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É A REALIDADE DA LITERATURA MENOS REAL ~ José Celio Freire* RESUMO Este artigo trata da questão da realídade na literatura. seja no processo de criação seja na obra criada, na tentativa de ver, para além da sublimação ou da projeção, a combinação entre realídade psíquica e realidade externa no trabalho do escritor. Palavras chave: Realidade, realidade psíquica, produção literária. IS TJlE REALlTY OF Ll1'ERATURE NOT SO REAL? ABSTRACT This peper concerns the question of the reality in tbe litereture. into creation process and in the work creeted. lt intends to see, beyond tbe sublimation and the projection process, a kind oi' combination between psychical reality and externa I reality into the writer's work Key words: Reality, psychical reslity. literary creetion. * Professor do Departamento de Psicologia da UFC, aluno do Curso de Doutorado em Psicologia Experimental - Questões Teóricas da Psicologia, do IPUSP, e bolsista do PICDT - CAPES/UFC. Revista de PSicologia, fortaleza, V.150/2) V.16O/2) p.97 . p.103 jan/dez 1997/98 hna de Publlcocào 2000 97

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É A REALIDADE DA LITERATURA MENOS REAL ~

José Celio Freire*

RESUMO

Este artigo trata da questão da realídade na literatura. seja no processo de criação seja na obra criada, natentativa de ver, para além da sublimação ou da projeção, a combinação entre realídade psíquica e realidadeexterna no trabalho do escritor.

Palavras chave: Realidade, realidade psíquica, produção literária.

IS TJlE REALlTY OF Ll1'ERATURE NOT SO REAL?ABSTRACT

This peper concerns the question of the reality in tbe litereture. into creation process and in the workcreeted. lt intends to see, beyond tbe sublimation and the projection process, a kind oi' combination betweenpsychical reality and externa I reality into the writer's work

Key words: Reality, psychical reslity. literary creetion.

* Professor do Departamento de Psicologia da UFC, aluno do Curso de Doutorado em Psicologia Experimental - Questões Teóricas daPsicologia, do IPUSP, e bolsista do PICDT - CAPES/UFC.

Revista de PSicologia, fortaleza, V.150/2) V.16O/2) p.97 . p.103 jan/dez 1997/98hna de Publlcocào 2000

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Tem me chamado cada vez mais a atenção a psi-cologia que se esconde por trás da produção literária,realçada pela metateoria da escritura I . Para longe deuma justaposição falsa, a meu ver, entre obra ficcionale biografia do autor, consigo enxergar a mesclagempossível entre realidades distintas na origem, mas co-presentes na tessitura do texto, que são da ordem dopsíquico e do externo. Por um lado, admito a irnpossi-bílidade de uma assepsia do ficcionista com relação àssensações e percepções do mundo material à sua vol-ta, quer relativas ao presente ou a um passado vivido;por outro, devo crer inevitável, para a criação mesma,a composição de forças internas e a conseqüente "per-cepção endopsíquica" destas forças no resultado 'fi-nal' da obra.

São-nos caros os exemplos na literatura, nestemomento remetendo-me aos nomes de Proust. Joyce eBorges, em plano mundial, e de Guimarães Rosa eManoel de Barros no contexto brasileiro. As imagens eas sensações já foram bastante analisadas em Proust,assim como o fluxo de pensamento em Joyce e a pro-dução fantástica de Borges. Remeterei o leitor às suasobras, em alguns momentos, enquanto noutros utilizareiparte delas para exemplíficar a discussão sobre a inter-venção que sofre/opera o escritor da/na realidade, quan-do do processo de criação literária. Rosa me ajudará nacompreensão de como o artista pode falar de algo quenão está ali (na realidade), mas poderia, ou bem pode-mos falar de algo que nunca estará ali, pois só possívelno ambiente fantástico, mas que torna-se quase palpá-vel. em Borges, por exemplo. Já o poeta Manoel deBarros confronta-nos com sua agramática, com a rique-za da ignorância, com um pré-originário assimbólico.

