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A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO KAUSS, Vera Lucia T. Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211 198 A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO KAUSS, Vera Lucia T. Prof. Adjunto I do Mestrado em Letras e Ciências Humanas Universidade do Grande Rio UNIGRANRIO [email protected] RESUMO Este texto, seguindo um caminho interdisciplinar, faz uma abordagem das representações dadas aos indígenas brasileiros nos textos literários, passando pela forma como foram transformados em fatos históricos os acontecimentos do período da conquista e colonização do Brasil pelos portugueses. Nesse caminhar ao longo dos séculos, a importância dos saberes ancestrais dessas culturas foi, propositalmente, relegados a uma condição de inferioridade e esses povos confinados a viver às margens de sociedades que ajudaram a construir. Na contemporaneidade, tomando posse da escrita, esses povos assumem mais um instrumento de luta e passam a escrever seus próprios textos em diversas áreas do conhecimento retratando-se a partir de sua própria maneira de se ver e se pensar, reivindicando seus direitos enquanto cidadãos brasileiros. Palavras chave: Literatura, Escrita e Oralidade, História. ABSTRACT This text following a path interdisciplinary approach makes the representations given to indigenous Brazilians in literary texts, through the way they were transformed into historical facts of the period the events of the conquest and colonization of Brazil by the Portuguese. In walking over the centuries, the importance of ancestral knowledge of these cultures were purposely relegated to an inferior status and these people confined to live on the margins of societies who helped build. In contemporary times, taking possession of writing, these people take more an instrument of struggle and begin to write their own texts in various fields of knowledge portraying themselves as they really are and claiming their rights as Brazilian citizens are. Keywords: Literature, Writing and Orality, History

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KAUSS, Vera Lucia T.

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ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211

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A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS

BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO

KAUSS, Vera Lucia T.

Prof. Adjunto I do Mestrado em Letras e Ciências Humanas

Universidade do Grande Rio – UNIGRANRIO

[email protected]

RESUMO

Este texto, seguindo um caminho interdisciplinar, faz uma abordagem das representações dadas aos

indígenas brasileiros nos textos literários, passando pela forma como foram transformados em fatos

históricos os acontecimentos do período da conquista e colonização do Brasil pelos portugueses. Nesse

caminhar ao longo dos séculos, a importância dos saberes ancestrais dessas culturas foi,

propositalmente, relegados a uma condição de inferioridade e esses povos confinados a viver às

margens de sociedades que ajudaram a construir. Na contemporaneidade, tomando posse da escrita,

esses povos assumem mais um instrumento de luta e passam a escrever seus próprios textos em diversas

áreas do conhecimento retratando-se a partir de sua própria maneira de se ver e se pensar, reivindicando

seus direitos enquanto cidadãos brasileiros.

Palavras chave: Literatura, Escrita e Oralidade, História.

ABSTRACT

This text following a path interdisciplinary approach makes the representations given to indigenous

Brazilians in literary texts, through the way they were transformed into historical facts of the period the

events of the conquest and colonization of Brazil by the Portuguese. In walking over the centuries, the

importance of ancestral knowledge of these cultures were purposely relegated to an inferior status and

these people confined to live on the margins of societies who helped build. In contemporary times,

taking possession of writing, these people take more an instrument of struggle and begin to write their

own texts in various fields of knowledge portraying themselves as they really are and claiming their

rights as Brazilian citizens are.

Keywords: Literature, Writing and Orality, History

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INTRODUÇÃO

Podemos, hoje, dizer que a literatura indígena é uma realidade, confirmando o que disse

José Carlos Mariátegui, que somente poderíamos chamar de indígena a literatura escrita por

autores indígenas. Até então, o que tínhamos eram textos de escritores não indígenas que

muitas vezes distorciam, por falta de conhecimento, as cosmogonias dos povos autóctones que

tentavam retratar.

Em nossos dias, no Brasil, encontramos muitos escritores indígenas que, usando como

instrumentos de luta textos escritos, lutam para conquistar seu lugar de direito nas sociedades

construídas a partir da chegada do colonizador europeu no século XVI. Apesar de habitarem

essas terras muito antes da chegada de Cabral, o Brasil, como o conhecemos hoje, passa a

existir desde o momento do desembarque dos portugueses no Continente americano.

São muitos os representantes desses povos escravizados, marginalizados e, de certa

forma, invisibilizados que buscam, hoje, através do estudo e do domínio da escrita acadêmica,

se tornar visíveis, mas sem fazer concessões àqueles que ainda os querem assimilados,

transformados em autênticos representantes das culturas dominantes. Estão lutando para provar

que, apesar dos incessantes e massacrantes processos aculturadores a que foram submetidos,

continuam a ser e a existir a partir de suas cosmogonias, de acordo com o que lhes foi ensinado

por seus ancestrais.

