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A REORGANIZAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS EM TEMPOS DE PACIFICAÇÃO DO TERRITÓRIO” NO RIO DE JANEIRO WILLIAN ANDRION DO VALLE 1 Resumo O presente trabalho trata das estratégias criadas por traficantes baseados na favela da Mangueira (RMRJ) para operar o comércio varejista de drogas após a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na localidade. A UPP constituiu a principal política de segurança pública fluminense nos últimos dez anos e foi caracterizada, dentre outras coisas, por um policiamento permanente e ostensivo, apoiado em ações menos agressivas e na existência de um diálogo (bem limitado, é bom que se diga) entre parte do efetivo policial e alguns moradores das favelas onde foi implantada. Essas iniciativas proporcionaram alguns avanços, como a redução do número de confrontos entre policiais e traficantes e o consequente arrefecimento da violência letal medido, por exemplo, pela diminuição dos homicídios associados aos “autos de resistência”. Entretanto, a impossibilidade da política de segurança estadual atender o grande número de favelas territorializadas por traficantes de drogas na RMRJ e o caráter pedagógico do programa de pacificação que impunha regras e formas de sociabilidade que afetavam o exercício da autonomia e as práticas dos moradores das favelas são identificados como alguns dos graves problemas das UPPs. Antes da instalação da UPP na Mangueira, em 2011, pode-se dizer que o ordenamento territorial dessa favela era pautado principalmente pela resultante da relação entre o tráfico de drogas (considerado o “Dono do Morro”) e os moradores e suas lideranças. Nesse contexto, as incursões de policiais apresentavam apenas ameaças conjunturais ao domínio imposto pelos traficantes locais, até porque estes últimos mantinham relações promíscuas como os primeiros (pagamento de “arregos” e subornos). Com a policialização permanente da referida favela, surgiu um cenário diferente, no qual os traficantes precisaram submeter suas atividades a uma nova regulação, sem a qual a venda de drogas correria o risco de sofrer perdas significativas. 1 Geógrafo e professor. Cursa Doutorado em Geografia e Meio Ambiente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ. Contato: [email protected]

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A REORGANIZAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS EM TEMPOS DE

“PACIFICAÇÃO DO TERRITÓRIO” NO RIO DE JANEIRO

WILLIAN ANDRION DO VALLE1

Resumo

O presente trabalho trata das estratégias criadas por traficantes baseados na favela da

Mangueira (RMRJ) para operar o comércio varejista de drogas após a implantação da Unidade de

Polícia Pacificadora (UPP) na localidade.

A UPP constituiu a principal política de segurança pública fluminense nos últimos dez anos e

foi caracterizada, dentre outras coisas, por um policiamento permanente e ostensivo, apoiado em ações

menos agressivas e na existência de um diálogo (bem limitado, é bom que se diga) entre parte do

efetivo policial e alguns moradores das favelas onde foi implantada.

Essas iniciativas proporcionaram alguns avanços, como a redução do número de confrontos

entre policiais e traficantes e o consequente arrefecimento da violência letal – medido, por exemplo,

pela diminuição dos homicídios associados aos “autos de resistência”. Entretanto, a impossibilidade da

política de segurança estadual atender o grande número de favelas territorializadas por traficantes de

drogas na RMRJ e o caráter pedagógico do programa de pacificação – que impunha regras e formas

de sociabilidade que afetavam o exercício da autonomia e as práticas dos moradores das favelas – são

identificados como alguns dos graves problemas das UPPs.

Antes da instalação da UPP na Mangueira, em 2011, pode-se dizer que o ordenamento

territorial dessa favela era pautado principalmente pela resultante da relação entre o tráfico de drogas

(considerado o “Dono do Morro”) e os moradores e suas lideranças. Nesse contexto, as incursões de

policiais apresentavam apenas ameaças conjunturais ao domínio imposto pelos traficantes locais, até

porque estes últimos mantinham relações promíscuas como os primeiros (pagamento de “arregos” e

subornos). Com a policialização permanente da referida favela, surgiu um cenário diferente, no qual os

traficantes precisaram submeter suas atividades a uma nova regulação, sem a qual a venda de drogas

correria o risco de sofrer perdas significativas.