Tentarei tratar desta imbricação entre realidadepsíquica e realidade material, levando em conta o pen-

samento freudiano de Delírios e Sonhos na Cradiva deJensen ( 1906-7)2, Escritores criativos e devaneid...1907 - .8)3'e O estranho' (1919)4. Estarei, assim, explorandoa relação Ativo-Passivo diante da Realidade, terceiroeixo de análise da questão da realidade em Freud'' (Co-elho Jr., 1995), que foi a temática desta disciplina.

Desejo, todavia, deixar clara a existência de doisníveis de análise que, a meu ver, se inrerpenetram. Falodo processo criativo, de um lado, e da obra criada, deoutro. Em alguns momentos, ao tratar do como a es-critura é gerada, me reportarei a excertos das obras.Noutros, abordando a construção realizada pelo es-critor sobre um personagem ou tema, estarei inevita-velmente supondo uma mente criadora que opera deuma maneira presumida. Em suma, esta limitação domeu texto talvez seja o caminho para uma melhor com-preensão futura.

A questão que se coloca

o que é mais real. a vida ou a literatura? Fala-nos a arte de uma realidade anterior a qualquerrepresentabilidade? Quando lemos um poema nãoconseguimos repr oduzi-Io, ou melhor, podendornernorizá-lo na íntegra, não conseguimos no entan-to transmitir as emoções e sentimentos que nos pro-voca. Mas cada vez que dele lembramos tais senti-mentos emergem de não se sabe que lugar, às vezesde forma ainda mais intensa. E também ao outro cabea experiência de seus próprios sentimentos. Que di-zer de um livro lido e que ao ser lembrado traz-nosnão seu conteúdo, às vezes distorcido, mas o lugarem que o lemos e os sentimentos naquele momentosentidos, como o diria Prousr"? Onde a fantasia, ondea realidade? No meu entendimento a experiência de

I Entendo por "merateoria da escritura" as tentativas de explicação ou explicitação do processo criador.

2 Sigmund Freud. (1906[7)) Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen. Vol. IX da Coleção Standard dasObras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro, lrnago. 1976. Pp. 12-98.

3 (1907[ 1908)) Escritores criativos e devaneio. Volume IX da Coleção Standard dasObras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro. Irnago. 1976. Pp. 145-158.

4 __ -,- __ -=- (1919) O 'Estranho'. Vol. XVII da Coleção das Obras Completas de S.Freud. Rio deJaneiro.lmago. 1976. Pp. 271-314.

6 De fato Proust defende esta tese em "Sobre a leitura".

5 Nelson Coelho Jr .. A força da realidade na clínica freudiana. São Paulo. Escuta. 1995.

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nós leitores é pura realidade, por mais ficcional queseja o texto.

Na sua Busca/ Proust não se furta a indicar aliteratura como "a verdadeira vida". No Ulisse?Joyceaproxima a palavra escrita da palavra falada e da coi-sa pensada. A literatura fantástica de Borges faz o pen-sado tomar ares de verdade, numa tangibilidade ca-paz de surpreender o leitor menos prevenido. Rosafala-nos de um sertão que existe dentro de um outroque inexiste ou vice-versa. A poesia de Barros resisteaquém do norneável. no instante em que o poetapercebedor e a natureza percebida são indestinguíveis,uma e a mesma coisa - o homem, o bicho, a planta,as águas, a terra ...

Entretanto estou a falar das produções e nãodo processo criador. Nesse outro nível de análise,como já alertei na parte anterior, como se dá a rela-ção com a realidade? Ao tratar da questão da reali-dade a Psicanálise aborda principalmente a distin-ção entre a realidade psíquica e a realidade material.Diz-se, de outro modo, realidade interna e realida-de externa, o que tem o mérito de não subtrair oestatuto de real àquilo que ocorre no psiquismo hu-mano. Contudo, persiste a dicotomia, a separação ea idéia de uma alteração imposta pela primeira emrelação à segunda. Mesmo que para o escritor, dife-rentemente do neurótico, esta alteração seja enten-dida como criação, como ação sobre a realidade, enão como distorção da realidade insuportável. ain-da vigora um certo juízo valorativo a favor da dita"realidade externa". Trata-se do "eixo ativo-passi-vo" trabalhado por Coelho Jr. em seu livro sobre arealidade na psicanálise". O escritor, em seu traba-lho, estaria interferindo ativamente sobre a realida-de. Não simplesmente negando-a em parte, comofaz o neurótico, ou criando uma nova e interna rea-lidade, na psicose, mas agindo na realidade externaatravés do produro de sua arte.

