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A REFORMA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: PARA QUE E PARA QUEM? A IMPERIOSA NECESSIDADE DE UMA RELEITURA DO SISTEMA PRINCIPIOLÓGICO JOSINALDO LEAL DE OLIVEIRA 1 RESUMO A reforma do Código de Defesa do Conumidor (CDC) tem sido objeto de frequentes discussões no meio legislativo e acadêmico, face as possíveis repercussões no meio jurídico. Com o argumento de uma atualização legislativa para busca da efetivação da proteção ao consumidor, alguns aspectos precisam ser discutidos, quando se tem em vertente a possibilidade de modificação de uma norma protetiva. A pertinência ou não da reforma do CDC antes de qualquer situação passa por uma nova releitura dos princípios norteadores do sistema de consumo. Os princípios desempenham relevante papel no ordenamento jurídico, sob uma perspectiva geral. O Direito do Consumidor, como ramo específico do direito destaca-se por ser uma norma de caráter principiologico, permitindo ao operador do direito instrumentos que viabilizem a efetividade da proteção ao sujeito vulnerável da relação de consumo. O objetivo do presente escrito é apresentar a estrutura e concepção dos princípios em geral e abordar os princípios específicos do direito do consumidor, de forma a permitir a reflexão quanto a eventual pertinência da reforma do Código de Defesa do Conumidor. Palavras-chave: Reforma do Código de Defesa do Conumidor. Princípios. Interpretação e função. Direito do Consumidor. ABSTRACT The reform of the Code of Consumer Protection has been the subject of frequent discussions in the legislative and academic, given the possible repercussions in the legal environment. Arguing for a legislative update search of effective consumer protection, some aspects could be discussed, when one side the possibility of modifying a protective standard. The relevance or otherwise of the reform of the Code of Consumer Protection before any situation undergoes a new reading of the guiding principles of the system of consumption. The principles play a relevant role in the legal system, from a general perspective. The Consumer Law, as a specific branch of law stands out because it is a standard character principles, allowing the operator the right tools to the effectiveness of protection to be vulnerable against the consumer. The purpose of this writing is to present the structure and design principles in general and address the specific principles of consumer law, to allow reflection on the possible relevance of the reform of the Code of Consumer Protection. Keywords: Reform of the Consumer Protection Code. Principles. Interpretation and function. Consumer Law. 1 Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA). Pós-Graduado em Direito Civil e Direito do Consumidor, Docência do Ensino Superior. Professor Universitário e em diversos Cursos de Pós-Graduação e Preparatórios para Concurso Público e Exame da OAB. Participante assíduo com trabalhos apresentados nos eventos nacionais do CONPEDI e Autor de diversos artigos publicados na área do Direito do Consumidor em revistas especializadas. Condecorado no ano de 2015 com a Medaglia “Il Merito Giuridico di Visitatori - autori internazionali”, na Itália.

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  • A REFORMA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: PARA QUE E PARA QUEM? A IMPERIOSA NECESSIDADE DE UMA

    RELEITURA DO SISTEMA PRINCIPIOLÓGICO

    JOSINALDO LEAL DE OLIVEIRA1

    RESUMO

    A reforma do Código de Defesa do Conumidor (CDC) tem sido objeto de frequentes discussões no meio legislativo e acadêmico, face as possíveis repercussões no meio jurídico. Com o argumento de uma atualização legislativa para busca da efetivação da proteção ao consumidor, alguns aspectos precisam ser discutidos, quando se tem em vertente a possibilidade de modificação de uma norma protetiva. A pertinência ou não da reforma do CDC antes de qualquer situação passa por uma nova releitura dos princípios norteadores do sistema de consumo. Os princípios desempenham relevante papel no ordenamento jurídico, sob uma perspectiva geral. O Direito do Consumidor, como ramo específico do direito destaca-se por ser uma norma de caráter principiologico, permitindo ao operador do direito instrumentos que viabilizem a efetividade da proteção ao sujeito vulnerável da relação de consumo. O objetivo do presente escrito é apresentar a estrutura e concepção dos princípios em geral e abordar os princípios específicos do direito do consumidor, de forma a permitir a reflexão quanto a eventual pertinência da reforma do Código de Defesa do Conumidor.

    Palavras-chave: Reforma do Código de Defesa do Conumidor. Princípios. Interpretação e função. Direito do

    Consumidor.

    ABSTRACT

    The reform of the Code of Consumer Protection has been the subject of frequent discussions in the legislative and academic, given the possible repercussions in the legal environment. Arguing for a legislative update search of effective consumer protection, some aspects could be discussed, when one side the possibility of modifying a protective standard. The relevance or otherwise of the reform of the Code of Consumer Protection before any situation undergoes a new reading of the guiding principles of the system of consumption. The principles play a relevant role in the legal system, from a general perspective. The Consumer Law, as a specific branch of law stands out because it is a standard character principles, allowing the operator the right tools to the effectiveness of protection to be vulnerable against the consumer. The purpose of this writing is to present the structure and design principles in general and address the specific principles of consumer law, to allow reflection on the possible relevance of the reform of the Code of Consumer Protection.

    Keywords: Reform of the Consumer Protection Code. Principles. Interpretation and function. Consumer Law.

    1 Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA). Pós-Graduado em Direito Civil e Direito do Consumidor, Docência do Ensino Superior. Professor Universitário e em diversos Cursos de Pós-Graduação e Preparatórios para Concurso Público e Exame da OAB. Participante assíduo com trabalhos apresentados nos eventos nacionais do CONPEDI e Autor de diversos artigos publicados na área do Direito do Consumidor em revistas especializadas. Condecorado no ano de 2015 com a Medaglia “Il Merito Giuridico di Visitatori - autori internazionali”, na Itália.

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    1 INTRODUÇÃO

    Para um entendimento adequado do sistema jurídico de defesa do consumidor é necessário que o operador do direito compreenda, inicialmente, a estrutura principiológica que o norteia. A importância que o estudo dos princípios tem demonstrado nos mais diversos ordenamentos jurídicos, revela a imperiosa necessidade de se obter uma reflexão sobre o tema no âmbito da defesa do consumidor.

    As constantes discussões a respeito da reforma ou atualização do Código de Defesa do

    Conumidor (CDC) acabam por levantar preocupações quanto ao sentido e dimensão da pretendida atualização legislativa, de forma que não ocorra a flexibilização dos direitos já conquistados para a devida tutela do consumidor.

    O sistema jurídico brasileiro é composto por um número expressivo de leis

    municipais, estaduais e federais que tratam da fiscalização, regulação e da própria produção do consumo, compondo um verdadeiro inchaço legislativo. As normas princípiológicas, estruturadas com conceitos jurídicos indeterminados e com cláuslas gerais permitem um contraponto a excessiva necessidade de produção legislativa para regulações específicas.

    O que se questiona é se efetivamente há necessidade de tantas leis ou de reforma das

    atuais para se buscar uma regulação específica de institutos ou de fatos sociais. É necessário, por exemplo, uma lei que determine o tamanho de uma fonte na redação de um contarto?

    Em verdade, a cultura jurídica brasileira ainda é extremamente dependente de leis. O

    jurista, preso ainda a uma formação retrógada e arcaica da base do patrimonialismo e de uma sociedade patriarcal, precisa da lei para ter sensação de segurança jurídica. Sem dúvidas, essa realidade precisa ser mudada e o caminho, surge a partir de uma releitura dos princípios.

    O Objetivo do presente escrito é apresentar a estrutura e concepção dos princípios em

    geral e abordar os princípios específicos do direito do consumidor, de forma a permitir a reflexão quanto a eventual pertinência da reforma do CDC.

    Nesse sentido, torna-se oportuno levantar a ideia de uma releitura do sistema

    principiológico de defesa do consumidor, para permitir a devida reflexão quanto a eventual pertinência de reforma ou atualização da norma protetiva, ou se os princípios existentes seriam capaz de efetivar a tutela desejada.

    Para um melhor entendimento, o trabalho foi estruturado em tópicos gerais e

    específicos. Buscou-se um entendimento sobre o sistema de consumo de forma geral, para em seguida tratar dos princípios, apresentando uma concepção geral e jurídica com uma abordagem da funcionalidade principiológica no ordenamento jurídico.

    1.1 MATERIAIS E MÉTODO

    Este trabalho quanto aos procedimentos técnico-científicos se classifica como revisão da literatura, que tem como objeto a reforma do CDC. A coleta de dados se deu por meio de livros de acervo particular, artigos científicos encontrados na base de dados Scielo, bancos de teses e dissertações, revistas científicas especializadas, documentos e dados extraídos de sites

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    oficiais e institucionais. Para a busca on-line foram utilizados os seguintes descritores: Reforma do Código de Defesa do Conumidor. Princípios. Interpretação e função. Direito do Consumidor. Os critérios de inclusão foram: a proximidade do texto com o tema, as línguas portuguesa, inglesa e espanhola e o caráter científico dos textos. E como exclusão todos aqueles que não se enquadram neste perfil. No total foram utilizadas para realização do trabalho 39 fontes de pesquisa.

    2 REVISÃO DE LITERATURA 2.1 BREVE ESCORÇO HISTÓRICO E A SISTEMÁTICA LEGAL DA DEFESA DO

    CONSUMIDOR

    A doutrina há muito tempo já registra que a questão da proteção ao consumidor na verdade não é nenhuma novidade dos nossos tempos, e nem o homem moderno deve se glorificar dessa falsa novidade. A proteção do consumidor, mesmo sem essa denominação específica, remonta à Idade Antiga. Filomeno2 aponta registros históricos - a exemplo do Código de Hamurabi, na Babilônia, que datam do século XVII a.C. - que denotam a existência de regras que tratavam questões de cunho patrimonial envolvendo relações de compra e venda e prestações de serviços.