1 Geógrafo e professor. Cursa Doutorado em Geografia e Meio Ambiente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ. Contato: [email protected]

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A situação acima não indica que o tráfico de drogas deixou de ter importância na Mangueira,

mas que a instalação da UPP e a operação permanente da polícia nesse espaço – com toda a

visibilidade política e midiática que antecedeu e acompanhou essas iniciativas – forçaram os traficantes

a uma reorganização espacial do negócio das drogas, bem como ao recuo da prática de expor armas

pesadas (como o fuzil, por exemplo), atitude necessária para evitar uma afronta direta ao “projeto de

pacificação de favelas”.

O novo arranjo do tráfico de drogas compreendeu a extinção da boca de fumo e o início de um

comércio móvel com a criação de pontos de venda (com vida mais efêmera) em diferentes locais da

favela, além do transporte das drogas para o seu entorno.

Palavras-chave: Tráfico de drogas, Rio de Janeiro, UPP

Abstract

The present work deals with the strategies created by traffickers based in the Mangueira favela

(RMRJ) to operate the retail drug trade after the implementation of the Pacifying Police Unit (UPP) in

the locality.

The UPP was the main public security policy in Rio de Janeiro in the last ten years and was

characterized, among other things, by permanent and ostensive policing, supported by less aggressive

actions and by the existence of a dialogue (quite limited, it is good to say) between part of the police

force and some residents of the favelas where it was implanted.

These initiatives have made some progress, such as reducing the number of clashes between

police and traffickers and the consequent cooling of lethal violence - measured, for example, by the

decrease in homicides associated with "autos de resistência". However, the impossibility of state

security policy to attend to the large number of favelas territorialized by drug traffickers in the RMRJ and

the pedagogical character of the pacification program - which imposed rules and forms of sociability that

affected the exercise of autonomy and the practices of the residents of favelas - are identified as some

of the serious problems of UPPs.

Before installing the UPP in Mangueira, in 2011, it can be said that the territorial organization of

this favela was mainly based on the result of the relationship between drug trafficking (considered the

"Dono do Morro") and the residents and their leaders. In this context, police incursions presented only

short-term threats to the area imposed by local traffickers, because the latter maintained promiscuous

relationships such as the former (payment of "arregos" and bribes). With the permanent policing of this

favela, a different scenario emerged, in which the traffickers had to submit their activities to a new

regulation, without which the sale of drugs would run the risk of suffering significant losses.

The above situation does not indicate that drug trafficking is no longer important in Mangueira,

but that the establishment of the UPP and the permanent operation of the police in that space - with all

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the political and media visibility that preceded and followed these initiatives - forced traffickers to a

spatial reorganization of the drug business, as well as a retreat from the practice of exposing heavy

weapons (such as a rifle, for example), an attitude necessary to avoid a direct affront to the "favela

pacification project”.

The new arrangement of drug trafficking included the extinction of the boca de fumo and the

beginning of a mobile commerce with the creation of points of sale (with more ephemeral life) in different

places of the favela, besides the transport of drugs to its surroundings.

Keywords: Drug trafficking, Rio de Janeiro, UPP

1 – Introdução

A problemática da insegurança pública no Rio de Janeiro, em larga medida

associada às ações do tráfico de drogas e, mais recentemente, à atuação das milícias

paramilitares, tem gerado inúmeros problemas, que incluem desde elevados custos

materiais para os cidadãos e para a economia urbana até a disseminação do medo

vinculado à criminalidade urbana violenta.

Diante desse quadro, nas últimas décadas, as políticas de segurança do

executivo estadual do Rio de Janeiro foram essencialmente pautadas pelo confronto

aberto com os traficantes baseados em favelas, o que resultou em muitas mortes,

desmobilização de obras (como algumas das que foram promovidas pelo programa

de urbanização Favela-Bairro), desvalorização imobiliária, além de terem reforçado a

imagem negativa da polícia na opinião pública.

