesse sentido, veio gritar por liberdade de maneira

irônica, como uma forma de manifestar a privação que estava sofrendo

sem poder se comunicar e ser influente no contexto onde foi feita com

retalhos de pano.

Antônio (2005) também lembra que em diversos momentos

Emília surpreende o leitor com o seu discurso quando faz o uso da

ironia, pois ela chega a filosofar quando mais uma vez a boneca vem

definir a vida, afirmando que “Viver é isso. É um dorme e acorda”

(LOBATO, 1987, p.13). Aí dar-se a ver o quanto a boneca sabe

empregar o conhecimento filosófico quando aborda diferentes temas até

então estudados pelos seres humanos.

Ao citar Cademartori (1987, p. 51), Antônio (2005) assinala que

“Monteiro Lobato cria entre nós, uma estética da literatura infantil, [...]

sua obra estimula o leitor a ver a realidade através de conceitos

próprios”. Essa autora destaca, também, que a estética da obra lobatiana

estimula o senso crítico do leitor, da maneira em que faz com que

retomemos conceitos históricos, filosóficos, políticos e etc. Isso se

tornou uma marca registrada de Lobato.

Assim, para finalizar essa noção de liberdade relacionada ao

papel de Emília na obra lobatiana, Antônio (2005) finaliza que para se

refletir a verdade é preciso que estejamos livres e prontos a identificar

as irregularidades e incompreensões da realidade, da maneira em que se

possam utilizar, por meio do conhecimento, formas de discussão através

da fala e da escrita.

Após explanar essas questões, parte-se para alguns

apontamentos sobre a crítica e a consciência da personagem. Nessa

linha de pensamento, a principal finalidade é mostrar como o discurso

ativo de Emília é consciente e apropriado ao conhecimento do ser

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humano, ao tempo em que aponta olhares críticos para os fenômenos

que permeiam o mundo desencontrado dos seres humanos.

Um aspecto interessante mencionado no texto A atuação da

personagem Emília na obra de Monteiro Lobato: Memórias de Emília

de Izabel Cristina Vieira Antônio (2005) é a reflexão que a esperta

protagonista faz sobre o termo cão. Da forma em que a boneca ver as

pessoas se ofendendo ao serem comparadas com um cão, sendo esse

animal considerado o melhor amigo do homem.

A boneca faz uma comparação entre o mundo animal, onde não

se fala e tudo corre muito bem e o mundo dos humanos e seus

desencontros e conclui que as maiores catástrofes do mundo estão

relacionadas com problemas de linguagem, se os humanos não

falassem, talvez não existissem tantos conflitos entre os mesmos.

São características como essa que transformam Emília em uma

personagem completa, livre e consciente dos desencontros que existem

entre os homens. Outra particularidade da boneca, enfatizada por

Antônio (2005), é o seu senso crítico. Monteiro Lobato em suas obras

declarou toda sua insatisfação com a situação de declínio e

subserviência vividos pela sociedade brasileira naquele período, o

personagem Jeca Tatu representa muito bem essa realidade do povo.

Em Memórias de Emília não foi diferente, Através de toda sua

genialidade de brincar com as palavras, utilizando termos simples e

sinceros o escritor fez o uso de sua encantadora personagem também,

para fazer críticas sociais.

Antônio (2005) destaca a esperteza de Emília, que tira vantagens

do bondoso e ingênuo Visconde de Sabugosa, se aproveitando de todo

carinho e atenção que ele tinha para com ela. Foi Visconde quem

vivenciou e escreveu as memórias, mais todo o mérito foi a boneca que

recebeu, fato que já havia acontecido anteriormente em Aritmética de

Emília, que foi escrita por Visconde e o mérito foi dado para a esperta

Emília. Com isso, através dessa personagem fantástica, Lobato faz

duras críticas aos abusos cometidos por aqueles que se encontram no

poder e que utilizam métodos ilegais para benefícios próprios.

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A pesquisadora continua enfatizando a respeito da esperteza da

boneca quando traz um diálogo entre a protagonista e Visconde no qual

o sábio sabugo de milho apresenta argumentos convincentes de que era

ele o autor das memórias que ela assinava como se fossem suas. Emília

responde sem se intimidar: “[...] Ser esperto é tudo [...] Se eu tivesse um

filhinho lhe daria um único conselho: seja esperto meu filho.”

(LOBATO, 1987, p.76). Mesmo tendo consciência de suas habilidades

de escritor, Visconde sabe que não pode competir com Emília e toda

sua esperteza, dessa forma a boneca segue se apropriando e se

beneficiando dos trabalhos alheios.