Todavia Freud (1907-8) vai mais longe em suaanálise dos escritores criativos. Diz ele:

7 Mareei Proust. Em busca do tempo perdido. 7 volumes. Globo, 1976.

8 James Joyce. Ulisses. Civilização Brasileira. 1982.

Uma poderosa experiência no presente desper-ta no escritor criativo uma lembrança de umaexperiência anterior (geralmente de sua inflin-cie), da qual se origina então um desejo queencontra realização criativa. A própria obra re-vela elementos da ocasião motivadora do pre-sente e da lembrança antiga (p.156).

E mais adiante:

A verdadeira ers poetice está na técnica de su-perar esse nosso sentimento de repulsa, sem dú-vida ligado às barreiras que separam cada ego:dos demais. ( ..) O escritor sua viza o caráter deseus devaneios egoístas por meio de alteraçõese disfárces, e nos suborna com o prazer pura-mente formal isto é, estético, que nos oferecena apresentação de suas fántasias. ( ..) Talvezaté grande parte desse efeito seja devido à pos-sibilidede que o escritor nos oferece de, dali emdiante, nos deleitarmos com nossos próprios de-veneres. sem auto-acusações ou vergonha(p.158).

Temos aqui, parece-me, nada mais que a artecomo substituto do sintoma. O escritor, vítima de im-pulsos irresistíveis de ambição ou eróticos, canalizaseus desejos para obras aceitáveis. Entende-se, as-sim, que a realidade é maleável. permite transforma- .ções, e que o artista não renuncia ao prazer, mas efe-tua substituições para que a pulsão encontre objetode realização. Além disso, proporciona aos seus lei-tores a possibilidade de experimentar, "por tabela",suas próprias fantasias.

Mas o que dizer de obras onde não se pode falarde uma "sublimação" no sentido psicanalítico, pois nãohá uma substituição de desejos inaceitáveis por outrosaceitáveis? De obras que foram rechaçadas quandoescritas, algumas chegando às raias do tribunal comoUlisses, outras sendo recusadas para publicação por

9 Os demais eixos tratados pelo autor são: "Signo de realidade ou a possibilidade de uma representação verdadeira da realidade"."Fuga da realidade e fuga para a realidade" e "Realidade Externa e Realidade Psíquica".

99Revido de Pucoloqic. Icrlclez«, V.15(l/2) V.16(l/2) p.97 . p.103 jon/dez 1997/98

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seu teor obsceno como a Recherchei'? O conteúdoda criação nada teria a ver com o ato criador?

Realidade na fantasia

Voltemos à questão colocada anteriormente: ondese encontra a realidade e a fantasia na obra literária?Podemos dizer que é necessária uma boa dose de rea-lidade para se fazer uma boa ficção? Ou que toda fan-tasia é da ordem da realidade, seja ela uma realidadepsíquica ou não?

Não se pode fugir à constatação de que há algode biográfico em toda ficção. Parece-me que não foi àtoa que o personagem-herói da Recherche foi nomea-do por MareeI. Contudo aquela obra não é a autobio-grafia de Proust. O mesmo para Ulisses, embora umdos personagens, Stephen Dedalus (Telêmaco) possaser visto, no seu livro anterior, como um auto-retra-to!' . Talvez possamos dizer que o escritor entra e saida escritura, que a vida do autor não explica a obra,mas que a obra sem esta vida não teria sido possivel/ .

