a propedêutica do bem e do mal e as orientações modernas ... · a propedÊutica do bem e do mal...

21
A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS NA GÉNESE DA MODERNIDADE Manuel AFONSO COSTA University Of Macau, Faculty of Law [email protected] RESUMEN: El texto tendrá que ser desarrollado a expensas de una idea nuclear y es que la cuestión del bien y del mal, habitualmente disfrazada bajo la cuestión del placer y del dolor, es determinante en cuanto fundación estructural de la propedéutica moral para la orientación ideológica de lo que yo describiría como los cimientos arqueológicos modernos de la modernidad, que son sin duda las diversas tenden- cias de la moderna ley natural. La mayor o menor incidencia de una tutela religiosa moral e incluso de una soteriología escatológica están intrínsecamente ligadas a la forma en que se plantea el problema del bien y del mal. De ambas surge la posi- bilidad de una radical, profunda y amplia secularización a través de la cual se proyecta una modernidad de la autonomía y de la emancipación intelectualmente revolucionaria o, por el contrario, una modernidad vacilante, como tendencia a la heteronomia y que sigue siendo rehén de los antiguos dispositivos de la pre- modernidad, o que los supera de manera incompleta y perversa. Tarde o temprano esta incompletud se convierte en el lugar de la crítica de la modernidad, o incluso de la nostalgia por viejas estructuras incompletamente superadas. PALABRAS CLAVE: Bien. Mal. Placer. Dolor. Modernidad. Iusnaturalismo. Teología. ABSTRACT The text will have to be developed at the expense of a nuclear idea and that is that the question of good and evil, however disguised in the question of pleasure and pain is determinant while structural framework of the propaedeutic moral to the ideological guidance of what I would describe as the modern archaeological foundations of modernity that are the various trends of the proto modern natural law. The higher or lower incidence of a moral religious custody and even of an 65 Ivs Fvgit, 19, 2016, pp. 65-86 ISSN: 1132-8975

Upload: lamtruc

Post on 05-Dec-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕESMODERNAS NA GÉNESE DA MODERNIDADE

Manuel AFONSO COSTA

University Of Macau, Faculty of [email protected]

RESUMEN:El texto tendrá que ser desarrollado a expensas de una idea nuclear y es que

la cuestión del bien y del mal, habitualmente disfrazada bajo la cuestión del placery del dolor, es determinante en cuanto fundación estructural de la propedéuticamoral para la orientación ideológica de lo que yo describiría como los cimientosarqueológicos modernos de la modernidad, que son sin duda las diversas tenden-cias de la moderna ley natural. La mayor o menor incidencia de una tutela religiosamoral e incluso de una soteriología escatológica están intrínsecamente ligadas ala forma en que se plantea el problema del bien y del mal. De ambas surge la posi-bilidad de una radical, profunda y amplia secularización a través de la cual seproyecta una modernidad de la autonomía y de la emancipación intelectualmenterevolucionaria o, por el contrario, una modernidad vacilante, como tendencia a laheteronomia y que sigue siendo rehén de los antiguos dispositivos de la pre-modernidad, o que los supera de manera incompleta y perversa. Tarde o tempranoesta incompletud se convierte en el lugar de la crítica de la modernidad, o inclusode la nostalgia por viejas estructuras incompletamente superadas.

PALABRAS CLAVE:Bien. Mal. Placer. Dolor. Modernidad. Iusnaturalismo. Teología.

ABSTRACTThe text will have to be developed at the expense of a nuclear idea and that

is that the question of good and evil, however disguised in the question of pleasureand pain is determinant while structural framework of the propaedeutic moral tothe ideological guidance of what I would describe as the modern archaeologicalfoundations of modernity that are the various trends of the proto modern naturallaw. The higher or lower incidence of a moral religious custody and even of an

65

Ivs Fvgit, 19, 2016, pp. 65-86ISSN: 1132-8975

eschatological soteriology appears to me intrinsically linked to how raises theproblem of good and evil. From both stems the possibility of a radical secularism,broad and deep through which is possible foresee a modernity of emancipatoryautonomy and intellectually revolutionary, or on the contrary a modernity falteringand kneed, tendentiously heteronomous, and that remains hostage to old devicesor that surpasses them in an incomplete and perverse manner. Sooner or later thisincompleteness became the place of criticism of modernity or even of nostalgiafor the old structures incompletely overcome.

KEYWORDS:Good. Evil. Pleasure. Pain. Modernity. Iusnaturalism. Theology.

1. AS DICOTOMIAS ESTRUTURAIS PRÉ-MODERNAS

Para que esta digressão por alguns textos fundadores da Modernidade, atravésde uma propedêutica do problema do Bem e do Mal possa tornar-se eficaz interessadesde já determinar os pontos através dos quais se pode constituir a bifurcaçãoideológica das duas grandes famílias da tradição filosófica ocidental: A TradiçãoIntelectualista e a Tradição Voluntarista. Há pelo menos um autor contemporâneoque compreendeu bem que as grandes clivagens da cultura moderna passavam poraí: Michel Villey, em La Formation de la Pensée Juridique Moderne.

A obra de Hannah Arendt (Hannah Arendt, La vie de l’esprit - The Life ofthe Mind) também me interessa particularmente sobretudo porque o segundo volu-me da sua obra é todo dedicado ao problema da Vontade centrado, em particular,na figura de Santo Agostinho, que é de facto o filósofo fundador da posição volun-tarista na filosofia ocidental, depois dos balbucios, de São Paulo, ainda quegeniais, na Epístola aos Romanos.

Mas a obra de Michel Villey interessa-me mais ainda uma vez que se desen-volve no âmbito da tradição jurídica europeia e eu tenho para mim que é no domí-nio do pensamento jusnaturalista moderno, e nos seus precursores, que osprimeiros alicerces da Modernidade foram lançados. Quando acabamos de lerVilley fica para nós muito claro a evolução paralela ao longo de toda a históriada filosofia de duas grandes genealogias intelectuais, a família intelectualista e afamília voluntarista e o modo como essas posições contaminaram decisivamentea reflexão jurídica, desde a antiguidade, mas sobretudo a partir da querela entrerealistas e nominalistas, ou seja entre a escolástica aristotélico-tomista e a esco-lástica franciscana, que é onde arqueologicamente começa a urdir-se o adventodo Jusnaturalismo Moderno. E se não em todos os casos pelo menos na maior

66

MANUEL AFONSO COSTA

parte é possível estabelecer uma relação muito clara, e sempre coerente, entre aposição filosófica de fundo e a perspectiva sectorial relacionada com a questãodo prazer e da dor, ou seja com a questão substantiva do Bem e do Mal. E namaior parte dos casos esta questão aparece como propedêutica, condicionandodesde a raiz todas as posições subsequentes, como espero provar.

Em Villey é muito clara a oposição estrutural entre a tradição filosófica inte-lectualista sobre o problema do Bem e do Mal e concomitantemente sobre o pro-blema da justiça que é indissociável da figura de S. Tomás de Aquino e que retomaa orientação do direito que vem de Aristóteles, de Cícero e do direito romano eque se subsume na dupla asserção de que o justo em geral é indissociável do uni-verso das virtudes (das aretai) e de que o justo em particular consiste em atribuira cada um a sua parte: ius suum cuique tribuendi que está conforme ao que deforma lapidar aparece no Digesto: iustitia est constans et perpetua voluntas iussuum cuique tribuendi [a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cadaum o que é seu], (D., I,1,1,10,1).

A concepção tradicional intelectualista cuja matriz se encontra no dispositivoontognoseológico socrático-platónico de que o ser só é ser na condição estruturale constitutiva de ser para o bem e que se desenvolve num sentido mais prático eético através de Aristóteles, em particular na Ética a Nicómaco, e em Cícero quefoi superiormente acolhido no plano da jurisprudência pelo Direito Romano;sofrerá o seu primeiro golpe, rude e incisivo, com Santo Agostinho.