Através de processos transculturadores, (ORTIZ apud RAMA: 1982, pp. 32-33)

conseguem, atualmente, vivenciar as duas culturas: a de origem e a dominante, sem se deixar

enredar ou perder, procurando usar o que lhes interessa da maneira de viver do segmento

dominante, mas sem deixar de manter viva a maneira de ser e estar no mundo que aprenderam

com seus pais e avós através dos conhecimentos passados de geração à geração, na tradição

oral. Mesmos aqueles que já nasceram fora das comunidades de origem, buscam conhecer suas

tradições e passam a vivenciá-las mesmo que morem em centros urbanos.

Sabemos que os povos indígenas são muitos – já foram muitos mais – e diversos.

Quando aqui chegou, pensando em ter um segmento social para a exploração, para colocar

como base da pirâmide social, o europeu criou o que denominou de “índio”, ou seja, frente à

imensa diversidade que encontrou, para facilitar sua vida ou por incapacidade de enxergar

verdadeiramente o outro, nomeou todos os homens que aqui habitavam simplesmente de

índios. Essa homogeneização do “outro” facilitou suas intenções: não importava saber a que

nação pertenciam aqueles homens, o único interesse era colocá-los em um nível social que

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permitisse explorá-los, escravizá-los, matá-los, transformá-los; enfim, fazer com eles o que

aprouvesse aos vencedores das guerras da conquista e do processo de colonização implantado

nas terras brasileiras.

As sociedades autóctones não haviam desenvolvido o conceito de progresso como os

europeus. A ideia de juntar para legar aos filhos qualquer coisa que fosse não lhes parecia

lógica ou necessária. Para eles, o importante era ensinar seus filhos a viver como os ancestrais:

caçar, pescar, plantar e colher – tanto o que foi plantado como o que a natureza oferece -, a

construir suas moradias, a viver de acordo com suas crenças, respeitando os deuses, os mais

velhos, os animais e a natureza. A ideia de ter mais, de ser mais poderoso do que o outro não

fazia parte de sua cosmovisão: todos lutavam para si e para os irmãos. Havia – e há - disputas

entre eles, mas tinham outro sentido, diferente motivação, muitas eram, e continuam sendo,

rituais. Sobre esse assunto, nos diz Daniel Munduruku que:

Quando, em tempos antigos, os portugueses tentaram escravizar os indígenas,

esses não aceitaram aquela imposição. Trabalhar, para o português

colonizador, era acumular. Acumulação é uma das dimensões do futuro.

Acumula-se, poupa-se, guarda-se com a intenção de utilizar depois, amanhã.

Os indígenas não sabem o que é o amanhã. E fugiram da escravidão. Os

portugueses inventaram, então, que eles eram preguiçosos demais para aquela

função nobre. E assim ficou. (MUNDURUKU: 2009, p. 50)

As sociedades indígenas que habitavam as terras que viriam a ser o Brasil eram ágrafas.

Mas todas possuíam relatos de mitos, de lendas, de histórias de fundação, de guerras, de

deuses; enfim, de narrativas que traziam a marca daquele povo que estava contando. As

palavras ou os saberes ancestrais eram transmitidos pela oralidade, porque os povos indígenas

não dependiam da escrita: eles possuíam uma forte tradição oral que era mantida através da

memória. Esses relatos explicam a origem do mundo, dos povos e, ao serem passados de

geração em geração, tornam-se mecanismos de construção de identidade e de história que se

faz da memória. Como nos diz Bessa Freire: “Não estamos tratando de sociedades que eram

carentes de escrita, mas sim independentes dela”. (FREIRE, 2008, p. )

Outra diferenciação, sobre a qual escreveu Daniel Munduruku, refere-se à maneira de se

pensar a literatura apenas como relacionada com a palavra escrita. O escritor nos convida a

deixarmos essa forma linear de pensar e procurarmos compreender a ideia de literatura como

algo mais circular, tradicional, ancestral e, como os indígenas, entendê-la como sendo mais

uma manifestação que acontece “através do corpo, assim como a palavra, o canto, a dança, o

rito, a cura, o ser”. (MUNDURUKU: 2009, p. 9). O convite que nos faz Daniel Munduruku é

reforçado pelo escritor tukano Gabriel Gentil, que recolheu narrativas míticas em sua língua

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materna, quando diz que: “existem várias maneiras de contar o Mito Tukano. Os velhos

cantores gostam de contá-lo por meio de cantos, na língua antiga, dando assobios, e até dançam

nas grandes festas tradicionais.” (BESSA, Vozes da Terra: te mandei um passarinho, 2009)

