a questão social da cor e a desconstrução da diferença escrava - reflexões sobre as ideias...

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A ‘CONSTRUÇÃO SOCIAL DA COR ‘E A ‘DESCONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA ESCRAVA’ - REFLEXÕES SOBRE AS IDÉIAS ESCRAVISTAS NO BRASIL COLONIAL A ‘SOCIAL CONSTRUCTION OF COLOUR’ AND ‘DECONSTRUCTION OF DIFFERENCE SLAVE’ - REFLECTIONS ON SLAVERY IDEAS IN COLONIAL BRAZIL José D’Assunção Barros 1 Resumo: Examina-se uma das questões que marcaram a história e desenvolvimento das sociedades modernas: a do entrelaçamento entre as noções de Desigualdade Escrava e de Diferença Negra. Utiliza-se a abordagem semiótica com vistas à discussão de três conceitos fundamentais Igualdade, Desigualdade e Diferença – e da interação histórica das idéias de Desigualdade Escrava, Diferença Negra e Africanidade no processo escravista colonial. Palavras-chave: Desigualdade; Diferença, escravidão. A “Escravidão”, a mais cruel forma de desigualdade já inventada pelo homem, apresenta já um longo percurso na história das sociedades humanas. O que a justificou nestas diversas sociedades e como os seus contemporâneos a viram, de uma maneira conceitual e prática? O mais denso tratado dificilmente poderia abranger amplamente esta questão relativamente à extensão de espacialidades e temporalidades a serem Abstract: Analysis of one of the questions that had marked the history and development of the modern societies: the interlacement between the notions of Slaved Inequality and Black Difference. The reflection is supported by the semiotic approach, in order to discuss three fundamental concepts – Equality, Inequality and Difference – and the historical interaction of the ideas of Slavery Inequality, Black Difference and Africanity in the Slavery Colonial System. Key Words: Inequality; Difference. Slavery _____________________________________________________ 1 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor dos cursos de Graduação e Mestrado em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Publicou os livros O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2004), O Projeto de Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005) e Cidade e História (Petrópolis: Vozes, 2007). Endereço de e-mail: [email protected]. OPSIS, Catalão, v. 10, n. 1, p. 29-54, jan-jun 2010 29

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  • A CONSTRUO SOCIAL DA COR E ADESCONSTRUO DA DIFERENA ESCRAVA -

    REFLEXES SOBRE AS IDIAS ESCRAVISTAS NOBRASIL COLONIAL

    A SOCIAL CONSTRUCTION OF COLOUR ANDDECONSTRUCTION OF DIFFERENCE SLAVE -

    REFLECTIONS ON SLAVERY IDEAS INCOLONIAL BRAZIL

    Jos DAssuno Barros1

    Resumo: Examina-se uma dasquestes que marcaram a histria edesenvolvimento das sociedadesmodernas: a do entrelaamento entreas noes de Desigualdade Escrava ede Diferena Negra. Utiliza-se aabordagem semitica com vistas discusso de trs conceitosfundamentais Igualdade,Desigualdade e Diferena e dainterao histrica das idias deDesigualdade Escrava, DiferenaNegra e Africanidade no processoescravista colonial.Palavras-chave: Desigualdade;Diferena, escravido.

    A Escravido, a mais cruel forma de desigualdade j inventadapelo homem, apresenta j um longo percurso na histria das sociedadeshumanas. O que a justificou nestas diversas sociedades e como os seuscontemporneos a viram, de uma maneira conceitual e prtica? O maisdenso tratado dificilmente poderia abranger amplamente esta questorelativamente extenso de espacialidades e temporalidades a serem

    Abstract: Analysis of one of thequestions that had marked the historyand development of the modernsocieties: the interlacement betweenthe notions of Slaved Inequality andBlack Difference. The reflection issupported by the semiotic approach,in order to discuss three fundamentalconcepts Equality, Inequality andDifference and the historicalinteraction of the ideas of SlaveryInequality, Black Difference andAfricanity in the Slavery ColonialSystem.Key Words: Inequality; Difference.Slavery

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    1 Doutor em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professordos cursos de Graduao e Mestrado em Histria da Universidade Federal Rural doRio de Janeiro (UFRRJ). Publicou os livros O Campo da Histria (Petrpolis: Vozes,2004), O Projeto de Pesquisa em Histria (Petrpolis: Vozes, 2005) e Cidade e Histria(Petrpolis: Vozes, 2007). Endereo de e-mail: [email protected].

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  • consideradas, ou mesmo no que se refere amplitude da discussofilosfica e poltica que tm se desenvolvido em torno do tema. Emcontrapartida, renovar esta discusso, inclusive propondo novos viesestericos, sempre uma necessidade imperativa. O presente artigopretende examinar a questo da Escravido tomando como exemplosuma espacialidade e temporalidade definidas a do Brasil Escravocrata e abordando a questo de uma perspectiva conceitual que procurarrefletir sobre a seguinte questo: foi a escravido percebidaconceitualmente como Desigualdade ou Diferena no perodo moderno,e neste lugar especfico? Quais as implicaes de se elaborar uma leituraque transforma em Diferena este fenmeno que, luz da reflexo quedesenvolveremos a seguir, deve ser compreendido como Desigualdade na verdade como a desigualdade radical por excelncia?

    Antes de nos aproximarmos da realidade escravocrata do BrasilColonial, desenvolveremos um quadro conceitual que ser fundamentalpara a anlise a ser desenvolvida a seguir. Pressupe-se, aqui,compreender o que Desigualdade e o que Diferena, e de queformas estas duas noes se opem noo de Igualdade.Comearemos por fazer notar que Igualdade, Desigualdade e Diferena sonoes complexas que interagem entre si de diversas maneiras, e queno raro a converso de certas Diferenas em Desigualdades, ou vice-versa, pode gerar problemas sociais especficos que merecem umareflexo mais acurada. Conforme postularemos partida, a noo deIgualdade contrasta simultaneamente com estas duas outras noes quesempre marcaram uma presena igualmente significativa no decurso dahistria humana. Por um lado Igualdade ope-se a Diferena, mas poroutro lado se contradita com Desigualdade. preciso, naturalmente, atentarpara os dois tipos de relaes a envolvidos: a contrariedade e acontraditoriedade. A oposio entre Igualdade e Diferena, para colocar aquesto dentro de uma perspectiva semitica, da ordem dos contrrios(de duas essncias que se confrontam). J a oposio entre Igualdade eDesigualdade da ordem dos contraditrios (duas circunstncias quese opem, por assim dizer). Vejamos mais a fundo a problemticafilosfica a envolvida, j que ela trar implicaes histrico-sociais devital importncia para a questo discutida neste artigo.