As malhas voluntaristas do pensamento do Bispo de Hipona, visam aprisionara questão da justiça no seio da teologia. É esse o maior subsídio de Villey, ao per-ceber que a teologia cristã procurou absorver o direito na versão totalitária da leique o voluntarismo teológico agostiniano promoveu e desenvolveu. O positivismojurídico encontra aqui, depois das geniais intuições paulinas, o seu momento teóricopor excelência. A ambiguidade estrutural da Lei que tanto pode explicitar a suadimensão mundana, como a sua dimensão de torah bíblica ou mandamento, autorizaeste movimento de reabsorção do direito na Lei e através desta a sua reabsorção naMoral e finalmente por essa via na Teologia e na Religião.

Em minha opinião este processo só não foi possível porque não era possível,tendo em conta que o processo de secularização global estava em marcha, nãosucumbiu e ganhou fôlego desde logo com as Causas Segundas de S. Tomás deAquino e depois, mais tarde, com a Escolástica Peninsular, sobretudo com Vitoria,Bañez, Vasquez e De Soto, e mesmo com Suarez, pois apesar de voluntarista na suagénese, combinou elementos intelectualistas e manteve explicitamente alguma fide-lidade relativamente ao pensamento de S. Tomás. Porque a verdade é que a maiorparte dos autores ibéricos do século XVI acolheram preferencialmente S. Tomás edesenvolveram o direito na direcção de uma logicização que diminuía a dimensãolegalista estrita. Sabe-se hoje, que através da Escolástica Peninsular se abriu caminhopara Grócio e para o jusracionalismo moderno. Há que reconhecer que a par dainfluência aristotélica e tomista se tornou incontornável também a influência deci-

67

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

siva da perspectiva estóica que propendia para um individualismo axiológico comvocação cientifizante. E não deixa de ser curioso que no horizonte da Modernidadetenham acabado por se fundir orientações adversas, embora nas suas versões menosradicais. Estou a pensar sobretudo no voluntarista Duns Scoto que situando-se maispróximo de Santo Anselmo que de Santo Agostinho, acabou por viabilizar o papeldo livre arbítrio distante do Servo arbítrio radical que viria a culminar mais tardena o1bra de Lutero e Calvino. Ambas as orientações, a intelectualista e a voluntaristacontinham elementos e possibilidades hostis ao espírito da Modernidade o que sig-nifica que a Modernidade não podia ser o fruto de nenhuma delas considerada sepa-radamente. É um erro grosseiro imaginar a Modernidade como mera linha deevolução de uma das tradições em consideração. E o que será desafiante é tentardescobrir o fio de Ariadne que liga a Modernidade às posições intelectuais anterio-res, sem excepção e sem preconceito e não cair na tentação de ver apenas a influên-cia de uma das genealogias em causa. Sabe-se como Focault, por exemplo quaseanulou a importância da tradição intelectualista e humanista do Renascimento noadvento da Filosofia das Luzes e como a posição kantiana ia em sentido contrário.Em contrapartida Ernst Cassirer antes de François Châtelet tentou vislumbrar naconvergência entre o empirismo e a razão, a natureza própria de uma cultura queromperia decisivamente com a cultura de Antigo Regime. Na minha modéstia opi-nião o problema das Luzes e correlativamente da Modernidade não será esclarecidoà luz das oposições tradicionais, triunfantes na História da Filosofia, quer dizerRacionalismo versus Empirismo ou empiro-sensismo, ou ainda Razão versus Sen-timento mas antes a partir da dicotomia, intelectualismo versus voluntarismo atravésde uma oposição estrutural de outra ordem: Autonomia versus Heteronomia, sendoque esta em profundidade encontra a sua fundamentação mais sólida e mais legítimana questão moral propedêutica do Bem e do Mal.

Voltando momentaneamente ao tema do intelectualismo versus voluntarismo,ainda sem o recursos às suas propedêuticas, recordem-se as limitações estruturaisde ambas relativamente à revolução que os séculos XVII e XVIII empreenderam.A posição intelectualista de Aristóteles e de São Tomás radicada na ideia da inter-covertibilidade do bem com o ser (ens bonum convertuntur), por um lado e na ideiado aristotélico zoon politikon com os seus affectus societatis; implementava doisvícios insustentáveis e duas antinomias relativamente às Luzes e à Modernidade:

— Por um lado uma desvalorização da liberdade fruto do triunfo de uma formade determinismo metafísico, conforme acentua e bem Jean Rohmer, na sua obra de1939, La finalité morale chez les théologiens. De Saint Augustin à Duns Scot.

— Por outro lado a desvalorização do indivíduo, fruto de uma concepção orgâ-nica ou holista da sociabilidade e da justiça1. O voluntarismo, por outro lado, percebe

68

MANUEL AFONSO COSTA

1 A posição realista relativamente à questão dos universais que constitui a base teórica daMetáfora do Corpo articula bem a ideia de ordem cósmica socrático-platónica, com a ideia

o logro desta posição e inverte a lógica da proeminência, centrando-a no primado doindivíduo, isto é da essência individual, e da possibilidade do livre arbítrio, mas emcontrapartida anula esta possibilidade revolucionária uma vez que a arbitrariedadeomnipotente do voluntarismo teológico com o artifício arbitrário do legislador supre-mo, que é o legislador por antonomásia, coloca o primado da ‘Lei’ que tem de estarprimeiro que tudo o resto. Onde antes aparecia o instinto, o apetite social, apareceagora a vontade do legislador. Em boa verdade os próprio deveres, direitos e escolhasetc. vêm depois. É a lei que delimita positivamente os universos do Bem e do Mal,como se há-de ver. Mas para que a Lei venha primeiro é necessário que ela possaneutralizar as duas bases estruturais do essencialismo intelectualista a saber: a inter-covertibilidade do bem com o ser, o ens bonum convertuntur, a que me referi e quedesde a ontologia socrático-platónica fez caminho até ao século XVIII através dapatrística e da escolástica e claro a concepção que promovia a existência de essênciasreais e eternas, pelo que se negam os universais na perspectiva realista, uma vez quetodas as coisas dependem para a sua existência e para se valorizar da vontade con-tingente de Deus. Ora, o grande problema é que por essa via o voluntarismo é pro-fundamente hostil ao intuicionismo moral e a qualquer possibilidade gnoseológicade acesso ao domínio ético, moral ou dos valores. Sem essa possibilidade o espíritode autonomia e de livre e soberana autodeterminação axiológica sucumbe; e comele o sentido de liberdade e coragem do Sapere Aude fica letra morta.

Em resumo o intelectualismo fere o individualismo moderno e o voluntaris-mo legal fere a autonomia desse mesmo indivíduo moderno. O individualismomoderno precisa da liberdade mas também da autonomia. O conceito de Sujeitoencontra-se neste cruzamento da liberdade com o indivíduo e com a autonomia.O Sujeito difere do indivíduo tout court porque oblitera nele o conceito de inde-pendência consagrando no seu lugar a autonomia2. E se é verdade que o determi-nismo metafísico da tradição intelectualista não serve ao projecto da liberdade (aescolástica franciscana faz mais pela liberdade que a escolástica tomista); não émenos verdade que o voluntarismo positivista do primado da Lei não serve aoprojecto autonomista que se é verdade que culmina em Kant, está já amplamentedesenhado em S. Tomás, na Escolástica Peninsular, e sobretudo no Neoplatonismode Cambridge, em particular, na obra de Ralph Cudworth.

