a recepção do modelo de Áreas de proteção ambiental no direito brasileiro

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  • 7/25/2019 A Recepo Do Modelo de reas de Proteo Ambiental No Direito Brasileiro

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    Andr Olavo Leite1

    Resumo: Apesar de seu carter inovador e de sua particular significncia nocontexto brasileiro, o conceito de reas de Proteo Ambiental (APA) continua aser objeto de grande nmero de crticas. Este trabalho procura aprofundar o debate

    sobre essas reas, ao identificar se as dificuldades ligadas a esse modelo de reaprotegida podem ser reputadas ao prprio modelo jurdico de APA. Com esseobjetivo, em um primeiro momento o trabalho demonstra que o conceito de APAtem origem no conceito portugus de Parques Naturais, que por sua vezcorresponde a um transplante do modelo francs de Parcs Naturels Rgionaux, eessa constatao permite questionar se a problemtica ligada a esse modelo derea protegida inerente ao prprio modelo que foi importado, ou se ela fruto daqualidade do seu transplante para o direito brasileiro. Afim de esclarecer essaquesto, so apresentados, analisados e comparados os dois modelos estrangeirosmencionados e o modelo brasileiro de APA, demonstrando que o transplante desseconceito para a legislao brasileira apresenta uma srie de deficincias,

    principalmente porque as preocupaes e objetivos que levaram o legisladorestrangeiro a pensa-lo, no foram acolhidos pelo modelo brasileiro. Por fim,mostra-se que, como os problemas sociais que inspiraram a criao do modeloestrangeiro frequentemente podem ser observados em diferentes regiesbrasileiras, a deficincia do transplante que deu origem s APA tem levado olegislador estadual a criar novos tipos de unidades de conservao baseados nomodelo que inspirou a criao das APA.

    Palavras-chave:Direito comparado. Direito Ambiental. reas Protegidas. reasde Proteo Ambiental.

    Abstract: Despite its innovative character and its particular significance in theBrazilian context, the concept of reas de Proteo Ambiental(APA) continuesto receive a number of criticisms. This paper aims at identifying if the problemspointed out on that concept of protected areas are related to its legalcharacteristics. In a first moment, we show that the concept of APA is a transplantof the Portuguese concept of Parques Naturais, which in its turn is a transplant

    1 Membro do laboratrio GF (EGST, Le Mans, Frana) e da Socit Franaise pour le Droit delEnvironnement . Doutorando do Conservatoire National des Arts et Mtiers (heSam universit), comtese em cotutela com o Programa de Ps Graduao em Direito da Universidade Federal de Santa

    Catarina (Brasil). Bolsa cole Doctorale Abb Gregoire (Frana).

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    of the French concept of Parcs Naturels Rgionaux. The recognition of theforeign origins of the concept of APA, allows us to enquire if the problemsidentified in the concept of APA are inherent to the concept that was transplantedto Brazilian law, or if they are the result of its transplant. In order to address thatquestion, we present, analyse and compare the Portuguese concept of ParquesNaturais, the French concept of Parcs Naturels Rgionaux and the Brazilianconcept of APA, demonstrating that their transplant to Brazilian law presentsseveral problems, specially because the main objectives that led the foreignlegislator to create it, were not transplanted to Brazilian law. As a result, thefeatures of the Brazilian concept of APA are very different and led to results verydifferent from those expected, and in the last part of the paper we show that,because Brazils national legislation lacks a concept of protected areas similar tothose of Parques Naturais and Parcs Naturels Rgionaux, some Brazilianfederated States have in recent years enacted their own concepts of protected areassimilar to them.

    Key-words: Comparative Law. Environmental Law. Protected Areas.Environmental Protection Areas.

    1INTRODUO

    A categoria das reas de Proteo Ambiental (APA)surgiu no ordenamento jurdico brasileiro no comeo da dcada de1980, inovando por ser a primeira categoria de rea protegida2 dodireito nacional a permitir a afetao de terras privadas - e aconsequente permanncia de populaes residentes, e a buscar aconciliao das atividades e interesses econmicos dessas

    populaes com a conservao dos elementos naturais. Embora nose trate do primeiro modelo brasileiro de rea protegida a buscarintegrar conservao e explorao controlada dos recursos naturais3,trata-se sem dvida de uma categoria inovadora, pois introduziu noordenamento nacional os primeiros traos de uma tendncia que

    atualmente se encontra presente em boa parte dos direitos dos

    2Neste trabalho empregamos o conceito de rea protegida mais amplamente aceito pelas comunidadescientfica e politica, que aquele elaborado e mantido pela Unio Internacional para Conservao da

    Natureza. Como tivemos ocasio de mostrar em outros trabalhos, trata-se do conceito de reaprotegida que serviu como base para o conceito de rea protegida da Conveno sobre diversidadebiolgica (cujo anteprojeto foi elaborado pela UICN), que por sua vez serviu de inspirao para oconceito de unidade de conservao da Lei no9.985 de 18 de julho de 2000.

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    Esse mrito pertence categoria das Florestas Nacionais (FLONA), criada em 1934.

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    pases: reas protegidas habitadas e com uma clara preocupao como desenvolvimento econmico local.

    Apesar de seu carter inovador e de sua particularsignificncia, por ter surgido em um contexto de grandes crticas aosreassentamentos de populaes tradicionais para a criao de reas

    protegidas (e em um pas que ganhava destaque na mdiainternacional por esse tipo de prtica4), o conceito de APA continuaa ser objeto de crticas, que embora estejam longe de seremunnimes5, partem do prprio seio do movimento conservacionista

    brasileiro. Embora algumas dessas crticas tambm sejam feitasespecificamente ao uso que as autoridades pblicas fazem desse

    instrumento, em geral elas se referem ao prprio modelo jurdicopresente na legislao, afirmando que a criao desses espaos nogarante uma proteo eficaz dos recursos naturais neles contidos, eque trata-se de um mero instrumento de zoneamento.

    Este trabalho procura aprofundar esse debate, aoidentificar os motivos que levaram sua criao, qual o interesse emsua incluso no direito brasileiro e se as crticas que essas reas

    protegidas vm recebendo efetivamente devem ser imputadas ao seumodelo jurdico.

    Para responder a essas questes, em um primeiromomento o trabalho analisa as origens do instrumento jurdico dasAPA, demonstrando que se trata de um conceito do direitoestrangeiro que foi recepcionado pelo ordenamento brasileiro. Essaconstatao permite questionar se a problemtica ligada a ele seencontra no prprio modelo de rea protegida que foi importado (ouseja, se o problema seria inerente ao modelo estrangeiro), ou se o

    problema est ligado ao seu transplante para o direito.

    4Um exemplo mais recente pode ser visto na matria Conservation and the rights of tribal peoplemust go hand in hand publicada no jornal britnico The Guardian(WOODMAN, 2015).

    5 Um exemplo particularmente interessante de vises contraditrias sobre esse instrumento pode servisto em publicaes respectivamente de Maria Tereza Jorge Pdua e Paulo Nogueira Neto, duasimportantes figuras do movimento conservacionista brasileiro. Enquanto a primeira afirma que essasreas protegidas no passam de um ordenamento territorial e que elas confundem a opinio

    pblica pois, na maioria dos casos [...], no diferem das reas vizinhas a elas (PDUA, 2001, p.427, 430), o segundo afirma que trata-se de um tipo de rea protegida que alcanou grande sucesso

    desde o seu incio (NOGUEIRA-NETO, 2001, p. 364).

