a profissÃo militar e a preparaÇÃo para a guerra

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A PROFISSÃO MILITAR E A PREPARAÇÃO PARA A GUERRA – UMA VISÃO CRÍTICA Por HEITOR FREIRE DE ABREU

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O livro "A Profissão Militar e a Preparação para a Guerra - Uma Visão Crítica", de autoria de Heitor Freire de Abreu, aborda aspectos da profissão militar, sobre a guerra e a sua preparação. Baseado em ampla bibliografia, recebeu a Menção Honrosa do Prêmio Tasso Fragoso - 2004, da Biblioteca do Exército (BIBLIEX). Recentemente, publicou o livro Um Ano na Terra dos Elefantes, que narra sua experiência como observador militar da ONU na Costa do Marfim, África, sob o enfoque puramente humano (disponível para venda na internet (https://www.facebook.com/UmAnonaTerradosElefantes).

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A PROFISSÃO MILITAR E A

PREPARAÇÃO PARA A GUERRA – UMA

VISÃO CRÍTICA

Por

HEITOR FREIRE DE ABREU

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Reg EDA Nr 294.483, Lv 534, Fl 143 Protocol 2003RJ 7820 2

NOTA DO AUTOR

Este livro foi concluído no final de 2002. Recebeu

diversas revisões e sugestões, sendo submetido ao Prêmio

Tasso Fragoso - 2004, da Biblioteca do Exército (BIBLIEX),

onde foi premiado com a Menção Honrosa. Malgrado esforços

do autor, não foi possível publicá-lo.

O texto original foi preservado, apesar de,

eventualmente, existirem correções e atualizações a serem

feitas. Era uma questão de honestidade intelectual não

modificá-lo. Além disso, queria manter a visão do Capitão

Heitor quando escreveu “A Profissão Militar e a Preparação

para a Guerra – Uma visão Crítica”; não a do agora Major

Heitor.

Sete anos se passaram, incluindo a vivência de 1 ano na

Costa do Marfim, na África (2006), e a realização do Curso de

Comando e Estado-Maior (2007-2008), na ECEME, dentre

outros eventos significativos na minha vida profissional.

Obviamente, a visão se aprimorou, mas o ideal, a idéia, a

crença e o escopo expostos neste livro continuam os mesmos.

Torná-lo público, ao divulgá-lo na Internet, foi uma

forma de dividir essas idéias. Espero que seja útil no debate

sobre a profissão militar e a sua importância como vetor

fundamental na manutenção da soberania de um país.

Rio de Janeiro, 21 de abril de 2009.

Heitor Freire de Abreu

Email: [email protected]

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Dedicatória

Este livro é dedicado à Força Expedicionária Brasileira (FEB).

Força esta que, fruto da situação conjuntural da época, tinha tudo para ser derrotada nos campos da Itália.

Material deficiente, seleção de pessoal precária, instrução incipiente, falta de preparo dos quadros, carência de experiência de guerra e toda a ordem de óbices permearam a nossa FEB. Saiu do Brasil desacreditada por muitos. Combateu nos campos gelados da Itália, misturando o sangue brasileiro com a neve das escarpas rochosas italianas, mostrando aos americanos do norte e aos europeus a capacidade de enfrentar e ultrapassar obstáculos do povo brasileiro. Desembarcou no Brasil vitoriosa e coberta de glórias.

Cometeu erros, é verdade. Todavia, seus acertos e suas lições de coragem e abnegação transcenderam os equívocos e falhas ocorridas. Na cavalaria brasileira, há um ditado que diz “Só cai quem monta”. De certa forma, ele se identifica com a FEB. As quedas – erros – existiram, mas não mancharam, de forma nenhuma, o brilho da vitória e o cumprimento da missão daqueles que ousaram ir para a Itália.

A geração de hoje, civis e militares, deve estudar, analisar e entender o que possibilitou os acertos e causou as falhas nessa importante passagem da História Militar do Brasil. Após isso, traduzir esse aprendizado profícuo em ensinamentos para os momentos de crise que certamente o Brasil irá enfrentar.