    Não é tarefa simples apontar um momento específico para o surgimento da sociedade

    de consumo, face a velocidade dos movimentos sociais. Não obstante tal circunstância a doutrina, a exemplo de Sodré3, aponta como momento o período entre os séculos XVIII e XIX, com contornos específicos para o movimento civil de defesa do consumidor o século XX.

    Ocorre que a produção legislativa em relação à defesa do consumidor teve os seus

    primeiros passos no início do século XX, ganhando projeção após a Segunda Guerra Mundial, momento que serviu de norte para o surgimento de diversos institutos jurídicos, principalmente no campo negocial. Com o processo da Revolução Industrial e a massificação do consumo, o mundo começou a dedicar atenção a esse novo ramo do direito. 4

    Antes da edição do CDC (Lei 8.078/90), não havia no Brasil a caracterização jurídica

    da figura do consumidor, mas havia outros instrumentos em prol da economia popular e da boa-fé dos contratantes, que se encontravam em leis esparsas. De fato, foi com a Constituição Federal de 1988 que se implementou uma nova hermenêutica jurídica no direito brasileiro, com o pensamento jurídico evoluindo para a proeminência do interesse coletivo sobre o individual.

    2 FILOMENO, José Geraldo de Brito. In: GRINOVER, Ada Pelegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 9. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 24. 3 SODRÉ, Marcelo Gomes. A construção do direito do consumidor: um estudo sobre as origens das leis principiológica de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009, p. 26. 4 Idem

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    Destaque-se a ponderação de Rizzatto Nunes5, ao afirmar que: [...] o caráter principiológico específico do CDC é apenas e tão somente um momento de concretização dos princípios e garantias constitucionais vigentes desde 5 de outubro de 1988 como cláusulas pétreas, não podendo, pois, ser alterados.

    Sem dúvida, a Constituição Federal de 1988 dispensou tratamento especial à defesa do consumidor, impondo-se sua proteção em diversas passagens do texto maior. Neste sentido já ponderou Sálvio de Figueiredo Teixeira6:

    A analítica Constituição brasileira de 1988, na procura de ampliar e reforçar os direitos e interesses individuais e coletivos, alçou à categoria e nobreza dos direitos fundamentais a defesa do consumidor e a incluiu entre os princípios da ordem econômica nos seus arts. 5°, XXXII e 170, V..

    Identifica-se que não foi fácil a tarefa do legislador, uma vez que, até o surgimento da

    Lei 8.078/90, navegava-se por uma sociedade regulada pelo Código Civil de 1916, com uma visão extremamente patrimonialista, calcada na máxima pacta sunt servanda. Contudo, não se pode desprezar o contexto sócio-político da época, em que prevalecia o individualismo 7.

    Neste sentido, Rizzato Nunes8 relata com precisão como eram as relações travadas no

    contexto de uma sociedade privatista:

    Então, quando nos referimos às relações contratuais privatistas, o que se faz é uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade subjetiva das partes que estejam lá, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, os pactos devem ser respeitados.

    Evidentemente que este modelo de interpretação contratual não serve e não poderá ser

    aplicado no âmbito das relações de consumo, dada a sua especificidade, como será adiante demonstrado.

    A Lei 8.078/90 tornou o Direito do Consumidor um direito especializado, inaugurando

    uma era preventiva no direito brasileiro, em que se valorizou o direito à informação adequada acerca dos produtos e serviços, a observância de normas técnicas e éticas pelos fornecedores, o que implicou em uma revolução na cultura jurídica nacional. 9

    A nova ordem constitucional deu uma roupagem inovadores à proteção e à defesa dos consumidores, fazendo com que se buscasse dar uma proteção plena e efetiva àqueles que se encontravam desfavorecidos em determinadas relações contratuais. É com esse objetivo que surge o CDC: o de harmonizar as relações de consumo.

    5 NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 66. 6 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A proteção ao consumidor no sistema jurídico brasileiro. In Revista de Direito do Consumidor, nº 43. 2002. Ed. Revista dos tribunais. Pág. 71 7. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. 8 NUNES, op cit 9 GAMA, Hélio Zaghetto. Curso de direito do consumidor. Rio de janeiro: Forense, 1999.

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    O direito do consumidor no Brasil ganhou norte a pouco mais de 20 anos, quando o cenário jurídico começou a traçar os contornos de normas de cunho social e tutelar. Percebeu-se que a normatização privada clássica não era capaz de efetivar a proteção necessária aos consumidores.

    Pode-se apontar que a origem do direito do consumidor no Brasil reside no texto

    constitucional de 1988. O legislador constituinte elevou aos status de direito fundamental a defesa do consumidor, instituindo no art. 5º, XXXII o dever do estado, em toda a sua extensão, de promover a defesa dos consumidores.

    Dessa importante e destacada posição no texto constitucional a defesa do consumidor

    ganhou corpo, passando o Estado a desenvolver políticas públicas e a promover produção legislativa específica com o propósito de tutelar os consumidores.

    O sistema protetivo, não obstante a diretriz da proteção aos consumidores, fincou as

    bases da normatização com o ideal da harmonia na relação de consumo, de forma que a tutela do consumidor se desenvolvesse com a livre iniciativa.

    Dessa forma, o legislador constituinte buscou um ponto de equilíbrio, observando que

    a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, encontra-se estruturada no princípio da defesa do consumidor, norte traçado no art. 170, V da Constituição Federal de 1988.

    Com um conjunto constitucional efetivo, o legislador determinou no art. 48 dos ADCT

    – Atos das Disposições Constitucionais Transitórias – o prazo de 120 dias para o Congresso editar o CDC.

    O CDC, por certo, encontra-se consolidado no sistema jurídico brasileiro, como norma

    especial e de cunho tutelar. E, para a devida compreensão do sistema consumerista, bem como da imponência da Lei 8.078/90 no ordenamento jurídico brasileiro, impõe-se a necessária compreensão da natureza da norma de consumo, tema que será abordado no tópico seguinte.

    2.2 A NATUREZA DA NORMA DE CONSUMO

    É importante ressaltar que muito da aplicação diferenciada e inovadora do CDC decorre da natureza da norma de consumo. O legislador consumerista com propriedade descreveu no art. 1º do CDC que a norma de consumo tem natureza de norma de ordem pública e interesse social, características peculiares capazes de conceder tratamento especial a norma protetiva.

    A norma de consumo por apresentar a natureza de norma de ordem pública legitima o

    sistema de consumo a mitigar regras gerais do direito civil e processual civil, concedendo a inderrogabilidade da norma de consumo, a imprescritibilidade e a oficialidade, reforçando a essência de uma norma especial.

    De essência tutelar, a norma de consumo busca a proteção efetiva do sujeito vulnerável da relação jurídica de consumo: o consumidor. Com esse norte, a norma possui como característica relevante a inderrogabilidade, que representa a impossibilidade de renúncia da norma de consumo. Assim, nem mesmo por convenção, pacto ou avença formulada entre consumidores e fornecedores a norma de consumo poderá ser afastada.

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    A inderrogabilidade é uma característica relevante no proposito da defesa do consumidor, pois serve como óbice ao poder econômico para ditar os seus interesses nas relações massificadas, evitando que o consumidor vulnerável e, em regra, hipossuficiente, passe a aderir a instrumentos contratuais que reduzam ou simplesmente afastem a norma protetiva.

    Ao lado da inderrogabilidade a imprescritibilidade se constitui como importante

    característica da norma de consumo ao ser enquadrada como norma de ordem pública. O fato do consumidor poder obter a tutela estatal a qualquer tempo diante de eventual conduta abusiva do fornecedor torna ainda mais diferenciada a norma de consumo. É importante ressaltar que na sistemática do direito do consumidor o que prescreve é a pretensão de ressarcimento de danos do consumidor, mas não a declaração de eventual abusividade na prática desenvolvida pelo fornecedor.

    Nesse sentido bem descreve Afrânio Carlos Moreira Thomaz10 ao apontar que “não há

    no texto da Lei 8.078/90 nenhuma disposição que estabeleça prazo para que o consumidor venha a questionar perante o judiciário as abusividades que lhe são infligidas pelo fornecedor, sendo, pois, imprescritível a ação correspondente.”

    Com destaque entre as características da norma de ordem pública encontra-se a

    oficialidade. A norma de consumo, em decorrência da oficialidade, deve ser conhecida e aplicada de ofício pelo operador do direito, como uma das expressões de tutela da defesa e proteção do consumidor consagrada pelo art. 5º, XXXII da Constituição Federal de 1988.

    A oficialidade impõe ao operador do direito a devida aplicação das disposições da

    norma de consumo, principalmente no que toca aos princípios implícitos e explícitos na norma de consumo. Tal característica mitiga, inclusive, o consagrado princípio dispositivo do sistema processual civil. Sobre o tema assevera Nery Júnior11 que: “Nas relações de consumo, o juiz poderá apreciar qualquer matéria de ofício, não operando a preclusão, podendo ser revistas e decididas a qualquer tempo e grau de jurisdição.”

    Conforme a temática do presente trabalho, a partir justamente da característica da

    oficialidade é possível perceber que em verdade o CDC não precisa ser reformado nem tão pouco objeto de atualização. Em verdade, impõe-se em caráter de urgência uma mudança da mentalidade jurídica dos operadores dos direitos para esse ramo novo e especial que é o direito do consumidor.

    A título de exemplo, para ilustrar perfeitamente a situação supra descrita, é o caso da

    Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que assim determina: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.” O que se percebe é uma nítida inconstitucionalidade do entendimento alçado pelo referido tribunal, na medida em que viola frontalmente o comando disposto no art. 5º, XXXIII da Constituição Federal de 1988.