De outro lado existe o que Freud chamou de"percepção endopsíquica". e que seria mais elaboradano artista. Ou seja, o artista estaria mais afinado comsuas disposições internas, seus desejos, suas pulsões,mesmo que de forma não representacional. Assim,dando forma a essas pulsões, poderia "alucinar" deforma sadia, não perdendo contato com a realidade.Um exemplo disto poderia ser a parte do texto de Joyceonde Leopold Bloom incorpora vários seres distintos eparticipa de várias situações delirantes, ilusórias oualucinantes 13. O autor deixou que sua personagem

alucinasse à vontade, mas ele continuou com os pés narealidade. Persistem os níveis da elaboração artística -onde haveria um esforço consciente do escritor paratrabalhar com elementos buscados tanto em sua reali-dade psíquica quanto na externa - e da obra realizada- em que o artista pôde descrever eficientemente umpsiquisrno, uma fantasia ou um sentimento, e que tem·o poder de tocar o nosso psiquismo, as nossas fantasiase os nossos sentimentos. Como venho entendendo, otrabalho criador se dá no âmbito da realidade, apesarde lidar com a fantasia; a obra criada. mesmo que puraficção, interfere na realidade.

Em Borges!", temos o encontro mágico dele con-sigo mesmo, quando moço, num banco de praça:

Meio século não passa em vão. Sob nossa con-versação de pessoas de leitura miscelâ.nea e degostos diversos, compreendi que não podíamosnos entender. Éramos demasiado diferentes edemasiado parecidos. Não podíamos nos engs-net; o que torna o diá.logo diflC/!. Cada um denós dois era o arremedo csricsturesco do outro.A situação era anormal demais para durar muitomais tempo.Aconselhar ou discutir era inútil porque seu ine-vitá.vel destino era ser o que sou. ( ..) O encon-tro foi real, mas o outro conversou comigo emum sonho e foi assim que pude me esquecer. Euconversei com ele na vigl1iae a lembrança aindame atormenta.O outro me sonhou, mas não me sonhou ngoro-samente. (O Outro em "O Livro de Areia", p.24).

10 A obra de Joyce submeteu-se a julgamento nos EUA, sendo absolvida após uma verdadeira crítica literária do JUIZ. Em suas mais deoitocentas páginas podemos encontrar momentos de forte erotismo beirando o obsceno como no solilóquio de Molly Bloom (Penélope) -Parte 111- ostos. "Em busca do tempo perdido" traz cenas também "inapropriadas" para a época de sua publicação, como as quedescrevem as relações sado-rnasoquistas do barão de Charlus. .

I I Personagem central de "Um retrato do artista quando jovem" de 1916, portanto anterior ao Ulisses de 1921. Editado no Brasil pelaSiciliano (1992).

12 Aqui me sirvo da discussão em sala de aula e de comentários diretos do Prof. Dr. Nelson Coelho .Ir.. correndo o risco de não lhe ser fiel,o que justificaria o não uso das aspas. Sua fala referia-se a Merleau-Ponty em "A dúvida de Cézanne". na disciplina "Problemas Filosóficosnas Teorias Psicológicas I: percepção e realidade na psicanálise freudiana", do Programa de Pós-Graduação em PSicologiaExperimental doIPUSP. durante o segundo semestre de 1997.

13 James Joyce em "Ulisses": Parte 11- Odisséia, Episódio 15 - Circe. Cena - O bordei, Hora - 24, Órgão - Aparelho Locornotor. Arte -Mágica, Símbolo - Puta, Técnica - Alucinação (p.485 a 633).

14 Jorge Luis Borges. Livro de Areia.

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Um encontro possível. sim, mas fantástico. Reali-dade e fantasia imbricadas.