Após ler atentamente sua história - mantendo-me longe do ufanismo exacerbado e do preconceito maldoso - e visitar os campos nevados de Monte Castelo, Montese e o Cemitério Militar de Pistóia, ao ver um expedicionário brasileiro, só há uma atitude: perfilar-me e prestar uma continência perfeita.

Aos soldados da FEB, a minha admiração, respeito e agradecimento pelas lições com as quais brindaram os meus estudos de História Militar. Esse livro é em sua homenagem.

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SUMÁRIO

Introdução 5

Capítulo 1 Algumas idéias sobre a guerra 11 A guerra e os números 16 Guerra: aberração social ou parte da natureza humana? 22 A guerra pode trazer benefícios? 26

Capítulo 2 O pensamento do guerreiro 30 O profissional militar 31 A guerra e seus imponderáveis 34

Capítulo 3 A guerra e a humanidade 40 Os exércitos na paz 42

Capítulo 4 A preparação para a guerra - quadros 48 Formação de oficiais 54 Adestramento da tropa 59 Adestramento dos quadros 63 Liderança 75

Capítulo 5 A preparação para a guerra - Equipamentos 88 Investimentos nas forças armadas 99

Capítulo 6 A preparação para a guerra - Sociedade, política e militares 103 Relações entre civis e militares 114 História Militar 117

Conclusão 121

Bibliografia utilizada 127

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LISTA DE QUADROS E GRÁFICOS

QUADROS

01 Atividades de defesa externa 16 02 Progresso humano 18

03 Países produtores de petróleo com graves problemas internos

21

04 Principais áreas envolvendo disputa por petróleo 22 05 Estatística dos Conflitos (1740 – 1974) 23 06 Países partícipes em conflitos atuais 24 07 Grupos Terroristas em Atividade 25 08 Perdas Militares nas duas Guerras Mundiais 28 09 Custo Direto das Guerras Mundiais 30 10 Gastos com defesa 33 11 Gastos Militares (PIB) 34 12 Dilema Espadas versus Arados 59 13 Classificação Genérica dos Conflitos 81 14 Evolução dos armamentos e contra-armamentos 122 15 Custo e Características dos Equipamentos Militares 125

GRÁFICOS

01 Consumo de petróleo – 2002 20 02 Gastos Militares Globais 31 03 Gastos por países em 2003 32 04 Gastos Militares dos Principais países latinos (PIB) 34 05 Custo de guerras envolvendo os EUA. 35

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“Se eu esperasse a perfeição, este livro não seria terminado nunca.” Tai T’ung (retirado de Memórias de Um Soldado, do General Ernani Ayrosa)

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INTRODUÇÃO

“Verba volant, scripta manent”1 Provérbio latino.

Este livro tem por objetivo estudar alguns aspectos da profissão militar e a

preparação de um exército para a guerra, sua atividade-fim. O título adotado,

bastante amplo, foi proposital. Visou permitir ao autor flexibilidade para tratar dos

mais variados assuntos ligados ao profissional militar, inclusive permeando a obra

com opiniões advindas não só da leitura, mas da observação pessoal da rotina da

caserna.

Como filho e neto de militares, cedo travei contato com a carreira das armas.

Naturalmente, essa convivência me influenciou e acabei tornando-me um oficial do

Exército Brasileiro. Durante a minha formação, mais do que aprender os passos para

uma correta desmontagem de um fuzil, ou as características técnicas de um carro de

combate, de fácil consulta em manuais, o que realmente sempre me interessou foi a

arte militar. A História e a literatura militar me fascinaram e ainda me fascinam.

Como conseqüência, passei a ler e a estudar livros sobre o assunto.

Remonta aos anos como cadete da Academia Militar das Agulhas Negras,

algumas das leituras que mais me impressionaram e que começaram a talhar o meu

pensamento militar. Foi nessa época que li “Os Sete Combates do Vietnã” , “As

Ações das Pequenas Unidades Alemãs na Campanha da Rússia” , “A Guerra que

Eu Vi”, do General Patton, “Panzer Líder”, de Heinz Guderian, além de um clássico

sobre liderança, “A Arte de Ser Chefe” , de Gaston de Courtois. Tais livros me

estimularam tanto, que passei a dedicar-me ao assunto com afinco, mas sem

maiores ambições. Era movido apenas pelo prazer de ir descobrindo, a cada leitura,

novas facetas da minha profissão.

Durante anos, travei contato com diversos livros e assuntos. Muitos deles,

sem ligação imediata com a profissão militar. Essa pletora de informações acabaria,

evidentemente, por trazer conseqüências. Muitas positivas, e algumas negativas.

Das positivas, destaco esse livro. Devido ao grande número de idéias

colhidas ao longo de profícua leitura, veio a necessidade de analisá-las, ainda que

de forma bastante simplificada, e de ordená-las dentro de uma escala de valores

1 “as palavras voam, mas permanecem quando escritas”.

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própria. Disso, surgiu o meu pensamento militar, que nada tem de inovador ou

grandioso. Apenas é a minha forma de ver e entender as forças armadas,

notadamente a brasileira. O próximo passo só poderia ser a imensa e incontida

vontade em expor o que li de forma organizada, tecendo alguns comentários de

cunho pessoal. Assim nasceu a idéia deste livro.

Longe de buscar me equiparar aos grandes clássicos militares, este livro

busca apenas proporcionar uma leitura agradável e, o mais importante, incentivar as

pessoas a ler e a discutir a profissão militar.

Outra característica que destaco é o fato de ter utilizado durante o

desenvolvimento, passagens da História Militar do Brasil e de alguns países da

América do Sul, embora tenha me servido de muitos exemplos dos Estados Unidos

da América (EUA) e de países europeus, por razões óbvias. A razão de ter insistido

neste ponto deve-se ao fato de que a maioria das obras militares com as quais tive

contato foram escritas por autores dos EUA ou de países europeus. Embora não

tenhamos uma História Militar tão longa e dinâmica quanto desses países, preferi

colher em nosso próprio quintal, sempre que possível e pertinente, os subsídios

necessários para basear meus pontos de vista. A nossa História Militar tem muito a

nos oferecer em termos de ensinamentos.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

Se, por um lado disse que a leitura rotineira de obras de caráter militar

aumentou o meu interesse pela profissão das armas, por outro, devo dizer de forma

bastante honesta que me trouxe efeitos colaterais. O primeiro e mais patente deles

foi o de modificar a minha visão sobre o Exército Brasileiro. Se, no início, ela era

permeada por um idealismo exacerbado e crença cega nos caminhos que a

instituição trilhava – tão próprios dos jovens – durante a aquisição de novos

conhecimentos e pontos de vista, essa visão transmutou-se, tornando-se crítica, no

sentido de que há muito a se fazer para melhorar o nosso Exército. Mas, para que

isso aconteça, precisamos de uma base humana – civil e militar - que se disponha a

pensar o Exército e não simplesmente recebê-lo de uma geração, mantê-lo e passá-

lo para a geração seguinte.

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Ainda como efeito colateral, acabei por verificar que o estudo da História,

mais especificamente da História Militar em nosso Exército, ao longo dos anos, foi

relegado a um plano inferior ao que realmente merece.

Apesar do esforço hercúleo que a Biblioteca do Exército (Bibliex) vem

realizando ao longo dos anos, disponibilizando a um preço extremamente baixo

obras de qualidade tanto na área militar quanto em outras, notadamente da área

humanística, tenho verificado, nos mais diversos níveis hierárquicos, a falta de um

arcabouço cultural e histórico condizente com a situação de militar de carreira.

Ao contrário do que muitos pensam, esse embasamento não é mero verniz

cultural para ser utilizado durante reuniões sociais ou conversas amenas. É fator

indispensável para aquele militar que deseja entender sua profissão e o mundo que

o cerca, e realmente tornar-se um profissional completo. Será por intermédio do

estudo teórico da Arte Militar e de uma análise profunda dos fatos passados,

levando-se em consideração todos os fatores envolvidos no episódio militar, que um

profissional das armas poderá tomar decisões táticas e estratégicas, formular

doutrinas e resolver os problemas que certamente se apresentarão ao longo da vida

castrense.

Contudo, o que se vê, na maioria das vezes, são visões tecnicistas e

cartesianas em excesso. Costumo dizer que temos excelentes técnicos militares,

mas carecemos de pensadores militares. O militar brasileiro, malgrado os esforços

do Exército Brasileiro em implementar projetos de leitura, ainda lê muito pouco. E o

pior, tem dificuldade em interpretar aquilo que lê. Isso, como se sabe, é um reflexo

da cultura brasileira. No final de 2001, a mídia veiculou o resultado de um teste

realizado com diversos países do mundo sobre leitura e interpretação de texto. O

Brasil classificou-se em último lugar. Se o Exército Brasileiro é um extrato da

sociedade, esse problema não surpreende.

Essa tendência em se valorizar o militar executante, aquele que resolve os

problemas de forma rígida e dentro dos padrões preestabelecidos, sem a devida

análise teórica, sintetizada na cultura medieval pela expressão latina Magister dixit2,

é danosa e está por acabar. Com a modernização do ensino, percebe-se que as

escolas militares brasileiras estão valorizando muito mais a capacidade de o militar

resolver problemas de forma inovadora do que a simples decoreba ou a tentativa em

2 Significa “O mestre disse”. Frase da escola medieval, onde a palavra do professor não podia ser contrariada.

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adivinhar a chamada “resposta da casa”. Isso é um avanço, mas traz no seu bojo a

necessidade de alunos e instrutores mais preparados – entenda-se que leiam , leiam

e leiam cada vez mais. Para se atingir o mote “aprender a aprender”, tão na moda

nos estabelecimentos de ensino militares, a leitura crítica é indispensável.

Sobre isso, vale a pena ler a conclusão do artigo “Bulding Victory from the

Ground Up”, de Lon E. Maggart:

“Creativity and innovation from the entire force – not just from those at the top.

It is, therefore, incumbent on all of us to think about the future and to offer

suggestions on how to improve the mounted force.”3(grifo do autor)

Hoje em dia, com o crescimento geométrico das informações e descobertas,

bem como da socialização do conhecimento, abrangendo cada vez mais pessoas,

um bom professor ou instrutor (hoje chamado de facilitador da aprendizagem!) deve

ser capaz de lidar com a multidisciplinaridade do conhecimento e com a

possibilidade do seu aluno conhecer determinado assunto de forma mais profunda

do que ele. A quantidade de informações dos recursos humanos do Exército de hoje

é, sem sombra de dúvida, superior a de vinte ou trinta anos. Isso implica que a

diferença de conhecimento entre um tenente e um general nos dias de hoje é

proporcionalmente menor. Isso é uma conseqüência óbvia da possibilidade de se

adquirir conhecimentos tão facilmente nos dias de hoje. Tal estado de coisas obriga

a que todos, sem exceção, procurem o auto-aperfeiçoamento e a constante busca

do saber. Embora isso não signifique dizer que a nova geração tenha qualidade

nessa bagagem de conhecimentos e que, muito menos, saiba selecionar aquilo que

interessa daquilo que simplesmente é conhecido como “lixo cultural”. Além disto,

existe a preciosa sabedoria que só a experiência proporciona...

Várias são as causas e os efeitos dessa aridez literária a qual me referi

anteriormente. Não serão consideradas as causas, por não serem objetivos deste

livro e já serem por demais conhecidas. O principal efeito é o de que não se conhece

o pensamento dos militares brasileiros – na forma e na quantidade desejável - que

ocuparam importantes posições dentro da instituição militar e também daqueles que,

3 MAGGART, Lon E. Bulding Victory from the Ground Up. Armor, Fort Knox, EUA: vol CV, nº 5, p. 6, set.-out. 1996. "Criatividade e inovação da força inteira - não somente daqueles que estão no topo.Isso implica que todos nós devemos pensar no futuro e oferecer sugestões sobre como melhorar a força" (tradução livre).

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embora não ocupem, possuem idéias interessantes sobre diversos assuntos.

Precisa-se que mais militares escrevam sobre suas experiências e pontos de vista,

bem como analisem fatos históricos, tendências e preocupações relacionadas com

as Forças Armadas. A maioria – não todas – das obras atuais gravita sobre temas

consagrados (Caxias, Guerra do Paraguai, participação da FEB na 2ª Guerra

Mundial etc). Evidentemente tais temas devem ser explorados, mas existem outros

ainda pouco trabalhados por militares brasileiros. Apenas como idéias sobre temas a

serem desenvolvidos com mais profundidade, temos a Revolução de 64, as lutas

contra a guerrilha na década de 70, a espionagem alemã e italiana no Brasil durante

a 2ª Guerra Mundial, as relações entre civis e militares nas diversas fases da

História, além de temas atuais que proporcionariam bons artigos, tais como um

estudo sucinto dos ensinamentos da campanha americana no Afeganistão para o

aperfeiçoamento da Doutrina Gama4. Por que os americanos lograram êxito em tão

pouco tempo e os soviéticos amargaram 10 anos de derrotas? Será que o uso

intenso da tecnologia invalida em parte a Doutrina Gama? Há necessidade de se

aperfeiçoar a doutrina? São perguntas que merecem dedicação e esforço de todos

os militares em analisar os reflexos para a defesa do País.

Mas não basta escrever ou debater. Duas características devem permear

esse trabalho: fugir do ufanismo tendencioso e acrescentar de maneira crítica novas

idéias e soluções para os problemas apresentados. Falando francamente, é preciso

que o militar perca o medo de expor suas idéias. Se elas não ferem a disciplina, se

são baseadas em argumentos lógicos e expostas com o intuito de acrescentar

conhecimentos e trazer ensinamentos, ela deve ser compartilhada.

Ao se ler revistas editadas nos EUA, como a “Military Review” e a “Armor”,

onde se vê do cadete ao general expondo suas impressões e idéias sobre tática,

História Militar, estratégia, emprego de tropas em ambientes especiais, operações

de paz e uma infinidade de assuntos relacionados com a profissão militar, é possível

que se sofra de frustração. Frustração por não ver, no Exército Brasileiro,

preocupação similar na intensidade que deveria existir numa Instituição com mais de

200.000 homens e mulheres, e que ultrapassa 300 anos de História e experiências a

serem estudadas, analisadas e, finalmente, sintetizadas.

4 Doutrina militar adotada pelo Exército Brasileiro, voltada para conflitos convencionais, excetuando-se a região da Amazônia.

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Quantos militares do Exército trabalharam em missões importantíssimas

dentro e fora do País? Quantos já partilharam da companhia de importantes figuras

históricas da Nação (civis e militares)? Quantos já participaram de missões de paz

na última metade do século passado e ainda continuam participando? Sabe-se que

foram vários que passaram por essas experiências enriquecedoras. Todavia,

quantos se dispuseram a dividir a experiência através de livros e artigos? Quantos

tiveram a coragem de confrontar o pensamento militar de outros exércitos com do

Exército Brasileiro, gerando debates salutares a fim de que se pudesse aperfeiçoar o

pensamento militar nacional? Muito poucos...

Confesso que muitas vezes, no silêncio da madrugada, ao refletir sobre a

profissão militar, tenho dúvidas se realmente pode-se dizer que o Exército tem um

pensamento militar sólido ou é fruto de uma colcha de retalhos de pensamentos

alienígenas que foram juntados conforme as necessidades se apresentavam. No

final, num esforço de otimismo, penso que até temos um pensamento militar, mas

que está se perdendo ao longo do tempo, em função da falta de registros e das

devidas análises.

O que pensavam os ministros militares das últimas décadas? Onde

escreveram seus pensamentos? Como as gerações de generais-de-exército dos

últimos anos pensavam? Quais foram os principais óbices com os quais se

defrontaram e como reagiram aos mesmos? Quais eram os seus pontos de vista

sobre as diversas áreas que compõe o Exército? Como eles enxergam o Exército de

ontem em comparação com o de hoje? Qual a visão deles sobre as diversas

gerações de oficiais, inclusive a de hoje? No que se refere à doutrina formulada pela

Escola Superior de Guerra (ESG) na década de 70, da qual muitos deles foram

participantes ativos, qual é o balanço que fazem hoje? Como foi e como é vista a

Revolução Democrática de 64 pelas diversas gerações que estavam no “olho do

furacão” naquela época? Qual o balanço que fazem da participação do Exército

nesse importante fato da História Contemporânea do País? E sobre a doutrina?

Como surgiu a Doutrina Delta, Gama5 e Alfa6? Quais as suas bases teóricas? Quais

as implicações imediatas para o Exército, nos diversos escalões, da adoção dessas

novas doutrinas? Qual a visão estratégica do alto-comando do Exército? Como se

5 Doutrina militar adotada pelo Exército Brasileiro, voltada para operações de Garantia da Lei e da Ordem. 6 Doutrina militar adotada pelo Exército Brasileiro, voltada para operações na Amazônia.

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vê, inúmeras são as perguntas, porém escassas são as respostas. Elas só serão

respondidas se houver uma cultura de leitura e de escrita.

Essa falta de fontes e de livros escritos por militares brasileiros permite que

outras idéias, francamente politizadas ou acobertando interesses diversos, distantes

da verdade histórica, sejam tidas como verdades irrefutáveis, em face da

inexistência de estudos mais elaborados e precisos.

Durante uma palestra seguida de debate que proferi na Universidade do

Contestado, em 2000, para todo os períodos do curso de História, pude comprovar a

visão distorcida que o público acadêmico tem sobre as Forças Armadas do Brasil.

Não me refiro apenas aos eventos de 64, sempre polêmicos e interpretados de

forma maniqueísta na maioria das instituições de ensino superior – em parte porque

a filosofia do “Grande Mudo” , defendida por alguns militares, deixou que as versões

tendenciosas se tornassem verdade no mundo universitário. Refiro-me a História do

Exército, sua atuação nos diversos pontos de inflexão da História do Brasil e na sua

destinação atual. Nem alunos nem professores tinham noções básicas sobre o

nosso glorioso Exército. A Amazônia, suas riquezas, o Sistema de Vigilância da

Amazônia (SIVAM), suas potencialidades e a razão da nossa preocupação com a

sua defesa não fazem parte do cabedal de conhecimento desses acadêmicos.

O que assusta é que daqui a alguns anos, uma parcela deles acabará por

ascender aos importantes cargos na administração do Estado. Aliás, é lícito pensar

que um desses acadêmicos dispersos nas universidades e faculdades do Brasil se

torne ministro da defesa nas próximas décadas e, conseqüentemente, nosso chefe.

A tendência atual é a de que, nos próximos anos, mais e mais civis comecem a se

envolver em processos decisórios que antes eram privativos dos militares. Se o

conhecimento deles for tendencioso em relação ao profissional militar, só se pode

esperar soluções distorcidas e que prejudiquem a Instituição, mesmo que sem

intenção.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

Para os poucos que lerão as páginas que compõem este livro, cabem

algumas advertências. Não esperem encontrar aqui soluções. Coloquei, de forma

intencional, mais dúvidas do que respostas. Diria, sem a menor possibilidade de

errar, que este livro busca mexer com conceitos arraigados, convidar pessoas

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interessadas no assunto a ler, escrever e, principalmente, debater os temas tratados

no decorrer da obra.

Muitas idéias descritas aqui são óbvias, mas infelizmente continuam sendo o

que sempre foram: idéias. Precisam sair da inércia e transformarem-se em ações.

Neste sentido, essas páginas não constituem novidades. Além disso, não procuram

unanimidade, visto que esta quase sempre é burra – plagiando Nelson Rodrigues - e

conduz as pessoas ao imobilismo. Como bem disse São Tomás de Aquino, “Timeo

hominem unius libri”7.