    10 THOMAZ, Afrânio Carlos Moreira. Lições de direito do consumidor. Rio de janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 14 11 NERY JÚNIOR, Nelson. Os princípios gerais do código brasileiro de defesa do consumidor. In: Revista de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, Vol.3. 1992, p. 53

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    É de se questionar a razoabilidade e validade de tal verbete sumulado pelo STJ, tendo em vista que promove manifesta desproteção ao consumidor. Se a norma de consumo, por ser norma de ordem pública, tem como característica marcante oficialidade, como se admitir que justamente nos contratos bancários, em que comumente existem cláusulas abusivas, o magistrado está impedido de conhecer de ofício a abusividade. E porque somente nos contratos bancários? Será que as instituições financeiras precisam dessa tutela emprestada pelo STJ? São por esses e outros questionamentos que se põe a prova a necessidade e utilidade da reforma do CDC, ao real receio de que a ordem econômica e poder de grandes grupos empresarias passem a ditar seus interesses em prol de uma relativização da norma.

    O que se percebe, de logo, que há é a necessidade de uma nova releitura dos preceitos

    instituídos pelo legislador constituinte e pelo legislador infraconstitucional ao editar a Lei 8.078/90.

    Em arremate de tópico, torna-se necessário ainda apontar a característica da norma de

    consumo como sendo de interesse social. Norma de interesse social é aquela que possui importância relevante para a sociedade, por ser capaz de ditar condutas e modelos a serem seguidos. A norma de consumo interessa a coletividade de pessoas, ao mercado econômico e ao sistema jurídico, legitimando, inclusive, a atuação do Ministério Público para promover a defesa dos interesses dos consumidores numa perspectiva coletiva, difusa e individual homogênea.

    2.3 A REFORMA DO CODIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

    O CDC com mais de duas décadas de vigência encontra-se na iminência de ser

    reformado/atualizado sob a perspectiva de se introduzir regulações sobre temáticas específicas, tais como a questão do superendividamento, do comercio eletrônico, do mercado de crédito e da atuação dos órgãos de defesa do consumidor.

    O proposito do presente trabalho não reside em instituir uma pura e simples recusa a

    possibilidade de reforma ou de atualização do CDC, mas verificar se os institutos e, principalmente, os princípios norteadores da sistemática consumerista são capazes de conceder a efetividade necessária a tutela dos consumidores. Nesse diapasão, rediscutir o papel e a função dos princípios no direito do consumidor a partir de uma necessária releitura pela hermenêutica jurídica.

    Não se despreza o fato de que a concessão desarrazoada de crédito tem provocado

    mazelas significativas na sociedade, impondo ofensa a dignidade de muitos consumidores, que atualmente tem buscado a devida proteção contra práticas abusivas diversas no âmbito do direito do consumidor. De igual forma, percebe-se a crescente massificação das relações eletrônicas no mercado de consumo, a ponto de se afirmar que as relações jurídicas no futuro serão entabuladas de forma expressiva no ambiente virtual e eletrônico. Contudo, a preocupação reside no fato de se possibilitar com a reforma a modificação, redução e até mesmo retirada de direitos e garantias conquistados pelos consumidores com o implemento do CDC.

    Diga-se, de logo, que a preocupação não é infundada ou desnecessária, na medida em que ultimamente temos visto a mitigação e relativização de direitos dos consumidores, principalmente, pelos tribunais superiores.

  • 10

    Não obstante o fato do direito do consumidor no Brasil ter sido elevado ao status de direito fundamental, na medida em que foi inserido no art. 5º da Constituição Federal de 1988, sendo portanto a temática do consumo considerada como cláusula pétrea, na forma do art. 60, §4º do texto constitucional, tem-se percebido que a máxima da produção legislativa progressiva tem sido fragilizada em decorrência de interesses econômicos. Não é demais lembrar que o próprio legislador constituinte promoveu a defesa do consumidor como limitador da ordem econômica, conforme disposição do art. 170, V.

    Por certo, a reforma não pode avançar sobre os direitos já constituídos, pelos

    princípios já consolidados e muito menos sobre os conceitos já estabelecidos no Código, tais como os conceitos de consumidor, fornecedor e serviços, principalmente por existir interesses de grupos econômicos na readequação da dimensão do Código.

    A capacidade jurídica e a idoneidade intelectual e moral dos membros escolhidos para

    compor a Comissão de reforma do CDC é algo inquestionável, face as constantes contribuições daqueles profissionais para a sociedade brasileira e, em especial, ao direito do consumidor. Contudo, o receio existe no fato de entregar ao Congresso Nacional um projeto de lei passível de discussões e emendas, principalmente quando temos um Congresso que tem se mostrado ao longo dos anos extremamente acessível ao lobby de setores diversos, em especial daqueles que integram um poderio econômico expressivo, tais como: setor financeiro, planos de saúde, companhias aéreas, construção civil, dentre outros.

    Nas últimas décadas tem-se presenciado a luta de determinados segmentos de

    fornecedores para terem afastado da sua atividade a incidência do CDC. As instituições financeiras encabeçaram uma grande resistência quanto à incidência do CDC à atividade bancária, tendo sido, inclusive, proposta uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade com o fito de declarar inconstitucional parte do §2º do art. 3º do CDC, com a conhecida ADIN 2591.

    No segmento das companhias aéreas os argumentos ainda continuam sendo utilizados

    em demandadas judiciais com o proposito de limitar a atuação do CDC na relação entabulada entre os passageiros e as companhias aéreas, na medida que buscam no pacto de Varsóvia e no Código Brasileiro de Aeronáutica diretrizes para impor limites indenizatórios quando da prática de danos aos consumidores, quer por atraso ou cancelamento de voos ou por extravio ou perda de bagagens, violando expressamente o art. 5º, V e X da CF/88 e o art. 6º, VI do Código de Defesa dos Consumidores.

    Contudo, infelizmente, as insensatas forças que buscam afastar a incidência do CDC

    ou a sua concepção protetiva nem sempre surgem do fornecedor, mas do próprio Estado que tem o dever constitucional de proteger e defender os consumidores. Aqui já apontamos a situação da Súmula 381 do Superior Tribunal da Justiça, que limitou a atuação dos magistrados na aplicação da norma de consumo especificamente quanto aos contratos bancários.

    Na mesma diretriz de desproteção do consumidor o Estado da Bahia, por intermédio

    do Tribunal de Justiça do referido Estado implementou a extinção das duas varas especializadas em defesa do consumidor, promovendo a distribuição de competência para as varas cíveis e comerciais abarcarem também as demandas de consumo, contrariando o quanto determinado no art. 5º da Lei 8.078/90. O que a primeira vista poderia parecer favorável ao consumidor, efetivamente não foi. Os consumidores baianos deixaram de ter uma prestação

  • 11

    jurisdicional especializada para contar com uma prestação comum, na medida que antes contavam com juízes especializados em direito do consumidor e passaram a contar com juízes que possuíam formação específica nessa área.

    O que se percebe, em verdade, é que o CDC como norma principiológica detém a

    capacidade de solucionar todas as querelas que a reforma do código se propõe a regular, na medida em que os princípios concedem força normativa e eficaz a tutela dos consumidores.

    Muito ainda se há que discutir com os comandos instituídos no CDC. Muito embora

    com edição no inicio da década de 90, o CDC ainda não teve o seu núcleo protetivo esgotado, evidenciando, talvez, uma desnecessária reforma ou atualização no contexto atual. Por certo, o que é preciso mudar ou digamos reformar é mentalidade do operador do direito.

    No ano de 2008 o CDC foi modificado por conta da edição da Lei 11.785 de 22 de

    setembro de 2008, que alterou o §3º do art. 54, com o fito de definir o tamanho mínimo da fonte em contratos de adesão, estabelecendo o tamanho doze. É inevitável o seguinte questionamento: era necessário uma lei para regular tal situação? É evidente que não, a grande razão de uma norma principiológica está no desapego a regras minuciosas sobre circunstâncias jurídicas, posto que os princípios atendem e preenchem as relações jurídicas. Um código com principiologia forte, com referência a boa fé objetiva, a transparência e a informação não precisa de uma regra para determinar o tamanho de uma fonte em um contrato. Nessa perspectiva não irá demorar para se criar uma lei para dizer qual o estilo da fonte, que de toda sorte seria um absurdo.

    A reforma do CDC já se apresenta como uma realidade eminente, tendo em vista o

    avançado estágio do processo de reforma, tendo, inclusive, a comissão responsável já apresentado o projeto ao presidente do senado no dia 14 de março de 2012. O que se impõe agora é o devido acompanhamento e fiscalização por parte da sociedade e principalmente dos juristas e operadores do direito quanto as discussões a serem realizadas no Congresso, detendo atenção expressiva quanto a possíveis alterações no projeto apresentado.

    A possibilidade de reforma do CDC, por certo, não pode servir de porta de abertura

    para a flexibilização de direitos e garantias consagrados aos consumidores. Assim como também não deve se destinar a atender aos interesses dos mais diversos segmentos de fornecedores.

    É de suma importância que o CDC com eventual reforma não perca o seu norte

    principiológico, mantendo-se como uma norma de vanguarda. Para tanto, é preciso acima de tudo mudar a concepção dos operadores do direito no que toca à aplicação principiológica. Para a devida efetivação da função protetiva do CDC, com reforma ou sem reforma, o operador do direito precisa buscar alcançar a essência principiológica a partir da releitura dos princípios constitucionais e consumeristas. Com esse proposito torna-se necessário abordar especificamente a sistemática principiológica aplicada no CDC.