A literatura, para esses povos, envolve muito mais do que apenas a palavra escrita que,

por muito tempo, não exerceu sobre eles nenhuma influência, não foi objeto de fetiche ou

qualquer outro sentimento. Viveram sem ela por séculos e não sentiram necessidade de

conhecê-la, de trazê-la para dentro de suas vidas. Entretanto, eles foram levados a perceber que,

através da escrita, podem marcar seu lugar nessa sociedade que os envolve e, apoderando-se

dela, usá-la como um instrumento de luta para conseguirem impor seus direitos de cidadãos

brasileiros, abrirem seu espaço e resgatarem o reconhecimento que lhes é devido nessa

sociedade que os relegou a viverem marginalizados de um contexto social que ajudaram a

construir.

REPRESENTAÇÕES DO ÍNDIO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA

Para os conquistadores europeus, os povos autóctones aqui encontrados representavam

verdadeiras páginas em branco em que eles escreveriam a História do continente, porque, para

eles, a América e o Brasil só passaram a existir a partir do momento de sua chegada.

Todos os povos que aqui existiam há muitos séculos e que possuíam suas próprias

organizações sociais e religiosas foram considerados bárbaras. Nenhum conhecimento

desenvolvido por estes povos – que eram muitos – foram levados em conta pelo europeu: o

vencedor não conseguia admitir que alguém pudesse saber mais do que ele sobre o que quer

que fosse. Por essa atitude de incapacidade para olhar de verdade o “outro”, muito se perdeu

como, por exemplo, os conhecimentos desenvolvidos pelos povos indígenas com relação à

agricultura, aos acidentes geográficos, ao uso das ervas...

Toda a estrutura colonial criada pelo europeu, que se forma a partir do “choque” de

culturas que acontece desde a conquista e que se estende pela colonização, se apresenta

dividida em dois segmentos: a do colonizador, que se coloca sempre como superior,

hegemônico; e o colonizado, sempre considerado como inferior e explorado. Os povos

indígenas vivenciam esse estigma da inferioridade desde o primeiro momento da chegada do

europeu e somente há pouco tempo a situação de colonizado tem passado por questionamentos

que tentam levar ao seu entendimento e reformulação.

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Todos os fatos históricos acontecidos com o início da era pós-Cabral levam a um

rompimento dos povos autóctones com o passado anterior à chegada dos europeus, ou seja,

com a continuidade de sua própria historia, para se ver inserido na do outro à força, pela

violência da dominação, da subjugação que passam a vivenciar. Neste período, no convívio em

tensão das culturas aqui encontradas, observamos que ambas se transformam, tem seus traços

alterados, ou melhor, deixam de ser elas mesmas para se tornarem parte de um sistema maior

que se forma a partir de então, ou seja, passam a formar o que se pode chamar de cultura da

conquista. Apesar do esforço que fazem os colonizadores, no sentido de transformar os povos

vencidos em um todo homogeneizado, esse objetivo não é alcançado com sucesso, porque as

diferenças são mantidas, elas não desaparecem.

Desde esse primeiro momento, podemos perceber as marcas que diferenciam as culturas

que passam a existir a partir do contato com as que vieram trazidas das metrópoles europeias:

nunca foram como espelhos que apenas refletiam o que vinha da fora; desde o começo as

diferenças ficaram bem marcadas. Infelizmente, a diferença foi vista como inferioridade e não

como apenas diferença, algo que não diminui nem aprimora mais ou menos nada nem ninguém,

apenas é diferente. A mestiçagem, por muito tempo, recebeu uma carga pejorativa imensa e

desnecessária, pois era uma ameaça aos que se consideravam pertencentes a uma raça superior

a todas as outras do mundo.

No Brasil, apenas no século XX os povos indígenas tomam posse da escrita e passam a

produzir seus textos e, neles, nos contam a sua versão do confronto cultural aqui ocorrido com

a chegada dos europeus. Além disso, nos mostram a riqueza de suas culturas, que foram

preservadas na oralidade até então e também seu olhar sobre si mesmo: eles deixam de ser

falados para falarem, nos mostram a representação que fazem deles mesmos num olhar que

vem de dentro para fora, que é contrário a tudo que tivemos até esse momento de nossa

História.