A poesia traz ainda uma dimensão de realidademais revolucionária, principalmente quando se põeantes da linguagem, numa gramática outra que não ada convenção da língua. Como em Barros!":

No descomeço era o verboSó depois é que veio o delírio do verbo

o verbo tem que pegar delírio(Uma dialética da invenção, p.15)

Noutro momento:

Acho que o nome empobreceu a imagem(Uma dialética da invenção, p.25)

E a realidade supera a fantasia:

Ouando o rio está começando um peixe,ele me coisa

E/e me rãEle me árvore (Mundo Pequeno, p.75)

Para Freud. portanto, esta "realidade fingida"(Fingierten Realitar). "realidade poética" (PoetischenRealitat). não seria redutíve] à realidade psíquica, jáque esta é uma zona nebulosa entre realidade e fanta-sia. Contudo, se o ato criativo do escritor não é frutosimplesmente de seu mundo psíquico, não se podedeixar de perceber, segundo Freud, sua habilidade emtratar dessa realidade através de seus personagens. Emseu estudo sobre a Cradiva de Jensen, Freud coloca:

Dizem que um autor deveria evitar qualquercontato com a psiquiatria e deixar aos médicos adescrição dos estados mentais patológicos. A ver/dede, porém, é que o escritor verdadeiramentecriativo jamais obedece a essa injunção. A des-crição da mente humana é, na realidade, seucampo mais legítimo; desde tempos imemoriaisele tem sido um precursor da ciência e, porten-to, também da psicologia científica. Mas o limiteentre o que se descreve como estado mental

15 Manuel de Barros. O Livro das Ignorãças.

normal e como patológico é tão convencional e.tão variável, que é provável que cada um de nóso transponha muitas vezes no decurso de umdia (p.50)

Está assim colocada, para mim, a significação doestudo psicológico da produção literária, do ato de cri,ar e das obras criadas, o que motivou esse trabalho,em especial.

A literatura fantástica teve seu momento de aná-lise por Freud em O 'Estranho: O Homem de Arú~de Hoffmann, analisado por Freud. e O Livro de AreIade Borges nos servirão de exemplo. A tese básica deFreud, naquele momento, é a de que a experiência doestranho advém da "cornpulsão à repetição". Em ou'tras palavras, o estranho tem a ver com o familiar, po-rém oculto, reprimido. Isso explicaria, para ele, aambivalência do termo 'estranho', sabiamente captu,'rada por Schelling, como o que deveria ter permaneci,do secreto mas veio à tona. Neste caso, Unheimlicb .sinistro, é heim/ich - familiar, porém secreto, oculto.Freud diz:

Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica estácerta ao sustentar que todo afeto pertencente aum impulso emocional, qualquer que seja a suaespécie, trensiorme-se. se reprimido, em snsie-dede, então, entre os exemplos de coisas essus-tedores, deve ha ver uma categoria em que o ele/mento que amedronta pode mostrar/se ser algoreprimido que retoma. Essa categoria de coisasassustadoras constituiria então o estranho; ( ..) seé essa, na verdade, a natureza secreta do estre-nho, pode/se compreender porque o uso.lingüístico estendeu das Heimliche [ 'bomelv'(doméstico, 18mlflar')} para o seu oposto, dasUnheimliche(pág.283); pois esse estranho nãoé nada ou alheio, porém algo que é famdlar e hámuito estabelecido na mente, e que somente sealienou desta etre vés do processo da repressão.(p.300, I)

Freud dirá mais além que as praticas mágicastêm lugar quando da extinção da distinção entre fanta-sia e realidade, onde ocorre uma supervalorização da

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realidade psíquica em detrimento da material. Estariano plano da onipotência do pensamento, típica damente infantil. Porém, ao tratar da literatura, Freudsublinhará que esta não se submete ao "teste de reali-dade", portanto seu conteúdo não parece estranho aoleitor. É o que vemos em Borges no conto O Livro deAreúi (do livro homônimo):

Disse que seu livro se chama va o Livro de Aráa,porque nem o livro nem a areia tem princípioou fim. (p.125)

Naquele conto o personagem que adquiriu o li-vro, sempre que tomava a primeira página, outras seinterpunham entre esta e a capa, o mesmo acontecen-do para a última. A numeração não tinha ordem. Olivro sempre se renovava. Quanto mais era manusea-do mais apareciam novos conteúdos e gravuras. Ora,tal livro, impossível na realidade, tornou-se 'palpável'na fantasia, a ponto do leitor poder compreender aestranheza do personagem sem experimentá-Ia de fato.Mas de onde nasceu a construção do estranho peloautor? De seu mundo psíquico, de suas pulsões e dese-jos, de seus recalques? Ou de um exercício de cons-trução textual onde imagens 'inéditas' tornam-se pala-vras? E onde as palavras são sucessivamente buriladaspara chegar ao efeito desejado pelo autor.