    2.4 A CONCEPÇÃO DOS PRINCÍPIOS

  • 12

    O estudo do Direito, como ciência, tem se apresentado, nos mais diversos sistemas jurídicos, como um processo de compreensão e desenvolvimento decorrente de um arcabouço principiológico.

    Entender os princípios, suas características, espécies e funções exigem do operador do

    direito o devido entendimento a respeito da sua concepção. A partir de uma abordagem apenas etimológica verifica-se que princípio delineia a ideia de início, começo, ponto inicial de algo. Os dicionários apresentam idênticas definições, tais como o “momento ou local ou trecho em que algo tem origem” 12. É cediço que o vocábulo princípio origina-se do latim “principium” (origem, começo), significando algo que dá origem ou permite expandir alguma coisa.

    No universo jurídico, a definição não destoa desse referencial na medida em que é

    pelos princípios que se verifica e compreende o ordenamento jurídico, bem como se evidencia os contornos da sua dimensão. Nesse sentido, já ponderou De Plácido e Silva13:

    Princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostra-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas. E, nessa acepção, não se compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico derivado da cultura jurídica universal.

    Porém, para uma devida compreensão da concepção dos princípios, faz-se necessário

    visualizar como o Direito foi estruturado ao passo do seu processo evolutivo com as diversas contribuições teóricas.

    A origem dos princípios está atrelada, evidentemente, à essência do convívio em

    sociedade. No processo primitivo evolutivo, não se detinha normatizações com regulações jurídicas, de forma que o convívio em sociedade era possível por conta de direcionamentos de figuras expressivas que permitiam delinear as condutas, os caminhos a serem seguidos. 14

    Do convívio em sociedade, tornava-se inevitável o controle dos conflitos que

    naturalmente surgiam. A resolução de conflitos decorreu da necessidade do próprio homem estabelecer caminhos a serem observados. Como não se dispunha de um conjunto normativo, os princípios ganharam extrema relevância no âmbito da organização social, servindo de diretriz para as condutas a serem estabelecidas em sociedade. É a partir dessa concepção que os princípios começam a ganhar destaque, principalmente, no cenário jurídico. 15

    A doutrina desenvolve a concepção dos princípios, em regra, a partir de três fases

    distintas da juridicidade. A primeira fase, jusnaturalista, os princípios efetivamente não eram 12 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 6ª ed. Ver. Amp. Curitiba. 2004, p. 576. 13 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002, p. 639. 14 MELLO, Cleyson M. Novos direitos: os paradigmas da pós-modernidade. Cleyson M. Mello e Thelma Fraga. org. Niterói, RJ: Impetus, 2004. 15 Idem

  • 13

    normatizados, eles decorriam do próprio ordenamento jurídico com o propósito de preencher os espaços vagos da lei, reconhecendo e valorizando a importância do Direito Natural. 16

    Nessa fase, por se buscar um direito mais justo, que protegesse o homem dos abusos e

    arbitrariedades dos governantes, tinha-se uma ligação com o Direito Natural. Porém, com ele não se pode confundir. Os princípios na fase jusnaturalista representavam apenas um ponto de verificação do que poderia ser compreendido como justo ou não, por decorrer de processo de valoração do Direito tendo uma atuação suplementar. No estudo do pensamento jusnaturalista é muito frequente o entrelace entre o Direito Natural e o Direito Positivo, que contribuiu para a utilização dos princípios. O próprio Norberto Bobbio17 desenvolveu teses apontando a superioridade do Direito Natural em face do Direito Positivo.

    Na segunda fase, juspositivista, há um contraponto do jusnaturalismo. Enquanto esse

    desvaloriza uma norma que careça do ideal de justiça, para o outro, só será justa se atender a preceitos de validade, ou seja, se decorrerem do sistema jurídico constituído. Nessa concepção, os princípios gerais de direito serviriam como norte principiológico para a aplicação do direito positivo. Nessa fase, o ordenamento jurídico era suprido quando das ocorrências de lacunas pelos próprios princípios obtidos no próprio sistema, em caráter de auto-suficiência. 18

    Nesse cenário, os princípios passaram a ocupar um papel mais consistente no

    ordenamento jurídico. No entanto, os princípios eram reconhecidos como a produção do próprio sistema jurídico.

    A terceira fase, identificada como pós-positivista, com a receptividade nas

    Constituições de um arcabouço principiológico, permitiu uma modificação da concepção dos princípios no cenário jurídico, ganhando um caráter normativo valorativo.

    Da nova leitura da atuação principiológica, no sistema jurídico, torna-se necessário,

    ainda que brevemente, traçar a compreensão entre normas, regras e princípios. A doutrina aponta que os princípios e as regras são espécies do gênero norma. 19

    Cumpre ressaltar o pensamento de Robert Alexy, destacado na obra de Bonavides20,

    que promove distinção entre princípios e regras, a partir de uma concepção axiológica. Do trabalho do referido autor sobre a Teoria dos Princípios visualiza-se que as regras estão ligadas às questões de validade enquanto os princípios estão ligados a valores que sejam juridicamente previstos no ordenamento jurídico. Entre as principais distinções entre regras e princípios apresentadas por Alexy21 podemos destacar a generalidade, o mecanismo de solução de conflitos de regras e colisão de princípios.

    16 Idem 17 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. 18 MELLO, Cleyson M. Novos direitos: os paradigmas da pós-modernidade. Cleyson M. Mello e Thelma Fraga. org. Niterói, RJ: Impetus, 2004. 19 Idem 20 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2002, p. 249. 21 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 87.

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    Destaque também deve ser dado ao trabalho desenvolvido por Ronald Dworkin em relação aos princípios, ao entender que o direito abrange regras e princípios, com funcionamentos inconfundíveis. Contudo, ressalta de igual forma que a colisão de princípios deve possuir solução, a partir de uma perspectiva valorativa, ao passo que o conflito de regras deveria ser solucionado sob a perspectiva da validade.

    Por certo, Ronald Dworkin prestou grande serviço teórico a Teoria dos Princípios e ao

    sistema de normatização principiológica. Segundo Sarlet22, Dworkin contribuiu sobremaneira para que os princípios como normas, nos textos constitucionais atuais, sirvam de alicerce normativo valorativo. Gustavo Neves bem sintetiza o pensamento do referido teórico ao apontar que:

    Para Dworkin, os princípios são standards, as idéias básicas do direito. Dividir-se-iam os standards entre diretrizes políticas e princípios propriamente ditos, devendo as primeiras ser respeitadas, e os segundo, implementados. Os standards se distanciariam das regras devido ao seu modo de aplicação: as regras são plicadas através de proposições disjuntivas – ou incidem, ou não. Já os princípios aceitam gradação em sua incidência, que deve ser regulada judicialmente. Seu método de aplicação é a ponderação de bens ou interesses, referindo-se especialmente à solução de antinomias e perplexidades (“hard cases”). 23

    Por certo, percebe-se que a normatização dos princípios apresenta-se de forma

    crescente da fase jusnaturalista, com uma mínima expressão normativa, para a fase juspositivista, com expressividade normativa perceptível, até desembocar na fase atual, denominada pela doutrina de pós-positivista, em que os princípios encontram-se como verdadeiras normas dotadas de supremacia no ordenamento jurídico.

    2.5 A FUNCIONALIDADE DOS PRINCÍPIOS NO SISTEMA JURÍDICO

    Faz-se necessário realçar a importância que os princípios exercem no sistema jurídico, uma vez que funcionam como verdadeiros alicerces de todo ordenamento, passando a exigir de todos a sua observância.

    Tanto assim que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma

    norma”, uma vez que a inobservância “implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos”. 24

    Os princípios podem ser representados, metaforicamente, como a base de um

    edifício. Tem-se na construção civil que a fundação é a parte mais importante do processo de construção de um edifício, tendo em vista que será ela que sustentará toda a estrutura, lhe prestando segurança e solidez.

    22 SARLET, Ingo Wolfang. Dignidade da ppessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos advogados, 2001, p. 61 23 NEVES, Gustavo Kloh Muller. Os Princípios entre a teoria Geral do direito e o Direito Civil. In: Gustavo Tepedino et al. (org.). Diálogos sobre o Direito Civil. Rio de janeiro: Renovar, 2002. p. 12-13 24 MELLO, Celso Antônio Bandeia de. Lições preliminares de direito. 22 ed. São Paulo: Saraiva. 1995. p. 300.

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    Com os princípios jurídicos, não é diferente. O ordenamento jurídico está amparado em uma base principiológica e, no caso do sistema brasileiro, o legislador constituinte estabeleceu como princípio maior o da dignidade da pessoa humana.

    Ainda nessa representação metafórica, pode se observar que além do princípio maior

    (dignidade da pessoa humana), cada sistema ou microssistema jurídico, como é o caso do Direito do Consumidor, possui princípios específicos, com funções relevantes, que devem ser observadas, sob pena de violar o referido sistema. Para tanto, torna-se relevante compreender a funcionalidade dos princípios jurídicos, de modo a permitir ao operador do direito a exata dimensão e aplicabilidade dos mesmos na concretude dos atos.

    Os princípios desempenham múltiplas funções dentro do ordenamento jurídico, a

    partir de uma vertente multifacetária. Dessa diretriz multifuncional, algumas funções se destacam, dentre elas, a função estruturante.