69

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

de finalidade aristotélica e ambas com a ideia da sociabilidade ingénita das criaturas. Nafamosa polémica entre realistas e nominalistas, que domina o pensamento escolástico, o queos realistas querem sublinhar é que da essência das coisas faz parte a sua natureza dialógicae gregária. O que significa que não há indivíduos isolados e socialmente abstractos masantes, pais, filhos, professores, alunos, intelectuais, assalariados, comerciantes, proprietários,mulheres, marginais, mendigos etc. Todos, através das suas atribuições, se articulam comtodos consagrando a totalidade do Corpo como unidade substancial, da qual os indivíduossão apenas parte. (Segui de perto Villey, 1975 e Hespanha, 1997)

2 Cf. Alain Renaut e Luc Ferry.

Todos, com excepção de Cudworth confluíram para a segunda fase da obrade Grócio, no De jure belli ac pacis e ajudaram a consagrar o célebre aforismoda autonomia e da secularização moderna, o Prolegomena 11: «Et haec quidemquae iam diximus, locum aliquem haberent etiamsi daremus, quod sine summoscelere dari nequit, non esse Deum, aut non curari ab eo negotia humana»3 (Oque temos vindo a dizer que tem um grau de validade, mesmo se devemos admitirque; o que não pode ser concedido sem extrema maldade; a de que não há Deus,ou que os assuntos dos homens já não lhe interessam)4.

Enfim, é uma forma possível, entre outras, de traduzir este prolegómenocélebre, que possui antecedentes formalizados de forma muito próxima e que noessencial constitui uma acerba apostrofe contra o voluntarismo e a favor da auto-nomia intelectual e volitiva do agente ao mesmo tempo que vai no sentido de umainequívoca tendência secularizante; bastante radical, para a época, diga-se emabono da verdade.

2. A REFLEXÃO SOBRE O BEM E O MAL E A MODERNIDADE

Haverá uma relação de causa e efeito entre a propedêutica moral subordinadaao tema do Bem e do Mal e por inerência ao problema do prazer e da dor, e assubstanciais posições éticas, jurídicas e de filosofia social e política nos pensa-dores que designarei por protomodernos? Penso inequivocamente que sim.

É isso que passo a expor. É bom e adequado começar por Grócio, por várias ordens de factores, antes

do mais porque ele é cronologicamente o primeiro jusnaturalista moderno, segun-do porque no seio da sua obra nós entrevemos as duas tendências do jusnaturalis-mo moderno, a voluntarista e a intelectualista ou racional, terceiro porque ambasse oferecem num estado exemplar. Enquanto no De Jure Praedae produzido entre1604 e1605, quando Hugo Grócio tinha apenas vinte e um anos, o autor desen-

70

MANUEL AFONSO COSTA

3 O «etiamsi daremus» tudo leva a crer reproduz o mesmo princípio que já se encontrava naEscolástica Peninsular. Em Suarez, De legibus, II, 6; também e Gregório de Rimini. Ou seja,em toda uma longa genealogia intelectualista e realista.

4 Alguns autores, e justamente em particular Michel Villey, exploram esta célebre elocução,o etiamsi daremus, na perspectiva de um reforço dos fundamentos que aproximam Gróciode uma vincada influência estóica. É verdade que Marco Aurélio na Meditação VI. 44afirma : «Si les Dieux ne s’occupaient pas de nous, ce qu’on ne peut croire sans impiété…pourquoi ne délibérerais-je pas en moi-même? Car c’est à moi de délibérer sur ce qui meconvient. Et ce qui convient à chacun est ce qui correspond à sa constitution naturelle… Orma nature est d’être raisonnable et sociable», cf. P. Dognin [La justice de Dieu et le droitnaturel], in Revue des sciences philosophiques et théologiques 1965: 73. A semelhança entreas duas fórmulas é espantosa. É claro que esta aproximação é possível e lógica pelos motivosque eu próprio refiro acima.

volve uma posição acentuadamente voluntarista, mais tarde no De Jure Belli acPaci escrito ao que parece em 1625, mas apenas publicado em 1668, segundoalguns autores5, Hugo Grócio inflecte estranhamente para uma posição intelec-tualista estrita. Tudo leva a crer que terá sido particularmente sensível ao ambienteintelectual da chamada Segunda Escolástica, ou Escolástica Peninsular em parti-cular ao De Legibus (Coimbra, 1612) de Francisco Suarez.

No De Jure Belli ac Paci torna-se muito evidente que «o que é justo ou erradodepende da natureza das coisas (e o que é conveniente em si) e não por força deum decreto de Deus»6. Toda a concepção de Grotius a partir desta obra, rompecom o De Jure Pradae7 e sobre o problema do Bem e do Mal mergulha no maistransparente internalismo imanentista: o sentido normativo ou explicativo da rec-tidão moral (e o seu oposto), em particular no que concerne à obrigatoriedade danorma do justo ou errado depende, fundamentalmente, de ser uma injunção mani-festando a vontade de Deus que o justo seja feito (como obrigação) e o mal evitado(como obrigação) ainda que eles sejam, respectivamente, devidos e proibidos mes-mo que (etiamsi daremus) não existam tais directrizes de Deus. Ou seja, naspalavras de Grócio, as noções de Bem e de Mal, de Justo e Injusto possuem umaracionalidade intrínseca que as subtrai ao arbítrio de Deus. Deus deve acreditarno homem com a constituição que lhe quis dar. O Bem e o Mal possuem umasubstância e essa é a de ser racional e cognoscível. Estamos muito longe doapotegma de Guilherme de Occam quando afirma: «Mallum actum malum essenisi quatenus a Deo prohibitum, et qui non possit fieri bonus, si a Deo praecipia-tur; et e converso»8.

O que eu pretendo que fique muito claro é que o humanismo racionalistainaugurado na protomodernidade por Grócio, conquanto que já esteja anunciadona Escolástica Peninsular, na sua subtileza, significa que a normatividade ético-jurídica é uma verdade eterna e necessária que não tem necessidade de encontrara sua justificação na experiência mas no Homem que sendo aquilo que Deus quisque ele fosse poderá caminhar além das suas próprias limitações sem afrontar

71

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

5 Eu tenho para mim que o texto foi publicado em Paris em 1625 e desde essa época bemconhecido.

6 E. B. F. Midgley, «Grotius doctrine of secularized and minimized natural law» in Paul Elek,The Natural LawTradition, London, 1975, pp. 137-146.

7 No De Jure Praedae, ainda Grócio dizia: «Quod Deus se velle significavit, id jus est»,(«What God has shown to be his will, that is the law», ou seja, O que Deus revela de si é queé a justiça).

8 Retirado de Ralph Cudworth: A Treatise Concerning Eternal and Immutable Morality, editedby Sarah Hutton. Cambridge: CUP, 1996. Esta obra contém A Treatise on Freewill, mas acitação foi retirada do Treatise Concerning…: «that there is no act evil but as it is prohibitedby God, and which cannot be made good if it be commanded by God. And so on the other handas to good», Nenhum acto é da ordem do Mal se não for proibido por Deus, e só é bom na con-dição de ser por Deus ordenado, e portanto o mesmo se passa com o Bem, inversamente.

Deus. Isso radica por outro lado na ideia nuclear de que o Bem e o Mal existemimanentes à natureza humana, possuem uma essência racional e são acessíveis aoLogos. E portanto não são um capricho arbitrário e quiçá irracional da divindade.Antes de se tornarem leis, as leis (normas) começam por ser uma produção inte-lectual conforme contudo ao direito natural, daí que a ordem do conhecimentoseja da ordem do ser, pelo que a percepção do direito natural se torna uma verda-deira celebração do logos. Nesta medida, o direito natural é a ordo ordinans (arazão ordenadora).

Convenhamos que está aberto um caminho e que este caminho irá ter inú-meros seguidores.

Mas vamos agora dar um salto na direcção oposta e mostrar a lógica daposição voluntarista num autor tão emblemático quanto Grócio. Grócio está parao humanismo intelectualista acentuadamente optimista ontologicamente falandocomo Hobbes está para o pessimismo voluntarista. O mais interessante é que ainversão ontológica acontece como consequência de uma verdadeira revoluçãocoperniciana ao nível da questão nuclear do Bem e do Mal. Mas o mais interes-sante ainda, e só se chega aí percorrendo a obra de Hobbes com os critérios deuma hermenêutica da suspeita, é que Hobbes apesar do seu voluntarismo pes-simista de base coloca a sua propedêutica ao serviço de uma posição epistémicainiludivelmente racionalista, ainda que de uma razão prática e instrumental.

3. VOLUNTARISMO E RAZÃO PRÁTICA

Como vamos ver, em todo o positivismo voluntarista e particularmente emHobbes, onde a revolução coperniciana ao nível da moral moderna se inaugura,o Bem e o Mal dependem originalmente das leis positivas, e apenas, sejam elasdivinas ou humanas. Antes disso não faz sentido falar do Bem ou do Mal. ParaHobbes não há fundamento para a moralidade. O homem não é um ser moral,nem pelo sentimento nem pela razão. O suporte, ou seja a ideia estrutural portantoda posição de Hobbes é de que não existe nada de substancial nas ideias de Beme de Mal, ou seja, como viu muito bem Shaftesbury, de que «all actions are natu-rally indifferent; that they have no note or character of good or ill in themselves;but are distinguished by mere fashion, law, or arbitrary decree»9. Charles Taylorprefere chamar-lhe externalismo ou «extrinsic theory», geradora de indiferentismomoral, de um positivismo descarnado da lei moral, que ofendia todos os que acre-ditavam numa natureza moral do homem, que tinha as suas raízes longínquas,tanto em Platão, quanto em Aristóteles como ainda na tradição estóica, que tantaimportância teve no direito através do direito romano.

72

MANUEL AFONSO COSTA

9 Shaftesbury [Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times], in 1989: 253.

Antes de tudo importa saber que Hobbes considera que primeiro há aquiloque se deseja e aquilo de que se sente aversão. E a definição do Bem e do Malvem em função deste tipo de comportamento volitivo. É bom aquilo que se dese-ja e é mau aquilo que se evita10. E para que não haja dúvidas, interessa acentuarque as noções são ainda relativas no que diz respeito aos próprios agentes, istoapesar de que o quadro traçado relativamente à problemática do Bem e do Maljá era de per si absolutamente relativista. Mas ao mudarem os agentes mudaaquilo que se pode considerar bom ou mau, uma vez que mudam os desejos. Aacentuação desta orientação idiossincrática visa ao mesmo tempo enfatizar ocarácter único do indivíduo, esvaziando assim, acintosamente, a possibilidadede uma natureza humana comum o que remeteria para a velha metafísica dasessências estáveis, eternas e imutáveis11.

Em resumo os homens procuram o que os remunera e evitam aquilo que lhesé desagradável, porque aquilo de que sentem desejo é o que lhes agrada e aquilode que sentem aversão é o que lhes provoca desagrado ou mesmo medo. Em sumaHobbes é um neo-epicurista consequente e sério. Apesar de colocar Hobbes comoalternativa a Grócio, a verdade é que ele não serve os meus desígnios. De facto asua propedêutica é puramente instrumental, mas não está ao serviço da promoçãoda heteronomia, bem pelo contrário, ela está, mas não cabe aqui demonstrá-lo,ao serviço da opção racional e utilitária pelo pacto social. O Externalismo volun-tarista de Hobbes assenta num laicismo humanista e racional e em larga medidapromove o sentido da autonomia, mas enquanto que a autonomia em Grócio con-verge com a natureza social do homem, em Hobbes, essa autonomia, sendo diver-gente da sociabilidade imanente, é ainda mais autónoma pois leva racionalmenteo agente contra todas as aparências, no termo de um practical reasoning, a umadecisão contranatura mas socialmente conveniente e adequada.

4. O TRIUNFO DA HETERONOMIA EM LOCKE

É, curiosamente em Locke que vamos encontrar o que nos interessa pois ape-sar da importância liberal que se lhe reconhece tenho para mim que a sua obraguarda residualmente os elementos de heteronomia e conservadorismo que seopõem ao sentido da modernidade plenamente emancipadora e secularizada que

73

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

10 «But whatsoever is the object of any mans Appetite or Desire; that is it, which he for his partcalleth Good: And the object of his Hate, and Aversion, Evil; And of his Contempt, Vile andInconsiderable», cf. Thomas Hobbes [Leviathan, VI, §7], in Flathman 1997: 32.

11 «For these words of Good, Evill, and Contemptible, are ever used with relation to the personthat useth them: There being nothing simply and absolutely so; nor any common Rule ofGood and Evil, to be taken from the nature of the objects themselves», cf. Thomas Hobbes[Leviathan, VI, §7], in Flathman 1997: 32.

aqui proponho. Se me atrevi a considerar Hobbes apesar da sua concepção extrín-seca do Bem e do Mal um humanista radical não seria capaz de o propor relati-vamente a Locke. Apesar da dívida de Locke relativamente a Hobbes, serexplícita, tal como viu Leo Strauss12. De facto o empiro-naturalismo de Locke éda mesma família epistémica que o empiro-naturalismo hobbesiano, sendo que aposição de Hobbes é sempre menos ambígua e a separação entre o seu volunta-rismo meramente teológico e a racionalidade da sua construção política ser abso-lutamente nítida e evidente. Em Hobbes sente-se sempre que o voluntarismoteológico é coisa para a Igreja ver e em boa verdade não tem relação com o seusistema de pensamento, racional, empírico e claramente laico e secularizado. Sãoduas instâncias que quase não se tocam. Em Locke não é bem assim e o seu hipe-raugustianismo, denunciado por Taylor, por Schneewind, por Haakonssen e pormuitos outros, não deixa margem para dúvidas e eu penso que terá contaminadoexplicitamente o seu pensamento ético-jurídico13.

Ora, é na propedêutica moral sobre a questão do Bem e do Mal que reside oproblema e em particular no papel pragmático que essa propedêutica desempenhana economia global soteriológica lockeana.

Eu, por mim, considero Locke um voluntarista e por via disso, quer dizer daposição extrínseca que toma relativamente ao fundamento da obrigação, um exter-nalista. Desde o fundamento moral relativamente ao Bem e ao Mal que é definidoa partir da questão do prazer e da dor até à ameaça consequente de rewards andpunishments que se percebe que se realiza em Locke o clássico enlace entre oempirismo (sensista), o puritanismo (agostiniano) e o voluntarismo (positivista)e é claro que este dispositivo não contempla a autonomia humanista como objec-tivo central, nem podia contemplar, seja feita justiça14.

Mas o que perturba a tranquilidade do paradigma é que Locke, à semelhançade Hobbes, logra uma inesperada margem de manobra para a intervenção autó-noma dos homens. E consegue mesmo numa área tão sensível quanto a área éti-co-moral e ético-jurídica a assunção de uma posição internalista e autónoma. É

74

MANUEL AFONSO COSTA

12 «The period between Hooker and Locke had witnessed the emergence of modern naturalscience, of nonteleological natural science, and therewith the destruction of the basis of tra-ditional natural right. The man who was the first to draw the consequences for natural rightfrom this momentous change was Thomas Hobbes», in Strauss 1965: 165. E que influenciou,muito em particular, Locke, acrescentou Strauss.

13 «The Lockean (orthodox christianity) has Puritan roots, which means its background is in ahyper-Augustinian theology». Exprime-se no homem uma espécie de «naturalistic transpo-sition of the doctrine of original sin». Mas muito mais importante é o facto de que «he shareswith the Puritans theological voluntarism. God’s law is what he decides it is, and God’s lawdetermines the good», in 1989: 248.

14 Só em pensamentos menores, como é o caso do pensamento da maior parte dos autores por-tugueses do século XVIII, é que é possível encontrar combinados elementos ideológicos quesão completamente contraditórios entre si e portanto incompatíveis.

como se o autor separasse radicalmente as duas esferas: a da fundamentação, queé externalista e mesmo transcendente e a da gestão dos recursos a partir de umabase pré-estabelecida. E essa é orientada pela razão, pelo poder da suspensão dojuízo e da accção e pressupõe uma practical reasoning agency, no interior da qualtodas as motivações, todos os cálculos e todos os processos são de natureza racio-nal, prática e prudencial e em momento nenhum têm em conta senão aquilo queé o melhor para o agente na urdidura do seu bem e da sua felicidade. É como seo agente tomasse o freio nos dentes e a partir de um determinado momento nãotivesse contas a dar a não ser a si mesmo. Então estaríamos na presença de umprocesso puramente secular e autónomo15. Darwall considera justamente por causadisso Locke um autonomista internalista de autodeterminação na linha de um neo-platónico como Cudworth16. Darwall abstrai-se do externalismo de fundo e do

75

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

15 Como se irá ver esta autonomia é mais aparente do que real. Pode quando muito falar-se deuma semi-autonomia e mesmo essa na perspectiva de que ocorre homologicamente, querdizer num mundo duplicado. Por um lado os homens exercem autonomamente a capacidadede reflectir sobre aquilo que lhes interessa, mas isso ocorre no seio de uma crença maisabrangente, de que estamos sob as leis de Deus e de que lhes devemos obediência. Porqueem última análise a lei de Deus é «the only touchstone of moral rectitude», in Locke 1995:280 [1690]. Ou como Locke disse logo na introdução: «Hence naturally flows the great vari-ety of opinions concerning moral rules which are to be found amongst men, according tothe different sorts of happiness they have a prospect of, or propose to themselves; whichcould not be if practical principles were innate, and imprinted in our minds immediately bythe hand of God. I grant the existence of God is so many ways manifest, and the obediencewe owe him so congruous to the light of reason, that a great part of mankind give testimonyto the law of nature; but yet I think it must be allowed that several moral rules may receivefrom mankind a very general approbation, without either knowing or admitting the trueground of morality; which can only be the will and law of a God, who sees men in the dark,has in his hand rewards and punishments, and power enough to call to account the proudestoffender», in Locke 1995: 29 [1690].

16 Mesmo assim Darwall cuida-se de não exorbitar na terminologia, uma vez que guarda paraautores como Shaftesbury, por exemplo, a dimensão da auto-regulação e do autogoverno.Ora só há autonomia completa se o agente tiver dentro de si não apenas os instrumentos parase autodeterminar em função de premissas e pressupostos que já o enformam, mas se, muitomais radicalmente, for ele o depositário de todos os intrumentos de ponderação e decisão.Para Locke a moralidade obriga-nos porque é prescrita com autoridade, a partir de um sersuperior, exterior ao eu. (…) Mas muito mais claramente que em Locke ou Cudworth, autorescomo, Shaftesbury conceberam a autodeterminação como auto-regulação e autogoverno. EShaftesbury limita-se a inaugurar uma tradição que culminará no intuicionismo moral darazão ou do senso que já analisámos detalhadamente noutro lugar. (…) Em Shaftesbury ogoverno moral é autogoverno. A autoridade existe mas permanece no interior do agente.Assim ele interioriza a normatividade ao interiorizar a autoridade. Fundamental: Só se oagente observa as suas melhores autoprescrições como sendo autoritárias e obrigatórias, eactua de acordo com elas, a actividade autodeterminada é possível. Autodeterminação, parase conformar com as exigências da autonomia, requer autogoverno. E este requer que o agen-te seja predominantemente movido, e a sua conduta determinada, por uma concepção nor-mativa que ele aceita. Pode-se chamar a isto uma normativa teoria da vontade, cf. Darwall1995: 205, 206.

externalismo ao nível da obrigação para valorizar essencialmente o plano da moti-vação e ainda mais o plano da decisão racional prática.

O ponto de partida no pensamento de Locke é tal como em Hobbes a pro-blemática do Bem e do Mal por um lado, do prazer e da dor por outro lado. Maso que estabelece o nexo entre as duas instâncias são dois conceitos absolutamentenucleares: happiness e uneasiness. (felicidade e desconforto ou insatisfação).

Antes de passar para o ponto que articula os vários planos do problema inte-ressa deixar já bem claro que a posição de Locke é epicurista no plano da funda-mentação do problema do Bem e do Mal e sensista no plano gnoseológico emconvergência, de resto, com o seu epicurismo de base. Quer isto dizer que oshomens recebem através da sensação, e só da reflexão depois, as ideias de prazere de dor, e que são estas ideias que determinam as ideias de Bem e de Mal, o quesignifica, desde logo que o homem não as possui nem possui nenhum órgão inte-lectual ou sensível capaz de as criar ou produzir ou captar directamente a partirde essências à margem da experiência sensitiva em contacto com o mundo:

«Things then are good or evil only in reference to pleasure and pain. That wecall “good”, which is apt to cause or increase pleasure, or diminish pain, in us;or else to procure or preserve us the possession of any other good, or absenceof any evil. And, on the contrary, we name that “evil”, which is apt to produceor increase any pain, or diminish any pleasure, in us; or else to procure us anyevil, or deprive us of any good»17.

Neste ponto, A posição não difere muito da posição de Hobbes. Em boa ver-dade não difere nada se se tiver em conta que imediatamente a seguir Locke trataráde dizer que as paixões que são movidas pelo Bem e pelo Mal, são de facto movi-das pelo prazer e pela dor. Se se identificarem as paixões em Locke com o desejoem Hobbes, chega-se à conclusão que a fórmula é a mesma, isto é o homem cha-ma bem àquilo que deseja e chama mal àquilo de que sente aversão, porque éóbvio que deseja o Bem e sente aversão pelo Mal, mas sempre em última instânciaporque identifica o Bem com o prazer e o Mal com a dor. E de resto, no amplocampo das paixões inventariado por Locke, logo se percebe que é o desejo que éresponsável pela uneasiness, quer dizer pelo sentimento de insatisfação e descon-

76

MANUEL AFONSO COSTA

É neste ponto que Shaftesbury mais se aproxima de Kant uma vez que esta vontade racionalde Shaftesbury permite defender a ideia já kantiana de que a moralidade obriga porque umavontade racional livre age debaixo de uma ideia de lei que no entanto o agente ele próprioproduziu. Ele é lei para si mesmo. Tudo o que tenho tentado dizer no sentido de que se per-ceba a minha ideia de autonomia está muito bem resumida nesta última proposição: No qua-dro da autonomia o agente produz a lei e depois torna-se a lei para si mesmo, porque sesubmete à lei que ele próprio produziu. Por isso venho considerando o pacto como o instru-mento social que exprime na realidade a natureza teorética da autonomia.

17 Locke 1995: 160 [1690].

forto. Ora é a insatisfação do desejo que determina a vontade, sendo que é o Bem,o Maior Bem, que determina justamente essa insatisfação.

Já disse que intuo uma autonomia mais aparente do que real, embora even-tualmente possante no plano do practical reasonning, ou, se se preferir, no sentidode uma practical agency. Interessa percorrer os textos onde Locke mais evidenciao sentido da autonomia, nomeadamente o Livro I e o Livro IV do Ensaio sobre oentendimento humano e a Carta sobre a tolerância. O resultado é decepcionante.Locke explora sobretudo a autonomia relativamente aos outros, estimulando cadahomem a deixar-se guiar pelo seu próprio juízo, pondo obviamente termo aos ído-los, às ideias feitas, etc., e de resto tudo isso em articulação, mormente, com adimensão exclusivamente prática da acção, quer dizer no sentido do reforço dacapacidade raciocinante implícita na suspensão dos desejos, uma vez que essasuspensão é intencionalmente a abertura de um tempo de ponderação, de cálculo,de reasonning, enfim. E finalmente tudo isso ocorre no contexto de um reforçodo culto de uma racionalidade anti-inatista. E pouco mais do que isso.

Mantenho que no mesmo capítulo em que sobre o poder se explicitam e pro-movem os poderes próprios do homem, se faz também o diagnóstico das suaslimitações profundas e assim se lançam os caboucos de uma filosofia que lançaas bases da morte da autonomia. Uma morte anunciada. Anunciada porque emminha opnião ela estava já subentendida na definição do Bem e do Mal a partirdo prazer e da dor. É que enquanto em Hobbes essa articulação visava o conceitohumanista do medo e da rejeição da morte violenta, motor pragmático da ideiade Pacto Social como um mal menor, em Locke esta propedêutica visa uma ideiade submissão ontológica ao universo das remunerações e das penas (Rewards andPunishments). Esta aparente pequena nuance faz toda a diferença e a verdade éque amarra Locke às tenazes da heteronomia, anti-moderna, anti-humanista eanti-ilustrada.

E a verdade é que aí está agora finalmente a articulação completa assimcomo a enumeração de todas as partes do sistema:

«Good and evil, as hath been shown (book ii, cha. xx, sect. 2, and chap. XXI,sect. 42), are nothing but pleasure or pain, or that which occasions or procurespleasure or pain to us. Moral good and evil, then, is only the conformity or dis-agreement of our volontary actions to some law, whereby good and evil isdrawn on us from the will and power of the lawmaker; which good and evil,pleasure or pain, attending our observance or breach of the law, by the decreeof the law-maker, is that we call “reward” and “punishment”»18.

77

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

18 Locke 1995: 279 [1690].

E o sentido encontra-se no facto de que o que os rewards and punishmentsprometem é justamente prazer e dor. O enlace está assim feito entre a dimensãoimanente, terrena, da procura da felicidade e a lógica transcendente, uma vez queem última análise a lei é a lei de Deus19, e os castigos e remunerações são divinostambém. Tudo o resto é o resultado de uma homologia.

O parágrafo sessenta é o momento de viragem. E pela primeira vez nestecapítulo sobre o poder, coloca-se a possibilidade da necessidade de Deus. Repa-re-se que se está em sede não teológica. O cap. XXI tinha tudo para ser o lugardo triunfo do humanismo autonomista em Locke. As dificuldades apressaram ascoisas. Vale a pena sublinhar:

«Change but a man’s view of these things; let him see that virtue and religionare necessary to his happiness; let him look into the future state of bliss or mis-ery, and see their God the righteous Judge ready to «render to every manaccording to his deeds; to them who by patient continuance in well doing seekfor glory, and honour, and immortality, eternal life; but unto every soul thatdoth evil, indignation and wrath, tribulation and anguish»; to him, I say, whohath a prospect of the different state of perfect happiness or misery that attendsall men after this life, depending on their behaviour here, the measures of goodand evil that govern his choice are mightily changed. For, since nothing ofpleasure and pain in this life can bear any proportion to endless happiness orexquisite misery of an immortal soul hereafter, actions in his power will havetheir preference, not according to the transient pleasure or pain that accompa-nies or follows them here, but as they serve to secure that perfect durable hap-piness hereafter»20.

Não está longe o dispositivo das remunerações e das penas. No parágrafosetenta chama-se a atenção para isso tal como de resto no texto que citei, mas osargumentos são ténues e fazem ainda apelo da capacidade racional dos agentes.O dispositivo repressivo, a pastoral do medo associada ao voluntarismo teológicoe jurídico completo virá mais tarde.

78

MANUEL AFONSO COSTA

19 É o que diz por exemplo Stephen Darwall: «Locke makes clear in a variety of places that hetakes relation to God’s law, and hence to His superior authority, to be necessary not just formoral obligation, but for morality to exist in any fashion at all», in Darwall 1995: 35. E acres-centa que a racionalidade de que os homens são dotados tem um sabor pragmático no sentidopensa que a única forma pela qual Deus pode fazer as suas exigências é através do facto deproporcionar aos agentes motivos racionais para lhes obedecer. Os agentes obedecem assimsempre a Deus, quer quando obedecem às leis, quer quando seguem as etapas do seu practicalreasonimg.

20 Locke 1995: 192 [1690].

5. O MOMENTO ESPINOSISTA

Interessa-me trazer agora aqui a posição espinosista pois ela serve-me decaução à minha defesa de Hobbes. É que sendo Espinosa um autor puramenteintelectualista está em muitos pontos em estreita consonância com Hobbes, mascuriosamente jamais com Locke.

5.1. A problemática do Bem e do Mal

Apesar da confessada influência de Hobbes, Espinosa, inflectiu numa direc-ção diferente ao valorizar a capacidade humana para o auxílio mútuo, salientandoque os homens procuram melhor a felicidade e a utilidade social quando actuamcomo uma mente e um corpo comum, até porque para os homens nada é maisimportante que os outros homens (homini nihil homine utilius). Mas este corpo emente comuns não têm já nada de escolástico na medida em que isto é expressãode vontade deliberada pela perspectiva de que o homem pode ser um Deus parao homem (hominem homini Deum esse) quando opta pela vida social em comum.Por tudo isto a felicidade pública é um bem inestimável para Espinosa.

Mas, em contrapartida, segue Hobbes, tanto no que diz respeito à existênciade um estado de natureza anterior ao estado civil, como relativamente à formaçãodeste estado civil a partir da ideia de Pacto, Pacto este instituído pela razão. Etambém, tal como em Hobbes, concebe que o estado político, decretado pelo Pac-to, visa a segurança e a superação da miséria. Estamos portanto na presença deum Pacto ditado pelo sentido da utilidade que resulta do exercício da racionalida-de, própria da natureza humana. Enquanto para Hobbes a decisão, sendo racional,limita a natural apetência humana para a guerra de todos contra todos, em Espi-nosa a passagem ao estado de Contrato Social visa o aprofundamento da tendênciasocial e sobretudo o aprofundamento da racionalidade, que é sempre a melhorfaculdade humana. Convergente, porém, com Hobbes está a ênfase colocada noestado absolutista, para onde devem os cidadãos transferir o poder que lhes estavaatribuído. O estado deve ainda assim agir segundo os ditames da razão.

Também na questão do Bem e do Mal, Espinosa (e também aqui pela mesmabase epicurista) segue de perto Hobbes. Ele diz por exemplo que «Par bien, j’en-tends ici tout genre de joie, et (…) principalement ce qui satisfait un désir, quelqu’il soit ; par mal, d’autre part, tout genre de tristesse, et principalement ce quifruste un désir. (…) nous ne désirons nulle chose parce que nous jugeons qu’elleest bonne, mais au contraire, que nous appelons bon ce que nous désirons ; etconséquemment ce que nous avons en aversion, nous l’appelons mauvais»21. É

79

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

21 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 182. A revolução coperniciana é evidente.

claro que pelo facto de seguir a posição hobbesiana mesmo na sua versão maisradical –aquela que configura uma verdadeira inversão coperniciana relativamenteàs posições substancialistas acerca do Bem e do Mal– Espinosa vai ser conduzidoa um relativismo integral. E é o que o filósofo diz no Tratado sobre a reforma doentendimento:

«o bem e o mal só se dizem de maneira negativa, a tal ponto que uma e a mes-ma coisa se pode dizer boa e má, segundo os diferentes aspectos (por que éencarada); assim como perfeita e imperfeita. Com efeito, nenhuma coisa, con-siderada na sua natureza, se pode dizer perfeita ou imperfeita, principalmentequando soubermos que tudo o que se faz se faz segundo a ordem eterna e asleis certas da natureza»22.

Mais do que relativismo, o vitalismo larvar na obra de Espinosa correria orisco de se transformar em puro amoralismo. Uma vez que a natureza é tudo eque na natureza o Bem e o Mal não fazem sentido23, Espinosa desliza para umaposição moral proto-Nietzscheana do ser Para além do bem e do mal, que Deleuzeevidenciou24. Porque ao romper com a substancialidade do Mal, mesmo negativa,Espinosa rompe também, pelo menos no plano teórico, com a substancialidadedo Bem. O seu realismo naturalista impede teoricamente a possibilidade do Beme do Mal. Deus é toda a natureza, e não há outro Deus que não a Natureza, Deussive natura, e esta não contempla juízos de valor, a realidade não é axiológica.Onde não há contingência, não há livre-arbítrio da vontade e onde não há liber-dade de escolha não há propriamente responsabilidade25.

A super-evidência impositiva da natureza e da realidade impedem qualquerforma de moralidade. Moralizamos porque não conhecemos a verdade, perdidos,como estamos, na cadeia infinita das causas e das consequências. O nosso conhe-cimento é sempre mutilado, incompleto portanto, e dessa incompletude e insufi-ciência nascem a perturbação e a confusão judicativa. Moralizar é esbracejar numoceano de intempéries casuísticas26.

80

MANUEL AFONSO COSTA

22 Bento Espinosa [Tratado sobre a reforma do entendimento], in Koyré 1984 : 27 e 28 [1677].23 «Par réalité et perfection, j’entends la même chose», cf. Bento Espinosa [Ética], in Guérinot

1993: 68. 24 Deleuze 1967 :45.25 «Dans la Nature des choses, il n’est rien donné de contingent ; mais toutes choses sont déter-

minées par la nécessité de la nature divine à exister et à produire un effet d’une certainefaçon», in Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 47. «La volonté ne peut être appeléecause libre, mais seulement cause nécessaire», in Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993:49. «Il n’y a dans l’esprit aucune volonté absolue ou libre ; mais l’esprit est déterminé à vou-loir ceci ou cela par une cause, qui est aussi déterminée par une autre, et celle-ci à son tourpar une autre, et ainsi à l’infini»,in Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 125.

26 «(…) qu’un homme fort considère en premier lieu que toutes choses suivent de la nécessitéde la nature divine, et que par suite tout ce qu’il pense être importun et mauvais, et en outre

5.2. A necessidade do Pacto Social como consequência

Pelo relativismo moral, pelo carácter necessário dos acontecimentos que,sonegados da sua contingência, impedem o exercício de uma liberdade de escolhaque confere responsabilidade moral, antevê-se a possibilidade de que Espinosa,bom grado o seu intelectualismo ético-eudemonístico, resvale para posições posi-tivistas no plano ético-jurídico. É o que acontece quando Espinosa reconhece quesó no estado de sociedade, no estado político que nasce com a emergência doestado, é que, através das suas leis, se determina de uma forma positiva o que ébom e o que é mau. De facto no estado de natureza:

«il n’est rien donné qui soit bon ou mauvais du consentement de tous, puisquechacun qui est dans cet état naturel pourvoit seulement à son utilité, et décide,d’après sa propre disposition et en tant qu’il a seulement son utilité pour règle,de ce qui est bon ou de ce qui est mauvais, et n’est tenu par aucune loi d’obéirà personne, sinon à lui seul»27.

Há um direito natural que se confunde aqui com o domínio dos direitos hob-besianos, e que corresponde aos direitos subjectivos, no sentido de rights, maseste direito é de algum modo um anti-direito, uma vez que segundo o direito sobe-rano da natureza «chacun fait ce qui suit de la nécessité de sa nature, et par consé-quent, (…) chacun juge de ce qui est bon, de ce qui est mauvais, et pourvoit à sonutilité d’après sa disposition»28. É isto que não é um direito, no sentido normativodo termo. É claro que mesmo neste reino propenso à anarquia, se cada homemvivesse segundo os ditames de uma racionalidade prática, as fronteiras dos inte-resses recíprocos poderiam ser sabiamente mantidas, mas os interesses inflamadospor sentimentos e paixões conduzem os homens ao conflito, porque eles própriosse tornam inconstantes e volúveis e, atormentados pelas paixões que deles se apo-deram, tornam-se naturalmente antagónicos. Enfim, com pressupostos idênticosembora estruturados de forma distinta, Espinosa é conduzido à perspectiva doperigo inevitável da dissensão fratricida entre os homens. A inevitabilidade docontrato decorre do facto de que os homens precisam do acordo mútuo29. Se oshomens seguissem a razão facilmente compreenderiam que o homem deve serum Deus para o homem, mas tal não acontece no estado de natureza em que, namaior parte dos casos, a razão é obnibulada pelas paixões. Então, para que os

81

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

tout ce qui lui paraît immoral, horrible, injuste et honteux, naît de ce qu’il conçoit les choseselles-mêmes de façon trouble, tronquée et confuse», in Bento Espinosa [Ética], in Guérinot1993: 310.

27 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 274. 28 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 273.29 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 268.

homens «puissent vivre dans la concorde et se venir en aide, il est nécessaire qu’ilsrenoncent à leur droit naturel et s’assurent réciproquement qu’ils ne feront rienqui puisse porter dommage à autrui»30. A instituição social e política institui acidadania e agora sim um direito no sentido jurídico do termo, uma vez que instituideveres e obrigações. Tal como em todas as construções positivistas é enfatizadoo papel dos castigos. Através da lei geral implícita que subsume a ideia de «pactode sujeição» pode estabelecer-se então a Sociedade, «pourvu qu’elle revendiquepour elle-même le droit que chacun a de se venger et de juger du bon et du mau-vais, et qu’elle ait par conséquent le pouvoir de prescrire une commune manièrede vivre, de faire des lois et de les garantir, non pas par la Raison qui ne peutréprimer les sentiments, mais par des menaces»31.

Espinosa é juiz de si próprio e não deixa de reconhecer que esta fundamen-tação do justo e do injusto é determinada pela lei e é por isso de natureza exter-nalista a sua fundamentação jurídica, no plano das obrigações. Como ele diz: «lafaute et le mérite sont des notions extrinsèques, et non des attributs qui expliquentla nature de l’esprit»32.

Mas eu não posso deixar de levar em linha de conta que a construção dasociedade é uma construção intrínseca, no sentido em que é determinada artifi-cialmente pela vontade humana superiormente esclarecida pela razão prática e,de resto, neste plano, à semelhança de Hobbes, por exemplo. E o modelo político,isto é o modelo que resulta da assunção do Pacto Social, é talvez ainda mais luci-damente teorizado por Espinosa que por Hobbes. Por um lado porque Espinosanão precisou de dramatizar tanto o estado de natureza, segundo porque mostra deuma forma mais racional a vantagem da sociedade sobre o estado natural. Nesteponto, talvez porque os direitos (rights) não sejam assim tão importantes paraEspinosa, como eram para Hobbes, apesar de o conatus essendi não ser menosvitalista que os direitos (rights) hobbesianos, o seu abandono é muito menos dra-mático. Dá-se mesmo uma inversão na lógica do poder quando Espinosa afirmaque: «L’homme qui est conduit par la Raison est plus libre dans l’État où il vitselon le décret commun, que dans la solitude où il n’obéit qu’à lui seul»33. EmHobbes o abandono do estado de natureza é um sacrifício vantajoso que decorredo imenso perigo da morte violenta. Mas é um sacrifício. Mais do que uma sujei-ção. E é assim porque a antropologia hobbesiana é muito mais pessimista do quea antropologia espinosista. E tudo isso enfim se resume na diferença de ênfaseque é colocada na expressão de que o homem é o lobo do homem. Ela é apodícticaem Hobbes. E é sobretudo assertórica em Espinosa. Em Espinosa o homem pode

82

MANUEL AFONSO COSTA

30 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 274.31 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 274.32 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 274.33 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 310.

torrnar-se um lobo para o homem mas, potencialmente, esclarecido pela razão, ohomem é um Deus para o homem.

É preferível terminar este breve excurso pelo pensamento espinosista dentrodo seu próprio discurso, já que aquilo que vou transcrever mostra simultaneamentea fundamentação profunda do Pacto deixando vislumbrar o humanismo e o sen-tido da autonomia que estão implícitos na sua obra. Como aí se verá não há cons-trangimento, nem nostalgia. Há sujeição. Sujeição no sentido em que todos osPactos são de sujeição, uma vez que transformam o indivíduo em sujeito34, emboraseja exemplar o sentimento de liberdade que se respira nesta sujeição. A determi-nação é livre, voluntária e conforme ao interesse do sujeito. É nisto que eu façoradicar a autonomia. A determinação voluntária e livre do sujeito que se dá a simesmo as normas sabendo de antemão que a elas se deve sujeitar35.

«L’homme qui est conduit par la Raison n’est pas conduit par la crainte à obéir(selon la proposition 63) ; mais en tant qu’il s’efforce de conserver son êtred’après le commandement de la Raison, c’est-à-dire (selon le scolie de la pro-position 66) en tant qu’il s’efforce de vivre librement, il désire observer la règlede la vie et de l’utilité communes (selon la proposition 37), et conséquemment(comme nous l’avons montré dans le scolie 2 de la proposition 37) vivre selonle décret commun de l’État. Donc l’homme qui est conduit par la Raison désire,pour vivre plus librement, observer les droits communs de l’État. C.Q.F.D.»36.

Exemplarmente no caminho de Kant.

83

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…

34 Mas o sujeito é também o subjectum social.35 Utilizei o vocábulo «sujeito» duas vezes na proposição propositadamente. A autonomia pres-

supõe o sujeito. A sujeição pressupõe a autonomia. Espinosa nesta parte da sua Ética é jáproto-kantiano.

36 Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 310. Nesta altura Espinosa opta por uma noção deliberdade, como confessa a seguir, que contém já os gérmens de uma liberdade virtuosa. Espi-nosa joga por vezes com este sentido latino de virtus, no sentido de poder, ou reversivamentejogando com uma ideia de poder que não é mero poder natural em bruto, mas poder já ilumi-nado pela razão e assim poder virtuoso. No escólio da proposição 59 da terceira parte, eleestabelece a dicotomia estratégica de uma força de alma, que é simultaneamente firmeza egenerosidade. A generosidade não destrói a firmeza. Aí diz: «Car par Fermeté, j’entends leDésir par lequel chacun, d’après le seul commandement de la Raison. Et par Générosité, j’en-tends le Désir par lequel chacun, d’après le seul commandement de la Raison, s’efforce d’aiderles autres hommes et de se les attacher par l’amitié. Aussi ces actions qui se proposent la seuleutilité de l’agent, je les rapporte à la Fermeté, et celles qui se proposent aussi l’utilité d’autrui,je les apporte à la Génerosité. La Tempérance donc, la Sobriété et la Présence d’esprit dansles dangers, etc. sont des espèces de la Fermeté, tandis que la Modestie, la Clémence, etc.sont des espèces de la Générosité», cf. Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993: 206. É quese os homens fossem todos homens fortes, segundo o modelo espinosista, quer dizer, supe-riormente orientados pela razão e assim plenamente dotados de firmeza e generosidade, todasas paixões e todos os sentimentos espúrios seriam destruídos donde decorreria que «l’hommefort n’a personne en haine, n’a de colère, d’envie et d’indignation contre personne, ne méprise

BIBLIOGRAFIA

CudworthHUTTON, Sarah (ed.)1996 Cudworth: A treatise concerning eternal and immutable morality, with a treatise of

freewill, Cambridge: Cambridge University Press.

EspinosaGUÉRINOT, A.1993 L’éthique de Espinosa, Paris: Ivrea. [1677]. KOYRÉ, Alexandre 1984, Espinosa : Traité de la réforme de l’entendement, Paris: Librairie Philosophique J.

Vrin. [1677].HENRY, Michel1944-46 «Le bonheur chez Espinosa», in Revue d’Histoire de la Philosophie et d’Histoire

Générale de la Civilisation, (Nouvelle série, fasc. 37, Janeiro-Março 1944 et fasc.41, Janeiro- Março 1946), Lille.

Grócio1995 «On the law of war and peace», in Schneewind, J. B. (ed.) Moral philosophy from

Montaigne to Kant (2 Vols.), Cambridge. HAAKONSSEN, Knud1985 «Hugo Grotius and the history of political thought», in Political Theory (Vol. 13, n.º

2, pp. 239-265), Sage Publications.1996 Natural law and moral philosophy, from Grotius to the scottish enlightenment, Cam-

bridge: Cambridge University Press.

HobbesFLATHMAN, Richard e David Johnston (ed.)1997 Thomas Hobbes: Leviathan, Londres: Norton. [1651].GERT, Bernard (ed.)1993 Thomas Hobbes: Man and citizen, de homine and de cive, Indianapolis: Hackett

Publishing Company. [1650].HOBBES, Thomas1995 De Cive: «Philosophical rudiments concerning government and society», in Schne-

ewind, J. B. (ed.) Moral philosophy from Montaigne to Kant (2 Vols.), Cambridge.[1650].

TONNIES, Ferdinand (ed.)1984 Thomas Hobbes: The elements of law natural et politic, Londres : Frank Cass. [1640].

84

MANUEL AFONSO COSTA

personne, et ne manifeste le moindre orgueil», cf. Bento Espinosa [Ética], in Guérinot 1993:310 e 311. E é nisso que consiste a verdadeira liberdade. E ela só ocorre em sociedade, porquesó em sociedade se podem complementar generosidade e amizade. Porque só em sociedadese está completamente sob o império da razão.

LockeHORWITZ, Robert, e outros autores (ed.)1990 John Locke: Questions concerning the law of nature, Ithaca: Cornell University Press.

[1664]LOCKE, John 1986 John Locke: The second treatise on civil government, Nova Iorque: Prometheus

Books. [1689]1990 John Locke: A letter concerning toleration, Buffalo, Nova Iorque: Prometheus Books.

[1689]1995 John Locke: Essay concerning human understanding, Nova Iorque: Prometheus

Books. [1690]

ShaftesburyROBERTSON, John M.1964 Shaftesbury: Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times. Nova Iorque: Bobbs-

Merril Comany. [1711]

Suarez1995 «On the Law and God the Lawgiver», in Schneewind, J. B. (ed.) Moral Philosophy

from Montaigne to Kant (2 Vols.), Cambridge. [1612]

EstudosCASSIRER, Ernst1970 The platonic renaissance in England, Nova Iorque: Gordian Press. DARWALL, Stephen1995 The british moralists and the internal ‘ought’ (1640-1740), Cambridge: Cambridge

University Press.HESPANHA, António Manuel1997 Panorama do pensamento jurídico-político europeu, Lisboa: Europa-América. RENAUT, Alain1989 L’ère de l’individu. Contribution à une histoire de la subjectivité, Paris: Éditions

Gallimard.ROHMER, Jean1939 La finalité morale chez les théologiens. De Saint Augustin à Duns Scot, Paris: Librai-

rie Philosophique J. Vrin.SCHNEEWIND, J. B.1998 The, invention of autonomy. A history of modern moral philosophy, Cambridge: Cam-

bridge University Press.STRAUSS, Leo1965 Natural right and history, Chicago: University of Chicago Press. VILLEY, Michel1968 La formation de la pensée juridique moderne. Cours d’histoire de la philosophie du

droit, Paris: Les Éditions Montchrestien.

85

A PROPEDÊUTICA DO BEM E DO MAL E AS ORIENTAÇÕES MODERNAS…