A partir do final de 2008, com a implantação das Unidades de Polícia

Pacificadora (UPPs), teve início uma mudança (infelizmente, ainda dentro dos moldes

conservadores) nas formas de a polícia tratar do tráfico de drogas e também de

abordar os moradores das favelas “pacificadas”. Na prática, foi estabelecido um

policiamento permanente e ostensivo, com ações, de modo geral, menos agressivas

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e com a existência de um diálogo bem limitado entre parte do efetivo policial e alguns

moradores das referidas favelas.

De uma visão de sobrevoo, essa mudança trouxe alguns avanços, como a

redução do número de confrontos entre policiais e traficantes e a consequente

diminuição dos homicídios associados aos “autos de resistência”, além do

arrefecimento da violência letal e, em menor medida, dos roubos nas favelas onde

houve a implantação das UPPs (CANO, 2012, pag. 32). Entretanto, a impossibilidade

do programa se generalizar para as mais de mil favelas cariocas e o caráter civilizador

das ações de muitas UPPs – impondo regras e formas de sociabilidade, estranhas ao

cotidiano dos moradores desses espaços – aparecem na literatura especializada no

tema2 como problemas do atual projeto de segurança pública estadual.

O presente trabalho, que resulta de uma releitura de um dos capítulos da

dissertação de mestrado do autor3, aborda de forma predominantemente empírica

como a policialização da favela da Mangueira, localizada na cidade do Rio de Janeiro,

impactou o tráfico de drogas ali estabelecido.

A pesquisa que deu origem a referida dissertação foi desenvolvida no triênio

2014 - 2016 e contou com a realização de cinco trabalhos de campo e mais de trinta

entrevistas com moradores locais, lideranças comunitárias e policiais da UPP

Mangueira.

2 – A reorganização do tráfico de drogas na favela da Mangueira

A partir do final de 2011, com a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora

na Mangueira, os traficantes locais precisaram submeter suas atividades a uma nova

2 MACHADO DA SILVA (2010), SOUZA (2011), LEITE (2012), entre outros. 3 “As implicações territoriais da ‘pacificação’ de favelas: um estudo sobre a Unidade de Polícia

Pacificadora da Mangueira (Rio de Janeiro)”, orientada pelo saudoso Prof. Dr. Andrelino de Oliveira Campos e defendida, em novembro de 2016, na Faculdade de Formação de Professores da UERJ.

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regulação, sem a qual a venda de drogas na favela correria o risco de definhar

substancialmente.

O tráfico de drogas não perdeu sua importância nem tampouco a possibilidade

de ser lucrativo – bastando, nesse contexto, considerar as disputas que resultaram na

morte de Tuchinha (personagem que, por muito tempo, controlou o tráfico na

Mangueira) e os vários confrontos que tensionaram a favela a partir desse episódio4

–, mas a instalação da UPP e a operação permanente da polícia nesse espaço

forçaram os traficantes a uma reorganização espacial do negócio das drogas, bem

como ao recuo da prática de expor armas pesadas (como o fuzil, por exemplo), atitude

necessária para evitar uma afronta direta ao “projeto de pacificação”.

Para explicar a referida reorganização espacial, o autor precisará primeiro

descrever o day before do tráfico de drogas, ou seja, as suas formas de operação

antes da instalação da UPP na favela.

Os relatos de vários entrevistados e as observações de campo realizadas pelo

autor dão conta de que a territorialidade dos traficantes era manifestada de forma

ostensiva na favela. Além disso, o tráfico apresentava uma divisão do trabalho típica,

muito semelhante a que foi descrita no clássico trabalho de SOUZA (1999, pág. 61) –

compreendendo o chefete local, o gerente da boca, os soldados (responsáveis pela

proteção do negócio), os olheiros e “aviõezinhos” (que, respectivamente, avisavam

sobre a aproximação da polícia e entregavam drogas aos consumidores que tinham

receio de entrar na favela) – e apoiava-se logisticamente na boca de fumo, local onde