Em seguida, Antônio (2005) faz uma abordagem referente ao

preconceito, tema que também marcou presença na obra de Monteiro

Lobato. É através da personagem Emília que a autor retrata acerca do

preconceito presente na nossa cultura até os dias atuais, dando ênfase ao

preconceito racial pelo fato de esse apresentar uma maior dimensão.

A pesquisadora ressalta a capacidade humana de atitudes

contraditórias em um curto espaço de tempo, como o fato de praticar

uma boa ação e em seguida, devido a intensidade da vida, ser capaz de

atos desprezíveis e preconceituosos. Isso acontece com Emília, que ao

se descontentar com Tia Nastácia a ataca de forma preconceituosa. São

atitudes como essa que demonstra a semelhança da boneca com o

homem, visto que ao se deparar com uma situação contrária a sua

vontade, os mesmos acabam procurando alguém para ofender ou

condenar.

Citando Lobato (1987) Antônio traz um trecho que demonstra

todo rancor e preconceito da boneca para com a empregada negra. “[...]

Burrona! Negra Beiçuda! Deus te marcou, alguma coisa em ti achou.

Quando ele preteja uma criatura é por castigo [...] Tia Nastácia rompeu

em choro alto.” (p. 81). As atitudes preconceituosas de Emília se

estendem ainda em outros momentos durante a narrativa.

Incomodado com o comportamento da boneca, Visconde

manifesta críticas em suas memórias. Mesmo concordando com as

críticas, ela continua culpando Tia Nastácia, alegando que só é assim

porque a negra a fez dessa forma, portanto, ela era a única culpada. “[...]

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Cada um de nós dois Visconde, é como Tia Nastácia nos fez. Se somos

assim ou assado, a culpa não é nossa é da negra beiçuda.” (LOBATO

1987, p. 90).

Através da atitude de Emília, quando admite que sua existência

só foi possível graças a Tia Nastácia, Lobato deixou a mensagem de que

mesmo enfrentando diversos preconceitos ao longo das épocas, o povo

negro contribuiu e continua contribuindo de diversas formas na

sociedade até os dias atuais.

Adiante, Antônio (2005) faz algumas apreciações referentes a

pretenciosa e sonhadora Emília, destacando o momento em que a

boneca resolve terminar suas memória dispensando os trabalhos de

Visconde como a maior evidência de suas pretensões.

A boneca começa a narrar de forma pretensiosa e sonhadora

sobre uma viagem que supostamente teria feito para Hollyood

acompanhada pelo anjinho e o Visconde, dizendo que já não suportava

mais a vida no sítio. “Fomos para Hollyood. Eu já andava enjoada de

bolinhos, de pitangueiras, de países da gramática [...]” (LOBATO,

1987, p.91). Depois de demonstrar desprezo pela vida que levara no

sítio, a boneca exalta a língua inglesa, segundo ela, seu novo idioma.

A soberba e imaginação de Emília ganham tanta proporção que

se transformam em algo muito engraçado durante a narrativa,

principalmente no trecho onde ela conta sobre seu encontro com a

estrela de Hollyood Shirley Temple. Emília sonha alto, narra que

tornou-se amiga da famosa atriz. Segundo a boneca, Shirley afirmou já

conhecer todas as suas histórias e que sonhava em conhecê-la. Foi a

partir dessa viagem, literalmente sonhada por Emília, que se inicia seu

sucesso internacional.

Antônio (2005) encerra suas considerações acerca da

personagem Emília enfatizando a importância da figura de Visconde de

Sabugosa, aquele que segundo ela foi o grande responsável pelo

prestígio e popularidade que a boneca adquiriu. A autora faz referência

a Lobato (1987) em um trecho que demonstra todo o desejo da

personagem de ficar viúva de Rabicó, para enfim, ser esposa do

Visconde. “[...] Todos pensaram que Rabicó fora assado. Emília pulou

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de alegria. Estava viúva! Podia finalmente casar-se com Visconde de

Sabugosa.” (p. 91).

Dessa forma, os dois são obrigados a se comportar apenas como

os bons amigos que sempre foram, e mesmo com toda a esperteza da

boneca, o sábio sabugo de milho continua fiel e obediente, atendendo

aos pedidos e as ordens da marquesa de Rabicó.

Outra característica marcante da amizade de Visconde e Emília

trazida por Antônio (2005) é a sinceridade. Mesmo com toda obediência

à boneca, em alguns momentos Visconde se irrita com certas atitudes e

exigências e começa a escrever seus pensamentos a respeito de sua

“pessoa”. Emília sente-se traída com alguns dos protestos de seu fiel

amigo, mas em seguida concorda e da razão a Visconde. Essa atitude de

concordar em receber críticas é um fato que demonstra certo

amadurecimento da personagem.