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    Na sequncia, portanto, o conceito jurdico de ParcsNaturels Rgionaux (PNR), no qual as APA brasileiras foram

    inspiradas, apresentado em linhas gerais, buscando identificar ocontexto social em que ele foi criado e a quais preocupaesespecficas o legislador francs buscava responder com a criaodesse modelo de rea protegida. Mostra-se que, em seu pas deorigem, o conceito de PNR conheceu grande sucesso e permitiutratar de forma sistmica uma srie de necessidades sociais,constituindo um verdadeiro instrumento de desenvolvimentoeconmico calcado na proteo do patrimnio cultural e natural.

    No por acaso, ele foi transplantado para diversos outros sistemas

    jurdicos nas dcadas seguintes, com maior ou menor sucesso.Depois, analisado o modelo portugus de Parques

    Naturais, por sua vez oriundo do conceito francs de PNR,mostrando que o transplante desse conceito teve como objetivocombater os mesmos problemas que haviam levado criao doconceito de PNR na Frana alguns anos antes. Por esse motivo, ele

    preservou a maior parte das caractersticas que diferenciam omodelo de PNR dos mais de quarenta instrumentos jurdicos de

    proteo dos espaos naturais com que conta o direito francs.

    Continuando, o trabalho analisa o modelo brasileiro deAPA luz dos conceitos de PNR e de Parques Naturais,demonstrando que o transplante desse conceito para a legislao

    brasileira apresenta uma srie de deficincias, principalmente porqueas preocupaes iniciais que estavam presentes e levaram olegislador estrangeiro a pensa-lo, no foram acolhidas pelo modelo

    brasileiro. Mostra-se que essa simplificao do conceito preservouto somente seu carter de instrumento de zoneamento, perdendo-seas principais caractersticas que o definem no direito estrangeiro.

    Por fim, mostra-se que, como os problemas queinspiraram a criao do modelo estrangeiro frequentemente podemser encontrados em algumas regies brasileiras, e como esses

    problemas no foram contemplados de maneira satisfatria pelosinstrumentos existentes no ordenamento brasileiro, em pelo menosdois casos a deficincia do transplante que deu origem s APA levouo legislador estadual a criar novos tipos de unidades de conservaoque possuem ligao prxima com o modelo francs de Parcs

    Naturels Rgionaux.

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    2AS ORIGENS DO MODELO DE REA DE PROTEOAMBIENTAL

    O comparatista escocs Alan Watson (WATSON, 1996,p. 335) certa vez afirmou que na maior parte dos lugares e na maiorparte das vezes, emprstimos6so a mais frutfera forma de evoluodo direito. Segundo esse autor, emprstimos (uma metfora parao conceito de transplantes legais, cunhado por ele no incio dos anos1970) tm por objeto regrasde direito [...]instituies, conceitoslegais e estruturas que so emprestadas, e no o esprito doordenamento jurdico e podem ser definidos como a migrao deuma regra ou de um sistema de leis, de um pas para outro, de um

    povo para outro (WATSON, 1993, p. 21). Alm disso, segundo ele,esses transplantes legais podem ocorrer em todos os tamanhos eformas: do emprstimo de uma nica regra at (teoricamente) quaseum ordenamento inteiro (WATSON, 1996, p. 335). Apesar dealgumas crticas que a teoria dos transplantes legais continua areceber, ela permanece particularmente influente na cincia dodireito comparado, constituindo uma tradio de pesquisa

    particularmente prolfica e que vem buscando compreender melhor

    as condies e implicaes da circulao de conceitos legais entrepases doadorese receptores, por assim dizer.

    Embora esse fato no tenha chamado muita ateno dadoutrina nacional, o direito brasileiro que trata da proteo dosespaos naturais um campo particularmente frtil para esse tipo deanlises, pois, a julgar pelo que se observa nesse nicho especfico dodireito, possvel que Watson esteja realmente certo: diversos dosseus conceitos e modelos tm origem em ordenamentos jurdicosestrangeiros, e foram transplantados para o direito brasileiro com

    6O termo original borrowings. Tradicionalmente o termo empregado pela doutrina comparatista,especialmente at meados do sculo XX, recepo do direito (ver, por exemplo, Imre Zajtay(1957)). A partir da segunda metade do sculo XX, com a prpria evoluo da disciplina do direitocomparado, outras variaes desse conceito foram sendo elaboradas, buscando explicar em maiordetalhe o processo de importao e exportao de conceitos jurdicos entre diferentes ordenamentos eno seio de um mesmo ordenamento. Por exemplo, o jurista italiano Rodolfo Sacco prefere o conceitodeformantes legais, ao passo que o jurista e socilogo alemo Gunther Teubner utiliza o conceito deirritantes legais, termos esses que possuem implicaes ligeiramente diferentes. Um terceiro caso,

    particularmente influente, o do conceito de transplantes legais, formulado por Watson como partede sua teoria de que o principal meio de evoluo dos direitos dos pases o transplante de partes

    (maiores ou menores) da legislao de outros pases.

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    objetivos e caractersticas jurdicas mais ou menos diferentesdaquelas de seus ordenamentos originrios.

    Um desses casos concerne especificamente as reas deProteo Ambiental brasileiras, que surgiram no ordenamento

    jurdico brasileiro no incio da dcada de 1980, inovando por seremas primeiras reas protegidas brasileiras a permitir a afetao deterras privadas e a permanncia de populaes residentes. Desdemuito a doutrina brasileira vem reconhecendo as origensestrangeiras desse conceito, e frequentemente nota-se que ele possuicaractersticas semelhantes s dos Parques Naturais europeus(MEDEIROS, 2006, p. 54), ou at mesmo das Reservas do

    ProgramaMan and Biosphereda UNESCO (PDUA, 2001, p. 425).Essas, alis, mais tarde deram origem a um instrumento jurdicoespecfico no direito brasileiro (Reservas da Biosfera, contempladona Lei no 9.985/2000 mas hors Sistema Nacional de Unidades deConservao), e nesse caso essas duas categorias corresponderiam amais uma redundncia, dentre as diversas que frequentemente soapontadas na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservaoda Natureza (SNUC).

    Esse no o caso7, pois segundo o prprio proponentedo modelo brasileiro de APA, o ambientalista brasileiro Paulo

    Nogueira Neto ( poca Secretrio Especial do Meio Ambiente,cargo equivalente ao do atual Ministro do Meio Ambiente), de fato ainspirao para trazer esse modelo para o Brasil foram os Parques

    Naturais portugueses, que ele havia visitado alguns anos antes(NOGUEIRA-NETO, 2001, p. 364).

    Segundo esse autor, em Portugal ele teve contato com aequipe governamental responsvel por assuntos ambientais, comquem visitou o Parque Natural da Arrbida, situado no distrito deSetbal. Inspirado nesse exemplo, ele teve a ideia de fazer algosemelhante neste lado do Atlntico, e juntamente com o senadorAlosio Chaves, discutiram, adaptaram realidade brasileira eencaminharam ao Executivo o projeto que se tornou a Lei no6.902

    7Trata-se, portanto, de um modelo de rea protegida distinto das Reservas da Biosfera, que, como dito,no Brasil correspondem a um instrumento especfico do direito interno, diferentemente de outros

    pases que preferiram proteger os espaos naturais correspondentes por meio de instrumentos

    jurdicos que j existiam em seus ordenamentos.

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    de 27 de abril de 1981, que dispe sobre a criao de EstaesEcolgicas, reas de Proteo Ambiental e d outras providncias.

    Ainda de acordo com ele, a possibilidade de estabelecimento delimitaes de uso aos proprietrios das terras afetadas foi umaquesto central em suas discusses com o senador Chaves, e emboraa primeira proposta apresentada a ele contivesse restries queforam consideradas excessivas, sua segunda proposta foi aceita de

    pleno.