    Na função estruturante, os princípios se prestam a dar unidade e harmonia ao sistema

    jurídico, formando uma verdadeira estrutura de sustentação, como uma viga ou coluna que ampara e promove solidez. Não é outra a razão que levou Miguel Reale a asseverar que os princípios estabeleciam “verdades estruturantes” de um sistema jurídico. 25

    Como será tratado adiante, na particularidade do Direito do Consumidor, a

    vulnerabilidade, a segurança, a informação e, principalmente, a boa-fé objetiva estruturam o microssistema consumerista, servindo de base e estrutura para todo o campo de proteção do consumidor, permitindo ao operador do direito compreender a filosofia protetiva.

    No Direito do Consumidor, a função estruturante dos princípios se destaca,

    principalmente, em decorrência das luzes constitucionais que estabeleceram o vetor da proteção como um direito fundamental, impondo um ônus ao Estado de proteger e defender o consumidor. Com propriedade, Celso Antonio Bandeira de Melo26 ao discorrer sobre os princípios do direito bem ressaltou a função estruturante ao aduzir que:

    Princípios é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

    Ao lado da função estruturante, os princípios se prestam ainda a condicionar a atividade do intérprete, servindo como linha mestre do sistema jurídico. Os princípios enaltecem o papel do operador do direito, lhe atribuindo um norte a ser seguido na missão de interpretar normas, institutos, regras e permitindo apresentar soluções para as querelas jurídicas.

    O operador do direito no âmbito do sistema de consumo deverá utilizar os princípios consumeristas como vetores interpretativos. Assim, o intérprete da norma consumerista deve se guiar pela essência da vulnerabilidade do consumidor, princípio basilar do sistema de 25 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 22. Ed., São Paulo: Saraiva, 1995. p. 299. 26 MELLO, Celso Antônio Bandeia de. Lições preliminares de direito. 22 ed. São Paulo: Saraiva. 1995. p. 629-630.

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    consumo. Geraldo Ataliba27 bem descreve os rumos dessa função dos princípios, asseverando que:

    Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos de governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas consequências.

    Destarte, os princípios determinam a regra que deverá ser aplicada pelo intérprete,

    demonstrando um caminho a seguir. Discorrendo de igual forma sobre o tema, Cláudio Bonatto e Paulo Valério Dal Pai Moraes28 reafirmam a importância dos princípios em um ordenamento jurídico, ponderando que:

    [...] os princípios exercem uma função básica, qual seja a de serem os padrões teleológicos do sistema, com base nos quais poderá ser obtido o melhor significado das regras, como peças integrantes de uma engrenagem jurídica que é posta em ação pelas diretrizes maiores que dão movimento ao todo.

    Vale ressaltar que a função condicionante do intérprete apresenta-se de forma

    dúplice, posto que além de instrumentar o intérprete com um vetor interpretativo, lhe impõe restrições na aplicabilidade, condicionando o intérprete aos limites do balizamento decorrente do princípio.

    Por certo, a função interpretativa dos princípios ganha destaque na doutrina,

    principalmente, pelo caráter relevante na atuação do operador do direito. Destaque-se por oportuno o pensamento de Joaquín Valdés:

    Las ideas fundamentales que la comunidade forma sobre su organización jurídica están llamadas a cumplir la triple función fundamentadora, interpretativa y supletória. Supone esta nota característica que tales ideas básicas, por ser fundamento de la organización jurídica, assumem una misión directiva em el desarrollo legislativo necessário para la regulación de todas sus relaciones interindividuales y colectivas. Como igualmente cumplen un papel crítico (axiológico) capaz, en último término, de invalidar o derrogar toda norma positiva que irreductiblemente muestre tajante oposición a aquellos princípios. Y tanto una como outra función la realizan en virtude del denominado, en nuestro Derecho positivo, carácter informador, que también justifica su misión interpretativa, en ralación a las demás fuentes jurídicas. Y residualmente podrán ser utilizados como fuente autónoma, de directa aplicación, para resolver o regular concretas situaciones jurídicas, en defecto de ley o costumbre, asumiendo así el caráter de fuente supletória e integradora del ordenamiento jurídico. 29

    Nessa concepção, os princípios teriam uma atribuição suplementar. Contudo, a função interpretativa deve ser vista em um caráter diferenciado, ao passo em que, para um entendimento doutrinário contemporâneo e expressivo, os princípios figuram como verdadeiras normas jurídicas, devendo ser utilizados como fonte imediata do direito, de aplicação direta e não supletiva. 27 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. Revista dos Tribunais, 1985. p. 617. 28 BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões Controvertidas no Código de Defesa do Conumidor: principiologia, conceitos, contratos atuais. 5. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 28. 29 VALDÉS, Joaquín Arce y Flórez. Los princípios generales del derecho y su formulación constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1990. p. 78-79.

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    Por essa essência, os princípios são parte integrante e relevante do ordenamento

    jurídico, integrando um arcabouço único. O próprio legislador constituinte de 1988, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, destacou no texto constitucional brasileiro que os princípios, por ela consagrado, fazem parte do sistema jurídico. Oportuna é a transcrição do art. 5º, §2º da Constituição Federal Brasileira:

    Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

    Como afirma Sérgio Cavalieri Filho30, “os princípios servem para impor uma leitura

    normativa sistêmica, tanto na constituição quanto na interpretação das regras”. No sistema de consumo, como será delineado a seguir, os princípios ganham maior relevância, em decorrência de tratar-se a Lei 8.078/90 – CDC – de uma norma principiológica de origem constitucional. 2.6 HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA

    Como alhures aduzido, quando da verificação da função dos princípios, estes desempenham relevante papel no ordenamento jurídico. Porém, faz-se necessário compreender efetivamente a hermenêutica principiológica, para bem destinar os princípios no âmbito do Direito do Consumidor.

    É cediço que a interpretação é tarefa precípua do operador do Direito. Este vive em

    constante processo interpretativo, posto que em seu labor habitual interpreta normas, regras, condutas, expressões e, principalmente, princípios.

    Nesse sentido, sustenta Jerz Wróblewski31:

    la interpretación legal juega un papel central en cualquier discurso jurídico. En el discurso jurídico-pratico se relaciona con la determinación del significado de los textos legales y a menudo influye en la calificación de los hechos a los que se aplican las regras legales. En el discurso teórico-jurídico, en el nivel de la dogmática jurídica, la llamada la interpretación doctrinal se utiliza con frecuencia para sistematizar el derecho en vigor y para construir conceptos jurídicos. Las regras legales se interpretam también en la actividad legislativa cuando el legislador tiene que determinar el significado de un texto legal ya existente y cuando considera las posibles interpretaciones que, en situaciones futuras, puedan tener las regras que él va promulgar.

    Porém, é preciso constatar que os princípios não podem ser interpretados em fatias,

    em pedaços, o processo interpretativo exige uma compreensão do todo, da estrutura nuclear valorativa do princípio. A interpretação em si, deve ter como propósito sempre atender ao interesse social a que a norma ou princípio se destina. Nesse particular, o art. 5º da Lei de 30 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor, 3a edição, São Paulo: Atlas, 2011. p. 35. 31 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constitución y teoría general de la interpretación jurídica. Madrid: Editorial Civitas, 1988, p. 33

  • 18

    Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina que na aplicação da lei, leia-se também dos princípios, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

    Ponderando de forma relevante, Miguel Reale32 assevera que:

    Interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos. Como se vê, o primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste em saber qual a finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita penetrar na estrutura de suas significações particulares.

    Assim, a hermenêutica jurídica oferece diversas técnicas para orientar o processo

    interpretativo, sendo doutrinariamente classificadas em: gramatical, sistemática, histórica, sociológica e teleológica. 33

    Deve observar o operador do direito que as mais diversas técnicas interpretativas não

    devem ser aplicadas isoladamente. O campo de aplicação é o da efetiva integração, posto que não se excluem, mas dialogam entre si. Nesse sentido, sustenta Gonzalo Mourullo apud Soares34:

    En realidad la interpretación de la norma jurídica es siempre pluridimensional, no unidimensional, y se va desarrollando desde diversas perspectivas. Se habla, como de todos es sabido, de uma interpretación histórica, sistemática, gramatical y teleológica. Cada una de estas interpretaciónes nos oferece distintos puntos de vista para compreender el sentido último de la norma.

    A técnica de interpretação gramatical, da qual o intérprete exerce a sua atividade

    analisando as expressões normativas, com uma perspectiva etimológica, tem se mostrado pobre e superada na contemporaneidade. No âmbito da análise de um princípio sob essa perspectiva se percebe que o núcleo não é atingido, face às restrições do hermeneuta.

    Em outra dimensão, a técnica sistemática, para alguns doutrinadores, denominada de

    lógico-sistemática, a atuação do intérprete é ampla, ultrapassando os contornos limitativos da norma ou do princípio. Nessa técnica, o hermeneuta analisa o princípio considerando todo o sistema, bem como a ordenamentos paralelos que sejam com eles compatíveis. No que toca ao Direito do Consumidor, por exemplo, o princípio da boa-fé objetiva deve ser visto de forma a atender a diretriz protetiva do consumidor.

    Nesse particular, abre-se porta para o diálogo de fontes normativas diversas. Assim,

    os princípios também devem se comunicar, emanar luzes e receber luzes. Com essa técnica interpretativa, o operador do direito habilita-se a iniciar um processo de ponderação para solucionar eventual conflito de aplicação principiológica.

    Com campo relevante para o Direito do Consumidor, a técnica interpretativa

    histórica permite ao hermeneuta analisar os antecedentes do preceito normativo vigente, 32 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 22. Ed., São Paulo: Saraiva, 1995. p. 285. 33 SOARES, Ricardo Maurício Freire. A nova interpretação do Código brasileiro de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2007. 34 Idem, p. 32

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    perquirindo as razões, motivos e fatos que levaram ao surgimento do comando normativo ou principiológico analisado. No caso do princípio da vulnerabilidade, imperativo no sistema de consumo, o hermeneuta deve constatar que o consumidor, historicamente, foi alvo de práticas abusivas e que ao interpretar o referido princípio deverá compreender as razões de um sistema protetivo.