Com isso, Emília decide terminar suas memórias, surpreendendo

os leitores com toda sua magia e bom humor, fazendo reflexões sobre

si, levando grande parte do leitor a acreditar que ela era muito mais que

uma simples boneca de pano.

Emília agora passa a apresentar um sentimento de tristeza, ao se

deparar com tantas injustiças no mundo, o que ela definiu como a maior

desgraça do universo. A boneca percebe que era muito mais feliz

quando desconhecia a leitura, uma vez que somente quando começou a

ler passou a ter conhecimento de fatos que a deixara triste. Concluindo

que a verdadeira felicidade estava no lugar em que ela sempre viveu: no

Sítio do Picapau Amarelo.

Como vimos, através das reflexões trazidas por Izabel Cristina

Vieira Antônio (2005), é possível perceber nitidamente a importância

da personagem Emília na obra de Monteiro Lobato. Mesmo com toda a

complexidade que constitui o estudo de personagens, a pesquisadora

consegue fornecer para o leitor de forma objetiva a trajetória e a

importância da mais conhecida criação de Monteiro Lobato.

Em seu trabalho, Antônio (2005) deixa bem claro o fato de o

escritor fazer o uso de sua personagem para fazer protestos contra as

injustiças sociais vividas pelo povo brasileiro. Através de Emília,

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Lobato se mantém vivo até os dias atuais, uma vez que a esperta boneca

de pano se mantém viva e atual dentro da literatura infantil ao longo dos

anos, falando tudo o que pensa sem nenhum receio de desagradar

alguém. Essa característica de rebeldia da personagem, nada mais é do

que uma representação do seu criador que sempre incomodou muita

gente com suas ideias revolucionárias.

As atitudes da boneca surpreendem ao leitor em diversos

momentos durante a narrativa. Ainda mais, quando ela passa a aceitar as

críticas feitas por seu fiel amigo Visconde de Sabugosa. A personagem

eloquente que fala tudo o que pensa, admite algumas de suas falhas

tornando-se imprevisível. Emília é uma sonhadora, e através de suas

aventuras leva leitores de diversas faixas etárias a viajar na imaginação

junto com ela. Sua liberdade fica marcada em toda a narrativa lobatiana,

sendo ela, a grande estrela do Sítio do Picapau Amarelo.

Outro trabalho significativo que discute a importância da

representatividade de Emília trata-se da obra Literatura infantil: teoria,

análise, didática de Nelly Novaes Coelho (2000). A autora reconhece

que para que haja uma possível compreensão do universo fictício de

Monteiro Lobato é de fundamental importância o estudo de sua

protagonista.

Emília se diferencia de todos os personagens que constituem o

Sítio do Picapau Amarelo, por ser a única que vive em constante tensão

dialética com os demais. Os outros representam exemplos de seres

humanos comuns cuja função dentro da narrativa é servir de

contraponto a Emília. Narizinho e Pedrinho desempenham o papel de

crianças saudáveis e felizes, D. Benta é o modelo de avó sonhado pela

maioria das crianças e Tia Nastácia criada humilde e amorosa,

representando a raça negra presente desde a origem do nosso povo.

Se referindo diretamente aqueles que acusaram Lobato de

racismo pela criação de uma personagem negra e grosseira, Coelho

(2000) menciona que não existe preconceito racial nenhum nas obras do

escritor, visto que na narrativa todos tinham respeito e carinho por Tia

Nastácia. Sua intensão foi mostrar a realidade daqueles que eram

excluídos da sociedade.

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A referida autora analisa ainda que em diferentes situações,

Emília denota-se como o protótipo-mirim do “súper-homem”

nietzschiano, devido ao seu desejo de domínio e ao intenso

individualismo evidente em suas ações e falas. A boneca de pano se

revela autoritária, impondo todas as suas vontades e opiniões para com

aqueles que estão a sua volta. Isso fica explícito desde o início das

“Memórias de Emília” quando ela impõe que Visconde seja seu

secretário sem sequer lhe dar opção de escolha.

Em seguida Nelly Novaes Coelho (2000) destaca um trecho de

um diálogo entre Emília e Visconde sobre a autoria das “memórias”,

onde fica bem claro a intensão que Lobato teve de denunciar as práticas

ilícitas cometidas pelo homem, que é capaz de explorar o seu

semelhante na busca de receber reconhecimento e sucesso através do

esforço do outro.