    Partiremos de algumas exemplificaes para um esclarecimentomais especfico sobre o que, do ponto de vista semitico aqui

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  • considerado, seriam diferenas, e sobre o que seriam desigualdades.Negro e Branco, Homem e Mulher, Brasileiro e Americano, Velho eNovo, Cristo e Muulmano, Operrio e Campons so exemplosbastante claros de diferenas. Quando se considera o par Igualdade xDiferena (ou igual x diferente), tem-se em vista algo da ordem dasessncias: uma coisa ou igual a outra (pelo menos em determinadoaspecto) ou ento dela difere. Por exemplo, relativamente ao aspecto danacionalidade, ser brasileiro ou ser americano so diferenas muitobem delineadas. Um indivduo, em casos extremamente excepcionais,pode at ser as duas coisas se pensarmos nos casos de duplanacionalidade mas no pode ser meio brasileiro e meioamericano, a no ser que estejamos utilizando uma figura de retrica,e tampouco possvel encontrar uma situao intermediria entre serbrasileiro e ser americano. No universo de inmeras nacionalidadespossveis, ser brasileiro e ser americano no so realidades ou plosque se opem, mas sim diferenas que se confrontam, cada qualconservando seu prprio espao de delimitao com referncia a umaunidade geopoltica especfica, a determinada identidade histrico-cultural,a uma cidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a certo local denascimento ou relaes de filiao.

    Para muito alm dos exemplos mencionados, as diferenasafetam os mais diversos campos das possibilidades humanas: podemos,no mbito de um certo nmero de indivduos, considerar sua igualdadeou diferena em relao ao aspecto sexual, ao aspecto profissional, aoaspecto tnico, e assim por diante. E, neste caso, estaremos falando emdiferenas sexuais, em diferenas profissionais, em diferenas tnicas.Ao verificar que em dois indivduos distintos se verifica o pertencimento mesma nao ou a adeso mesma religio, podemos considerar asua igualdade com relao a cada um destes aspectos, e contrap-losaos indivduos que, diferentemente, possuem outras nacionalidades eprofessam outras religies.

    J para aventar exemplos relativos s Desigualdades, podemosopor adjetivos como Forte e Fraco, Instrudo e Analfabeto,Rico e Pobre, ou mesmo substantivos como Liberdade eEscravido, de modo a evidenciar mais claramente que o contrasteentre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre no a um aspectoessencial, mas sim a uma circunstncia. Distintamente da oposio

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  • por contrariedade que se estabelece entre Igualdade e Diferena, aoposio entre Igualdade e Desigualdade da ordem das contradies.Bem entendido, enquanto os contrrios se opem ou se confrontam aonvel das essncias, j as contradies so sempre circunstanciais: sogeradas no interior de um processo, tm uma histria, aparecem emdeterminado momento ou situao, e, de resto, pode-se dizer que ospares contraditrios integram-se dialeticamente dentro dos processosque os fizeram surgir. J os pares contrrios no se misturamefetivamente (amor e dio, verdade e mentira, igual e diferente), e destemodo fixam claramente o abismo de sua contrariedade.

    Com vistas a explorarmos as implicaes do fato de que arelao Igualdade x Desigualdade da ordem das contradies, utilizaremoscomo exemplo significativo a oposio entre Pobreza e Riqueza. Serpobre ou ser rico desigualdades relacionadas ao plano econmico so polarizaes que trazem algumas implicaes. Para comear,rigorosamente falando ningum pobre ou rico; na verdade oque seria mais adequado dizer que algum est pobre ou estrico, pois a riqueza ou a pobreza so circunstncias reversveis. Almdisso, ser pobre ou ser rico implica em uma relatividade. -sepobre em relao a certo patamar de comparao: um indivduo podeser mais pobre em relao a outro indivduo, e, ao mesmo tempo, maisrico em relao a um terceiro (contrariamente ao que ocorre maishabitualmente no plano das diferenas, j que um indivduo no podeser mais brasileiro do que outro, mais cristo, ou mais mulher). Deresto, entre a riqueza absoluta e a pobreza absoluta se quisermospostular hipoteticamente estas posies extremas relativas desigualdadeeconmica poderemos encontrar inmeras nuances. Assim, se nohavia nuances intermedirias entre o brasileiro e o americano, entre orusso e o chins, ou entre o mexicano e o indiano todos diferenasreferentes ao campo das nacionalidades j entre o miservel e omilionrio, marcadores tipicamente relacionados desigualdadeeconmica, encontraremos todas as nuances possveis.

    Assim, entre o homem mais rico e o mais miservel (aqueleque no limite extremo desprovido de qualquer bem), podemos imaginartodas as gradaes possveis e imaginar tambm situaes em que ohomem mais rico perca riqueza (e at atinja a misria), ou em que omiservel v gradualmente adquirindo riqueza at se tornar rico. Isto

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  • significa dizer que a Desigualdade relativa Riqueza admite tantoreversibilidade como gradaes entre os seus extremos. Raciocnios anlogospoderiam ser feitos para a Desigualdade relativa liberdade de ir e vir.De um lado teramos o homem que pode ir a todos os lugares (queimaginariamente seria aquele que detm um mximo de poder, riquezae prestgio), e do outro o homem que no pode ir a nenhum lugar (quepoderia ser ilustrado com o exemplo de um prisioneiro na solitria).Entre estes limites extremos existem as gradaes, e tambm asreversibilidades (o Ditador pode ser um dia preso, e o prisioneirolibertado). Os exemplos poderiam se estender ao infinito para asDesigualdades relativas liberdade de expresso, ao acesso a bens eservios, privao de direitos jurdicos, s imposies de segregaoespacial, e a tantas outras situaes.

    Retomemos a questo das Diferenas. Em exemplo anteriorhavamos mencionado diversas nacionalidades distintas, e poderamostambm indicar como exemplos de mbitos de diferenas inmerasreligies, diversificadas faixas etrias, uma infinidade de tipos deconstituio fsica e pelo menos dois sexos, se abordarmos esta questoatravs de um ngulo mais tradicional. As diferenas so obviamenteinerentes ao mundo humano para no falar do mundo natural edesde j ser preciso esclarecer que nem todas as diferenas so naturais,uma vez que muitas so construdas culturalmente2. A ocorrncia deDiferenas no mundo social est inevitavelmente atrelada prpriadiversidade relativa ao conjunto dos seres humanos, seja no que se referea caractersticas pessoais (sexo, etnia, idade) seja no que se refere aquestes externas (pertencimento por nascimento a esta ou quelalocalidade, cidadania vinculada a este ou quele pas, adeso a esta ouquela religio).

    Tambm decorre que, de modo geral, a ocorrncia de diferenasde toda a ordem no pode ser evitada atravs da ao humana. Umaao social especfica dificilmente poder evitar que os indivduos tenhamidades diversificadas, que a humanidade seja partilhada geneticamenteentre homens e mulheres, que as diversas etnias tenham de conviver no

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    2 Assim, por exemplo, diferenas entre os sexos masculino e feminino, do pontode vista cromossmico, so naturalmente impositivas. J diferenas relacionadas religiosidade ou nacionalidade so claramente construes culturais.

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  • mundo humano. As aes sociais para acabar com certas diferenas,quando possveis, demandariam em gigantescos esforos, e em muitoscasos no seriam desejveis. Aes deste tipo estariam de fato situadasem situaes-limites, ou apenas no campo da fico. O Projeto Nazistaprops e tentou implantar o extermnio de determinadas etnias. Oassassinato coletivo de idosos como mecanismo de equilbrio e controlesocial j foi tema de filmes de fico cientfica, bem como tambm aextino do sexo masculino. Por outro lado, podemos nos perguntar seseria possvel abolir um dia as nacionalidades e implantar o GovernoMundial, ou uma nica Religio. Quanto tempo levaria para que novasorganizaes coletivas identitrias ressurgissem, reagindo contra astentativas de supresso de diferenas?