    A outra técnica interpretativa é a sociológica, que tem como escopo promover

    efetividade à norma jurídica e ao princípio analisado. O princípio passa a ser interpretado em reflexo às necessidades sociais, aos fins sociais. Nesse mesmo sentido, o processo teleológico procura a finalidade da norma e do princípio no ordenamento jurídico, os fins a que ele se destina, servindo de parâmetro para os demais processos interpretativos.

    No âmbito do sistema de consumo, o CDC brasileiro, com estrutura e diretriz

    principiológica, deve ter seus princípios interpretados a partir de uma atuação harmônica do intérprete, prestigiando a essência protetiva, em razão da vulnerabilidade do consumidor. Por certo, os princípios no CDC precisam ser interpretados sob a perspectiva de dois outros princípios: dignidade da pessoa humana e vulnerabilidade.

    Assim, efetivamente, no aspecto hermenêutico, não apenas as regras jurídicas devem

    ser interpretadas em favor do consumidor, como inclusive dispõe o art. 47 do CDC, mas, principalmente os princípios, posto que são eles que conduzem a atuação do operador do direito no sistema jurídico.

    2.7 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UM VETOR DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

    No ordenamento jurídico, dentre os princípios existentes, os constitucionais se destacam, ganham contornos relevantes, exercem um caráter supremo, em especial os fundamentais. O direito brasileiro adotou, como base da estrutura do sistema jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana, pedra angular da estrutura normativa instituída. O professor Ricardo Maurício Soares35 bem descreve esse cenário, ao asseverar que:

    Com efeito, o legislador constituinte brasileiro conferiu ao princípio da dignidade da pessoa humana a qualidade de norma embasadora de todo o sistema constitucional, informando as prerrogativas e as garantias fundamentais da cidadania, no plano da sociedade civil e do mercado de consumo.

    Nunca se falou tanto em dignidade da pessoa humana como nos últimos tempos, fruto

    inequívoco da violação de direitos da personalidade e do abuso de direito. A partir do momento em que os sistemas jurídicos passaram a enaltecer a figura do ser humano como sujeito das relações jurídicas, numa concepção do pensamento de Kant, consagrou-se o princípio da dignidade da pessoa humana. Kant36 aponta que a dignidade não se traduz em um bem factível de preço ou valor, asseverando que tudo tem preço ou dignidade, pois “quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade”. 35 SOARES, Ricardo Maurício Freire. A nova interpretação do Código brasileiro de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 78. 36 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 77.

  • 20

    Com múltiplas dimensões, o princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser

    relevante para todos os ramos do direito, pois não se destina apenas ao individuo ser humano, mas à coletividade de pessoas, sem restrições injustificadas. A essência do princípio está na consagração da pessoa humana, da sua integridade física, psíquica e existencial. A ideia de dignidade humana ultrapassa o contorno da vida, como expressão extrema da proteção humana. O princípio permite alcance amplo ao assegurar ao indivíduo além da vida, uma vida digna. Pondera Ana Paula de Barcellos37 que “o efeito pretendido pelo princípio da dignidade da pessoa humana consiste, em termos gerais, em que as pessoas tenham uma vida digna”.

    Discorrendo sobre o referido princípio, o insigne Luís Roberto Barroso38 lhe atribui

    carga moral, detentor de um núcleo elementar correspondente a um mínimo existencial destinado ao ser humano, do qual são titulares todas as pessoas. Assevera o referido doutrinador que:

    O desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação um símbolo do novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar.

    A dignidade da pessoa humana, como princípio constitucional, encontra-se no ordenamento jurídico com uma carga teleológica expressiva, de força normativa com eficácia imperativa em todas as relações jurídicas, seja no âmbito público ou privado. Fala-se na doutrina contemporânea em eficácia vertical e horizontal dos preceitos fundamentais, em especial, a dignidade da pessoa humana como vetor do ordenamento jurídico brasileiro.

    Com função interpretativa, o operador do direito encontra no princípio da dignidade da

    pessoa humana a máxima do direcionamento de aplicação das regras e demais princípios. As funções estruturantes e interpretativa são expressivas no princípio da dignidade da pessoa humana. Ricardo Maurício Soares 39, por sua vez, aponta que:

    A eficácia hermenêutica consiste na capacidade do princípio da dignidade humana de orientar a correta interpretação e aplicação das regras e demais princípios de um dado sistema jurídico, a fim de que o intérprete escolha, dentre as diversas opções hermenêuticas, aquela que melhor tutele a ideia de existência digna no caso concreto, e, por óbvio, em se tratando do direito consumerista, a que melhor resguarde a figura do consumidor.

    A função interpretativa que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana

    permite não apenas o direcionamento para a correta aplicação de regras do sistema jurídico, mas mostra-se eficiente acima de tudo para a concretização e dimensionamento dos demais princípios com sede constitucional. Será por vezes a dignidade da pessoa humana o viés da 37 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficáia Jurídica dos Princípios Constitucionais – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 304. 38 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos no Novo Direito Constitucional Brasileiro, Pós-Modernidade, Teoria Crítica e Pós-Positivismo. Rio de janeiro: Revista de Direito Administrativo, 2001, p. 31.. 39 SOARES, Ricardo Maurício Freire. A nova interpretação do Código brasileiro de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 83

  • 21

    balança quando exista algum conflito principiológico. Bem pondera Paloma Santana Modesto40 ao afirmar que:

    O princípio da dignidade da pessoa humana serve, assim, como ponto de partida para a tarefa de interpretar, integrar e aplicar o ordenamento jurídico, em razão de sua preeminência axiológica e correspondente função integradora do sistema.

    Há muito, o princípio da dignidade da pessoa humana deixou de ser expressão apenas

    da atuação do direito público, como máxima da representação de um Estado Democrático de Direito, passando a ter regência expressiva e obrigatória no campo das relações privadas, na atuação entre particulares.

    Outro não pode ser o alcance dado ao §1º do art. 5º da Constituição Federal brasileira

    ao estabelecer que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Por certo, as normas que instituem direitos e garantias fundamentais possuem os particulares como destinatários.

    Por derradeiro do tópico, vale ressaltar o papel do operador do direito na aplicação do

    princípio da dignidade da pessoa humana. Por ser considerado o princípio vetor do ordenamento jurídico, suas luzes são emanadas para as regras constitucionais e infraconstitucionais, bem como aos demais princípios existentes no ordenamento jurídico. Por esta razão, a aplicação do mesmo não pode e nem deve ser indiscriminada, sob pena do seu esvaziamento.

    Por certo, ainda no campo doutrinário, caberia uma discussão quanto à efetividade

    dos princípios no ordenamento jurídico, aplicando-os como verdadeiras normas gerais. Clara e relevante é a obra publicada por Ana Paula de Barcellos41, ao enfrentar de maneira precisa o tema da eficácia jurídica dos princípios, pontuando que “a identificação dos efeitos é talvez a maior dificuldade, especialmente, quando se cuida do princípio da dignidade da pessoa humana”.

    2.8 O DIÁLOGO DOS PRINCÍPIOS ENTRE O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002

    E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Antes de enfrentar de forma específica os princípios no âmbito do Direito do

    Consumidor, faz-se necessário visualizar o mapeamento principiológico que norteia o sistema privado e as vertentes que seguiram para o Direito do Consumidor.

    O CDC, editado no início da década de 90, inaugurou o sistema normativo brasileiro

    como um microssistema específico voltado à defesa do consumidor. Antes da Lei 8.078/90 – CDC – as relações de consumo eram reguladas pelo Código Civil de 1916, normatização de estrutura nitidamente ideológica.

    O Código Civil anterior guardava na sua concepção um referencial ideológico voltado para a valorização do patrimonialismo, individualismo e por uma estrutura patriarcal. A 40 MODESTO, Paloma Santana. A eficácia dos direitos fundamentais das relações jurídicas privadas, in Revista do Curso de Direito das Faculdades Jorge Amado. Salvador, 2002, p. 402. 41 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficáia Jurídica dos Princípios Constitucionais – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 306.

  • 22

    essência era a preocupação com a propriedade, tendo o homem como o centro da tutela jurídica, em detrimento das mulheres.

    Esse modelo jurídico já não mais atendia aos interesses sociais, que buscavam por uma

    efetividade e melhor regulação de temáticas específicas. Desta forma surge a necessidade de se instituir movimentos pela reformulação ou elaboração de um novo Código, que veio posteriormente, de fato, a surgir.

    Iniciou-se no ordenamento jurídico brasileiro um processo de descentralização

    jurídica, com a criação dos microssistemas jurídicos, a exemplo do CDC, normas com vertente principiológica acentuada. Nesse sentido, o ordenamento jurídico privado passou a valorizar efetivamente o campo principiológico.

    Com a edição do Código Civil de 2002, ficou bastante nítido o modelo principiológico

    adotado: tripé principiológico. A nova codificação passou a ser estruturada pelos princípios da eticidade, sociabilidade e operabilidade. 42

    A eticidade, como princípio, proporciona uma valorização do comportamento

    lastreado na boa-fé, na sua concepção objetiva. Assim, o princípio emana luzes indicativas de proteção e tutela para quem atua corretamente e sanção e responsabilização para quem atua de má-fé. A eticidade no Direito do Consumidor exige que o consumidor atue no mercado de consumo de forma honesta e correta, não se utilizando do sistema protetivo para obter fins indevidos, assim como incide sobre o fornecedor, inviabilizando a realização de práticas abusivas.

