a questão racial brasileira na obra de florestan fernandes - joão baptista

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F F N uma tarde, no começo da déca- da de 50, o prof. Roger Bastide en- trou na minha sala, no fundo do corredor, lá na Maria Antonia. Fi- cou de pé em minha frente e me disse que fora procurado por Alfred Métraux para dirigir um projeto de pesquisa da Unesco sobre o negro na socie- dade brasileira. Argumentou que só aceita- ria o convite se eu também concordasse em participar do projeto. Bastide me disse ain- da que ele não tinha a minha experiência de trabalho de campo in- dispensável para conduzir o tipo de investi- gação que a Unesco pretendia. Respondi pron- ta e secamente a Bastide: NÃO! Estava preo- cupado com outros projetos e que não me in- teressava participar de estudo sobre questão racial. Bastide não tentou me convencer. Saiu de minha sala em silêncio. Senti que tinha sido duro com o meu mestre e senti remorso. Saí da sala à sua procura e o vi se afastando, quase no final do corredor. Chamei-o. Ele parou, voltou-se para mim. Arrependido, emocionado e sem pensar lhe disse: prof. Bastide, eu aceito! J O Ã O B A P T I S T A B O R G E S P E R E I R A A Q U E S T Ã O R A C I A L B R A S I L E I R A N A O B R A D E F L O R E S T A N F E R N A N D E S JOÃO BAPTISTA BORGES PEREIRA é professor de Antropologia da FFLCH-USP. REVISTA USP, SÃO PAULO (29 ): 3 4-4 1, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 34 F L O R E S T A N F E R N A N D E S

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A questão racial brasileira na obra de Florestan fernandes - João baptista

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FFNuma tarde, no comeo da dca-da de 50, o prof. Roger Bastide en-trou na minha sala, no fundo docorredor, l na Maria Antonia. Fi-cou de p em minha frente e medissequeforaprocuradoporAlfred Mtraux para dirigir um projeto depesquisa da Unesco sobre o negro na socie-dade brasileira. Argumentou que s aceita-ria o convite se eu tambm concordasse emparticipar do projeto. Bastide me disse ain-da que ele no tinha aminha experincia detrabalho de campo in-dispensvel para conduzir o tipo de investi-gao que a Unesco pretendia. Respondi pron-ta e secamente a Bastide: NO! Estava preo-cupado com outros projetos e que no me in-teressava participar de estudo sobre questoracial. Bastide no tentou me convencer. Saiudeminhasalaemsilncio.Sentiquetinhasido duro com o meu mestre e senti remorso.Sa da sala sua procura e o vi se afastando,quasenofinaldocorredor.Chamei-o.Eleparou,voltou-separamim.Arrependido,emocionadoesempensar lhe disse: prof.Bastide, eu aceito!J O OB A P T I S T AB O R G E SP E R E I R AAQUESTORACIALB R A S I L E I R AN AO B R AD EF L O R E S T A NF E R N A N D E SJOO BAPTISTA BORGESPEREIRA professor deAntropologia da FFLCH-USP.R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6 34FLORESTANFERNANDESR E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6 35Em foto de DucaLessa, Florestan,deputado federalno seu primeiromandato durantea Constituinte36 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6Essetrechoeraarespostademoradaperguntaquelhefizera,numaentrevistamaior, sobre os motivos que o teriam levadoa estudar negros, pois em seu curriculum nohaviaqualquerregistronessadireo.Florestan viera de um intenso labor intelectu-al do qual resultaram trs teses mestrado,doutorado e livre-docncia. As duas primei-ras, como se sabe, constituram-se numa ma-gistral reconstruo histrica de aspectos li-gadosguerraeorganizaosocialdosextintosTupinamb;aterceira,decarterterico, propunha-se refletir sobre o alcanceexplicativo do mtodo funcionalista nas ci-ncias sociais (1).Alguns anos depois desse depoimento, emseminrio patrocinado pelo Ceru, FlorestanFernandesconfirmapublicamenteaversoacima reproduzida e acrescenta outros dadosquepermitemaoleitoravaliarocontextointelectualeinstitucionalquemarcaomo-mento, o instante inicial do envolvimento dosocilogo com a questo racial brasileira:Anossapesquisafoioprodutodeumacaso. A. Mtraux trouxe-nos o programada Unesco para o Brasil, nascido de umahiptese infundada (a de que o Brasil cons-titua uma situao negativa, da perspec-tiva da manifestao do preconceito e dadiscriminao raciais, por sua vez extra-da de um artigo de D. Pierson). R. Bastidefoi convidado para ser o encarregado dapartesociolgicadoprojetosobreSoPaulo (outros desdobramentos: dois estu-dos de psicologia, atribudos a Ariela M.Giensberg e a Virgnia Bicudo; uma son-dagem sociolgica sobre uma comunida-de rural do estado de So Paulo: graas aOracyNogueira,aescolharecaiusobreItapetininga,queeleestavaestudando).Bastide recusou, pois estava ocupado demodoabsorventenapreparaoereda-o de sua tese de doutoramento. SugeriuqueD.Piersonfosseconvidado;esteanuiu,pormdesinteressou-sequandodescobriu que a Unesco no alocara fun-dos suficientes para a realizao de umapesquisa de envergadura (cada desdobra-mento do projeto ficara com mil dlares;anossadotaofoidiretaaLucilaHerrmann e Renato Jardim Moreira, nos-sos colaboradores de pesquisa, que rece-beramquinhentosdlarescadaum.Apesquisa,emsuma,sefezdegraa.Oque uma ironia, j que ela foi projetadae desenvolvida como uma das pesquisasmais complexas at ento efetuadas en-tre ns... Paulo Duarte logrou obter umfinanciamento de oitenta contos da rei-toria da USP, mas esse dinheiro foi apli-cado no financiamento da publicao donosso trabalho na revista Anhembi e dogrossovolumequecontinhatodososresultadosdainvestigao).Mtrauxcompeliu R. Bastide a aceitar o encargoe este, por sua vez, induziu-me a entrarcom ele na grande aventura, o que aceiteide maneira relutante (2).Seja qual tenha sido o fator que mais pe-sara na deciso de Florestan sentimental,intelectual ou poltico o que importa des-tacar que tal deciso resultou na inaugura-odeumanovafase(revolucionria,naopinio de alguns crticos) do estudo do negrono Brasil. At ento, tais estudos iniciadosnatransiodossculosXIX-XXhaviampassado por duas fases lgicas e histricas:aprimeira,identificadaprincipalmenteaonome de Nina Rodrigues, focalizava o ne-gro como expresso de raa, retendo, qua-se sempre negativamente, os seus atributosbiolgicos;asegunda,associadaespecial-mente produo intelectual de Arthur Ra-mos, via o negro como expresso de cultu-ra, negligenciando as suas condies exis-tenciais, o seu enraizamento social. Com seusestudossobreliteratura,artes,folcloree,principalmente,religiodapopulaone-gra, Roger Bastide estava ligado, a sua ma-neira,aessavisoculturalista.Datalvezsua dificuldade em lidar com um projeto que,pelassuaspropostas,deveriacomearporreavaliar at a contestao, essa linha de pen-samento,eque,certamente,encontraria,como encontrou, em Florestan Fernandes umcrtico severo e radical.Essa diferena entre os dois autores, queassociadosiriamdarespciedereviravoltanoestudodonegrobrasileiro,bemexplicitada por Florestan:1F.Fernandes,AOrganiza-o Social dos Tupinamb,SoPaulo,InstitutoPro-gresso Editorial, s/d; idem,A Funo Social da Guerrana Sociedade Tupinamb,So Paulo, Pioneira/Edusp,2a ed., 1970; idem, Ensaiossobre o Mtodo de Interpre-tao Funcionalista na So-ci ol ogi a, SoPaul o,FFLCH-USP, 1953.2OlgaR.deM.VonSinson(org.), Revisitando a Terrade Contrastes: a Atualida-denaObradeRogerBast i de, SoPaul o,FFLCH-USP Ceru, 1986,pp. 14-5.37 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6Existiam divergncias entre Bastide e euna forma de encarar a situao concretadonegro.Eucoligira,paraele,algunsestudos de personalidade em 1941 e fize-ra, para o professor Emlio Willems, umlevantamento sobre certas formas de dis-criminao em Sorocaba, em 1942. Prin-cipalmente,comocrianadeorigemlumpen, vivi em pores e cortios de v-rios bairros (principalmente na Bela Vis-ta) e comeara a trabalhar com pouco maisde 6 anos. Os negros eram companheirosde privaes e misrias; eu podia manejara perspectiva do oprimido e, por a, des-mascararahipocrisiareinantesobreoassunto.OprofessorBastide,porsuasinvestigaes,compartilhavademuitasdasminhasconvices;mas,rejeitavaoutras, em particular porque preferia osmeios-tons, aquilo que se poderia chamarde verdade redentora, aparente no per-do mtuo, no esquecimento, a superaopelonegrodasinjustias(eleevitavaconverter a descrio em julgamento; osdois captulos que escreveu para Negros eBrancos em So Paulo demonstram queo apego estrito objetividade cientficaia a par com o nuanamento dos elemen-toschocantes, comumadialticaproudhoniana, que exibia o mal sem ig-norar o bem, ou o mau sem desdenhar obom). Achei que seria fecundo colocaremsuspensoasdiferenas,atravsdeumprojetodepesquisaquefirmassecertas hipteses diretrizes fundamentais.Ele concordou. Redigi o projeto, que foisubmetido a sua crtica. Ele s alteroualgumas passagens sobre Pierson, ate-nuadas ou omitidas, que eu havia utili-zado deliberadamente como uma esp-cie de straw man, ressaltando assim asambigidades e inconsistncias que de-veramos evitar (ou controlar) em umainvestigao comprometida com o pr-prio negro (3).Oquecaracterizariaessanovafasedeestudo, que levou alguns autores a julgaremrevolucionria?1) Parte-se do princpio de que a situaosocialdapopulaonegranoBrasilumproblema social que o pas precisa admitir,enfrentar e resolver, at por uma questo dejustia social. Inverte-se a idia de que o ne-gro um problema para o pas, como queria,por exemplo, Nina Rodrigues: o pas, a socie-dade, enfim uma estrutura social inqua quese constitui em um problema para a popula-o negra: essa sociedade que calibra a par-ticipaosocialequemanipulaodestinohistrico da populao brasileira com carac-tersticasnegrides,marginalizando-a,dis-criminando-a, preconceituando-a, bloquean-do, assim, seus passos rumo a uma cidadaniaplena.Cumpriadesvendar,paradenunciar,esses mecanismos estruturais que historica-menteenaatualidadetmatuadonaper-petuaodessainjustia.Propunha-se,emsntese, atravs da pesquisa sociolgica des-mascarar a realidade racial brasileira, coloc-la a nu, desfazer um mito fortemente arrai-gado no imaginrio popular e no pensamen-to cientfico, e que j comeava a se interna-cionalizar, de que o Brasil era o pas da de-mocracia racial.Como j se grifou, essa proposta, ao mes-mo tempo que dirige o olhar sociolgico parao plano das estruturas sociais, exige, prelimi-narmente,umacrticasexplicaesculturalistas. Atravs do estudo do negro, umasociologia, de forte inspirao marxista, en-dereasuascrticasaumaantropologiadapoca, com grande influncia idealista. L. A.da Costa Pinto, com toques impressionistas,sintetizabemessedistanciamentoentreasduas disciplinas:Independentemente da vontade dos l-deres do surto afro-brasileiro, cuja fi-losofia de vida, alm de altamente res-peitvel, chegou a ser at honestamenteavanadaaverdadeque,nassuaspreocupaes,umaabstraotomouolugardosfatos,impedindo-osdeveradistnciaquecresciaentreoafricanoabstrato que estudavam e o novo negro,negro-homem, real e concreto, que esta-va ali nascendo, vivendo, morrendo nafrente deles, debaixo de seus olhos (4).2)Adota-seumalinhaterico-metodolgica que dava grande importncia 3 Idem, ibidem, p. 15.4 L. A. da Costa Pinto, O Ne-gro no Rio de Janeiro, Riode Janeiro, Cia. Ed. Nacio-nal, s/d,p. 31.38 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6empiriaeprocuravainterpretarosfatosdialeticamente luz de um referencial mar-xista, ainda que outros esquemas tericos nofossem totalmente abandonados. Sem dvi-daalgumaaconjugaoquestoracial,pesquisa emprica e mtodo dialtico repre-sentava uma inovao na prtica sociolgicada dcada de 50. Na parte propriamente tc-nica, a de coleta de dados, a novidade estavano fato de os investigadores no se limitarema ir busca de seus informantes; os informan-tes negros vinham ao encontro dos pesquisa-dores para expor as suas experincias e co-nhecer de perto o projeto, os estudiosos e aprpria academia. Dessa perspectiva, o pro-jetosociolgicoelaboradoeexecutadoporFlorestan, em conjunto com Bastide, descar-ta o esquema culturalista mas adere, e o valo-riza, s tcnicas qualitativas da antropologia:Nocasoderepetiraquioquefoiodesenrolar da pesquisa. Graas ao prest-gio de Bastide na comunidade negra, con-tamoscomumamaciacolaboraodenegros e mulatos de vrias categorias so-ciais e das diferentes geraes em conta-to.AprimeirareuniofoicelebradanaBiblioteca Pblica Municipal, com umamassanotveldeouvinteseparticipan-tes. As demais foram realizadas no audi-trio da Faculdade de Filosofia, Cinciase Letras da USP. Tnhamos a inteno decoligir documentos pessoais, elaboradospelos prprios sujeitos. O nvel mdio deescolaridade e de maturidade intelectualmostrou que s alguns sujeitos estavamemcondiesdenosproporcionarosmateriaisdesejados.Issonosobrigouauma ttica rica de investigao. Substi-tumos o documento pessoal (mantido paraumnmeropequenodesujeitos)pelaobservaoparticipanteemsituaogrupal(oqueaumentouointeresseda-quelasreuniesedosmateriaisestenogrficos resultantes). E logo empre-endemos reunies paralelas com as mu-lheres(queserevelarammaismadurasque os homens na percepo da realidadeambiente)ecomosintelectuaisnegros(que se tornaram tambm pesquisadores,elaborandoestudosdecasosespeciais).Assim, tnhamos a grande reunio formal,de ms em ms; o seminrio com as mu-lheres (de quinze em quinze dias) e o se-minrio com os intelectuais (todos os s-bados, em uma associao cultural negralocalizada na rua Formosa). A bateria demateriais era completada pelo recurso aoquestionrio, aplicado por estudantes; porentrevistas formais e informais (eventu-almente, com sujeitos recrutados naque-las trs situaes); e pela observao di-reta de situaes concretas e estudos decaso (sobre personalidades negras e mu-latas; cortios, bairros, etc.). Os brancose as barreiras raciais foram focalizadosporrecursosproporcionadosporessastcnicas de investigao e pela colabora-o de estudantes mais avanados na ela-borao de estudos de caso (famlias tra-dicionais,empresasdegrandeemdioporte,serviosdeseleodepessoal,etc.). A reconstruo histrica ficou sobmeu encargo, com a colaborao de Re-natoJardimMoreira;umaimportantesondagem quantitativa sobre incongru-ncias de atitudes e valores na esfera dasrelaes raciais foi conduzida por RogerBastide,comacolaboraodeLucilaHerrmann. Os materiais referentes LeiAfonso Arinos, por sua vez, alm de umacoleta paralela de opinies e reaes es-pontneas,foramarroladosatravsdeuma seqncia de debates (5).3)Escreve-seumcaptulonainstitucionalizaodapesquisanoBrasil.Sabe-se que, pelo menos nas humanidades, apesquisa acadmica no pas tem tido um ca-rter predominantemente individual. Fatoresresponsveis por isso vo desde bibliotecasinsatisfatrias, verbas insuficientes, acomo-daes materiais inadequadas at hbitos ar-raigados na rotina dos pesquisadores.OprojetodoqualFlorestanconcordaraem participar era apenas um, dentro de umprojeto maior, que cobria, alm de So Paulo,vrios estados e regies do Brasil. Nesse pro-jeto geral estavam engajados muitos pesqui-sadores socilogos, antroplogos e algunspsiclogos.EmSoPauloformou-seumaequipeecriou-seumclimaintelectualque5OlgaR.deM.VonSinson(org.), op. cit., pp. 16-7.Na outra pgina,Florestan falandona AssembliaNacionalConstituinte emoutubro de 1987,Braslia39 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6Arquivo Florestan Fernandes40 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6garantiram ao longo dos anos at os dias atu-ais, a continuidade dos estudos dessa temtica(6). Esse fato, aliado a outras caractersticasdesses estudos, foi o que levou alguns autoresa reconhecerem a existncia de uma escola: aEscola Sociolgica de So Paulo, associada liderana intelectual de Florestan Fernandes. preciso registrar que o processo deinstitucionalizao da pesquisa originaliadesdeademandaporverbas,forma-odeequipeatapublicaodeseusresultados (7).REAES PESQUISAAs reaes pesquisa: de imediato, fo-mosconsideradostendenciososeres-ponsveis pela deformao da verdadeem vrios nveis da sociedade circundante.Houve, mesmo, uma ocorrncia tpica. Odiretor de uma escola de sociologia queafirmoupublicamentequeBastideeeuestvamos introduzindo o problema noBrasil! A comunidade negra, por sua vez,exagerou a importncia de nossa contri-buio. Estava maravilhada com o fato determosrompidoaqueleisolamentopsicossocial e histrico, feito dele umaarmadarazoedacrtica.Principal-mente, ficaram encantados com o fatodesuaslutasteremencontradores-posta e confirmao. Parecia-lhes que asociologia lhes abria uma ponta de jus-tia,acenandocomaperspectivadequeaquiloquenoseconverteraemhistriapoderiaviras-lonofuturoprximo. Fomos cuidadosos. No ten-tamos indicar a falta de correlao entrea reao coletiva do negro e a gravidadedo dilema racial na sociedade brasileira.De que adiantaria esse exerccio liter-rio? Bastara-nos indicar que a integraonasclassescomeavaoutrahistria,porque conferia ao negro a possibilida-de de acesso a uma forma mais eficientede conflito aberto e de luta contra umaordem racial inqua. (8)Alm dessas reaes imediatas a um tra-balho acadmico inovador, que a uns inco-moda e a outros estimula, h as repercus-ses que o estudo vai colhendo, ao longo6 F. Fernandes, Aspectos daQuesto Racial, in O Tem-po e o Modo do Brasil, Lis-boa, (no 50), 1967.7 Relaes Raciais entre Ne-gros e Brancos em S. Pau-lo,SoPaulo,Anhembi,1955, pp.7-10.8OlgaR.deM.VonSinson(org.), op. cit., p.18. Nair Benedito41 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 3 4 - 4 1, M A R O / M A IO1 9 9 6pontosquemarcariamsuasdivergnciascom o mestre:Naverdade,osquehojenosfazemacrtica de que ignoramos a dimenso cul-tural no levam em conta a amplitude,as implicaes e o significado dessa abor-dagem, possvel em grande parte graas experincia de Bastide suas pesqui-sas sobre a transplantao, a reelaboraoe transculturao das religies africanas.A dimenso cultural no aparece comoum dado externo, uma coisa palpvel eempiricamentecontingente.Porm,como um modo de ser: o negro comopessoa,sujeitodesimesmoedeumahistriaquefoinegada,masque,noobstante, transcorreu como ao dos opri-midos(daaimportnciadapassagemda condio de vtima passiva para a deagente do movimento negro, da frustra-o subjetiva para a rebelio e a Segun-da Abolio). Desse ngulo, o apareci-mento do regime de classes confere aosnegrosemulatosnovospapishistri-cosemergentes(noimportaseessespapis tenham sido bloqueados pela so-ciedade inclusiva e se dissipassem semdeixarasmarcashistricasdoinconformismo negro) (10).CONCLUSOAos que trabalham com relaes raciaisnoBrasil,familiarizadoscomosestudosecom a situao concreta do negro brasileiro, possvel avaliar o que o prof. Florestan re-presentouparaessareadeconhecimentosociolgico e o que representou para a popu-lao negra que tem acesso a sua produointelectual (11).A pergunta que se pode fazer para encer-rar este breve artigo : o que significou parao prof. Florestan Fernandes ingressar, mes-mo pouco convencido e por acaso, nesse cam-po de trabalho?Esse acaso se revelaria em seguida a coisamais importante que aconteceu em minhavida de socilogo profissional e de mili-tante socialista (12).dos dias, no circuito intelectual. So reper-cusses que se expressam atravs de crti-casdiretaseindiretasquebrotamdessecircuito. A produo cientfica de FlorestanFernandes, enquanto estudioso da questoracial, est ainda espera de seus crticos.O que se tem, nesse plano, so crticas pon-tuais,descontextualizadas,nemsempreconvincentes.Dessas,aquemaispareceter sensibilizado o socilogo foi o seu des-caso pela cultura do negro. No fundo, essedescasooudesi nt eressenascedaconcei t uaodecul t uracomoepifenmeno, o que o teria conduzido, e aseus discpulos, evitao metodolgicada cultura em contrapartida a uma nfaseda dimenso socioeconmica como instn-ciaexplicativaprivilegiadadacondiode ser negro no Brasil. Bastide encabeaessacrticanumadmirvelexercciodeautocrtica, ao afirmar que eles (os soci-logos de So Paulo, entre os quais se in-clua) empobreceram seus estudos ao co-locaremdeladoaculturadonegro(9).FlorestanFernandesrebateessacrtica,apoiando-se no prprio Bastide, num dos9R.Bastide,ThePresentStatusofAfro-AmericanResearchi nLat i nAmeri ca,i nDaedal us,1974.10 Olga R. de M. Von Sinson(org.), op. cit., p. 14.11 Em especial: R. Bastide eF.Fernandes,BrancoseNegros em S. Paulo, SoPaulo,Cia.Ed.Nacional,1971(3aedi o); F.Fernandes,AIntegraodo Negro na Sociedade deCl asses,SoPaul o,FFLCH-USP, 1964; idem,ONegronoMundodosBrancos, So Paulo, Difu-soEuropiadoLivro,1972; idem, O SignificadodoProtestoNegro,SoPaul o,CortezEdi tora,1989.12 Olga R. de M. Von Sinson(org.),op. cit.,p.15.Na outra pgina, ato de aniversrio da mortede Carlos Marighella, na ABI-SP, em dezembrode 81: Carlos Augusto Marighella, Clara Charf,Florestan Fernandes, Aldo Lins e Silva, AntonioCandido e Llia Abramo; acima Florestanna Universidade de Yale, EUA, em 1977 Arquivo Florestan Fernandes