    Enquanto pensar Diferenas significa se render prpriadiversidade humana individual e coletiva j abordar a questo daDesigualdade implica em considerar outro tipo de multiplicidades: ados espaos em que esta pode ser avaliada. Avalia-se a Desigualdade nombito de determinados critrios ou de certos espaos de critrios:rendas, riquezas, liberdades, acesso a servios ou a bens primrios,capacidades. Indagar sobre a Desigualdade significa sempre recolocaruma nova pergunta: Desigualdade de qu? Em relao a qu? Conformefoi ressaltado, a Desigualdade sempre circunstancial, seja porque estarlocalizada historicamente dentro de um processo, seja porque estarnecessariamente situada dentro de um determinado espao de reflexoou de interpretao que a especificar (um determinado espao tericodefinidor de critrios, por assim dizer). Falar sobre Desigualdade implicaem nos colocarmos em um ponto de vista, em certo patamar ou espaode reflexo (econmico, poltico, jurdico, social, e assim por diante).Mais ainda, implica em arbitrarmos critrios dentro de cada espaopotencial de reflexo. De resto, o que nos obriga a falar em circunstnciaspara as questes relacionadas Desigualdade o fato de que qualquerdesigualdade imposta a um grupo ou a um indivduo est sujeita elamesma circunstancialidade histrica, sendo em ltima instnciareversvel. O grupo humano que est privado de determinados direitospode reverter a sua situao atravs da ao social sua e de outros.Assim, pelo menos em tese, no existem desigualdades imobilizadas nomundo social.

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  • Para resumir visualmente o que foi aqui apresentado de maneiraum tanto sumria, poderemos nos valer de um tringulo semitico. Nele,a noo de Igualdade relaciona-se horizontalmente com a Diferena(em uma coordenada dos contrrios que se refere ao plano das essncias),mas tambm se relaciona diagonalmente com a Desigualdade (emum eixo das contradies que se refere ao plano das circunstncias). Aindicao de bilateralidade no eixo contraditrio da relao entreIgualdade e Desigualdade (uma linha com duas setas) indica que essesplos so auto-reversveis, e tambm que possvel um deslocamentoem uma e outra direes ao longo do eixo da desigualdade. J para acoordenada de contrariedade relacionada com os plos Igualdade eDiferena no h de modo geral reversibilidade possvel. Trocando emmidos, as Desigualdades so reversveis no sentido de que se referema mudanas de Estado; as Diferenas, de um modo geral, no

    Questo bastante complexa, e que nos interessar maisespecificamente neste artigo, refere-se s chamadas diferenas raciais,ou melhor, s diferenas de cor. Quando estabelecida, por exemplo,uma dicotomia entre Brancos e Negros, fixado imediatamente umcontraste entre duas essncias. Isto, conforme veremos oportunamente,ser sempre um problema, pois do ponto de vista cientfico as raasno existem enquanto realidades biolgicas bem definidas. Por um lado,a diversidade humana to mltipla e aberta a misturas e superposiesque no se presta a isto, e, por outro lado, pesquisas do Projeto Genomaj demonstraram que todos os homens modernos descendem de umamatriz comum oriunda de certa regio da Etipia pr-histrica ouseja, existe apenas uma nica raa humana (Olsen, 2001: 48). Mas oque interessa para a nossa discusso que existem inmeras e indefinidastonalidades de pele (e no trs ou quatro), e que estas se somam a

    (Tringulo Semitico da Igualdade)

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  • inmeros tipos de cabelo e constituies labiais, a diversificados padrescranianos e tendncias de estrutura ssea, e a tantas e tantas outrasdistines biolgicas que a bem da verdade no nos permitiriam falarem absoluto em um tipo unificado de Negro ou de Branco.

    Assim mesmo, quando construda culturalmente umadicotomia entre Negros e Brancos, so de imediato constitudas duasessncias, sem mediaes. Se quisermos interpor um tipo intermedirio o Pardo ou Mulato ele ser uma nova essncia (na verdade umaessncia to ficcional como a dos Negros ou Brancos). Mas essasessncias sero sempre ambguas, e contra esta realidade emprica terode se defrontar os sistemas de classificao que tentarem estabeleceruma tipologia fundada predominantemente na cor da pele.

    Para alm da tipificao em Branco, Mulato ou Negro,poderemos tentar desdobrar novas tentativas de classificaes, e criaros conceitos de Mulato Escuro e Mulato Claro. Mas em todos estescasos estaremos apenas criando novas categorias essenciais. No planoessencial das Diferenas no existem gradaes (ou estados) do mesmotipo que bastante recorrente no plano das desigualdades. O queocorre, isto sim, a contraposio de categorias diferenciadas umasdas outras. E aqui temos uma das j mencionadas distines bsicasentre as Diferenas e as Desigualdades. Enquanto o homem mais rico o outro plo do mais miservel, ou o homem livre o outro plodo escravo mais privado de liberdades sempre considerando oespectro de gradaes que existe nestes dois casos o Negro no ooutro plo do Branco, nem o Ingls o outro plo do Indiano, enem sequer o Homem o outro plo da Mulher. Aqui se deve falarrespectivamente em diferenas de cor, diferenas de nacionalidadee diferenas de sexo.

    De maneira mais simplificada, enfim, pode-se dizer que asDesigualdades relacionam-se mais freqentemente ao Estar ou mesmoao Ter (pode-se ter mais riqueza, mais liberdade, mais direitos polticos),enquanto as Diferenas relacionam-se mais habitualmente ao Ser (sernegro, ser brasileiro, ser mulher). A compreenso destas distinesfundamentais entre Diferena e Desigualdade imprescindvel para quese possa perceber como estas duas noes tm se relacionado entre sino mbito social, e como ambas relacionam-se com a noo deIgualdade. Depois disso poderemos iniciar um esforo para a

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  • compreenso de certos aspectos relacionados ao Escravismo e sDiferenas de Cor. Desde j, contudo, pontuaremos a complexidade dotema da Escravido, uma vez que esta noo tem sido alternativamentepostulada como pertencente ao mbito da Desigualdade ou da Diferenaconforme os interesses sociais envolvidos e os desenvolvimentoshistricos que podem ser examinados.

    1. Deslocamentos entre Desigualdade e Diferena: introduzindoa questo escravocrata

    A relao entre Desigualdade e Diferena de fato um captulobastante complexo na histria das sociedades humanas. Uma sociedadepode assumir concreta ou imaginariamente um determinado tipode conexo entre diferena e desigualdade (ou entre alguns tipos dediferenas e a desigualdade social ou poltica). Nas democracias modernasdesenvolve-se o imaginrio (nem sempre correspondente s situaesconcretas e efetivas) de que certas diferenas no devem gerardesigualdade. Neste caso, considera-se que devem ser tratadas comigualdade as diferenas de cor, sexo ou religio. Nem sempre foi assim,e ainda no assim em diversas sociedades que afirmam concreta eimaginariamente o vnculo entre a desigualdade social e as diferenasdeste tipo. So notrios os exemplos medievais de segregao espacialde certos grupos religiosos em bairros especficos, e no est longe notempo o exemplo do Apartheid, que correspondeu bem conhecidapoltica de segregao tnica oficializada na frica do Sul entre o perodode 1948 a 1990. Nestes casos, a conexo entre Diferena e Desigualdadeimplica tambm em Excluso ou Segregao, outras noes que colaboramna mesma rede de significados. E discriminar remete tambm ao cultivodaquilo que podemos conceituar como preconceito um conjuntode atitudes que provocam, favorecem ou justificam medidas dediscriminao (Rose, 1972: 162).