- Sabe escrever memórias, Emília? Repetiu o Visconde

ironicamente. Então isso de escrever memórias com a

mão e cabeça dos outros é saber escrever memórias?

- Perfeitamente, Visconde! Isso é o que é importante.

Fazer coisas com a mão dos outros, ganhar dinheiro com

o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeça

dos outros: isso é que é saber fazer as coisas. Ganhar

dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama

com o trabalho da gente, é não saber fazer as coisas. Olhe,

Visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco

tempo, mas já aprendi a viver. Aprendi o grande segredo

da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser esperto é

tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho,

dava-lhe um só conselho. “Seja esperto meu filho!”

- E como explicar o que é ser esperto? Indagou Visconde.

- Muito simplesmente, respondeu a boneca. Citando o

meu exemplo e o seu, Visconde. Quem é que fez a

“Aritmética”? Você. Quem ganhou nome e fama? Eu.

Quem é que está escrevendo as memórias? Você. Quem

vai ganhar nome e fama? Eu...

O Visconde achou que aquilo estava certo mas era um

grande desaforo. (p. 145-146)

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Tal postura da personagem lobatiana pode ser analisada de

forma positiva ou negativa ao mesmo tempo, pois por um lado leva a

grandes realizações ao nível social e, por outro, facilmente resvala na

exploração do homem pelo próprio homem. O caráter ambíguo é

facilmente percebido nas atitudes dos personagens de lobato,

especialmente em sua protagonista, Emília.

Coelho (2000) dar seguimento propondo que tal dualismo devia

ter raízes bem fundas em Lobato, visto que em certos momentos o autor

valoriza o individualismo de sua personagem favorita, ao lhe conceder o

espírito de liderança, a ascendência mandona, mas brejeira com aqueles

que convivem com ela, em outros momentos ele o satiriza quando deixa

evidente o consciente despotismo com que Emília age em determinadas

ocasiões, numa verdadeira imitação do mundo real, onde os poucos que

estão no poder usufruem das riquezas geradas através do esforço e do

trabalho de multidões de desvalidos.

Ao analisar Memórias de Emília, Coelho (2000) faz uma intensa

crítica a ambiguidade presente na narrativa lobatiana. Conforme a

autora, o sentido crítico e satírico nos textos do autor pode ser

considerado impróprio para as crianças, que podem não estar orientadas

nem preparadas para compreender aquilo que ele escreveu com a

intenção de crítica e entender como um elogio ou incentivo as práticas

que ele desejava combater.

Nelly Novaes Coelho (2000) mostra outro exemplo do caráter

ambíguo de Lobato na obra A Chave do Tamanho:

Jogando de maneira divertida e incrivelmente inteligente,

com a relatividade de valores, Lobato cai, entretanto em

frequentes distorções da verdade comum das coisas ou

emite conceitos tão desumanos que espantam. Entre estes,

está a enfática aceitação da violência para obter a paz. É

o que Emília defende quando justifica que milhões de

homens morram (por serem incapazes d se adaptar do dia

para a noite ao terem sido reduzidos ao tamanho de

insetos), para que não haja mais guerras. (p. 147).

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Embora a intenção do escritor tenha sido censurar algumas

práticas cotidianas, sua postura torna-se perigosa, pois os desmandos e

arbitrariedades de ação praticados pelos adultos pode ser entendido por

crianças e jovens como um exemplo a ser seguido. Dessa forma, Coelho

(2000) sugere que esse livro seja destinado ao leitor pré-adolescente

devidamente orientado a fazer uma análise crítica do mundo atual e não

apenas para entretenimento.

Contudo, a autora admite que essas características da escrita

lobatiana não pesa na leitura. A explicação para isso talvez seja

atribuída a dois fatores, de um lado a necessidade do leitor

contemporâneo de questionar o mundo; e de outro, porque a brejeirice,

imaginação e graça da fábula neutralizam o ceticismo do escritor

presente na obra.

Coelho (2000) encerra sua análise fazendo uma referência ao

capítulo final das Memórias de Emília, o único que foi escrito pela

própria boneca, caracterizando-o como algo que soa muito falso pela

falta da irreverência que marcou a protagonista durante toda a narrativa.

O capítulo apresenta um tom emotivo, diferentemente daquele

que o leitor estava habituado, conforme pode se observar no trecho a

seguir:

... Antes de pingar o ponto final quero que saibam que é

uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu

coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração – só não é

de banana. Coisinhas à toa não o impressionam; mas ele

dói quando vê uma injustiça. Dói tanto, que estou

convencida de que o maior mal deste mundo é a injustiça.