    De fato a questo da possibilidade de estabelecimento delimitaes de uso aos proprietrios das terras afetadas constitui umelemento central no apenas do modelo portugus de Parques

    Naturais, mas tambm do modelo francs de Parcs NaturelsRgionaux(PNR), que a verdadeira origem desse conceito de reaprotegida. Mas, como se ver a seguir, em seu contexto de origemesse modelo possui outras caractersticas fundamentais que odistinguem das mais de quarenta categorias de reas protegidasexistentes no ordenamento francs. Mais que isso, o zoneamento noconstitui um fim em si prprio e elemento meramente instrumentalnesse modelo de rea protegida, cujas demais caractersticas lhe

    permitem responder a uma srie de problemticas interdependentes,

    atravs da busca por um novo modelo de desenvolvimentosocioeconmico calcado na defesa do patrimnio natural e dopatrimnio cultural associado.

    3DOSPARCS NATURELS RGIONAUXFRANCESES AOSPARQUES NATURAIS PORTUGUESES

    O modelo de Parques Naturais surgiu na legislao

    portuguesa por meio do Decreto-Lei no613 de 27 de julho de 1976,que em seu prembulo informa tratar-se de um desdobramento (a) dalei de 9 de 19 de junho de 1970, que havia inovado no ordenamentodo pas ao permitir o estabelecimento de reservas com diferentesobjectivos especficos que ficavam sujeitas ao regime florestalobrigatrio8; e (b) da criaoda Secretaria de Estado do Ambiente

    8 O decreto-lei de 1976 substituiu integralmente a lei de 1970, que havia, dentre outras coisas,recepcionado o modelo de Parques Nacionais. At 2015, apenas um parque desse tipo foi criado no

    pais.

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    alguns anos antes, que permitiu ao pas adotar uma perspectiva deaco integrada de todos os aspectos que influenciam o ambiente 9

    (PORTUGAL, 1976a).Segundo esse documento, a introduo no direito

    portugus da concepo europeia de parque natural iria aoencontro das realidades geogrficas e demogrficas do Pas, cujas

    paisagens humanizadas resultam de uma interveno por vezesmilenria e praticamente estendida a todo o espao fsico doterritrio (PORTUGAL, 1976a). De fato, seguindo o exemplonotrio do modelo americano de National Parks - que desde umsculo antes vinha sendo incorporado s mais diferentes legislaes

    pelo mundo, inclusive a Brasileira e a Portuguesa - trata-se tambmde um transplante legal, mas dessa vez tendo como base o modelofrancs de Parcs Naturels Rgionaux (FRADE, 1999, p. 80).

    3.1Parques naturais la franaise

    As origens desse modelo na realidade podem sertraadas at 1964, quando o ministrio da agricultura francsconfiou recm-criada Dlgation interministrielle lamnagement du territoire et lattractivit rgionale(DATAR) amisso de planejar um modelo de parques menos rgido que aquelede parques nacionais, reservados essencialmente a reas desabitadasou esparsamente habitadas10. A DATAR, literalmente Delegaointerministerial para o ordenamento do territrio e a atratividade

    9

    O que o legislador portugus quer dizer, nesse caso, que a Secretaria de Estado do Ambiente tinhaobjetivos mais amplos do que a conservao do aspecto natural do ambiente, isso , que sua missoera proteger o ambiente em sentido mais amplo, incluindo seus aspectos artificiais e culturais. Da anecessidade de criar ou importar outros modelos de reas protegidas.

    10Para que o modelo americano de parques nacionais pudesse ser recepcionado pelo direito francs,algumas adaptaes foram feitas de forma a conciliar esse modelo com as caractersticasdemogrficas, culturais e geogrficas do pas. Assim, desde seu transplante para o direito francs em1960, o modelo de Parcs Nationaux conta com um sistema de zoneamento com o objetivo de

    permitir a permanncia de populaes locais, notadamente nas tradicionais paisagens de montanha dopas. Para mais informaes, ver nosso artigo Desenvolvimento sustentvel no paradigma francs deparques nacionais (OLAVO LEITE, 2013); o artigo Parcs nationaux : fin ou renouveau d'unmodle juridique ? de Raphal Romy (2007); e principalmente o captulo Lmergence de lide de

    parc national en France : de la protection des paysages lexprimentation coloniale de Adel Selmi

    (2009).

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    regional, tem como objetivo preparar as orientaes e pr emprticas as polticas pblicas em matria de ordenamento e de

    desenvolvimento do territrio, fazendo com que as diferentesinstituies pblicas ajustem suas aes respectivas [...] e faamconvergir os meios de que elas dispem, rumo aos objetivos queglobalmente ultrapassam a responsabilidade e a ao de cada umadelas. Por contar com uma misso evidentemente multidisciplinar emulti-institucional, que requer constantemente a possibilidade derecorrer mediao e [uma] autoridade [superior] (FRANCE,2015), institucionalmente ela se encontra sob a autoridade direta doPrimeiro Ministro do pais.

    A atribuio a ela da tarefa de criar um novo modelo derea protegida est ligada ao reconhecimento, pelo governo francsde ento, no apenas de que essa comisso conta com a necessriaamplitude temtica e de objetivos, mas principalmente de que aestratgia tradicional das reas protegidas poderia ser adaptada pararesponder simultaneamente a uma srie de desafios que vinham seapresentando e que tinham como elemento de ligao a questo doordenamento do territrio, tema que, como se ver adiante, vinhasendo formulado na Frana desde a dcada de 1940 e havia ganho

    especial interesse durante as chamadas Trente Glorieuses, operodo que se seguiu Segunda Guerra Mundial.

    Trata-se de uma poca lembrada principalmente pelaintensa modernizao tecnolgica e pelas profundas transformaesnas estruturas sociais do pas. Apesar dos grandes avanoseconmicos e tecnolgicos que propiciou, e em grande medida porcausa deles, esse perodo tambm se caracterizou pelo (a)empobrecimento das velhas regies rurais do pas, (b) poracentuadas taxas de xodo das populaes rurais, (c) pelo inchao

    das grandes cidades, (d) pela multiplicao de centros urbanoscarentes de espaos verdes e de descanso; e, evidentemente, (e) pelacrescente degradao dos espaos naturais e seminaturais francesesque historicamente vinham sendo ocupados e explorados por meiode tcnicas tradicionais, e que tm nessas atividades e nessas

    populaes elementos importantes da identidade cultural regional enacional (BARON-YELLS, 2005).

    So essas transformaes, em particular, que levam asautoridades pblicas francesas a reconhecerem que (a) o caractere

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    especfico das paisagens regionais francesas poderia ser umelemento importante na reconverso de suas velhas regies

    industriais e rurais, atraindo potenciais investidores e fixando aspopulaes locais em suas prprias regies de origem, que (b) seriapossvel associar outras estratgias a esse desenvolvimento regional,para limitar a consumao dos espaos verdes peri-urbanos egarantir a manuteno de espaos de lazer ao ar livre prximos dascidades e que (c) para dar conta da crescente necessidade de

    proteo da diversidade biolgica e de aumento das superfciesafetadas, seria necessrio desenvolver instrumentos jurdicoscapazes de conciliar a conservao do patrimnio natural com a

    presena humana, evitando os altos custos de desapropriaoimpostos pelos parques nacionais (BARON-YELLS, 2005). Emsuma, poca se identificou que seria possvel desenvolver uminstrumento capaz mobilizar as populaes das regies em torno deum projeto de desenvolvimento comum, baseado na valorizao dassuas riquezas naturais e culturais.

    nesse contexto que entre 25 e 30 de setembro de 1966 aDATAR organiza em Lursen Provence as Journes Nationales dE tudes sur Les Parcs Naturels Rgionaux, que renem uma centena

    de personalidades de diferentes setores da sociedade (socilogos,arquitetos, dirigentes de associaes de proteo da natureza e deturismo, artistas, tcnicos, polticos, agricultores, madeireiros, dentreoutros) para debater e dar forma ao conceito de Parcs Naturels

    Rgionaux(CHIVA, 2008, p. 19).