O discurso histórico criado para dar conta dos fatos contraditórios da conquista e

colonização do Novo Mundo foi apresentado de modo a privilegiar a ideologia europeia que

buscava construir uma identidade homogênea dentro de um contexto diversificado. A tomada

de consciência deste direcionamento do discurso histórico levou a uma revisão dos discursos,

inclusive do literário. A partir desse momento, aqueles sujeitos que se convencionou chamar de

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vencidos foram procurados para se buscar conhecer o outro lado da história, contado e

vivenciado, desde o primeiro momento da chegada dos europeus à América, pelos povos

autóctones que aqui viviam e pelos negros que para cá foram trazidos, isso para falar apenas do

primeiro momento da formação desse complexo chamado de América Latina e, dentro dela,

especificamente, do Brasil.

A construção da identidade multifacetada, polifônica e inconclusa desde então

elaborada pelo segmento mestiço de nossas sociedades passa a ser representada nos textos que

são produzidos por esses escritores. Esta identidade, desde sua origem até nossos dias, mostra-

se como um ponto de partida em que se inicia uma convivência conflituosa das variadas etnias

e culturas que aqui viviam e das que aqui aportaram desde 1492, para a América Hispânica, e

1500 para o Brasil.

Essa identidade, construída na heterogeneidade cultural, eclode nos textos literários e, a

partir de um primeiro momento, no Romantismo, e, mais efetivamente, no Modernismo e Pós-

Modernismo, neles, também podemos observar uma descolonização do discurso em relação ao

europeu, que se colocou como hegemônico desde o início da construção do Brasil. Esse

processo apresenta como traço fundamental a aceitação de nossas diferenças: se nascemos de

uma polifonia de vozes torna-se imprescindível ouvir todas para compreender e continuar a

tecer nossa identidade que não traz em si a marca de apenas uma das vozes formadoras, mas

resulta da mescla de todas elas.

Para estudarmos esses textos literários feitos por escritores indígenas hoje, precisamos,

em primeiro lugar, entender que, durante muitos séculos apenas sendo “falado”, a figura do

índio aparece retratada de formas diversas em diferentes momentos de nossa História e da

ficção brasileira. No período da conquista e colonização, ele é apresentado em duas visões

distintas: ou é o bom selvagem, representado por aqueles índios que se deixam catequizar, que

aceitam a assimilação, ou seja, aqueles que tentam abandonar suas culturas, suas cosmogonias e

passam a viver como ditam as normas estabelecidas pelos vencedores; ou são os terríveis e

temidos canibais, que não aceitam a presença do homem branco em suas terras, que lutam para

manter a liberdade de seus povos. Na realidade, hoje sabemos que muitas etnias chamadas de

antropófagas não o eram, mas foram assim designadas porque, com essa peja, os europeus

recebiam do rei a legitimação para dizimá-las.

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Logo depois, no período do Neoclassicismo ou Arcadismo, a figura do indígena

aparece, por exemplo, na epopeia O Uraguai, de Basilio da Gama. O texto deste escritor foi

feito com o intuito de agradar o Marquês de Pombal, portanto, nele, os vilões da história são os

jesuítas, que o representante do poder português, naquele momento, expulsara do Brasil. Na

narrativa, o herói deveria ser o capitão português que comandava, junto com os espanhóis, um

exército nascido da coligação das duas metrópoles para expulsar os jesuítas que fundaram e

habitavam, junto com os indígenas guaranis, uma região chamada Povos das Sete Missões, no

sul do Brasil. No entanto, quando lemos o texto de O Uraguai, percebemos que a posição de

heróis é ocupada, também, pelas figuras dos indígenas – Sepé, Cacambo e Lindoia, entre outros

-, pois eles são descritos como sendo possuidores dos verdadeiros sentimentos que movem um

herói: honra, coragem, altivez, determinação, preocupação com os outros... Mesmo que não

tenha tido a intenção primordial, o autor nos apresenta uma representação positiva do indígena

em seu texto.

No Romantismo, a figura do indígena aparece idealizada, muito distante do que

realmente era até pelo desconhecimento dos próprios escritores que se propunham a escrever

sobre essas culturas. Essa idealização da figura do indígena recebeu o nome de Indianismo. No

Brasil, é nesse momento que surge a necessidade de se criar um herói nacional, pois a ideia de

nação está sendo construída. Enquanto, na Europa, os escritores se voltam para a Idade Média e

encontram no cavaleiro andante das trovas medievais sua figura de herói, os brasileiros se

voltam para o período correspondente em nosso continente, ou seja, a era pré-cabralina, no

exato momento da chegada do europeu. Nossos escritores vão buscar aqueles índios que aqui

existiam no momento da conquista e da colonização, vão exaltar seu heroísmo, sua luta pela

liberdade, sua altivez. Entretanto, na realidade, nosso herói será, por exemplo, Peri,

personagem do romance O Guarani, de José de Alencar, o qual representa o índio que,

deixando de viver com seu povo, se aproxima do “branco” e, por amor a uma donzela

portuguesa, se torna um vassalo de sua amada vivendo para fazer-lhe as vontades. Por isso é

uma figura idealizada: ela é criada a partir do que o pensamento hegemônico vigente na época

queria como modelo de herói nacional.