Quando vejo certas mães baterem nos filhinhos, meu

coração dói. (COELHO, 2000, p. 149).

A pesquisadora ressalta que o próprio Lobato deve ter percebido

que sua intenção satírica poderia ser confundida pelo leitor e terminou

as Memórias de Emília com um capítulo que foi considerado capítulo-

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defesa de sua protagonista e, por consequência do próprio escritor, uma

vez que para muitos a boneca é o alterego de seu criador.

Como vimos, através das apreciações da crítica literária sobre

Emília, é possível afirmar que ela é uma personagem de grande valor, e

sem dúvidas, a maior personagem de Monteiro Lobato, um marco na

Literatura Infantil brasileira, que desde seu surgimento teve mudanças

significativas e jamais voltará a ser a mesma. Com certeza, essa boneca

de pano é uma das mais encantadoras criaturas da nossa literatura e vem

conquistando leitores de diversas faixas etárias ao longo das gerações.

Ao acompanhar as aventuras de Emília o leitor é surpreendido

por ricas e diversificadas aventuras que transformam a leitura em algo

agradável provocando um maior interesse pelas suas histórias e

consequentemente, pela leitura. A inteligência e a esperteza da boneca

de pano no decorrer da narrativa são surpreendentes, ela faz definições,

críticas e questiona algumas verdades instituídas mostrando diferentes

formas de enxergar a vida.

5 Considerações finais

Monteiro Lobato é considerado o precursor da literatura infantil

no Brasil e o grande responsável pelas transformações nos textos

produzidas para crianças e adolescentes ocorridas no século XX. O

escritor foi um nacionalista realista que não teve medo de falar o que

pensava e de lutar pelos seus ideais, chegando a desagradar a muitos. A

sua maior conquista foram as crianças, para quem dedicou grande parte

da vida.

Foi com a publicação de A Menina do Narizinho Arrebitado que

Lobato se consagra como escritor infantil. O autor deu uma nova

roupagem aos textos, propondo inovações linguísticas, apostando alto

na fantasia e em uma linguagem voltada para a realidade de seus

leitores. O Sítio do Picapau Amarelo foi sua mais bela e conhecida

invenção, onde apresenta seus personagens inesquecíveis, que ficaram

marcados pela curiosidade, imaginação, independência, espírito crítico

e bom humor.

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Dentre os personagens lobatianos, Emília é a sua preferida e a

que mais incendeia a imaginação do leitor, visto que suas aventuras são

ricas e diversificadas tornando-se algo prazeroso e significativo para

aqueles que acompanham. Como se observou, a boneca representa o

protesto e a rebeldia de seu criador que não aceitava as injustiças sociais

e de alguma forma, queria dar a sua contribuição para a ascenção social

do Brasil.

Emília surpreende o leitor em diversos momentos durante a

narrativa com sua inteligência e esperteza, trazendo definições

filosóficas sobre verdade e vida e afirmando a importância de ser

esperto para se obter vantagens. Outro fato que nos chamou atenção foi

o comportamento autocrítico da personagem que em certo momento,

apresentou uma conduta diferente a que todos estavam acostumados e

passa a assumir muitas de suas fraquezas.

A esperta boneca de pano é apaixonada pela vida, cheia de

irreverência e atitudes imprevisíveis, age como gente, fazendo críticas,

questionando muitas verdades impostas e sempre apresentando novas

formas de enxergar a vida. Além de sua esperteza e inteligência, Emília

se apresenta uma personagem sonhadora e com muito bom humor,

características que aparecem de forma intensa no final das memórias,

quando ela narra sua suposta viagem para Hollyood e afirma ter

aprendido inglês fluentemente.

Mesmo diante do julgamento de parte da crítica que considerava

a obra de Lobato imprópria para a formação das crianças, devido a

ambiguidade presente em seus textos, não se pode negar que o autor foi

o grande responsável por unir a literatura infantil e o prazer na

formação do pequeno leitor. Através de Emília, a criança adquiriu o

direito de se expressar. A contestação e a irreverência infantis passam a

ganhar espaço e a ser lidas através das aventuras dos fantásticos

personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo e especialmente, por meio

da atuação de sua protagonista.

Foi possível constatar, nesta pesquisa, que Emília é a chave para

a compreensão do polêmico universo fictício lobatiano. Ela tornou-se

um marco no que se refere à construção de personagens voltados ao

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público infantil. A personalidade da esperta boneca fica marcada em

toda narrativa de Lobato, sendo ela a grande responsável pelo

reconhecimento de seu criador e por todo o sucesso que a obra

alcançou.

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