    O decreto de criao (Dcret n67-158) dos PNR,assinado por Charles de Gaulle em 1 maro de 1967, conferiu aomodelo de PNR as seguintes caractersticas11:

    a)

    So compostos pela totalidade ou parte do territriode uma ou diversas communes(art. 1);

    b) Afetam territrios que apresentam um interesseparticular e que merecem ser protegidos eorganizados em funo da qualidade de seu

    11 A anlise que se segue se ateve ao regime jurdico dos PNR tal qual estabelecido inicialmente.Posteriormente diversas dessas caractersticas foram modificadas, mas essas modificaes no so

    pertinentes no contexto deste trabalho, pois o objetivo aqui comparar o modelo de PNR que serviu

    de base para o conceito de Parques Naturais em Portugal, e depois de APA no Brasil.

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    patrimnio natural e cultural, do turismo e do bem-estar e do repouso humano (art. 1). Note-se que a

    abordagem escolhida pelo autor do decreto tratar osbens naturais e culturais associados como elementosigualmente importantes do patrimnio nacional, quedevem estar simultaneamente presentes na rea a serafetada.

    c) A iniciativa do pedido de criao da rea protegidapertence unicamente s prprias communes quepodero ter seus territrios totalmente ouparcialmente afetados (art. 4). Alm de dar maior

    autonomia aos poderes pblicos locais, em um pashistoricamente centralizador, como consequnciafrequentemente os prefeitos realizam audincias

    pblicas e sufrgios locais, buscando informar,convencer e consultar a populao local do interesseem afetar uma parte ou a totalidade de seu territrio.

    d) Aps submetido o pedido de criao pelas communesinteressadas, ele analisado por uma comissodirigida pelo Primeiro Ministro e coordenada pelaDATAR, e que composta por representantes dosministrios encarregados da cultura, do interior, daeconomia, da infraestrutura, da agricultura, da

    juventude, dos esportes e do turismo (art. 2).

    e) A criao do parque subordinada elaborao deuma Carta constitutiva que deve comportar umasrie de documentos e definies: determinao doorganismo pblico ou privado responsvel por suagesto e pela animao12 da rea; participao derepresentantes dos habitantes e proprietrios locais nagesto do parque; zoneamento; plano de realizaoda infraestrutura necessria e seus respectivos modosde financiamento (art. 5). A elaborao dessa Cartasegue um rito especfico, que conta com enquetes

    12 O termo original empregado pelo Presidente francs animer, que pode significar, dentre outrascoisas, dar vida ou aparncia de vida; dar movimento; inspirar algum ou impulsionar a agir e

    tornar algo mais vivo, mais vvido (LAROUSSE, 2015).

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    pblicas e a manifestao de uma srie de entidadessetoriais.

    Posteriormente outros elementos seriam acrescentadosao regime jurdico desses espaos, como forma de reforar seucaractere de valorizao dos bens patrimoniais naturais e culturaislocais, e de integrao das populaes locais nos objetivos de

    proteo desse patrimnio. No entanto, j em sua origem essemodelo contava com caractersticas que lhe do feies nicas(GUIGNIER; PRIEUR, 2012, p. 53) em comparao com outrosmodelos de reas protegidas cuja efetividade se baseia unicamenteno poder de polcia, e que nesse sentido se caracterizam por aquilo

    que os juristas e cientistas polticos anglfonos chamam commandand control. Como se ver seguir, boa parte dessas caractersticasforam posteriormente transplantadas para o direito portugus.

    Quase cinquenta anos depois, a Frana conta com 49desses parques em sua rea metropolitana13, que cobrem cerca de 8,5milhes de hectares ou 15% do territrio francs, e que afetam atotalidade ou uma parte do territrio de 4.315 communes14, nas quaisvivem mais de 4 milhes de pessoas (FDRATION DES PARCS

    NATURELS RGIONAUX DE FRANCE, 2015). Embora osresultados de cada parque nem sempre estejam altura dasexpectativas dos envolvidos, diversos estudos mostram que aqualidade ambiental (rea total coberta por vegetao florestal,arbustfera ou herbcea; nmero e quantidade de espaos urbanosverdes; reduo no uso agrotxicos; preservao de habitats e deespcies frgeis; diversificao e reduo do impacto ambiental dasatividades agropastoris; dentre outras) e socioeconmica(valorizao econmica dos bens e servios produzidos na rea do

    parque; manuteno da populao rural em suas atividades

    tradicionais; menores taxas de desemprego; emprego e renda

    13 Em territrios ultramarinos existem outros dois, um na Guiana e outra na Martinica, que cobremcerca de 7% do territrio combinado de ambos (INPN, 2015).

    14 Na hierarquia francesa das administraes territoriais, as communes correspondemaproximadamente aos municpios brasileiros. Em ordem de grandeza, elas so seguidas pelos

    dpartements, pelas rgions e finalmente pelo governo nacional.

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    baseados no turismo15) das reas do parque so significativamentesuperiores mdia do restante do territrio francs (MEDDE, 2014).

    3.2O transplante do conceito de PNR para o ordenamentoportugus

    Como visto, o Decreto-Lei no613/76 de 27 de Julho, queacrescentou ao rol das reas protegidas portuguesas o conceito deParques Naturais, estabelece que a introduo [] da concepoeuropeia de parque natural vem de encontro [sic] s realidades

    geogrficas e demogrficas do Pas, cujas paisagens humanizadasresultam de uma interveno por vezes milenria e praticamenteestendida a todo o espao fsico do territrio.

    Na sequncia, ele estabelece inequivocamente umarelao entre preservao dos valores culturais, paisagsticos enaturais, que so de fato as preocupaes que sustentam a introduodesse e de outros modelos de reas protegidas no ordenamento do

    pais:

    A definio de objectos, stios, conjuntos e lugaresclassificados vm preencher uma lacuna, quer no sda Lei 9/70, como tambm da restante legislao deproteco cultural. De facto, apenas a classificao e orestauro de monumentos no suficiente para garantira permanncia dos valores culturais da paisagemportuguesa.

    Estes valores, marcos indispensveis da cultura e

    educao de um povo, tais como a rvore centenria,

    a azenha e o povoado rural, o recorte da paisagem

    marcado pelas penedias ou pela obra do homem, so

    tambm, por outro lado, motivos indispensveis deagrado e caracterizao prpria sem os quais no h

    turismo(PORTUGAL, 1976a, nosso destaque).

    15Em comparao com o restante do territrio francs, as communesafetadas em PNR dispem de umnmero menor de leitos (entendidos como o potencial de acomodao em hotis, campings, chals ehospedagens) em relao sua rea (leitos/km2), mas uma taxa duas vezes maior de leitos em relao sua prpria populao (leitos/habitante) e uma economia turstica que gera duas vezes mais

    empregos (MEDDE, 2014, p. 54).

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    E por fim ele deixa claro o papel meramenteinstrumental do zoneamento no quadro mais amplo de ordenamento

    do territrio:Por outro lado, h que completar a interveno noordenamento biofsico do territrio com a introduode conceitos e de critrios de salvaguarda, e racionalgesto de recursos naturais, alargando as intenes daconservao da natureza e da proteco das paisagensao planeamento bsico. Estes aspectos sofundamentais para uma poltica de desenvolvimento

    econmico com base nas potencialidades do territrio

    e na sua populao (PORTUGAL, 1976a, nossodestaque).