A meu ver, o "livro de areia" é uma invençãopara a qual devem ter colaborado as fantasias do escri-tor. Mas junto deste produto 'inventado' há um perso-nagem que experimenta a sensação do "estranho", eque nem é o autor nem sou eu, o leitor. É outra 'inven-ção', mas tais invenções interagem com o leitor na rea-lidade da leitura. Uma leitura freudiana talvez pudessedizer que o personagem estaria submetido às forçasinconscientes de desejos onipotentes. Ter "o livro semcomeço nem fim" seria como ser eterno, onipotente,onisciente e onipresente, ser deus em suma. Seria umadescrição legítima do personagem, mas poderia sê-Iodo autor?

Para além da sublimação

A discussão freudiana nos remete sempre para otema da sublimação. Todavia, tal explicação não mesatisfaz. A meu ver o ato criador não se vincularia ape-nas ao que se repete, ao sintomático. Aliás, podemosver a repetição como aquilo que gera a diferença, dife-rença esta que explicaria a novidade da obra, seu po-der impactante, sua especificidade. sua singularidade."Repetir, repetir até ficar diferente" já nos disse Barros.

Assim, o artista não estaria preso ao sintoma mas aber-to às possibilidades que este implica. Por isso não en-tendo que, de forma linear, a biografia do autor expli-que sua obra.

Sublimar enquanto canalizar pulsões para obje-tos aceitáveis, por exemplo através do trabalho artísti-co, não explicaria obras que foram num primeiro mo-mento abominadas e tiveram proibida sua publicação.E, apesar de Freud entender este processo como umasdas formas de se atingir o equilíbrio entre prazer edesprazer, ele "não tinha absoluta certeza de que asublimação pudesse garantir plenamente a vinculação .com a realidade{Coelho .Ir.. p.67).

A projeção seria outra explicação fácil, mas comojustificar toda a construção matemática de Ulisses, se-não por um trabalho árduo e consciente? Como lerManuel de Barros sem esforçar-se por despregar-sedas significações usuais das palavras e das regras gra-maticais convencionadas? Como compreender o ser-tão de Rosa sem deixar de se limitar à geografia e àantropologia das Geraes. admitindo que os dicionárioso auxiliaram tanto quanto as cadernetas de notas queusava nas comitivas de boiadeiros? Como dar conta daBusca de Proust, sem se permitir cair no engodo de verna homossexualidade retratada em Albertine o Inversode seu homoerotismo?

Tornar sublime o que é vil ou pôr no outro - napersonagem, na obra - o que é do autor, são explica-.ções que me parecem não dar conta efetivamente doato criador. Isso não impede, contudo, que possamospensar a escritura como uma construção decorrenteda fantasia tanto quanto da realidade. Ou que enten-damos o autor como aquele que co.nsegue criar a partirde elementos de sua realidade psíquica e da realida-de externa, concomitantemente. Alguém que conse-gue perceber, conscientemente ou não, desejos eangústias, seus e alheios, e, forrnatando-os diferentemen-te, pela composição com elementos retirados de seucotidiano e de tipos reais (de quem reúne traços deuns e de outros para formar um só personagem), ela-bora cenas, enredos e desfechos singulares. Mas taishistórias já não são redutíveis aos elementos originári-os da biografia do autor - não são meras 'sublima-ções' ou 'projeções'.