    O princípio da sociabilidade, por sua vez, valoriza os aspectos sociais, trazendo para o

    direito privado as luzes da funcionalidade social. A própria função social da propriedade é um exemplo de materialização do referido princípio. A sociabilidade pode ser facilmente representada pela expressão proeminência do coletivo em detrimento do individual. Não que as normatizações privadas não tenham em sua essência a proteção do indivíduo, mas passaram a ter que exercer uma funcionalização.

    Por outro lado, o princípio da operabilidade apresenta duas dimensões, na medida em

    que busca facilitar o acesso do operador à norma, aproximando o campo de manuseio e de aplicação de institutos jurídicos. Outrossim, busca enaltecer o papel do operador do direito com a inserção de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, retirando do operador a mera função de reprodutor da lei, lhe emprestando agora a condição de agente atuante no processo de aplicação normativa. 43

    Pois bem, esse tripé principiológico, embora nítido no Código Civil de 2002, também

    se fez presente no CDC. A partir dessa identificação é que se percebe que os princípios das referidas codificações devem se comunicar. O diálogo principiológico também se faz necessário, como deve ocorrer, por exemplo, em relação à boa-fé objetiva que possui registros específicos nos dois diplomas legais.

    42 TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 5 ed. São Paulo: Método. 2010. 43 TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 5 ed. São Paulo: Método. 2010.

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    Ao passo em que a boa-fé objetiva se faz presente expressamente nas referidas codificações, outros princípios não se apresentam da mesma forma, exigindo do operador do direito o verdadeiro diálogo principiológico, como é o caso do princípio da informação, transparência, função social, dentre outros. Somente com o diálogo principiológico será possível aplicar adequadamente os princípios existentes no ordenamento. 44 2.9 OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DAS RELAÇÕES DE CONSUMO

    O microssistema consumerista é orientado por vários princípios, permitindo que a

    norma de consumo permaneça atualizada e com a efetividade desejada. De caráter principiológico, a norma de consumo se destaca justamente pela força principiológica que expressa, materializando-se em segurança e efetividade no sistema jurídico. 45

    A doutrina consumerista com propriedade vem a cada momento dimensionando os

    princípios norteadores do Direito do Consumidor, principalmente aqueles típicos do âmbito negocial. Na teoria geral dos contratos, a fundamentação principiológica é por demais relevante, sendo que no âmbito do direito do consumidor muitos desses princípios passaram a ser temperados, com a sua aplicação mitigada. 46

    Evidentemente, não se enfrentará aqui todos os princípios que tem sido explorados

    pela doutrina nacional, contudo pontuar-se-á aqueles que são entendidos como os sustentáculos da proteção consumerista. 2.9.1 Princípio da vulnerabilidade

    Princípio que se destaca na seara consumerista é o da vulnerabilidade, sendo apontado

    pela doutrina como o princípio justificador de uma atuação tutelar e protetiva de um sujeito de direito específico. Com origem eminentemente constitucional, a vulnerabilidade decorre de um primado constitucional relevante: a isonomia. 47

    O legislador reconheceu expressamente, no art. 4º, I do CDC, que o consumidor é

    vulnerável, sendo este reconhecimento uma “primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal”. 48

    Percebe-se que a vulnerabilidade do consumidor decorre do princípio constitucional da isonomia, em razão da ideia de que “os desiguais devem ser tratados desigualmente, na proporção de suas desigualdades, a fim de que se obtenha a igualdade desejada”. 49 44 Idem 45 TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 5 ed. São Paulo: Método. 2010. 46 Idem 47 NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. 48 NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 106. 49 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 83.

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    Por certo, a isonomia objetivada nas relações de consumo decorre de uma perfeita

    hermenêutica constitucional, haja vista que o art. 5° da Constituição Federal de 1988 assegura que todos são iguais perante a lei. Aqui devemos observar a posição do consumidor nas relações de consumo, pois a tutela se justifica na medida em que proporciona o equilíbrio e a igualdade material.

    A ideia de isonomia, evidentemente, busca afastar a reconhecida desigualdade

    existente entre consumidores e fornecedores nas relações de consumo por meio da tutela protetiva consagrada no CDC. Nesse sentido, Bruno Nubens Barbosa Miragem 50 verifica que:

    [...] a doutrina consumerista há muito vem argumentando – a nosso ver com acerto – que, ao se estabelecer proteção específica ao consumidor, o que se promove é a igualização, por meio do direito, de uma relação faticamente desigual [...].

    Assim, busca-se a isonomia em decorrência da vulnerabilidade, devendo observar que

    ela é referida no CDC como sendo presumida, portanto não importa se o consumidor está ou não em condições desvantajosas frente ao fornecedor, pois para o reconhecimento da vulnerabilidade basta que o sujeito da relação de consumo seja reconhecido como consumidor. Neste sentido, Roberto Senise Lisboa51 já ponderava:

    A vulnerabilidade, conforme consta do CDC, não se submete ao critério da razoabilidade para ser identificada no caso concreto, uma vez que o legislador presumiu iure et de iure a sua existência em uma relação de consumo, fixando-se que o destinatário final de produtos e serviços é a parte que necessita ser amparada de forma mais favorável pela legislação.

    Diante das peculiaridades do consumidor e, principalmente, de sua vulnerabilidade,

    legalmente reconhecida, fica fácil identificar as razões que sustentam a tutela protetiva a que faz jus. É justamente a ideia de proteção integral e absoluta que sustenta o sistema de consumo.

    Analisando, ainda, a vulnerabilidade do consumidor, Roberto Senise Lisboa52 salienta

    que: [...] pouco importa a situação econômica ou classe social do consumidor, bem como seu grau de instrução ou mesmo se a aquisição do produto ou do serviço se deu para o exercício da atividade profissional do consumidor, ou não. A vulnerabilidade é qualidade indissociável do destinatário final do produto ou serviço [...]. É adjetivo que se encontra sempre ligado ao consumidor no sistema jurídico brasileiro, sem que qualquer ressalva tenha sido expressamente feita pelo legislador.

    A doutrina ainda promove uma classificação quanto aos tipos de vulnerabilidade

    existentes no sistema de consumo. Pode-se identificar a vulnerabilidade técnica, que seria aquela em que o consumidor não possui os conhecimentos específicos sobre determinado produto ou serviço, ficando, portanto, mais fragilizado no momento da contratação com o 50 SARLET, Ingo Wolfang. Dignidade da ppessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos advogados, 2001, p. 119. 51 LISBOA, op cit, p. 85. 52 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 86.

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    fornecedor. O fornecedor é o detentor do conhecimento, das técnicas empregadas no mecanismo produtivo. 53

    Outro tipo de vulnerabilidade é a jurídica ou científica, que se destaca quando o

    consumidor apresenta falta de conhecimentos jurídicos, ou de outros referentes à relação, como a engenharia, economia, contabilidade, informática etc., lembrando que na maioria das vezes o consumidor não está preparado para contratar. Sérgio Cavalieri Filho bem sintetiza essa espécie de vulnerabilidade ao aduzir que ela:

    [...] resulta da falta de informação do consumidor a respeito dos seus direitos, inclusive no que respeita a quem recorrer ou reclamar; a falta de assistência jurídica, em juízo ou fora dele; a dificuldade de acesso à justiça; a impossibilidade de aguardar a demorada e longa tramitação de um processo judicial que, por deturpação de princípios processuais legítimos, culmina por conferir privilegiada situação aos réus, mormente chamados litigantes habituais. 54

    Por fim, um terceiro tipo de vulnerabilidade, apresentado pela doutrina, é justamente a

    fática, ou sócio-econômica, que envolve diversos fatores, sendo identificada como a vulnerabilidade real, como bem aponta Leonardo de Medeiros Garcia55, exemplificando-a como aquela decorrente do grande poderio econômico do fornecedor; pelo monopólio de determinados setores, impondo uma posição de superioridade do fornecedor frente ao consumidor.

    Vale ponderar que todo consumidor é vulnerável, sendo merecedor da tutela específica

    consagrada no CDC, fruto de fontes e determinações constitucionais, não podendo tal princípio ser confundido com o instituto da hipossuficiência, que é um estado de fato atrelado ao campo probatório, ou seja, dificuldade ou impossibilidade de se desincumbir do ônus probatório. Dessa forma, todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente.

    2.9.2 Princípio da transparência

    O princípio da transparência também se encontra previsto explicitamente no art. 4° do CDC. Sem dúvida, este princípio está atrelado ao princípio da boa-fé, pois essa transparência é justamente o dever de clareza nas informações que envolvem uma relação jurídica. Sobre o tema, bem ponderou Felipe Peixoto Braga Netto56, ao asseverar que:

    O dever de agir com Transparência permeia o Código de Defesa do Consumidor. A Política Nacional das Relações de Consumo busca, dentre outros objetivos, assegurar a transparência nestas relações (art. 4º). Conduta transparente é conduta não ardilosa, conduta que não esconde, atrás do aparente, propósitos pouco louváveis. O CDC, prestigiando a boa-fé, exige transparência dos atores do

    53 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Edições Juspodivm, 2007 54 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor, 3a edição, São Paulo: Atlas, 2011, p. 50. 55 GARCIA, Leonardo de Medeiros . Direito do Consumidor. Niterói, RJ: Impetus, 2006, p. 9.. 56 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Edições Juspodivm, 2007, p. 32.

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    consumo, impondo às partes o dever de lealdade recíproca, a ser concretizada antes, durante e depois da relação contratual.