Existem muitos outros textos que trabalham essa ideia de herói, mas os de José de

Alencar são especialmente representativos dessa intenção de criar um modelo de herói para a

nação brasileira. É ainda em Alencar que encontramos uma representação bastante evidente do

pensamento disseminado e aceito de que os povos indígenas representariam a barbárie e, os

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europeus, a civilização: o romance Iracema. Nesse texto, Alencar pretende contar a história da

gênese do brasileiro: uma relação de amor entre uma índia tabajara e um colonizador português

de nome Martim. Segundo conta a história, Iracema e Martim se encontram na floresta, se

apaixonam e, abandonando seu povo, a índia vai viver só, mas com seu amor. Ela fica grávida,

tem Moacir, que significa filho da dor e morre, entregando o menino recém-nascido ao pai, que

volta para a cabana onde moram depois de guerrear. Martim leva o filho para ser criado em

Portugal e, quando adulto, ele voltará a sua terra, mas será um homem civilizado e não bárbaro,

pois terá estudado na Europa.

Para José de Alencar, Moacir é o primeiro brasileiro, ou seja, ele nasce da mestiçagem

entre os representantes das duas culturas primeiras aqui encontradas, mas, a indígena deve

morrer, por ser representante da barbárie, enquanto que a europeia, por ser considerada a

civilização, deve florescer, prosperar em nosso país. Este era o pensamento vigente na

sociedade em construção de então.

Tanto em Iracema como em O Guarani, Alencar busca mostrar que nossa formação

mestiça se fez em relacionamento de amor e não de violência – o que condiz mais com o que

realmente aconteceu. Se em Iracema, a personagem indígena precisa morrer para que o país se

torne civilizado; em O Guarani, no final apoteótico, o indígena e a mulher branca vão viver

junto ao povo original de Peri e, uma vez lá, Ceci poderá ser uma difusora da civilização

trazida pelos europeus de quem descendia e por quem fora criada. Nos dois romances,

predomina a ideia de que as culturas indígenas, que simbolizam a barbárie, devem deixar de

existir – fisicamente ou ideologicamente - para que a civilização, representada pela cultura

trazida da Europa, seja a única predominante na nação que está sendo construída então.

No movimento do Realismo, esse não foi um tema muito explorado. Machado de Assis

fala sobre o lugar de moradia, das crenças e, também, das tentativas que sofreram nos

constantes processos de tentativa de aculturação a que os povos indígenas foram submetidos

desde a conquista e colonização, no seu livro Americanas, de 1875. O escritor trabalha, nessas

poesias, a representação poética dos indígenas, falando, também das consequências do contato

entre os povos autóctones e os europeus. É um livro em que podemos observar a influência de

Gonçalves Dias e do Indianismo. As influências de José de Alencar também se fazem

presentes, mas é um Indianismo que não mostra de forma ostensiva a cor local que tornou tão

popular o gênero. Dentro dessa temática intensamente trabalhada pelos românticos, parece-nos

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que Machado de Assis se mostra bastante reservado em suas expressões. Certamente, o livro

apresenta-se como sendo uma tentativa interessante de recriar mais um "americanismo" do que

um indianismo e isso em um momento em que a consciência de pertencer a um continente

parecia criar raízes entre os intelectuais da época. Podemos perceber, nesse fato, a presença da

preocupação com a construção de uma identidade brasileira.

No Pré-Modernismo, Lima Barreto, através de seu personagem Policarpo Quaresma,

protagonista de seu livro O triste fim de Policarpo Quaresma, expõe a condição de

esquecimento, de total desprezo e rejeição que a sociedade brasileira daquele momento – o

governo republicano do Marechal Floriano Peixoto – vivencia em relação aos costumes e

tradições dos povos indígenas que, na realidade, são parte importante na nossa formação

enquanto povo brasileiro. No romance, o Major Policarpo é considerado incapaz mentalmente

quando resolve redigir, por exemplo, documentos do departamento público em que trabalhava

na língua que considerava como brasileira autêntica: o tupi-guarani. A sociedade carioca

daquele momento também estranha quando o Major passa a reproduzir, socialmente, formas de

comportamento dos povos autóctones como, por exemplo, receber pessoas em sua casa

chorando ostensivamente para demonstrar que estava com saudades como faziam os indígenas

brasileiros de determinadas etnias. O autor critica a sociedade por não ter a mínima ideia da

junção de culturas que a formava, por repelir tão enfaticamente outras formas culturais que não

fosse a considerada “civilizada” e hegemônica: a trazida da Europa.

No Indigenismo, que acontece no período do Modernismo brasileiro, a figura do

indígena aparece problematizada, ou seja, os escritores, principalmente com o respaldo do olhar

dos antropólogos, se voltam para esses povos que vivem à margem da sociedade. Eles buscam

uma solução para essa exclusão, mas acabam entendendo que esses povos seriam assimilados

pela sociedade hegemônica e acabariam desaparecendo dentro dela. Sabemos, hoje, que essa

profecia não se realizou e as etnias indígenas continuam lutando por seus direitos enquanto

cidadãos brasileiros, em igualdade com os outros segmentos sociais de nosso país. Além disso,

atualmente, os indígenas tem apresentado um número considerável no aumento de suas

populações, desfazendo essa premissa de que estariam à beira da extinção, da integração ou da

assimilação. São muitos os povos originários que deixaram de existir desde a colonização

portuguesa, mas, atualmente, muitas etnias estão renascendo e buscando o reconhecimento de

suas existências enquanto sociedades organizadas que aqui viviam desde a era pré-cabralina e

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que continuam, mesmo que em desvantagem frente aos segmentos hegemônicos da sociedade

construída no que, antes, eram seus domínios.

Na primeira geração modernista, Mario de Andrade cria, em Macunaíma, um

personagem principal que representa a mestiçagem de que nasceu o brasileiro: ele é, ao mesmo

tempo, índio, negro e branco. O escritor paulista teve conhecimento desse ser mítico para os

povos indígenas de Roraima – Wapichana, por exemplo – através de um trabalho de pesquisa

realizado por um etnólogo alemão, Koch-Grunberg. Nesse texto, encontramos o que se pode

chamar de fase demolidora do nosso Modernismo – a primeira, de 1922 a 1928, ano da

publicação de Macunaíma – que pode ser observada na própria estruturação do romance e

também, por exemplo, na aproximação da língua com a oralidade brasileira em detrimento das

regras lusitanas. Cristino Wapichana, escritor indígena da atualidade, diz que Mário de

Andrade:

Com liberdade poética, inspirou-se no personagem principal dos povos

indígenas Taurepang, Arekuna, Wapichana, Macuxi, Ingarikó, Pemon e

outros. Mas Mário nunca teve contato direto com nenhum desses povos

indígenas, sua fonte foi importada diretamente da Alemanha e em alemão, que

mesclou a outras de Capistrano de Abreu, Couto de Magalhães, Pereira da

Costa e relatos orais. (WAPICHANA: 2010, p. 16-17)

No segundo momento desse período, Darcy Ribeiro, depois de viver por dez anos entre

os indígenas da etnia Urubus-Kaapor, escreve seu romance Maíra e, nele, nos mostra o

problema de identidade que vivencia um indígena mairum – etnia criada pelo escritor - que fora

retirado do convívio de sua gente por padres missionários e que tenta voltar para assumir um

lugar especial – de líder religioso - junto de seu povo. Isaias – esse é o nome que o indiozinho

recebeu no batismo cristão – vive um conflito constante entre as crenças, os costumes, as

tradições de seu povo de origem e tudo o que aprendeu na convivência com a Igreja Católica.

Por todo o texto, acompanhamos o dilaceramento que ele sofre por não saber mais quem é.

Nesse romance, podemos observar como o pensamento de que os povos indígenas não

conseguiriam resistir por muito tempo mais ao processo assimilacionista da sociedade

hegemônica do entorno se faz evidente. Os mairum vivem cercados por mestiços, brancos e até

mesmo outros indígenas que já não vivenciam suas cosmogonias, se desligaram de suas

comunidades originais e que os ameaçam de todas as formas possíveis. Maíra, título do

romance, na realidade, é o nome que esse povo dá ao seu deus criador, que é representado pelo

sol.

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No momento atual, o Pós-Modernismo, encontramos escritores como Antonio Torres

que, após uma pesquisa em documentos históricos, publica um romance intitulado Meu querido

canibal, em que procura resgatar a história de Cunhambebe, o mais temido chefe indígena do

período da colonização por ser um canibal. Para os indígenas, na realidade, o que eles faziam

era um ritual religioso: eles comiam o corpo e bebiam o sangue dos inimigos capturados, mas

só serviam para o ritual aqueles que fossem jovens, fortes, corajosos; enfim, os que tivessem os

valores de um verdadeiro guerreiro. Cunhambebe não é descrito assim: ele era mesmo canibal.

Comia aqueles que vencia nas lutas, nas guerras pelo prazer de comer carne humana. Pelo

menos é isso que registram os livros e documentos da nossa História. Não podemos nos

esquecer, porém, de que nossa História foi contada, registrada pela ótica dos vencedores e,

portanto, precisamos tentar resgatar como esse mesmo fato seria narrado pela ótica dos

vencidos.

Além de escritores como Antônio Torres, que busca resgatar a imagem desse indígena

por um viés menos marcado pela influência do bárbaro, incivilizado, bugre; enfim, pela visão

preconceituosa elaborada desde o princípio da convivência entre as culturas primeiras, temos,

hoje, a possibilidade de acesso a uma representação feita pelo próprio personagem retratado: o

indígena. Em diferentes gêneros de textos, são muitos os escritores e poetas indígenas que se

retratam, que se deixam ver como realmente se sentem e são. Os “selvagens” invadem, hoje, as

Academias e, tomando posse da escrita trazida pelos colonizadores e usada como um

instrumento de poder e fetiche para subjugar sua oralidade de arco-íris musical, escrevem e se

mostram por um lócus antes nunca conhecido: o próprio olhar. Carlos Tiago, da etnia Saterê-

Mawé, do Amazonas diz que:

Sou índio, sou cor, sou raça de mil florestas.

Meu tacape, dança da tucandeira, minha tradição,

se mostra em noites de muitas festas.

Lembranças e madrugadas correm em minhas veias

E preservam o gosto das águas antepassadas

Colhidas nas belas noites de lua cheia.

Chuvas de tradição molham meu rosto.

Sou índio, minha cultura é minha pele.

A mata sobrevive em minha canção;

Faz parte de minha sina, do meu índio coração.

Sou índio, sou sonho, raiz da nação brasileira.

Minha bandeira pela igualdade, minha história renascendo em livros

E minha luta solfejando a sobrevivência.

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(TIAGO: 2009, p.17)

Atualmente, já é bem numerosa a lista de nomes de indígenas das variadas etnias que,

superando os processos aculturadores a que foram submetidos, estão escrevendo textos

literários em que afirmam sua identidade que, mesmo passando por processos

transculturadores, permanece viva até hoje.

Para esses escritores, o texto literário ou mesmo os textos escritos em qualquer outra

área, como a do Direito, a da História, a da Antropologia, a da Educação, só para citar alguns

exemplos dos lugares pelos quais eles estão transitando com muita competência, o escrever é

mais um instrumento na luta pelo reconhecimento dos direitos que lhes foram usurpados desde

o momento do “encontro” aqui acontecido com a chegada dos europeus no século XVI até

nossos dias.

Os textos literários que esses escritores estão publicando contam suas lendas, mitos,

gênese de formação; enfim, nos falam de suas cosmogonias que sobreviveram e estão mais

vivas do que nunca no imaginário desses povos. Mas, além disso, em muitos desses escritos

podemos observar que eles nos contam também a sua forma de ver os fatos acontecidos em

nossa História, cuja versão oficial só foi escrita pela ótica dos considerados vencedores das

guerras da conquista e da colonização de nosso continente. Ainda nas palavras de Cristino

Wapichana, podemos observar uma das preocupações principais que perpassam seus textos: o

direito ao respeito.

Não desrespeitamos ou menosprezamos o sagrado e a crença dos outros

povos, mesmo aqueles que não conhecemos. O sagrado é parte integral da

cultura indígena durante toda a vida, e a vemos em tudo o que vive. A terra, o

rio, as florestas, os campos naturais, os animais, tudo tem a presença do

Criador. Nossas histórias tradicionais estão carregadas de símbolos e

significados, fazendo parte de nossa educação e formação como seres

inseridos no mundo. Essa ligação íntima, necessária ao equilíbrio da vida,

funde o mundo físico e o espiritual de forma tão homogênea que nos torna

seres completos.

(WAPICHANA: 2011, p. 16-17)

São muitos os escritores indígenas que, atualmente, buscam a academia num

movimento de conhecer, entender e usar tudo que puderem aprender para seguirem a luta

iniciada por seus ancestrais, desde o primeiro momento do “encontro” entre culturas aqui

acontecido em 1500, pelo respeito à diferença e que essa diferença não seja marca de

inferioridade.

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TENTATIVA DE FECHAMENTO PROVISÓRIO DE UM TEXTO AINDA EM

CONSTRUÇÃO

Apesar dos incalculáveis processos de aculturação a que foram expostos por tantos

séculos, ainda hoje podemos observar que os povos indígenas mantém determinadas

características formadoras de sua identidade que nada conseguiu abalar. Por exemplo, a

importância muito maior do coletivo do que do individual: a construção do sujeito individual se

faz, naturalmente, no coletivo, na imersão profunda na alma viva de uma comunidade que não

se deixou destroçar por nenhuma ameaça de fora. Seus textos nos mostram exatamente isso:

seres que formam sua individualidade dentro de um coletivo que os torna completos.