Freud nos ensinou muito sobre a importânciaeconômica dos sonhos e dos devaneios, no psiquismohumano. Os escritores parecem que compreendem,mesmo sub-repticiarnente. esta formação que descre-vem tão bem através de seus personagens. Os leitoressomos agraciados com a possibilidade de adentrarmosa fantasia criada pelo escritor e, de muitas maneiras,

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vivenciarmos as nossas próprias. Restaria saber o quefaz com que uns tenham esta 'sensibilidade' maior paragerir a fantasia, não de maneira a escapar à realidade,mas transformando esta realidade definitivamente. Se-ria o mero esforço, além do interesse pela escrita, e apersistência? Alguém já disse que pouco se deve à ins-piração e quase tudo à transpiração. Manuel de Bar-ros, ao ser indagado sobre sua inspiração, falou que amaior parte do que faz é invenção e o restante é men-tira mesmo.

Ao lermos relatos biográficos de autores comoProust e Joyce vamos encontrar anos e anos de pre-paro de seus romances fundamentais. Têm em co-mum, também, o fato de seus livros terem sido de-senvolvidos a partir de 'protótipos' - Jeen Santeuilemrelação a Em Busca do Tempo Perdido, em Proust, eUm Retrato do Artista Quando Jovem para comUlisses, em Joyce. É sabido que a escritura é um pro-cesso de construção e reconstrução sem fim, o quefaz com que o final de um romance seja algo arbitrá-rio. Isto serve para nos convencer do quanto é traba-lho, e trabalho árduo, a escritura. A imagem de al-guém que recebe a inspiração do alto, do além, dofundo d'alma, é mais um mito que a realidade do es-critor. Isso nos torna muito parecidos com eles, fa-zendo a diferença o interesse por esse tipo de traba-lho e o prazer de fazê-lo que supera os obstáculos.

Isso nos traz de volta ao eixo ativo-passivo di-ante da realidade. O escritor, a meu ver, é um agenteativo frente quer à sua realidade interna quer à reali-dade externa. Talvez, nesse sentido, possamos falarque a realidade da literatura é tão real quanto a rea-lidade da vida. Proust foi mais longe dizendo que "averdadeira vida, a vida digna de ser vivida, é a litera-tura". Serei menos ambicioso e mais parcimonioso:o produto da literatura é duplamente real. Primeiro,por provir e tratar da realidade psíquica, onde atémesmo a fantasia tem de ser encarada como dadoreal. Segundo, por intervir na realidade externa mes-ma, como um produto acabado ou como um instru-mento de suspeição, de questionamento e de propo-sição de algo distinto.

Obviamente ao falar de literatura não me refiroaos livros de fácil 'digestão'. Se bem que não seja fácildar cabo das três mil páginas da Recherche proustiana,ou engalfinhar-se com os neologismos, as aliterações,as onomatopéias, a ausência de pontuação etc. doUlisses joyceano, a diferença é que não se sai incólu-me desta leitura. E tais obras pedem para ser lidas no-vamente. Que peso tem sobre nós a leitura do verso"as coisas que não existem são mais bonitas" ou "as

coisas que não têm nome são mais pronunciadas porcrianças" (de Barros)?

Ao acompanharmos o périplo de Bloom, duran-te o dia 16 de junho de 1904, nos deparamos com obanal, com o sórdido, com o pequeno, com o visceral.Ora, esse anti-Ulisses pode ser encontrado em qual-:quer homem a qualquer momento. Onde a fantasia,onde a realidade? Ao vivermos a juventude de Mareeiquantas vezes não nos confrontamos com a mentira, ahipocrisia, a prepotência, a inveja, o medo, o ciúme?Onde a fantasia, onde a realidade? Nos bois que fa-lam e sentem do Rosa e no poeta que se confundecom a natureza em Barros, onde a fantasia, onde arealidade? Na linda mulher imaginada que habita so-nhos e devaneios de um conto borgeano, onde a fan-tasia, onde a realidade?

É desta 'alucinação saudável' que estive falandotodo o tempo. Desta capacidade que tem a realidade,psíquica ou não, de se refazer continuamente com asnovas experiências e de poder ser redescrita. Da possi-bilidade de se tratar do desejo (realidade interna, psíqui-ca) e do social (realidade externa, material), ao mesmotempo, que a literatura permite. Dessa forma o escritor,mais que autor, passa a ser ator diante da realidade.

Referências Bibliográficas

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