    Outro aspecto a se considerar na histria da relao entreDesigualdade e Diferena refere-se possibilidade de que determinadacontradio relacionada com Desigualdade passe a ser lida socialmentecomo uma contrariedade relacionada com Diferenas. O exemplo queestaremos examinando mais sistematicamente neste artigo o daoposio entre Liberdade e Escravido. Naturalmente que, se considerarmos

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  • que a Escravido a privao de Liberdade e, mais do que isto, aprivao do direito de exercer poderes e escolhas mnimas sobre simesmo, inclusive as decises relativas ao trabalho e ao lugar no qual seir viver deveremos tendencialmente localizar este par de contraditriosno eixo circunstancial da Desigualdade. A Escravido poder ser aquivista como a forma de Desigualdade Radical por excelncia, O Escravo aquele que perdeu a Liberdade. A escravido ou a condio de homemlivre constituem, partida, cada qual um estado, uma circunstncia. Aprincpio em que pese que no tenha sido assim em todas as sociedadeshumanas e concepes filosficas e polticas pode-se postular queestas duas noes interagem reciprocamente como contradies, e nocomo diferenas. A Antiguidade, deste a Poltica de Aristteles, ofereceuleituras da Escravido alternadamente como Desigualdade e comoDiferena, embora a extenso deste artigo no permita que nosdediquemos a esta questo. Concentraremo-nos, de acordo com o nossoplano inicial, no perodo do escravismo colonial brasileiro.

    A estratificao social no Brasil Colonial fundou-se precisamenteno deslocamento imaginrio da noo desigualadora de Escravo parauma coordenada de contrrios fundada sob a perspectiva da Diferenaentre homens livres e escravos. Nesta nova perspectiva, um indivduono est escravo, ele escravo. Toda a violncia maior deste novo modelode estratificao social tpico do Brasil Colonial esteve alicerada nestedeslocamento, nesta transformao de uma contradio em contrariedade,nesta estratgia social imobilizadora que transmudava uma circunstnciaem essncia. digno de nota que os abolicionistas tenham se empenhadoem reconduzir o discurso sobre a Escravido para o plano dasdesigualdades, recusando-se a discutir a oposio entre Livres e Escravosno plano das diferenas. Alguns, inclusive, passaram a discutir adesigualdade da Escravido em conexo com outras formas dedesigualdade, e ao tempo em que propunham a abolio, preconizavamtambm reformas fundirias e jurdicas. Destronada do planoimobilizador das Diferenas em que fora assentada durante o processode formao e implantao do escravismo colonial, a Escravido passavaa coabitar no discurso abolicionista com outras Desigualdades, e algumasdestas desigualdades podiam ser enfrentadas naquele momento pelasmesmas prticas, pelos mesmos discursos, pelas mesmas aes sociais.

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  • A questo da Escravatura, mas tambm outras que poderiamser citadas, permite-nos sustentar que os deslocamentos impostos entreos planos da Desigualdade e da Diferena podem freqentementeimplicar em opresso ou dominao mas tambm em libertao,quando o deslocamento refere-se a uma desconstruo do deslocamentoopressor no sentido inverso, como foi o caso dos discursos abolicionistasque reconduziam a noo de escravatura do plano das diferenas aodas desigualdades. preciso fazer compreender a Escravido comoDesigualdade para, ato contnuo, propor sua extino atravs de umaao social.

    2. As diferenas que so construes histricas

    Para avanarmos na questo que nos interessa, ser precisoconsiderar que, se as Desigualdades so sempre construes histricas,as Diferenas tambm podem s-lo. Existem obviamente as diferenasnaturais que impem a sua evidncia ao mundo humano (como o sexoou as diferenas etrias). Mas existem tambm as diferenas culturaispropriamente ditas, e algumas delas precisam ser examinadas no planode sua historicidade porque eventualmente produzem desigualdade social.Discutiremos um conjunto de noes historicamente construdas quese entrelaaram no sculo XVI em torno da prtica da EscravidoModerna: Negro, Escravo e Africano.

    Liberdade e Escravido, como j foi notado, correspondem aestados que tendencialmente deveriam ser dispostos no eixo contraditriodas desigualdades, e no na coordenada de contrrios das Diferenas.Escravo, neste caso, seria uma noo referente Desigualdade que seestabelece relativamente liberdade. Ser escravo estar privado daliberdade, na verdade de uma maneira muito especfica que incluiaspectos que podem atingir mesmo a excluso do direito a conservarrelaes de parentesco, e que traz particularmente a imposio dotrabalho atravs de coaes no exclusivamente econmicas, vale dizer,atravs da violncia. Ser escravo ser vtima de uma desigualdade socialrelacionada ao direito de agir livremente, embora haja tambm outrasformas de limitar este agir. Ser Negro, por outro lado, hoje umaDiferena marcante nas sociedades modernas. Mas esta Diferena tem

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  • tambm uma histria. E em algum momento esta histria foi obrigadaa entrelaar-se com a idia desigual de Escravido para dar suporte aesse cruel regime de dominao que foi o Escravismo Colonial.

    Entre os sculos XVI e XIX, os negros no se viam na fricaem absoluto como negros. Negro foi na verdade uma construobranca j que os povos africanos enxergavam a si mesmos comopertencentes a grupos tnicos bem diferenciados e em geralreciprocamente hostis. Na verdade, o aspecto diferencial Negro foigrosso modo construdo no Ocidente Europeu a partir da imposioda superao de diversas diferenciaes que existiam (e existem at hoje)nas sociedades tribais africanas. Dito de outro modo, a diferena negrofoi construda a partir da igualizao (ou da indiferenciao, seria melhordizer) de uma srie de outras diferenas tnicas que demarcavam asidentidades locais no continente africano, sendo importante ressaltarque isto no ocorreu repentinamente, mas sim no decurso de umprocesso de quatro sculos que envolveu a implantao, realizao esuperao do escravismo um processo que a princpio mescla, semas confundir, as etnias, tribos e cls (MATTOSO, 1982, p.23), masque, ao mesmo tempo, suprime gradualmente todas estas diferenas naconsolidao da representao de Negro. Para entender as bases iniciaisdeste complexo processo, ser importante evocar a prpria diversidadeafro-negra poca que precedeu implantao do trfico negreiro. Porora, avancemos na anlise do combinado de noes que se forma paradar apoio ao projeto escravocrata colonial.

    Se a idia de negro foi construda por supresso ouminimizao das diferenas tribais, preciso salientar que os negrosafricanos tampouco se viam como africanos. A frica foi tambmuma construo da Europa. O norte, o centro, o sul, a bandaoriental, o litoral atlntico, para apenas falar das macro-regies dafrica, eram pressentidas pelos povos que as habitavam como regiesgeogrficas e culturais bem diferenciadas. Quem pela primeira vezavaliou estes povos a partir de uma identidade tnica e continental enquadrada em um lugar nico foi o prprio homem brancoeuropeu, j que esta questo no se colocava ento para os negrosafricanos da poca.

    Por fim, a adaptao do prprio conceito de Escravo,transformando-o simultaneamente na base de um determinado sistema

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  • de produo e, sobretudo, em pea central definidora de um comrcioextraordinariamente rendoso nos moldes modernos foi tambm umaconstruo europia. Bem entendido, a Escravido era uma forma deDesigualdade que j vinha existindo desde a Antigidade, mas de modogeral apresentava outras singularidades. Em boa parte dos casos, aEscravido Antiga apresentava-se como um produto da Guerra: oescravo podia ser, por exemplo, um homem livre que fora vencido ecapturado belicamente. Tambm em diversas sociedades da Antiguidadeapresentava-se, ao lado da escravizao surgida da guerra, o caso menosfreqente da escravido por dvidas, novamente uma circunstncia, e jdesde a Mesopotmia comprovam-se ainda os casos de escravizao decrianas abandonadas e da venda de familiares como escravos.

    Assim como na Antigidade, a escravido sempre existira nafrica. S que na realidade africana pr-colonial tinha-se uma escravidode importncia perifrica, e que alm disto assumia conotaes diversasque sero discutidas mais adiante. A contribuio do homem brancoeuropeu para esta triste prtica hoje oficialmente abolida foi introduzira Escravido, a partir do sculo XVI, em um comrcio trans-ocenicode mbito mundial, e tambm convert-la em pea-chave dos sistemaseconmicos coloniais at sua abolio nos vrios pases da Amrica3.Para isto, o traficante europeu precisou interagir com a ponta negrado trfico da qual participavam os chefes africanos das etnias litorneas,que organizavam nos sculos XVII e XVIII guerras e expedies decaptura para obter no interior africano homens de etnias vrias paraserem vendidos como escravos.

    Enquanto as formas de escravido que eram at entoconhecidas contrastavam com a Escravido Moderna por terem seapresentado menos extensas, menos comerciais e mais heterogneas (oescravo na Grcia ou na Roma Antiga podia vir de procednciasdiversas), na instalao do sistema escravista colonial estaremos diantede um novo sistema de escravido que abarca uma extenso ocenica,apresenta muito mais intensidade comercial e vai se nutrir de escravostrazidos exclusivamente da frica (Blackburn, 2002: 19) vinculando

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    3 Conforme assinala Ktia Mattoso, somente ento um certo tipo de escravido africananasce do trfico e para este, visto que cumpre aliment-la de sangue sempre renovado(Mattoso, 1982: p.25).

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  • esta origem, ela mesma uma construo que desconsidera as origenslocais, a uma diferena socialmente selecionada que ser a da cor dapele.

    Neste novo contexto, se antes a Escravido apresentava-seamide como um subproduto da Guerra, agora o objetivo de capturarescravos que passaria a produzir a Guerra. O Escravo passou a serum produto to valorizado na nova realidade econmica que os prpriosgrupos tribais africanos organizavam expedies para capturar escravospara depois vender aos europeus4. Ocorreu mesmo que estados e reinosafricanos que eram estveis antes da chegada dos europeusdesaparecessem, particularmente a partir de meados do sculo XVII,para dar lugar a novos estados nascidos do trfico e vivendo dele(Mattoso, 1982: 27). A esta questo voltaremos mais adiante, pois elanos forar a examinar os vrios modelos de escravido que j existiamna frica pr-colonial do ponto de vista de sua relao com os conceitosde Desigualdade e Diferena.

    Por ora, registremos que a desconstruo da diversidade de etniasnegras e das realidades culturais africanas, mergulhando-as dentro deuma grande raa localizada em um espao geogrfico nico eimaginariamente homogneo e a simultnea viso desta parte dahumanidade como inferior, ao mesmo tempo em que se encarava ocontinente africano como lugar exterior civilizao tudo isto,juntamente com uma nova noo de escravo, constituiu o fundoideolgico da montagem do sistema escravista no Brasil. Desigualdadese Diferenas vrias, neste caso construdas historicamente, entrelaaram-se para dar apoio a um dos mais cruis sistemas de dominao que aHistria conheceu.

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    4 A organizao de expedies de pirataria para aquisio de escravos no eradesconhecida na Antiguidade, e certos povos como os fencios, etruscos, cretenses,etolios, ilrios, cilcios surgiam grupos que se especializavam em raptar pessoas etransport-las em seus barcos para vend-las em portos francos, como o era a Ilha deDelos depois de 168 aC (CARDOSO, 1987, p.41). Mas com o modelo de Escravidointroduzido pelos europeus do incio do mundo moderno isso passa a ocorrer emlarga escala, tornando-se a regra, e inserindo-se em um comrcio trans-atlntico. disto que aqui tratamos para considerar as singularidades da escravido moderna. Jna Antiguidade grega o que ocorria que, em geral, os exrcitos eram seguidos demercadores de escravos que compravam em massa os prisioneiros e depois osencaminhavam aos pontos de venda (id. ibid, p.41). Ou seja, nestes casos surgia umcomrcio de escravos em funo da guerra, e no o contrrio.

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  • Os primeiros portugueses que procederam montagem dosistema escravista no Brasil estavam cientes da diversidade africana, eportanto das possibilidades de afirmao de diferenas a partir destadiversidade5. Mas eram diferenas que, no caso, no lhes interessavam.Motivar as rivalidades tnicas no prprio continente africano eraextremamente interessante para os traficantes negreiros, j que era damassa de vencidos nas guerras e conflitos inter-tribais que os traficantesnegreiros obtinham os indivduos que seriam transformados em escravos.

    Mas permitir que estas identidades tnicas se fortalecessem jnas colnias onde os africanos seriam submetidos escravido, isso jera particularmente perigoso. Por isto os compradores de escravos paraa empresa agrcola ou para as atividades urbanas costumavam separarestrategicamente os indivduos provenientes de uma mesma etnia e regiocultural, misturando escravos de diferentes procedncias tudo paraevitar que fossem revividos certos padres de identidades locais africanasque no estavam assim to distantes (e, conseqentemente, prevenirpotenciais revoltas). Construir a idia do negro, da realidade quetranscende todas as etnias, que as supera ou mesmo as cancela, era oprocedimento-chave. Por outro lado, se para fins de censo e controleera preciso classificar os negros despejados pelo trfico no Brasil,tambm se operava a construo de novas diferenas, muito poucocoincidentes com as realidades tnicas originais. Incorporava-se identidade do negro uma procedncia geogrfica que via de regrarelacionava-se aos portos africanos de trfico que os haviam exportadopara o Brasil, independente de sua verdadeira origem. Cabindas, minas econgos, por exemplo, eram designaes que tinham origem em portos oucircuitos de trfico especficos. Angolanos, congoleses e benguelas eramreferncias a circuitos geogrficos nos quais apareciam embaralhadasmuitas etnias.

    Mas, parte as classificaes impostas por necessidades prticas,o delineamento de uma dimenso racial negra por oposio ao

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    5 Na verdade, as diversidades tribais existem ainda hoje na frica, e os atuais conflitosentre hutus e tutsis em Ruanda so produtos da reunio em um mesmo pas de triboscujas mtuas hostilizaes vinham crescendo desde o perodo colonial. Sobre adiversidade africana ver o ensaio de Davidson BASIL (1981). Sobre os conflitos entrettsis e htus que adquiriram sua expresso mais sangrenta em 1994, ver HATZFELD(2005).

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  • branco firmou-se mesmo como a pea-chave de um novo constructoideolgico. Com isto, o negro no Brasil e no resto da Amrica passoua ser visto como uma realidade nica e monoltica, e com o tempo foilevado a enxergar a si mesmo tambm desta maneira. Perdidos os antigospadres de identidade que existiam na frica, o negro afro-brasileirosentiu-se compelido a iniciar a aventura de construir para si uma novaidentidade cultural, adaptando-a prpria cultura colonial. Com istoiriam surgir novos padres religiosos, diversificadas alternativas sincrticas,uma nova arte e uma nova msica, e tantas outras contribuies que jno so propriamente africanas. Da que no se pode falar propriamentede uma componente cultural africana de nossa sociedade, mas sim deuma componente afro-brasileira, inauguradora de novas especificidades.

    Conforme se v, ocorreu neste processo histrico oentrelaamento de uma noo que habita ou deveria habitar o plano daDesigualdade Social (a noo de Escravo) com estas duas diferenasculturais que foram a Negritude e o pertencimento africano (ou pelomenos a procedncia ou a ancestralidade africana). Obviamente que,mais tarde, estas noes foram se desentrelaando. J mencionamos ofato de que fez parte da montagem ideolgica do sistema Colonial odeslocamento da idia de Escravido, que passou do eixo circunstanciale contraditrio da Desigualdade para a coordenada essencial doscontrrios que pontuam as Diferenas. E que, a seu tempo, as idiasabolicionistas passaram novamente a discutir a Escravido comoDesigualdade, e no mais como Diferena, marcando o retornodiscursivo de uma noo que j havia pertencido ao plano daDesigualdade. Este processo de releitura das noes que haviam dadosuporte ao sistema colonial, e o seu redesligamento umas das outras,mostra como as Desigualdades ou Diferenas esto sujeitas adeslocamentos que correspondem a transformaes sociais maisprofundas que se processam na sociedade.

    3. Das diferenas negras s diferenas escravas

    Quando esquematizamos acima as relaes entre Igualdade,Diferena e Desigualdade, ressaltamos que o tringulo semitico daIgualdade era ainda um esquema incompleto. Ele pode ser espelhado,para se tornar um quadrado semitico perfeito, se acrescentarmos uma

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  • nova noo: a de Indiferena (por oposio contraditria em relao aDiferena). A Indiferena (ou Indiferenciao) corresponde a ignorar,contestar, rediscutir ou desprezar as Diferenas. Completo, o quadradosemitico das Igualdades e Diferenas (GREIMAS, 1973) fica assim:

    O quadrado completo ajuda por um lado a clarificar a leiturade alguns dos processos histrico-sociais atrs descritos, como o daorigem da Escravido como Desigualdade, a sua transmudao emDiferena atravs do discurso escravocrata, e a No-Diferena propostaposteriormente pelo discurso abolicionista de modo a conduzir adiscusso de novo ao eixo da Igualdade. Este o percurso semiticoatravs do chamado esquema positivo (Greimas e Courts, 2002) isto , descida pela primeira diagonal, subida pela vertical direita, novadescida atravs da segunda diagonal, e retorno ao vrtice inicial atravsda vertical esquerda.

    Um exemplo de percurso atravs do esquema negativo poderiailustrar o processo de construo da moderna diferenciao entre negrose brancos nas sociedades ps-coloniais. Na realidade africana pr-colonialtinham-se as vrias diferenas intertribais (vrtice superior direito). Otrfico negreiro embaralhou estas diferenas percebidas pelos africanose, a partir de uma Indiferenciao, igualizou todos os negros (descida pelasegunda diagonal e subida pela vertical esquerda at o vrtice daIgualdade). O restante do percurso j conhecido: produo deDesigualdade atravs da Escravido e transformao desta desigualdadeem Diferena entre negros escravos e brancos livres (retorno ao vrticesuperior direito, agora configurando um novo tipo de Diferenciao).Desconstruda a Escravido pelo posterior processo abolicionista, apercepo de uma diferenciao racial entre negros e brancos

    (Quadrado Semitico da Igualdade)

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  • continuou contudo a fazer parte das percepes sociais maissignificativas.

    Ser nosso objetivo nas prximas linhas refletir sobre aConstruo Social da Cor neste Brasil que remete montagem do sistemaescravista-colonial verificando inicialmente que quais diferenas foramsacrificadas no altar desta diferena maior que se relaciona corsocialmente percebida, e quais materiais histricos e culturais foramremoldados para a construo dos dolos da pigmentao edespigmentao. Em seguida, ser o momento de examinar o processode desigualdade social que se instaura nesta construo, que a ampara,que absorve ou supera, atravs do Escravismo Colonial, outras formasde desigualdade escrava que o precederam na prpria frica. ProcessoDesigualador, enfim, que prossegue para depois da prpria abolio,mas j fugindo aos horizontes de anlise que aqui propomos.Retornemos, por ora, aos primrdios, realidade africana que precedeo trfico.

    Vimos em exemplo firmado anteriormente que na frica pr-colonial os africanos percebiam diferenciaes intertribais que eram muitoclaras para eles, gerando padres de solidariedade e hostilidade.Diferenciaes de altura, de espessura labial, de contorno do rosto oude tipo de cabelo podiam ser to ou mais importantes para compor adistino de etnias do que o tom da pele sem contar que as vriassociedades tribais acrescentavam a estas diferenas naturais outras deordem cultural, como um corte de cabelo, o uso de brincos, a utilizaode determinada indumentria, e assim por diante. A empresa do trficonegreiro embaralhou estas percepes e ao mesmo tempo em quedeslocava parte da humanidade africana para as Amricas favoreceu apercepo de uma nova dicotomia a partir da pigmentao ou no dapele. Muitas das comunidades tribais africanas foram ento igualadas,no imaginrio ocidental, em funo do nico aspecto que algumas delaspareciam ter em comum: uma certa semelhana na cor, quando postasem contraste com o padro europeu.

    Tudo isto est intensamente impregnado de histria, e o materialhumano sobre o qual se construiu esta histria certamente o maisrico em diversidade do planeta. Na verdade, nenhum outro continenteabrange diversidade anloga da frica, e s para registrar um dossintomas desta impressionante diversidade vale lembrar que um quarto

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  • das atuais lnguas em uso no planeta concentra-se precisamente nocontinente africano. Falando em diversidade, alis, altura da chegadados invasores europeus, o continente tambm abrigava cinco das seisgrandes divises da humanidade. Povos caucasianos diversos (hamitas esemitas) habitavam o norte. Os povos negros estavam espalhados emtoda a frica ao sul do equador. A matriz asitica, misturada negra,fazia-se representar atravs de uma singular populao que habitavaMadagascar, como conseqncia de uma migrao indonsia que ocorreramuito tempo antes da chegada frica dos europeus. Pigmeus eBosqumanos eram duas outras divises bem singulares, sendo que estass podiam ser encontradas mesmo na prpria frica. A rigor, apenas asexta matriz que apontada como uma das seis grandes diviseshumanas a dos aborgines australianos no se fazia representar dealgum modo no mosaico africano j nos primrdios da era moderna.

    No que se refere aos povos a que os europeus passaram a sereferir como povos negros, tinha-se noroeste da costa africana ocircuito de civilizao dos sudaneses, e mais ao sul o circuito decivilizao dos bantos. Avanando mais para o centro seria possvelencontrar os pigmeus, e no extremo sul da frica os bosqumanos, quej so povos oriundos de matrizes genticas bem diferenciadas em relaoaos povos negros relacionados aos circuitos civilizacionais sudans ebanto. Concentremo-nos por ora nos sudaneses e nos bantos. Aindaque possam ser estabelecidas para a frica Negra duas divises maisgerais entre sudaneses e bantos, as etnias internas a estes dois gruposso de uma multi-diversidade que impressiona, no apenas no que serefere a caracteres fsicos como tambm do ponto de vista cultural.Entre os sudaneses, nada mais distinto do que um uolof oriundo daregio senegalesa em relao a um bambara ou a um mandinga do oestesudans. Difcil enquadrar em um nico grupo dos negros, ou mesmoem um grupo negro apenas bipartido em sudaneses e bantos, etnias todiversas como a dos zulus, somalis, ibos.

    As diferenas entre etnias, inclusive, no se afirmavam apenasatravs de caracteres fsicos herdados geneticamente. A cultura, comose sabe, faz parte do diferenciador tnico tanto quanto os ndicesbiolgicos. Lovejoy observa que as naes negro-africanas tm seusmodos diferentes de cortar o cabelo e so reconhecidas por esta marca,que identifica a que etnia ou a que parte do territrio pertencem

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  • (Lovejoy, 2002: 9-39; Lbano et alli, 2003: 34). Do mesmo modo, cortesde cabelo, marcas faciais, tatuagens, vestimentas, objetos decorativos ...todos estes sinais, e uma infinidade de outros, eram muito visveis eportadores de significado para os africanos, e tambm para os traficantesque precisavam lidar diretamente com os povos africanos.

    O discurso das diferenas tnicas era muito eloqente nocontinente africano do incio do perodo moderno, como ainda hojeem certas regies da frica. Acomodar lado a lado, em uma nicadesignao, algumas das mais diferentes etnias negras, convertendo todasa um nico grande grupo chamado de raa negra, constituaobviamente uma operao que s interessava ponta colonial do trfico,ao sistema de recepo e aclimatao do contingente de escravosafricanos Amrica. Na frica, os traficantes negreiros sempre souberamlidar com o jogo das etnias. Os conflitos intertribais eram freqentementeambguos em seus resultados; mas, no fim das contas, conservar asdivises da humanidade negra na frica interessava tanto quantofomentar um novo tipo de unidade para a humanidade negra das colniasdo Novo Mundo.

    As diferenas tnicas, deste modo, interessavam em muito aostraficantes, que tinham de lidar na prpria frica com as operaes denegociao, compra e exportao de escravos. Mas, j nos naviosnegreiros, eles logos se empenhavam em separar estrategicamente osindivduos pertencentes s mesmas etnias, e costumavam pr a ferrosos chamados cabeas quentes, de modo a desmobilizar lideranas ese prevenir de revoltas, pois o perigo delas era constante. J em soloamericano, seja nas colnias portuguesas, espanholas ou americanas, nomais interessavam estas mesmas etnias cuja contraposio alimentava otrfico no seu nascedouro africano. Ento era hora de misturardefinitivamente os tipos tnicos, evitar a formao de grupos, fortalecera idia de que todos eram negros, uma raa talhada para o servioescravo.

    Por questes prticas em parte relacionadas a necessidadesde censo e controle, mas tambm em parte motivadas pelos interessesde conhecer mais a fundo a massa humana escravizada no que se referea potencialidades para os novos trabalhos que lhe seriam impostos osadministradores coloniais do trabalho escravo tambm tiveram derecorrer moldagem de novas diferenas negras, em nada ou muito

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  • pouco relacionadas com as antigas etnias africanas. Precisavam saber,por exemplo, quais tipos de escravos eram mais adaptveis ao trabalhona agricultura, ao trabalho nas minas, aos servios domsticos, e assimpor diante. Ajudaria, para os seus propsitos, conhecer no tanto asetnias originais dos negros, mas o tipo de trabalho com os quaisestiveram acostumados na frica, o tipo de vegetao e clima com osquais lidavam ancestralmente, e talvez conhecer algo do seu potencialde rebelio ou fuga.

    Cedo surgiram algumas classificaes geogrficas que logo foramcoladas identificao dos negros, diferenciando-os uns dos outros,particularmente porque estas informaes relacionadas aos ambientesde origem podiam ajudar a melhor entender as potencialidades dos vriosgrupos de negros com relao ao ambiente. Por outro lado, haviatambm uma contabilidade a ser registrada e uma avaliao de qualidade,por assim dizer, que permitisse identificar as potencialidades dos vriostipos de negros em relao aos diversos circuitos negreiros. Possivelmenteessas combinaes de fatores fez com que prevalecesse uma diferenciaodos negros relacionadas aos seus circuitos de exportao, o que implicatambm em uma geografia da diferena.

    Os cabindas, por exemplo, aparecem como uma nova classificaonegra. Na verdade, no correspondem a nada mais nada menos do queaos negros que eram exportados pelo porto da Cabinda, situado logoao norte do Rio Zaire. Obviamente que esta categorizao oculta aetnia a que pertence cada indivduo, e pela classificao proposta nopodemos saber se um negro chamado de cabinda pertencia a uma etniacomo a dos nsundis ou a outra como a dos tekes, para dar exemplo deduas das vrias etnias em que se especializava o porto de Cabinda emfuno da sua posio na geografia do trfico.

    Os congos, para dar outro exemplo, constituam um grupo deapreenso difcil com relao a caractersticas fsicas e tnicas, uma vezque por esta designao seria designado qualquer indivduo exportadopela vasta rede comercial que se desenvolvia em torno do curso do rioZaire (Karash, 2000: 54), o que implicava na confuso de centenas degrupos tnicos no interior de uma nica designao. O mesmo podeser dito dos angolanos e benguelas, que se referem a regies geogrfico-administrativas surgidas, no sculo XVIII, da partilha da frica pelospases europeus envolvidos no trfico. Diante da classificao de um

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  • negro como benguela, j na Amrica Portuguesa, como saber se estamosdiante de um mbundo, um mbwela, ou outra etnia?

    Tanto quanto a categoria gigante de negro engolidora detodas as diferena tnicas as categorias embaralhadas a partir dosportos de exportao ou dos circuitos de comrcio e apresamento doo seu quinho para a dissoluo das etnias negras de origem no novomundo. Os filhos de escravos vero se perder no horizonte a noo deque so iorubas, geges, ambacas, quissamas, rebolos, mbundas, mbwelas, tekes,nsundis, ou tantas outras etnias a serem afirmadas como diferenasculturais.

    O processo de novas diferenciaes a partir da indiferenciaode todas etnias negras na categoria raa negra apresentou ainda outraspossibilidades, surgidas da prpria vida colonial. Assim, outras diferenascriadas j na colnia so as de crioulo o homem de pele identificadacomo negra nascido no Brasil e o pardo, produto da mestiagem deafricanos com brancos europeus ou descendentes de europeus jenraizados na colnia. Definir como pardo categoria que o indivduono raro ostentava com certo orgulho para distanciar-se mais da idiade escravido associada aos negros implica em reintroduzir mais umavez na diferena a desigualdade, atravs de uma realidade que searrastar tambm para o mundo dos libertos.

    4. O discurso anti-escravista e as novas leituras da Escravidocomo Desigualdade

    Vamos nos concentrar no sistema escravista brasileiro, e maisparticularmente nos momentos que precedem movimentao polticaem torno da questo do Abolicionismo. O objetivo ser o de examinara questo das idias anti-escravistas luz do sistema conceitualproposto. Conforme vimos, o Sistema Escravista Colonial, alm daprpria implantao do trfico negreiro e do sistema de exploraodo trabalho escravo, apresentou a possibilidade de ler essadesigualdade radical que seria a Escravido como uma diferena.Ao lado da prpria violncia fsica de transplantao da humanidadeafricana para as Amricas, com vistas ao trabalho escravo, este sistematambm imps uma violncia simblica que foi o deslocamento deuma desigualdade para a coordenada das diferenas.

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  • Frequentemente, impiedosos processos de violncia simblica ocultam-se neste tipo de deslocamento.

    Por outro lado, o movimento de enfrentamento do discurso,das prticas e do sistema escravista no Brasil tem tambm a sua histria.Obviamente, no haver possibilidade, nos limites deste artigo, de aquirecuperar esta histria, e por isso elegemos como campo de observao,nas ltimas pginas deste texto, um momento no qual podemos examinarde maneira mais clara os modos como uma das vertentes que se opsno Brasil ao discurso escravista o Abolicionismo colocou-se emrelao s j referidas possibilidades de ler a Escravido comoDesigualdade ou como Diferena.

    A ao dos abolicionistas, altura das dcadas que precedem aAbolio, dar-se-ia precisamente em torno do reconhecimento de que,na sociedade escravocrata brasileira, o negro-escravo era j tratadocomo diferena, e que era importante reconduzir esta discusso ao planodas desigualdades. A ao social, como se disse, pode com muito maisfacilidade impor transformaes no eixo circunstancial das desigualdadesdo que na coordenada de contrariedades das diferenas. Considerar oescravo como um ser humano inferiorizado (algum que sofre umadesigualdade) fundamentalmente distinto de considerar o escravo comoum ser humano inferior (algum que est preso a uma diferena).

    Reempreender o deslocamento discursivo que conduz a questoescrava da coordenada das diferenas ao eixo enviesado dasdesigualdades seria precisamente a obra dos abolicionistas destasdcadas particularmente efervescentes o que, obviamente, no teriasido possvel sem as correspondentes presses e mobilizaes doprprio setor escravo no plano mais concreto da histria vivida. Onovo contexto para o fortalecimento do discurso abolicionista estemomento social, que se d nas duas ltimas dcadas escravocratas,nas quais comeam a se avolumar as resistncias individuais e coletivasda prpria escravaria seja a partir de insubordinaes, fugas, crimes,ou rebelies e quando o escravo, alm de se expressareconomicamente como um trabalhador ao mesmo tempo necessrio eperigoso, passa a ser encarado pelos senhores do caf como umamercadoria tanto necessria como sujeita instabilidade. Contra estepano de fundo, e cada vez mais intensamente, sobretudo a partir defins da dcada de 1870, vai tomando forma certo discurso abolicionista

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  • que chama ateno, com especial nfase, para a necessidade derecolocar a questo da escravido como pertinente ao campo dasdesigualdades. Este enfrentamento discursivo, ao lado de lutas concretasque se deram atravs dos movimentos abolicionistas, das sociedadesde caifazes, e dos movimentos quilombolas, certamente uma pginaimportante na Histria das Idias polticas no Brasil.

    Tomaremos agora como exemplo final, entre tantos outros quepoderiam ser selecionados, a reflexo anti-escravista desenvolvida peloabolicionista Joaquim Nabuco em O Abolicionismo. Certo trecho desteque o mais vigoroso livro de Joaquim Nabuco sobre a questoescravocrata, entre outras passagens igualmente remarcveis, mostra-separticularmente significativo como sintoma de uma concepoabolicionista que percebe o tradicional tratamento da Escravido comoDiferena e decide enfrent-lo com o projeto de trazer a discusso parao mbito das Desigualdades. O trecho resume de maneira esplndidaeste deslocamento discursivo que, rejeitando-a, vai da Diferena Escravapara a Desigualdade Escrava, da a uma Desigualdade Liberta, e porfim se realiza na promessa e na proposta de minimizar as desigualdadesvrias de modo a constituir para o ex-escravo libertado um mundopleno de cidadania e verdadeira liberdade:

    Depois que os ltimos escravos tiverem sido arrancados aoPoder sinistro que representa para os escravos a maldioda cor, ser ainda preciso desbastar, por meio de umaeducao viril e sria, a lenta estratificao de trezentos anosde cativeiro, isto , de despotismo, superstio e ignorncia.O processo natural pelo qual a Escravido fossilizou nosseus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo duroutodo o perodo de crescimento, e enquanto a Nao notiver conscincia de que lhe indispensvel adaptar liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que aescravido se apropriou, a obra desta ir por diante, mesmoquando no haja mais escravos (NABUCO, 2002, p.25)

    Dificilmente poderia haver imagem mais adequada para aDiferena Escrava a diferena que se constri sobre esta cor negraque, vimos atrs, ela mesma uma construo social do que essePoder Sinistro que cria para o escravo a representao da maldioda cor (lembremos da maldio que o texto bblico faz se abater sobreCana, e que os cristos europeus procuram traduzir em termos deuma maldio sacralizada que se estabelece sobre o homem negro).

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  • Arrancar o escravo, cada escravo, a este Poder Sinistro, no nada maisdo que desconstruir a idia de uma Escravido da Cor, de uma diferenaescrava que se baseia to somente na cor da pele e na origem africana.Mas h mais: preciso em seguida enfrentar o problema da DesigualdadeEscrava esta que se ocultava sob a Diferena Escrava como umasegunda natureza e que agora se v exposta, produto de trezentosanos de cativeiro mais do que isto, de trezentos anos de um sistemaque se imiscui em todos os aspectos da vida social brasileira e que afetana verdade todas as classes.

    A idia de que a Escravido fossilizou nos seus moldes avitalidade do povo brasileiro, criando categorias que agora precisam serdesconstrudas a do senhor e a do escravo particularmenteoportuna. A conscincia de que a liberdade dever ser reconquistadagradualmente, adaptando liberdade cada um dos aparelhos doorganismo social, apontada como a principal virtude de que deverse revestir a Nao na sua tarefa de estabelecer o reino da Igualdade(na verdade, no mais apenas o fim da Diferena Escrava, que viriacom a Abolio, mas tambm o fim de uma Desigualdade Liberta, quepoderia ser gerada como um desdobramento de uma abolio mal-engendrada). Caso contrrio, acrescenta o autor de maneiraparticularmente visionria, a obra da Escravido seguir adiante, mesmoquando no haja mais escravos.

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    Artigo recebido em 24/03/2010 e aceito para publicao em02/09/2010

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