    Segundo a doutrina especializada, tambm o conceito deordenamento territorial de certa forma uma criao francesa(amnagement du territoire), pois se embora determinadoselementos de planejamento urbano e regional podem seridentificados em diversos exemplos histricos, foram os franceses, a

    partir dos anos 1940 e mais notadamente durante o perodo dareconstruo que se seguiu Segunda Guerra Mundial, quedesenvolveram o modelo de planificao que contemporaneamente

    serve de base para o direito e as polticas pblicas de diversos pases,inclusive as portuguesas (FRADE, 1999).

    Segundo o jurista espanhol Martn Bassols Coma (1981,p. 4648), cujo pas tambm adotou o modelo francs deordenamento do territrio, o modelo francs de amnagement duterritoiredistingue-se principalmente por (a) uma forte ligao comos objetivos progressivamente definidos pela planificaoeconmica nacional; (b) um enfoque centralista que no obstante

    permite o desenvolvimento de planejamentos de cunho regional e

    descentralizados; e (c) pela sua flexibilidade metodolgica, quepermite integrar mltiplos enfoques (geogrficos, econmicos,fsicos) e incorporar todo tipo de novas tendncias que vo sendoidentificadas (qualidade de vida, proteo da natureza e do meioambiente, dentre outras). Nesse sentido, o modelo francscorresponde a um projeto de valorizao do espao e do territrio, a

    partir de uma perspectiva da poltico-econmica e em funo [...] dabusca por uma adequada localizao das atividades econmicas edos assentamentos humanos (BASSOLS COMA, 1981, p. 4648).

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    Assim como ocorre com os PNR na Frana(GUIGNIER; PRIEUR, 2012, p. 5358), o decreto-lei portugus de

    1976 inclui o instrumento dos Parques Naturais no quadro maisamplo do ordenamento do territrio (entendido de forma maiscomplexa e multifacetada do que o simples zoneamento), com oobjetivo que esse tipo de rea protegida sirva como mecanismo

    planificador para um projeto especfico de desenvolvimento regionalcalcado na proteo do meio ambiente. com base nesse objetivo,

    portanto, que ele estabelece as demais caractersticas do instrumentodos Parques Naturais, a saber (PORTUGAL, 1976a, art. 2, inciso 6):

    a) So reas de territrio devidamente ordenadas;

    b) Seus objetivos so o recreio, a conservao daNatureza, a proteco da paisagem e a promoo daspopulaes rurais;

    c) Podem incidir sobre propriedade pblica ouprivada; e

    d)Nas quais o zonamento estabelece as aptides e usosdas diferentes parcelas de terreno; e

    e)

    Podem se sobrepor a outras reas protegidas, que searticulam numa estrutura funcional, comregulamentos especficos integrados no regulamentogeral.

    Evidentemente a preocupao regional no se fez topresente no modelo portugus, talvez em funo da extenso dopas, e isso notado tanto na ausncia de preocupaes maiores como carter regional dos elementos patrimoniais que devem ser

    protegidos, quanto na ausncia de preocupaes com a participao

    da populao local nas instncias de deciso que vo desde a criaodo parque at a sua administrao. Apesar dessas questes, que emparte foram corrigidas dois anos mais tarde pelo Decreto no4/78, de11 de janeiro, em geral os mesmos princpios e preocupaes queorientaram a criao do modelo de PNR uma dcada antes seencontram presentes no decreto-lei portugus de 1976.

    Atualmente existem 13 Parques Naturais em Portugal(INCF, 2015), e os decretos-lei criando cada um deles so evidnciados princpios que orientam o uso da ferramenta. O Decreto-Lei n

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    355/79, de 30 de agosto, por exemplo, que cria o Parque Natural deMontesinho, informa que:

    A riqueza natural e paisagstica do maciomontanhoso Montezinho-Coroa e os valiososelementos culturais das comunidades humanas que alise estabeleceram justificam que urgentemente seiniciem aces com vista salvaguarda do patrimnioe animao scio-cultural das populaes.

    A instituio de um parque natural capaz de mobilizaras populaes, levando-as a participar na procura desolues, na pesquisa de formas de relanamento dassuas economias tradicionais e da dignificao da sua

    cultura, apresenta-se como o processo maisaconselhado (PORTUGAL, 1979).

    O Decreto-Lei 237/83, de 8 de Junho, cria o ParqueNatural do Alvo afirma que ostio conhecido pelo nome de Fisgasde Ermelo, situado na Serra do Alvo, concelho de Mondim deBasto, sobejamente conhecido na regio pelos seus valoresnaturais nicos ou raros, citando entre outras coisas, que em todaesta regio a avifauna abundante e diversificada, incluindo,nomeadamente, a guia real, que entre os mamferos esto

    presentes, entre outros, o javali, o coro, o texugo, a lebre e ocoelho e entre os rpteis poder encontrar-se a cobra de focinhoalto, o sardo ou lagarto de gua e a vbora. Alm disso, segundoele, outro motivo importante para a criao do parque que nomenos notvel a arquitectura tradicional de alguns dos seus

    povoados, sobretudo em Ermelo e Lamas de Olo [...], sem esquecerFervena, que contam respectivamente com uma arquitecturaserrana prpria e aspectos sociolgicos, artesanais e paisagsticos degrande interesse e com uma zona agrria verdejante e formosa,

    disposta numa sucesso de socalcos (PORTUGAL, 1983).Um outro exemplo do Parque Natural da Arrbida,

    criado pelo Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, que inspirou otransplante do modelo para a legislao brasileira. O decreto diz oseguinte:

    A serra da Arrbida constitui uma rea verde daregio metropolitana Lisboa-Setbal onde cada vez seacentua com maior intensidade a presso demogrficae as consequncias do crescimento urbano e

    industrial, transformando-se por isso numa zona

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    privilegiada da rede de recreio e cultura a ter emconta no ordenamento fsico desta regio do nossopas.

    Porm, outros motivos, e no menos importantes, deordem cientfica, cultural, histrica, paisagstica,fazem da serra da Arrbida uma zona a proteger dadegradao a que tem estado submetida, com vista aoaproveitamento integral de todos os seus recursos e

    potencialidades.

    [...] Constitui ainda a serra da Arrbida umextraordinrio componente natural de grande valor

    paisagstico, encenando panormicas de grandebeleza natural e de secular humanizao. Nela se

    detiveram ao longo de sculos poetas e pensadorescontemplativos, estudiosos e eremitas, e no poracaso que ali se ergue o Convento da Arrbida, comuma importante biblioteca franciscana.

    Considerando as razes expostas, que conferem serra da Arrbida um alto valor nacional que urgepreservar;

    Considerando a alta sensibilidade da rea e a suafraca capacidade de acolhimento, que exigemmedidas eficazes de proteco sem impedir a sua

    utilizao para recreio formativo [...] (PORTUGAL,1976b, nosso destaque)

    Como veremos seguir, a maior parte dessaspreocupaes no foram levadas em considerao na construo domodelo brasileiro de APA, que se limitou ao elemento instrumentaldo conceito, o zoneamento, e ao estabelecimento de um nmero dereservas estritas em seu interior com o objetivo de preservar adiversidade biolgica.

    4AS APA E OS SEUS PROBLEMAS

    Como mencionado no princpio deste trabalho, o modelobrasileiro das APA foi transplantado para o direito brasileiro poriniciativa do ambientalista e eclogo Paulo Nogueira Neto, e

    posteriormente do professor e senador Alosio Chaves, que foram osprincipais mentores do Projeto de Lei no 2139/1979 (efetivamenteapresentado pelo Executivo), que mais tarde deu origem Lei no

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    6.902 de 27 de abril de 1981. Tambm como visto, ele objeto defortes crticas de parte do movimento conservacionista brasileiro,

    que v nesse instrumento meramente um recurso para oordenamento territorial, nesse caso entendido principalmentecomo sinnimo de zoneamento.