    Na doutrina, quem bem enfrenta o princípio da transparência é Roberto Senise

    Lisboa57, sendo relevante a seguinte transcrição:

    Há uma forte relação entre o princípio da transparência e a cooperação mútua, outro dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva. A transparência, porém, limita-se ao auxílio mútuo para que ambas as partes tomem conhecimento de todos os detalhes do contrato e da situação econômica dos contratantes, enquanto que a cooperação mútua é mais abrangente porque envolve outros aspectos relacionados com a execução das obrigações pactuadas.

    É importante ressaltar que este princípio tem perfeita aplicabilidade em toda

    sistemática do CDC. O princípio da transparência deve ser aplicado nas relações contratuais, bem como nas extracontratuais.

    Este princípio traduz-se na obrigação do “fornecedor de dar ao consumidor a

    oportunidade de conhecer os produtos e serviços que são oferecidos e, também, gerará no contrato a obrigação de propiciar-lhe o conhecimento prévio de seu conteúdo”. 58

    Da análise do princípio da transparência, torna-se possível identificar os seus

    elementos determinantes, quais sejam: a informação, a sinceridade, a clareza de conteúdo e a intenção das partes. Ponderando sobre o tema, Plínio Lacerda Martins59 assevera que:

    O princípio da transparência busca uma relação mais próxima e adequada entre o fornecedor e o consumidor, visando, pelo próprio conteúdo, à sinceridade no negócio entre ambos os contratantes. Visa permitir um olhar direto no tocante à verdadeira intenção de cada um e no sentido de que, de forma pura – no sentido de pleno conhecimento de condições – se instaure a plena satisfação no atendimento dos fins objetivados na contratação: o fornecimento e o recebimento do produto ou serviço.

    No campo da comunicação, a preocupação com a observância desse princípio ganha

    grande relevo, principalmente, pela manifesta vulnerabilidade dos consumidores. A conduta do fornecedor deve ser a mais clara e transparente possível, permitindo ao consumidor uma perfeita compreensão sobre o produto, serviço e mensagens publicitárias. Nesse sentido, pontua Guilherme Fernandes Neto60:

    As informações carreadas pela comunicação de massa devem ser transparentes, cristalinas, se dirigidas aos consumidores ou aos cidadãos, por força do princípio da transparência e do cardeal preceito da confiança. [...] A comunicação deve ser transparente e a transparência deve permear todo o processo comunicativo.

    57 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 101. 58 NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 105. 59 MARTINS, Plínio Lacerda. Anotações ao CDC: conceitos e noções básicas. Forense, 2006, p.9. 60 FERNANDES NETO, Guilherme. Direito da comunicação social. São Paulo: Revista dos tribunais, 2004, p. 89

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    A transparência, como princípio, ganha destaque e atuação no sistema consumerista. Os sujeitos devem agir no campo negocial de forma clara, adequada, sem subterfúgios. A transparência exige quem quis dizer e não disse, quem quis falar e não falou a adotarem conduta simplesmente transparente. Sérgio Cavalieri Filho61 aponta que:

    Depois do advento do Código de Defesa do Consumidor não mais cabe qualquer subterfúgio nas relações de consumo, não há mais lugar para o antigo dolus bônus, então tolerado ou desconsiderado pelo direito por se entender que a sua função era apenas a de estimular e atrair o consumo. Agora exige-se transparência total, o sim deve ser sim e o não, não.

    Em suma, a transparência é um dever de ambos os sujeitos na relação de consumo.

    Tanto o fornecedor, quanto consumidor, devem agir na mais pura e nítida transparência. 2.9.3 Princípio da boa fé objetiva

    Há que se verificar que o princípio da boa fé é um dos pilares do CDC, uma vez que dá origem a vários outros princípios, como o da transparência, lealdade e informação. A boa fé não é nenhuma novidade no direito brasileiro, contudo a expressão “boa fé”, que é utilizada nos textos legais, ganhou a roupagem de boa fé objetiva e encontra-se inscrita no art. 4° do CDC, devendo estar presente em todas as relações de consumo. Nesse sentido, ponderou Felipe Peixoto Braga Netto62.

    A boa-fé objetiva é talvez o mais importante princípio do direito contratual contemporâneo. É o dever, imposto a quem quer que tome parte em relação negocial, de agir com lealdade e cooperação, abstendo-se de condutas que possam esvaziar as legítimas expectativas da outra parte.

    Este princípio poderia aqui ser simplesmente definido como agir com ética, lealdade e

    cooperação, ou seja, as partes envolvidas em uma relação de consumo devem ter suas condutas calcadas em valores meta-jurídicos, objetivando uma harmonização de interesses. Assevera Ester Lopes Peixoto 63 que:

    [...] com a finalidade de implementar o equilíbrio nas relações de consumo a boa-fé determina a imposição de novos deveres jurídicos ao fornecedor (dever de informação, de proteção, de veracidade etc.) e, em contrapartida, assegura direitos ao consumidor [...].

    Em verdade, falar em boa-fé objetiva no campo das relações de consumo é fixar

    deveres de condutas a serem seguidos pelos sujeitos daquela relação, tanto no pólo ativo, quanto no pólo passivo. Vale salientar que é uma imposição que deve nortear todas as fases da relação negocial, ganhando relevância na sistemática do CDC. Sobre o tema Leonardo de Medeiros Garcia64 aponta que:

    61 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor, 3a edição, São Paulo: Atlas, 2011, p. 43 62 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Edições Juspodivm, 2007, p. 39. 63 PEIXOTO, Ester Lopes. O princípio da boa-fé no direito civil brasileiro. Revista de direito do consumidor, nº 45.. Ed. Revista dos tribunais, 2003, p.168. 64 GARCIA, Leonardo de Medeiros . Direito do Consumidor. Niterói, RJ: Impetus, 2006, p. 22.

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    O Código de Defesa do Consumidor foi a primeira norma a prever expressamente a boa-fé objetiva e efetivamente aplicá-la no campo das obrigações entre consumidores e fornecedores. A boa-fé objetiva estabelece um dever de conduta entre os fornecedores e consumidores no sentido de agirem com lealdade e confiança na busca do fim comum, que é o adimplemento do contrato, protegendo, assim, as expectativas de ambas as partes.

    O princípio da boa fé desmembra-se em diversos deveres, entre eles destacamos o da

    confidencialidade, cooperação, informação e do cuidado. Assim, consumidores e fornecedores devem relacionar-se calcados na manifesta e explícita boa fé objetiva.

    No contexto da sociedade de consumo em massa em que vivemos, a boa fé é fator

    preponderante para a validação dos negócios jurídicos travados entre consumidores e fornecedores. Assim, este princípio deve ser observado com especial atenção, ainda mais no tocante à publicidade, haja vista que os consumidores encontram-se em extrema vulnerabilidade.

    Como bem salienta Rizzatto Nunes65, ao analisar a amplitude deste princípio, tem-se

    como função: [...] viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, compatibilizando interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Com isso, tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa do débil, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica [...].

    Verifica-se, com tranquilidade, que, após as novas inserções legislativas, bem como

    diante da nova ordem constitucional, passamos a identificar a boa-fé objetiva como nova vertente do ordenamento jurídico, devendo visualizá-la a partir do conceito jurídico e econômico e não mais apenas na ideia de conceito meramente ético como o consagrado na ideia geral de boa-fé. 66

    A boa-fé prevista pelo CDC é a objetiva, uma vez que persegue o equilíbrio entre as

    partes contratantes, para que consigam atingir o fim colimado no contrato, sem abusos e sem lesões, devendo as partes agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade. 67

    Relevante é a doutrina de Paulo Roberto Roque Antonio Khouri68, ao enfrentar de

    forma clara o princípio da boa-fé objetiva. Para o referido autor: O princípio da boa-fé é instrumento de valiosíssima importância para o operador do direito na interpretação do contrato, bem como para os próprios partícipes da relação de consumo. A boa-fé elevada a princípio de direito contratual não é, naturalmente, apenas a boa-fé subjetiva, mas, sobretudo, a boa-fé objetiva. Um padrão de conduta imposto objetivamente pelo legislador, obrigando as partes contratantes à sua fiel observância. [...] o CDC consagra, como princípio basilar das relações de consumo, a boa-fé objetiva.

    65 NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 108. 66 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 67 NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. 68 KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 66

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    Assim, como dever de conduta, comando imperativo, a boa-fé objetiva demonstra-se

    estruturada efetivamente nos pilares da honestidade, lealdade e probidade. Agirá conforme a boa-fé objetiva aquele que atue da forma esperada pelos valores inseridos na sociedade.

    2.9.4 Princípio da harmonia do mercado de consumo A essência protetiva do Direito do Consumidor, por certo não tem como foco aniquilar

    a atividade empresarial. Proteger o consumidor não quer dizer pura e simplesmente instituir um sistema só de direitos para aquele sujeito específico. O microssistema consumerista, muito embora tenha como foco efetivamente a proteção do consumidor, também assegura prerrogativas e direitos dos fornecedores.

    A intenção do legislador constituinte, ao elevar ao status de direito fundamental a

    defesa e proteção do consumidor, não teve como o norte inverter o desequilíbrio da relação jurídica de consumo.

    A rede protetiva tem como propósito permitir a harmonização da relação de consumo,

    perseguir o equilíbrio entre os consumidores e os fornecedores. Pondera Roberto Senise Lisboa 69:

    A relação de consumo deve ser harmônica e justa, a fim de que o vínculo entre fornecedor e o consumidor seja constituído de maneira tal que se estabeleça equilíbrio econômico da equação financeira e das obrigações jurídicas pactuadas ou contraídas pelos interessados.

    O próprio legislador consumerista dispôs de forma clara no art. 4º, III do CDC que é

    uma diretriz da norma à harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica.