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1 A RELAÇÃO ENTRE O CRISTIANISMO PRIMITIVO E A ORDEM IMPERIAL ROMANA: ELEMENTOS POLÍTICOS NA OBRA DE SÃO LUCAS

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A RELAÇÃO ENTRE O CRISTIANISMO PRIMITIVO E A ORDEM IMPERIAL ROMANA: ELEMENTOS POLÍTICOS NA OBRA DE SÃO LUCAS

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A Relação entre o Cristianismo Primitivo e a Ordem Imperial Romana: elementos políticos na obra de São Lucas

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Dedico esta obra à todos que se empenham na transmissão do Evangelho, aos meus pais e familiares e, especialmente, aos meus avós falecidos.

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Gustavo Cambraia Franco

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO....................................................................................7

Cap. 1 ASPECTOS GERAIS E SENTIDO HISTÓRICO DA PAX ROMANA............................................................................................31

1.1 O Período do Principado e a Pax Augusta/Pax Romana...........29

1.2 A Ideologia Imperial.....................................................................41

1.3 O Culto Imperial...........................................................................57

1.4 O Sistema de Patronagem.............................................................68

Cap. 2 OS ESCRITOS DE LUCAS FACE À REALIDADE

HISTÓRICA, INSTITUCIONAL E IDEOLÓGICA DA PAZ

ROMANA............................................................................................77

2.1 O Autor e as Fontes......................................................................77

2.2 Cristo e César: Lucas-Atos como Contra-Narrativa ao

Império................................................................................................85

2.2.1 A Pax Dei e a Pax Augusta........................................................89

2.2.2 O Nascimento de Jesus, Senhor, Salvador e Portador da

Paz........................................................................................................99

2.2.3 Elementos de contra-narrativa nos Atos dos

Apóstolos............................................................................................109

2.2.4 A linguagem sócio-econômica nos escritos de

Lucas..................................................................................................121

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CAP 3- AS REPRESENTAÇÕES DO PODER ROMANO EM

LUCAS-ATOS...................................................................................131

3.1- Lucas-atos: obra política ou apolítica?....................................131

3.2 A Questão do Tributo à César...................................................135

3.3 O Movimento de Jesus e as Autoridades Romanas..................141

3.3.1 A condenação de Jesus.............................................................141

3.3.2 A representação do poder romano em Atos: o caso de

Tessalônica.........................................................................................148

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................156

BIBLIOGRAFIA...............................................................................164

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Nos tempos da Antiga Aliança, Moisés conduziu o povo caminhante pelo deserto atéas fronteiras da terra prometida, na qual ele mesmo não foi permitido entrar. Ele a viu de longe e morreu. E Deus mesmo sepultou o amigo a quem tinha negado esta última coisa. Outro conduziu o povo para o interior da terra prometida-Josué, a quem os gregos chamam Jesus.

Nos tempos da Nova Aliança, Augusto conduziu os homens ao limite da benção que um homem imperial podia trazer para a humanidade. E a História deu ao seu favorito escolhido, a quem ela teve de negar a última coisa, o mais honorável memorial entre os mortais. Mas o caminho para a terra prometida foi percorrido por outro, pelo grande estrangeiro do outro mundo, Jesus.

Ethelbert Stauffer

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INTRODUÇÃO

presente trabalho traz como temática a

relação entre o discurso bíblico

neotestamentário e, de forma específica,

aquele presente nos escritos de Lucas e a ordem imperial

romana, sob o ponto de vista das ideologias e práticas

subjacentes à construção e elaboração de dois projetos com

configurações distintas, ou seja, o projeto imperial do

período da Pax Romana, sustentado pelo arcabouço ideário

da Ideologia de Augusto e pautado na reconfiguração

política, social, econômica e cultural do império e o projeto

cristão das comunidades apostólicas, consignados, em

parte, nos escritos do novo testamento, cujo discurso se

apresenta como modelador do comportamento e do

posicionamento cristão face às estruturas de dominação

vigentes no império.

Tendo como pressuposto o entendimento de que o

discurso cristão do primeiro século não poderia estar inócuo

às realidades políticas, sociais e culturais do contexto no

qual se desenvolveu a Pax Romana, o material escriturístico

O

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produzido pelos elementos diretivos e formadores das

primeiras comunidades cristãs, seu ideário e as práticas

sociais que elas ensejavam, se apresentam como formas

narrativas e sócio-culturais elaboradas, de alguma forma,

não somente para confirmar e reforçar e modelar a fé e os

costumes de seus seguidores, ou seja, elaboradas com fins

unicamente religiosos, mas também como uma forma de

resposta, muitas vezes crítica, ao quadro histórico imperial

mais amplo no qual estavam inseridas.

É inquestionável que vivemos em uma era de

imperialismos. A emergência, no século XIX, dos Estados-

nações e da lógica expansionista que os caracterizava e que

permitiu às nações europeias açambarcar em seu domínio e

explorar inúmeros territórios e populações, de vários

continentes, durante quase um século, produziu efeitos na

sociedade global que permanecem até os dias de hoje. À

empresa europeia de colonização, que entrou em colapso

nas primeiras décadas da segunda metade do século XX e

após a experiência traumática do nazi-fascismo e das

grandes guerras, seguiu-se o estabelecimento dos pólos

binários da Guerra Fria, que dividiu o globo em dois

sistemas, o capitalista e o socialista, respectivamente

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orientados e liderados por Estados Unidos e União

Soviética. Com a ruína do projeto soviético, em 1991, os

Estados Unidos da América pôde se estabelecer,

definitivamente como potência hegemônica e estender seus

tentáculos e consolidar suas prerrogativas políticas,

econômicas e culturais, senão em todo o globo, ao menos e,

certamente, em todo o mundo ocidental.

Seria inútil elencar os diversos elementos que

compõe o complexo sistema de efetivação do ordenamento

imperialista estadunidense, as formas de controle político e

militar, justificados ou não, exercidos por esta nação e os

inúmeros sofrimentos e alienações causados, sentidos ou

não, por sua estratégia belicista e de sufocamento

econômico e cultural, ancoradas sob a égide de pretensa

liberdade, paz e segurança.

Assim procurou o Principado romano se organizar,

propagando entre as massas slogans ideológicos, como

“Paz”, “Salvação”, “Prosperidade”, “Segurança” e

“Ordem”, elaborados para exaltar um regime construído,

em última instância, sobre a violência, a exploração, a

desigualdade e a opressão de enormes contingentes

populacionais. A emergência do imperialismo romano no

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século I, desta forma, é uma referência importante que,

certamente, não poderia ser desconsiderada pelo autor de

Lucas-Atos e por aqueles grupos diretamente atingidos

pelas dinâmicas imperiais.

Trazer à discussão o contexto histórico do Novo

Testamento, um contexto imperial e de colonização e o

discurso cristão, como possível contra-narrativa ao discurso

imperial, ou seja, como retórica anti-imperial, tem sua

validade própria, inerente ao atual ordenamento mundial e

as problemáticas históricas presentes e latentes na

contemporaneidade.

Desta forma, fomos levados, nesta pesquisa, a

valorizar nos estudos bíblicos e, no caso específico, na

análise de Lucas-Atos, aqueles elementos da crítica

histórica e hermenêutica textual que nos possibilitassem

averiguar a trajetória das narrativas bíblicas enquanto

discursos de poder e como uma contra-narrativa ao império,

a partir de construções linguísticas e retóricas específicas

que, velada ou explicitamente, fazem referência às

estruturas imperiais romanas, a ideologia por ela empregada

e o sistema político-econômico que lhe conferia

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sustentação, ou seja, o culto imperial, a ideologia imperial e

o sistema de patronagem.

Nossa preocupação inicial e que orientou os rumos

deste trabalho foi o de tentar compreender o movimento

cristão primitivo e a produção de seu discurso a partir da

realidade imperial romana, da extensão e do sentido

histórico de sua colonização e dos problemas levantados

por ela. O império, assim, aparece como matriz social e

cultural, lugar material e fonte heurística para os nossos

estudos. É sob a influência desta perspectiva que os estudos

bíblicos têm tomado rumos diversos daqueles que, até

então, lhe eram característicos e que fracionava os diversos

componentes que fazem parte das escrituras.

Assim, os aspectos teológico, espiritual e religioso

eram abordados desconsiderando-se os fatores externos de

sua produção e outras preocupações que, alinhadas com o

conjunto da obra teológica, estavam presentes em seus

autores. À secção entre religião e política nos estudos

bíblicos, característica das escolas tradicionais, seguem-se,

nos últimos anos, uma abertura e expansão dos enfoques

historiográficos e a incorporação de novas abordagens na

pauta dos estudos acadêmicos relativos ao Novo

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Testamento, na qual política, religião e sociedade formam

um conjunto orgânico, não separado, uma vez que esta

separação não faria sentido no século I d. C.

Seguindo esta tendência, os escritos do Novo

Testamento devem ser analisados de acordo com a ótica

histórica presente em seus autores, uma vez que suas

preocupações ao escreverem os textos e o contexto no qual

viviam eram específicos de sua época. Qualquer tentativa

de compreender as comunidades cristãs e a produção de

seus discursos, portanto, falha, se não se tem em

consideração que as pessoas que a compunham são, ao

mesmo tempo, agentes e produtos de sua época,

determinada por um conjunto específico de realidades

materiais e sociais.

É precisamente nesta perspectiva que enquadramos

os objetivos de nosso trabalho, ou seja, analisar o conteúdo,

retórico e discursivo, de Lucas-Atos sob o ponto de vista

das motivações e determinações históricas presentes em sua

produção e contextualizar historicamente os escritos de

Lucas, atentando para as dinâmicas históricas, interna e

externa, das comunidades cristãs do primeiro século.

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Pretendemos compreender como se constituiu e se

consolidou as estruturas políticas, sociais, econômicas e

culturais imperiais no período de auge da Pax Romana, no

século I e sua influência na elaboração do discurso cristão,

verificando, por sua vez, nos discursos de Lucas e sua

mensagem, elementos de conotação anti-imperial, que

possam representar uma crítica à ordem imperial romana,

ao mesmo tempo atentando para as complexidades

interpretativas derivadas da aparente ambiguidade de seu

posicionamento político.

Desta forma, a escolha de Lucas-Atos como fonte

principal de trabalho é, sobretudo, uma escolha estratégica,

uma vez que seus escritos ensejam debates cada vez mais

conflitantes a respeito de sua relação com o Império e seu

posicionamento frente às estruturas políticas romanas.

Lucas era um médico grego que, apesar de não ter

conhecido Jesus pessoalmente, se tornou seu seguidor e

acompanhou Paulo em suas viagens, como “expert” no

caminho. Pagão de origem, nascido em Antioquia, médico

de profissão e dotado de um estilo de escrita refinado,

mediante o qual tece uma narrativa sóbria, culta e

politicamente engajada, o autor de Lucas-Atos se afigura

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como alguém intimamente ligado e com acesso aos círculos

sociais privilegiados, portador de ferramentas culturais e

retóricas do mundo clássico, as quais utiliza amplamente

em seu discurso, o que o distingue claramente dos demais

autores evangélicos.

Estudos sobre sua origem, identificação, formação,

posição social e contato com membros importantes da

sociedade greco-romana têm sido levados a cabo nas

últimas décadas (KÜMMEL, 1982; WENHAM, 1991;

GRANT, 1963) e lançado luzes, concomitantemente, sobre

seu círculo e ambientes de atuação, o público a que se

dirige, mas, também e, sobretudo, sobre sua visão de

império e as finalidades e intenções políticas de sua

construção narrativa.

Do que se depreende da historiografia e dos estudos

da hermenêutica bíblica, e das conflitantes proposições e

respostas dadas pelos estudiosos, como vemos, por

exemplo, na breve síntese historiográfica de Steve Walton

(2002), relativa aos estudos acerca da perspectiva política

de Lucas-Atos, temos aos olhos um quadro de

ambiguidades e possibilidades interpretativas amplo, sobre

o qual nos lançamos e frente ao qual permanece a

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necessidade de, ao menos, esclarecimentos mais precisos

que venham a suprir, em parte, as contradições mais

latentes presentes no tema.

Uma questão importante, que nos serve como

exemplo dos problemas interpretativos da obra e que

denotam a demarcação específica da leitura histórica

proposta neste trabalho, é a abordagem de elementos

identitários, de tradição e projeto político, ambiente de

atuação e proposta de narrativa histórica que estão

presentes em Lucas, em sua obra e em seu contexto. O

autor é oriundo da gentilidade e uma vez confirmada sua

adesão ao evangelho, valoriza a missão entre os gentios,

que formam a substância primordial de seu público, ele

mesmo figurando como responsável pelo ensino e

catequese das comunidades da Ásia Menor, sobretudo

Antioquia.

Lucas aparece como modelo e fomentador daquela

transição formal do cristianismo-judaico para o

cristianismo-helenista, estudada por Jean Danièlou (1985) e

todo a sua narrativa caminha no sentido de sustentar o

rompimento total de Jesus e da Igreja com a sinagoga. A

descrição que faz dos líderes judeus é extremante