    Tendo em vista o que foi mostrado, a questo que seimpe se o transplante desse instrumento para o direito brasileirono seria a causa de pelo menos parte das crticas que ele recebe.Isso , se o transplante que se fez desse instrumento efetivamentecontemplou e teve como objetivo reproduzir no Brasil os efeitos

    para o qual ele foi originalmente criado na Frana e posteriormente

    transplantado para o direito portugus.Ora, a Lei no6.902 de 27 de abril de 1981 originalmente

    definia o seguinte com relao s APA:

    Art. 8 - O Poder Executivo, quando houver relevanteinteresse pblico, poder declarar determinadas reasdo Territrio Nacional como de interesse para aproteo ambiental, a fim de assegurar o bem-estardas populaes humanas e conservar ou melhorar ascondies ecolgicas locais.

    Art. 9 - Em cada rea de Proteo Ambiental [] oPoder Executivo estabelecer normas, limitando ouproibindo:

    a) a implantao e o funcionamento de indstriaspotencialmente poluidoras, capazes de afetarmananciais de gua;

    b) a realizao de obras de terraplenagem e a aberturade canais, quando essas iniciativas importarem emsensvel alterao das condies ecolgicas locais;

    c) o exerccio de atividades capazes de provocar uma

    acelerada eroso das terras e/ou um acentuadoassoreamento das colees hdricas;

    d) o exerccio de atividades que ameacem extinguir narea protegida as espcies raras da biota regional.

    [] 2 - Nas reas de Proteo Ambiental, o nocumprimento das normas disciplinadoras previstasneste artigo sujeitar os infratores ao embargo dasiniciativas irregulares, medida cautelar de apreensodo material e das mquinas usadas nessas atividades, obrigao de reposio e reconstituio, tanto

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    quanto possvel, da situao anterior e a imposio demultas graduadas [...] (BRASIL, 1981).

    Por essas caractersticas, nota-se facilmente que aquiloque tornava os PNR e os Parques Naturais reas protegidas decarter efetivamente inovador, se perdeu no transplante do modelo.Embora nessa poca o Brasil tambm enfrentasse diversos dos

    problemas que haviam inspirado os governos francs e portugus aelaborarem e importarem seus respectivos modelos de Parques

    Naturais, como altas taxas de xodo rural, grandes cidades cada vezmais abarrotadas, uma forte consumao dos espaos verdes nascidades e o empobrecimento de algumas regies rurais,

    aparentemente poucas dentre elas foram efetivamente integradas aomodelo das APA.

    Talvez o exemplo mais evidente disso seja que ointeresse em proteger um determinado espao para [resguardar] aqualidade do seu patrimnio natural e cultural, para o bem-estar, orepouso dos homens e o turismo, no caso dos PNR, e para orecreio, a conservao da Natureza, a proteco da paisagem e a

    promoo das populaes rurais, no caso dos Parques Naturais, nodireito brasileiro transformou-se em a fim de assegurar o bem-estardas populaes humanas e conservar ou melhorar as condiesecolgicas locais. No h qualquer meno proteo do

    patrimnio cultural e paisagstico, busca por um novo modelo dedesenvolvimento, valorizao das populaes rurais, promoodo turismo, enfim, em termos de objetivos eles nada se diferenciamde toda e qualquer rea natural protegida, que so criadas para, deuma maneira ou de outra, proteger as condies ecolgicas locaise contribuir para o o bem-estar das populaes humanas. Essaneutralidadedo instrumento, cabe lembrar, parece em sintonia com

    o nome com que ele foi batizado, que nada diz a respeito dos seuspropsitos ou dos seus mtodos operacionais, a no ser que elecumpre o objetivo bsico de toda rea protegida, que proteger dealguma maneira o ambiente.

    Mas alm disso insiste-se em um modelo que de diversasformas vinha e vem mostrando seus limites, que a estratgiacommand and control. Os modelos que deram origem s APArefletem o entendimento de que para que se possa promover comsucesso a proteo da natureza, justo e necessrio que se busque

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    informar, convencer e envolver a populao local para que elacontribua para esse objetivo, inclusive beneficiando-a

    economicamente por isso. Mais que isso, eles buscam mostrar populao local que a natureza que elas protegem a mesma quegarante seu sustento, atravs do turismo e das atividades econmicasque dela dependem.

    O que se observa no modelo brasileiro que no apenasno havia qualquer preocupao com a participao da sociedade(algo que chegaria ao direito brasileiro, com restries, muitos anosdepois), como havia crena de sobra na efetividade da represso e do

    poder de polcia. No que essas medidas no tenham seu valor, mas

    como elas dependem de fontes generosas e contnuas de recursos,pessoal e logstica, das quais no beneficiam a grande maioria dasunidades de conservao brasileiras, no surpreendem a poucaefetividade do instrumento e as crticas a ele.

    Posteriormente, a Lei do SNUC reformulou o conceitode APA e o incluiu no grupo das Unidades de Uso Sustentvel (art.14, inciso I), cujo objetivo bsico compatibilizar a conservaoda natureza com o uso sustentvel de parcela dos seus recursosnaturais (art. 7, 2). Nessa ocasio, ela dotou-o das seguintescaractersticas especficas (art. 15):

    a) Geralmente afeta uma rea em extensa, que contacom um certo grau de ocupao humana e comatributos abiticos, biticos, estticos ou culturaisespecialmente importantes para a qualidade de vida eo bem-estar das populaes humanas;

    b) Seus objetivos bsicos so proteger a diversidadebiolgica, disciplinar o processo de ocupao e

    assegurar a sustentabilidade do uso dos recursosnaturais;

    c) Pode afetar terras pblicas ou privadas e estabelecernormas e restries para a utilizao das

    propriedades privadas localizadas na rea afetada;

    d) As condies para a realizao de pesquisa cientficae visitao pblica so definidas pelo rgo gestor daunidade ou pelo proprietrio da rea, nos casos

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    respectivos das reas sob domnio publico e sobdomnio privado;

    e) Deve contar com um Conselho, presidido pelo rgoresponsvel por sua administrao e constitudo porrepresentantes dos rgos pblicos, de organizaesda sociedade civil e da populao residente.

    Alm disso, em funo da Resoluo do ConselhoNacional do Meio Ambiente (CONAMA) de n 10 de 14 dedezembro de 1988 (BRASIL; CONAMA, 1988), as APA tambm:

    f) Contam sempre com um Zoneamento Ecologico -

    Econmico, cujo objetivo atender aos seusobjetivos (art. 2);

    g) Contam necessariamente com ao menos uma Zona deVida Silvestre (ZVS) em seu interior, na qual proibido ou regulado o uso dos sistemas naturais(art. 4);

    h) Podem contar com Zona de Uso Agro -Pecurio[sic], na qual so proibidos ou regulados os usos

    ou praticas capazes de causar sensvel degradao domeio ambiente, como o sobrepastoreio e o uso dedeterminados agrotxicos (art. 5);

    i) No permitem as atividades de terraplanagem,minerao, dragagem e escavao que venham acausar danos ou degradao do meio ambiente e/ou

    perigo para pessoas ou para a biota (art. 6);

    j) Impem s atividades industriais possivelmentepoluidoras e aos projetos de urbanismo a necessidade

    de uma licena ambiental emitida pela entidadegestora da unidade (arts. 7-8);

    Embora a Lei do SNUC e a referida Resoluo doCONAMA tenham definido mais claramente os contornos jurdicosdo instrumento jurdico das APA, esses contornos pouco coisa tmem comum com o modelo dos Parques Naturais portugueses ou dosPNR franceses. O que se l que as APA so reas protegidasflexveis, nas quais algumas atividades muito poluidoras ouimpactantes so restringidas, e nas quais existe um zoneamento

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    ecolgico-econmico que nada tem a ver com a noo deordenamento do territrio que inspirou os conceitos europeus de

    Parques Naturais.A incluso dos atributos culturais dentre aqueles que

    podem ser considerados especialmente importantes para aqualidade de vida e o bem-estar das populaes humanas, semdvida representa um ganho e vai ao encontro das origens doinstrumento. Mas trata-se de um ganho isolado e que no permiteoperacionalizar um projeto de desenvolvimento sustentvel, tal qualsuas contrapartes portuguesa e francesa.