a droga era armazenada e vendida. A boca de fumo, dada sua importância para o

4 Conforme relataram um morador e vários policiais, entrevistados pelo autor, entre julho de 2015 e março de 2016. As declarações de um policial, durante entrevista realizada em 18 de fevereiro de 2016, são bem esclarecedoras a esse respeito e merecem destaque. Segundo ele, a morte de Tuchinha trouxe vários transtornos. Os traficantes locais se armaram para evitar incursões de rivais, além disso, uma parte dos traficantes mudou do Comando Vermelho (CV) para a facção Amigos dos Amigos (ADA) e prometeu voltar para tomar a favela. Esse policial ainda mencionou que traficantes de outra favela teriam chegado a entrar na Mangueira, deixando-a logo em seguida. Como percebido pelo próprio autor, esse “clima de tensão” durou bastante tempo, estendendo-se de setembro de 2014, quando Tuchinha é assassinado, até quase o final do ano seguinte.

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comércio varejista de drogas, ficava sob vigilância constante dos soldados do tráfico,

a exemplo com o que acontecia com o paiol de armas.

Com certa frequência5, durante a realização dos bailes funk, grandes

quantidades de droga eram levadas para o mais importante logradouro da favela, a

rua Saião Lobato6, e, diante de um grande público, eram comercializadas sem

quaisquer problemas ou constrangimentos. Um jovem morador, durante entrevista

realizada em 30 de julho de 2015, explicou que, quando da realização dos bailes, que

chegavam a reunir milhares de pessoas, as drogas eram dispostas em banquetas,

que ficavam sobre as calçadas da referida rua, tornado o comércio varejista

semelhante ao de uma feira.

Uma assistente social do CRAS Candelária7, entrevistada em 18 de março de

2016, ainda considerou outro fator relevante acerca do tema: não era só a economia

das drogas que crescia com os bailes, os comerciantes das biroscas do Buraco

Quente também viam seus negócios prosperarem com esses eventos na favela. Essa

interlocutora chegou a declarar que: “Os bailes bombavam: eram patricinhas em

carrões, que ficavam até seis horas da manhã, não havia como estacionar”.

De modo geral, a compra de drogas acontecia de forma muito simples:

recorrendo-se a boca de fumo, estabelecida em local bem conhecido pelos

consumidores ou durante a realização dos bailes funk, quando o comércio parecia

chegar ao seu ápice (vide figura 01, a seguir). Outro aspecto relevante é que nem

sempre o usuário era quem comprava a droga. Quando membro da classe média ou

da elite urbana, não raro, delegava essa tarefa a um de seus funcionários ou mesmo

a taxistas ou mototaxistas.

5 O autor não sabe se semanal ou mensal. 6 Localizada em uma parte da favela conhecida como Buraco Quente. Muitas casas e lojas comerciais

ao longo desse logradouro apresentavam a inscrição do Comando Vermelho, facção que controla o tráfico na localidade 7 O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é uma unidade pública municipal localizada em

áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, destinada ao atendimento socioassistencial de famílias. O referido CRAS fica localizado na parte da favela conhecida como Candelária.

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Mesmo com uma manifestação ostensiva, os traficantes não deixavam de

alimentar uma prática assistencialista na favela, contribuindo para a satisfação de

necessidades urgentes de alguns moradores (a exemplo da compra de

medicamentos), como evidenciaram alguns dos interlocutores do autor, durante o

curso da pesquisa.

Quando começaram a ser postas em prática as “ações de pacificação” na

favela da Mangueira, no final de 2011, o tráfico deixou de ser ostensivo e “aberto” e

passou a ocorrer de forma mais discreta e “camuflada”, o que parece ser um

comportamento predominante em todas as favelas que receberam Unidade de Polícia

Pacificadora.

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Figura 01 – Croqui elaborado pelo autor com base em levantamentos de campo e entrevistas. A

localização da boca de fumo e a rota do tráfico de tipo delivery são conjecturas.

O elemento central para a compreensão dessa reorganização do tráfico de

drogas é a extinção da boca de fumo (pelo menos na sua concepção tradicional) e o

início de um comércio varejista de tipo itinerante, móvel. Em outros termos, ao invés

de armazenar e comercializar as drogas em um local fixo e conhecido dos

consumidores e da própria polícia, os traficantes estabeleceram pontos de venda (com

vida mais efêmera) em diferentes locais da favela e também passaram a levar as

drogas para o seu entorno – estabelecendo, inclusive, uma associação com outros

traficantes, os da (micro)favela do metrô8, conforme bem destacou o comandante da

UPP Mangueira, durante entrevista realizada pelo autor em 19 de fevereiro de 2016.

Além disso, com a proibição dos bailes funk, a rua Saião Lobato, importante via

carroçável da Mangueira, deixou de ser um espaço privilegiado da venda disseminada

de drogas.

Nesse novo cenário, os traficantes precisaram construir uma rede de

facilitadores que: 1) informassem e/ou conduzissem os compradores ao local onde,

naquele momento, a droga estava disponível para venda; ou 2) levassem as drogas

para locais no entorno da Mangueira, previamente combinados com os

consumidores9.

Segundo relatos de um policial e de uma jovem moradora da favela10 (que

corajosamente informou ter parentesco com alguns traficantes locais), os maiores

facilitadores do comércio varejista pós-pacificação são os moto-taxistas. Ela informou

que os traficantes avisam onde estão e pedem que moto-taxistas levem os

consumidores ao seu encontro. O referido policial, por sua vez, corroborou com o

8 Localizada no entorno da favela da Mangueira. 9 Há indícios de que essa modalidade de tráfico do tipo delivery já existia, com frequência bem menor, antes da favela ser “pacificada”. 10 Entrevistados pelo autor, respectivamente, em 19 e 18 de fevereiro de 2016.

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relato da moradora e ainda ratificou a constatação do autor, segundo a qual os

traficantes cuidam para que as drogas também sejam vendidas no entorno da favela.

A questão que deve guiar as ações do comprador/usuário passa a ser quem procurar

e não mais para onde ir.

Os pontos de venda itinerantes, por sua vez, podem ser desde a varanda de

uma casa ou uma birosca até o pequeno trecho de uma calçada, onde se deixa uma

mochila repleta de drogas. Esse último tipo (estratégia), que pareceu ser comum,

preserva de modo mais eficiente o traficante de uma eventual abordagem policial.

Nesse caso, o responsável pela venda das drogas só vai ao encontro da mochila

quando aparece algum comprador e, rapidamente, se afasta do local quando percebe

a chegada de policiais.

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Figura 02 – Croqui elaborado pelo autor com base em levantamentos de campo e entrevistas. A localização dos pontos de venda itinerantes e as rotas do tráfico de tipo delivery são conjecturas.

Essa reestruturação espacial do tráfico de drogas (figura 02) cria uma nova

divisão do trabalho, com destaque para o papel desempenhado pelos facilitadores,

como o autor resolveu chamar os que transportam as drogas ou os seus compradores,

dependendo do caso. É obvio que as figuras do “dono do negócio” e do gerente do

tráfico continuam (e continuarão) a existir, os soldados também são mantidos, mas

com uma atuação ligeiramente diferenciada: eles cuidam principalmente dos locais de

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armazenamento das drogas e das armas e da defesa do negócio diante da tentativa

de invasão de um grupo rival11, no entanto, ficam desincumbidos de defender os

pontos de venda (até porque sua presença nesses espaços despertaria a atenção dos

policiais e comprometeria o comércio varejista).

Seria dificílimo precisar como esse processo de reestruturação do tráfico

(alguns prefeririam falar em modernização12) afetou numericamente o contingente de

traficantes estabelecidos na favela. Na verdade, quantificar as pessoas associadas,

em diferentes níveis, ao comércio varejista de drogas sempre foi uma tarefa

complicada13. A grande questão é que, mesmo sabendo da emigração de alguns

traficantes, a julgar pelos relatos de policiais e moradores entrevistados no curso da

pesquisa, não se sabe como e quando se deu (e se, de fato, ocorreu) o recrutamento

de novos soldados, por exemplo. A única certeza nessa seara é a associação (poderia

se falar também em recrutamento, embora o termo não seja o mais adequado) dos

facilitadores ao negócio das drogas, em que pesem os fatos de estes não se

dedicarem exclusivamente ao tráfico e de seu número ser potencialmente variável em

função da maior ou menor procura por drogas na favela.

Se por um lado, há parcos indícios sobre o impacto da “pacificação” na

quantidade de traficantes em operação na Mangueira, por outro, não são poucos os

relatos de que, mesmo com a sua reestruturação, o tráfico de drogas se tornou menos

lucrativo. O policial responsável pelo setor de relações públicas da UPP Mangueira

afirmou, durante entrevista concedida em 18 de fevereiro de 2016, que “o tráfico vende

bem, mas bem menos do que antes da UPP”. A moradora que disse ter parentesco

com alguns traficantes, mencionada alguns parágrafos atrás, também declarou que o

tráfico foi lesado financeiramente após a instalação da Unidade de Polícia

Pacificadora na favela.

11 Como ocorreu após a morte de Tuchinha, mencionada no início do texto. 12 Ver a entrevista concedida por SOARES (2014). 13 Consultar SOUZA (1999, pág. 62-66) para maiores informações.

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Agora, a fragilização econômica dos traficantes não é tão significativa a ponto

de comprometer sua capacidade de ingerência no ordenamento territorial da favela.

Os traficantes continuam:

1) Mantendo uma prática assistencialista, conforme declararam algumas

moradoras entrevistadas: “os traficantes ajudam os moradores, é só saber

quem procurar” e “os moradores têm acesso livre aos traficantes” 14;

2) Sendo consultados e/ou informados sobre relevantes iniciativas encabeçadas

pela população local. Um conhecido líder comunitário da favela15 mencionou

que a última eleição para a associação de moradores, realizada em 2014,

precisou ser precedida por diálogos com o comando da UPP local e com os

traficantes para que transtornos fossem evitados;

3) Interferindo, deliberada ou involuntariamente, em algumas atividades ou

projetos propostos para os (ou pelos) moradores da Mangueira. Um policial,

com quem o autor estabeleceu um diálogo rápido e informal na sede da UPP,

durante o trabalho de campo realizado em março de 2016, declarou que as

reuniões dos fóruns comunitários realizados na favela estavam suspensas por

conta de tiroteios e conflitos. O vice-presidente da associação de moradores,

Thiaguinho da Mangueira, já havia informado, oito meses antes, a ocorrência

de, aproximadamente, cinco confrontos armados por mês entre policiais e

traficantes locais, o que interfere sensivelmente no quotidiano dos moradores.

Outro policial, entrevistado em 18 de fevereiro de 2016, declarou que “a

presença e influência do tráfico traz instabilidade, o tráfico é forte ainda”.

3 – Encaminhamentos finais

Estudar a operação do tráfico de drogas em uma metrópole complexa e violenta

como o Rio de Janeiro contribui muitíssimo para a compreensão do tema da

14 Relatos de moradores entrevistados pelo autor em 18 de fevereiro de 2016. 15 Entrevistado na sede da associação de moradores em 30 de julho de 2015.

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segurança pública lato sensu, mas constitui importantes desafios metodológicos e de

segurança pessoal para os pesquisadores envolvidos.

Em primeiro lugar, os traficantes, como se tentou mostrar neste breve ensaio,

geralmente se reorganizam em função dos novos ordenamentos impostos pelas

políticas de segurança, e isso certamente acontece com nuances importantes entre

os diferentes espaços por eles territorializados. Em segundo lugar, os referidos

ordenamentos podem ser (e, frequentemente, são) desfeitos por conta de mudanças

no executivo estadual ou por crises conjunturais, basta ver a pouca longevidade que

se espera do projeto das UPPs. O último desafio aponta para as milícias paramilitares

que, em franca expansão na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, disputam com

os traficantes pelo controle ilegal do território, sendo pouco (ou nada) combatidas

pelas forças policiais.

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