Lendo um livro que relata uma experiência riquíssima vivenciada por uma equipe de

pesquisadores devidamente orientados pelo Professor José Carlos Sebe Bom Meihy, em

Dourados, Mato Grosso do Sul, percebi, desde as primeiras palavras, essa impossibilidade de

construção desses sujeitos fora de um pensamento de comunidade. Ao tentar fazer entrevistas

para a organização da estrutura do trabalho, não se conseguiu que acontecessem

individualmente, porque “se nos evidenciou que o discurso, apesar de dirigido por um narrador,

espelhava as marcas de uma fala comunitária”. (SEBE BOM MEIHY: 1991, p. 20) Essa é uma

das características que não sofreu modificação mesmo com a exposição a processos tão

violentos de tentativas de desestruturação desses sujeitos.

Outra constatação que aconteceu em nossos dias: os índios não estão mais apenas

vivendo nas aldeias, eles, hoje, estão espalhados pelas metrópoles, pelos estados, pelas ruas e

bairros de todas as cidades brasileiras. Muitos não se conformaram em ficar tutelados à

administração do governo, saíram em campo e vieram das matas, das aldeias para a cidade em

busca de sua sobrevivência. Como terá sido, para os pioneiros, essa questão de viver em uma

sociedade que milenarmente não os aceitava em seu meio? Afinal, os povos indígenas estavam

bem escondidos sob uma capa de invisibilidade lançada sobre eles fazia séculos...

Alguns processos foram acontecendo para que esse manto começasse a ser retirado e,

entre eles, podemos citar a Constituição de 1988, que reconheceu o direito à autoidentificação

desses povos. Também os estudos de pensadores, como Darcy Ribeiro, Betty Mindlin, entre

muitos outros, que levantaram a questão de nossa formação plural, afinal, nascemos como povo

do ventre de negras e índias também.

Mesmo vivendo na cidade, o indígena é coletivo. Como encontramos em um documento

do IBGE de 2002: Na cidade, formam redes de reciprocidade e sempre riscam uma linha de onde

estão agora que vai dar lá no pátio da antiga aldeia, vila ou paróquia da missão

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onde foram seus avós aldeados. Estão na cidade, mas, definitivamente, não

são da cidade. (MUNDURUKU e WAPICHANA: 2009, p. 42)

Em alguns momentos, essa convivência com o outro que continua, em sua grande

maioria, não conseguindo entendê-lo, deve ser bastante insatisfatória para os indígenas das

várias etnias que estão nas cidades. Conversando com um deles, Thini-á Funiô, um grande e

querido amigo, ele me contou que, uma vez, no Museu do Indio, onde estava promovendo uma

roda de contação de histórias, se aproximou uma mulher “branca” toda maquiada e perguntou o

porquê dele se pintar da maneira como havia feito. Ele olhou para ela e retornou a pergunta: por

que ela se pintava da maneira como havia feito? No final, ele respondeu que ambos haviam se

pintado pelo mesmo motivo: sentiam-se mais belos assim. Na realidade, continua a barreira que

impossibilita a aceitação do diferente simplesmente como diferente, ainda continuamos a olhar

os indígenas como o diferente exótico, causa estranhamento o fato de eles não se comportarem

de acordo com as regras de uma sociedade que se impõe como a conhecedora do único

caminho possível para a realização que trará a felicidade tão almejada por todos nós. Como no

século XVI, muitos continuam incapazes de olhar e ver que o arco-íris é tão lindo porque dá

lugar a todas as nuances possíveis de cores, mas precisamos nos colocar na posição de parar e

observar sem querer imediatamente colocar dentro de uma classificação pré-existente e

considerada a única possibilidade de verdade cientificamente comprovada.

Enquanto nos colocarmos nessa posição de donos do saber, não conseguiremos nos

abrir para compreendermos as riquezas que estão a nossa volta e que deixamos de aproveitar,

apreender o conhecimento que nos vem desses saberes ancestrais por tanto tempo relegados a

uma conceituação preconceituosa apenas pelo medo de descobrirmos que o outro também é

dono de saberes que desconhecemos. Eles encontraram, no caminho da transculturação, a

forma perfeita: assimilar o que a sociedade do entorno tem a oferecer sem abrir mão daquilo

que é seu, que seus povos construíram nos muitos séculos de caminhada nessas terras férteis e

abençoadas.

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