    5A AUSNCIA DE UM MODELO EQUIVALENTE AOS PNRNO DIREITO BRASILEIRO

    Dadas as limitaes do modelo de APA, em um contextode diversos desafios sociais semelhantes queles identificados naorigem do modelo de PNR na Frana (e que no so exclusivosdesses dois pases, da o transplante do modelo de PNR para odireito de diversos outros pases, inclusive Portugal), natural quesurjam no Brasil iniciativas como a do chamado Parque NaturalRegional do Pantanal, criado pelo Estado de Mato Grosso do Sul, edas novas categorias de reas protegidas criadas na legislao doEstado de So Paulo em 2014.

    A histria do primeiro caso remonta dcada de 1980,quando um grupo de proprietrios de terra e gado sugeriu o modelofrancs de PNR a representantes do governo, como forma de (a)diversificar suas atividades, que se concentravam na pecuria e

    vinham enfrentando dificuldades em funo de quedas no preo, de(b) combater o desemprego no campo, evitando a emigrao emmassa para as cidades, e de (c) reduzir a destruio do patrimnionatural local, atravs da criao de alternativas de renda populaorural empobrecida, que frequentemente complementavam sua rendacom a venda de peles de jacar e outros animais abatidosilegalmente. Ao conhecerem o modelo de PNR e reconheceremlocalmente parte das problemticas que ele visa combater, essegrupo de proprietrios o elegeu como proposta, para evitar risco e

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    por ser um caminho j trilhado, [...] menos suscetvel ao fracasso(GONZALEZ, 2006, p. 75).

    Segundo os envolvidos nesse projeto, tratava-se doprimeiro parque semelhante aos PNR franceses no Brasil e fora daFrana, o que mostra que de fato poucos so capazes de reconhecernas APA a herana desse modelo. Alm disso, provavelmente essaafirmao tem como premissa que os diversos casos de recepo domodelo de PNR em outros pases no tenham contado com aassessoria e o envolvimento direto da instituio francesa Parcs

    Naturels Rgionaux de France(o organismo nacional que federa osdiversos PNR e responsvel por coordenar suas aes e

    desenvolver estratgias de interesse comum), diferentemente doParque Natural Regional do Pantanal, que contou com muitosaportes dessa instituio, inclusive financeiros16.

    O Decreto Estadual n 10.906 de 29 de agosto de 2002,que efetivamente cria o chamado Parque Natural Regional doPantanal, deu ao modelo pantaneiro algumas caractersticasfundamentais do modelo francs de PNR e resgata justamente seu

    papel de agente de impulso do desenvolvimento sustentvel local17(ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL, 2002):

    a) criado por livre iniciativa de proprietrios rurais,compreendendo exclusivamente terras privadas, nonecessariamente contguas, dotadas de atributos

    biticos, estticos e culturais, cuja proteo derelevante interesse ambiental (art. 2);

    b) Sua criao fundada em um projeto dedesenvolvimento territorial capaz de compatibilizar autilizao econmica da rea com a conservao e

    melhoria da qualidade ambiental e equilbrioecolgico (art. 3);

    16 O projeto de criao do PNRP foi orado em 1,02 milho de Euros. Destes, 80% viriam daComunidade Europeia, 10% do governo de Mato Grosso do Sul e 10% da instituio Parcs Naturels

    Rgionaux de Francee do Ministrio de Assuntos Estratgicos desse pas (GONZALEZ, 2006, p.128)s.

    17Evidentemente, por se tratar de uma iniciativa mais recente, o transplante para o ordenamento sul-mato-grossense incorporou as modificaes que o regime jurdico dos PNR havia conhecido at

    ento.

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    c) Inclui entre seus objetivos contribuir para apreservao dos ambientes notveis e conservao

    dos atributos culturais e contribuir para odesenvolvimento econmico-social e asustentabilidade ambiental da rea (art. 4); e

    d) A proposta de sua criao s pode ser submetidaaps a assinatura da Carta constitutiva (art. 5), que fruto de um acordo entre os atores envolvidos edetalha as restries ao uso das propriedades, asaes que sero executadas e demais informaes

    pertinentes.

    Embora seja um projeto que aparentemente enfrentouproblemas em sua implementao, um estudo publicado em 2006afirma seu sucesso ao menos parcial (tanto que seu exemplo inspiroudois novos projetos do mesmo tipo, os Parque do Nabileque e doCaracol) e que ele incorpora uma experincia inovadora por tersido criado como uma proposta de desenvolvimento local [que]

    busca fomentar atividades econmicas distintas da pecuria pr-existente, mas que lhe sejam complementares. Essas atividadesesto ligadas ao turismo e so compatveis com a permanncia dohomem no lugar, mantendo seus costumes e sua cultura em umambiente nico e incluem as pousadas pantaneiras, as escolas doParque, o vitelo pantaneiro e a biodiversidade com a ona-pintada ecom a ona-parda (GONZALEZ, 2006).

    Os problemas ligados sua implementao, ao queparece, no esto ligados sua estratgia em si, ao fato de que soreas privadas ou baixa participao social, mas principalmente impossibilidade de enquadramento desse novo modelo no SNUC, dedefinir claramente o papel do Estado em sua gesto, e estratgiamais simples mas mais problemtica de angariar individualmente aadeso dos proprietrios dos imveis, e no coletivamente, porintermdio do Municpio. Alm disso, um outro motivo citadochama a ateno: o baixo apoio que essa iniciativa pde angariar

    junto a parte dos ambientalistas. O estudo que avaliou essaexperincia alguns anos mais tarde informa que o Estado mudou

    profundamente sua postura em relao ao parque a partir domomento em que alguns tcnicos da Secretaria Estadual de MeioAmbiente e grupos ambientalistas se manifestaram contra o modelo

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    do parque. A rejeio por parte desse grupo foi tamanha, que foilanada uma moo de repdio ao parque (GONZALEZ, 2006).

    Tratam-se de posicionamentos que remetem a outrosepisdios da histria do direito dos reas protegidas brasileiro, comoa grande oposio s Reservas Extrativistas, que apesar de

    problemas em sua gesto (que devem ser corrigidos e dar origem amudanas que aperfeioem o instrumento), provavelmente omodelo de rea protegido mais tipicamente nacional, pois emergiudo contexto social especfico dos seringueiros e por iniciativa da

    prpria populao que queria ver afetada a rea onde habitam.Depois, eles tambm lembram a longa e difcil tramitao legislativa

    do projeto que mais tarde deu origem Lei do SNUC, que exps asdivergncias entre as diferentes correntes do ambientalismo

    brasileiro (MERCADANTE, 2001). Essa ltima, embora tenhaaumentado a diversidade de categorias de reas protegidas com queconta o direito brasileiro e tenha promovido grandes avanos emalguns aspectos, em outros deixou muito a desejar, incluindo amanuteno de categorias redundantes ou muito semelhantes umass outras, ao passo que outros modelos de reas protegidas que

    poderiam responder s necessidades brasileiras, foram deixados de

    fora.Essa limitao fica patente, novamente, luz da

    publicao do Decreto Estadual no 60.302, de 27 de maro de 2014(ESTADO DE SO PAULO, 2014) que cria na legislao paulistaoutros conceitos de reas protegidas, alguns deles comuns em outros

    pases (art. 5, inciso III): (a) Estradas-Parque, (b) rea sob AtenoEspecial do Estado em Estudo para Expanso da Conservao daBiodiversidade (ASPE), (c) Paisagem Cultural e (d) Eco-Museu.Trs dos quatro novos conceitos criados tratam da proteo conjunta

    de elementos patrimoniais naturais e culturais, e tm evidente carterde promoo do turismo sustentvel e da valorizao econmica dosrecursos e regies protegidos.

    Um aspecto interessante desse decreto, no contexto destetrabalho, que ele tambm, ao menos parcialmente, se aproxima doconceito francs de PNR, por meio da categoria dos Eco-Museus (e

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    um pouco menos por meio das Paisagens Culturais18). Definidoscomo rea de valor simblico, constituda por patrimnio material e

    seu contexto natural [...], reconhecida e gerida por segmentosautnomos da sociedade, com ou sem parceria do Poder Pblico,eles so inspirados evidentemente no conceito de ecomuseu, termocunhado na Frana em 1971 por Hugues de Varine-Bohan, pocadiretor do International Council of Museums (ICOM). No entanto,suas origens podem ser traadas mesma conferncia organizada

    pela DATAR em Lurs-en-Provence em 1966, e que havia reunidouma srie de personalidades de diferentes setores sociais para darforma ao conceito de Parcs Naturels Rgionaux. Durante essa

    conferncia, o muselogo Georges-Henri Rivire props que o novomodelo de parque deveria incluir recintos exploradosmuseograficamente, que incluiriam construes deslocadas dosseus ambientes originais, segundo o modelo do museu de plein airescandinavo, e essa contribuio est na origem das Maison duParc, que so simultaneamente sedes dos PNR, museus e vitrines dadiversidade cultural e natural regional. Nesse sentido, os PNRforneceram ao conceito de ecomuseu uma oportunidade decisiva dedesenvolvimento na medida em que no seu seio efacilitada a ligaoentre o desenvolvimento sustentado, a animao sociocultural e asreferencias identitrias (DUARTE, 2013, p. 103), e incorporaramem larga medida sua estratgia.

    No se sabe ainda quais sero as implicaes da criaodesses novos modelos de reas protegidas nas legislaes estaduais,

    18 Alm disso, o conceito de Paisagens Culturais, definidas como poro peculiar do territrio

    paulista, representativa do processo de interao do homem com o meio natural, qual a vida e acincia humana imprimiram marcas ou atriburam valores que justifiquem sua preservao,

    apresenta alguma semelhana com o conceito de PNR, principalmente pela incluso do termopaulista em seu definio. Esse termo sugere um aspecto regional na caracterizao do espao proteger, de forma semelhante aos PNR, que tm como substrato um territrio marcado pela coesocultural e natural. Apesar dessa semelhana, tudo leva a crer que nesse caso o decreto paulista temcomo base o conceito de culturallandscape, cujas origens remontam ao trabalho do gegrafo alemoFriedrich Ratzel (1844-1904), mas que ganhou flego e adquiriu uso poltico principalmente a partirdos anos 1990. A definio tradicional, elaborada pelo gegrafo americano Carl Sauer (1899-1975)diz que a paisagem cultural criada a partir de uma paisagem natural, pela ao de um gruposocial, de forma que a cultura o agente, a rea natural o meio, e a paisagem cultural oresultado (TISHLER, 1979, p. 9). Em 1992 a Conveno para a Proteo do Patrimnio Mundial,Cultural e Natural, tambm conhecida como Recomendao de Paris e Conveno do Patrimnio

    Mundial da UNESCO, tornou-se o primeiro documento de direito internacional a reconhecer eprotegerpaisagens culturais, com base no entendimento de que esse conceito se enquadra em seu 3do art. 1, que permite a proteo de stios que so resultado do trabalho combinado do homem e da

    natureza.

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    mas o fato deles serem criados mostra que o transplante do modelode APA perdeu uma boa chance de dotar o ordenamento brasileiro

    com um instrumento que, em outras condies, poderia responder auma srie desafios que continuam a se apresentar.

    6CONCLUSO

    Este artigo analisou a histria do conceito jurdico derea de Proteo Ambiental, buscando aprofundar as discussessobre os motivos que levam esse modelo a ser objeto de profundas

    crticas. Como mostrado, trata-se de uma categoria de unidade deconservao criada em 1981 e posteriormente reformulada pela Leido Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza, mascuja incluso ao direito brasileiro se deu por meio de um transplantelegal do conceito portugus de Parques Naturais, por sua veztransplantado do conceito francs de Parcs Naturels Rgionaux, essasim a verdadeira origem desse instrumento, que, imagem do Brasile de Portugal, vem conhecendo recepo no direito de diversosoutros pases.

    Na sequncia foram analisados os modelos francs eportugus de Parques Naturais, demonstrando-se o contexto em queeles foram criados e as preocupaes que inspiraram o governofrancs a cria-lo e o governo portugus a importa-lo. Mostra-se quetrata-se de um modelo ligado ao ordenamento do territrio,entendido em um sentido que ultrapassa o simples zoneamento,incluindo uma srie de preocupaes sociais, culturais e econmicas,e que busca servir como motor para a busca de novas formas dedesenvolvimento econmico e social, baseadas na proteo do

    patrimnio natural e cultural.Embora o transplante do modelo francs de PNR para o

    direito portugus tenha mantido o instrumento com suas principaiscaractersticas, o mesmo no ocorreu com o transplante dessemodelo para o direito brasileiro. A simplificao desse modelo levou manuteno apenas de seu aspecto de zoneamento (ditoambiental-econmico), e perda de sua capacidade de concretizarum projeto de desenvolvimento sustentvel regional. Evidentementeo modelo de APA flexvel e a priorinada impede que seu plano de

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    manejo busque reproduzir alguns aspecto dos conceitos estrangeirosque no foram contemplados na legislao. Embora devam gozar de

    certa flexibilidade para que possam ser melhor adaptados a cadacaso, os instrumentos jurdicos de reas protegidas no devemconstituir cheques em branco que permitam sua utilizao para asmais variadas finalidades, e se os meios possam ser passveis deserem adaptados, os objetivos gerais do instrumento devem serrgidos, e da a necessidade de diferentes categorias de reas

    protegidas para diferentes finalidades. A concluso lgica que omodelo jurdico deveria estabelecer clara e precisamente o que odistingue dentre as diversas outras categorias de rea protegida, e os

    princpios e preocupaes que devem guiar o uso da ferramenta.Por fim mostra-se que a criao das APA perdeu uma

    importante oportunidade de trazer para o direito brasileiro uminstrumento desenhado para responder aos mesmos problemassociais que inspiraram a criao dos PNR. Dois exemplos so dadosque corroboram a necessidade de um instrumento desse tipo noordenamento brasileiro: um decreto estadual do Mato Grosso do Sul,que criou o chamado Parque Natural Regional do Pantanal, e umdecreto estadual de So Paulo que criou quatro novas categorias de

    unidades de conservao na legislao estadual, sendo que pelomenos uma dela guarda uma importante relao com o conceito dePNR.

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