É preciso que se diga, ainda, que esse não é um livro só para militares. Aliás,

acho que será mais útil para um civil8 do que para um militar, já que o seu conteúdo

é – ou deveria ser – de conhecimento da maioria dos militares. Mas acredito que

poderá acrescentar alguns ensinamentos, principalmente aos mais jovens, e

relembrar aos mais antigos conceitos e valores que insistem em se extraviar ao

longo do tempo, distorcendo procedimentos e condutas.

Por fim, procurei utilizar, de forma generosa, citações, dados e opiniões de

personalidades e autores diversos a fim de me auxiliarem a demonstrar o meu

pensamento. Embora tenha demandado imenso trabalho de pesquisa, acredito que

dessa forma irei incentivar o aprofundamento em uma ou outra área estudada no

escopo deste livro.

Procurei neste prefácio, falar um pouco sobre a obra, sobre minhas idéias e

razões que me levaram a escrever. Não tenho a intenção de ferir suscetibilidades,

de provocar polêmicas absurdas, nem atrair atenção. Isso não faz parte da minha

personalidade. Contudo, faz parte da minha individualidade a discussão séria,

aberta, leal, responsável e sempre ancorada na hierarquia e na disciplina –

desnecessário dizer – sobre os assuntos militares. Acredito que essa discussão é

mais do que salutar; é necessária. Numa profissão que, em última análise, se

prepara para aquela que é a mais sombria e terminal das decisões humanas, nunca

é demais lembrar as palavras do General Douglas MacArthur, que alertava “Não há

nenhuma outra profissão em que as conseqüências do emprego de pessoal mal

adestrado sejam tão estarrecedoras ou tão contundentes como nas Forças

7 “Receio homem de um só livro”. Ou seja, não é prudente aquele que confia em apenas uma opinião e não busca outras fontes. 8 Razão pela qual algumas abreviaturas e termos de notório saber para militares estão explicados em várias notas de rodapé.

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Armadas”. Ser um profissional não é um favor que o militar presta ao seu exército e

ao seu país, é um dever moral para todos os que têm fé na sua missão.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

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CAPÍTULO 1

Algumas Idéias Sobre a Guerra

“É preciso ser muito audacioso para dizer que a guerra está saindo de moda.”

John Keegan

Guerra, conflito, crise, luta, combate, revolta, revolução. Inúmeros são os

termos e expressões para definir um estado de oposição entre grupos, povos,

países, sociedades, enfim, entre os homens.

Os conflitos humanos, como fenômeno social, têm o seu ápice na guerra. Tais

conflitos podem ser causados por diversos pontos de tensão entre indivíduos ou

grupos que inicialmente podem estar apenas competindo entre si. Neste estado de

competição, ainda não há o conflito, pois não existe a intenção de destruir o

oponente.

Entretanto, quando tais indivíduos ou grupos abandonam o campo da

competição, por não mais satisfazer seus objetivos ou necessidades, e passam para

o campo do confronto físico, buscando a destruição das vontades opostas ou a

própria aniquilação do adversário, temos a dialética de vontades e o estado de

guerra. Nessa fase, a norma jurídica – que é o meio essencial de expressão do

direito – é parcial ou totalmente abandonada como instrumento para a regulação dos

comportamentos sociais.

O tema e sua repercussão jurídica sempre foram preocupação dos

responsáveis pela sua execução. Os romanos preocupavam-se em transformar suas

guerras em atitudes justas. Em muitos casos, vários aspectos da guerra a ser

travada (local, hora etc) eram acertados entre os beligerantes. Havia até mesmo

solenidades que as antecediam.

Na Idade Média, houve a preocupação em torná-la, de forma maniqueísta,

justa para um lado e injusta para o outro. Era uma espécie de conformação moral da

guerra. Esse conceito foi aceito pelo holandês Hugo Grotius, na sua obra De jure

Belli ac Pacis9 em 1625. Tal teoria foi prontamente acolhida por teólogos católicos e

canonistas da época. Fruto disso, surgiu a “declaração de guerra”, como instrumento

oficial para o início das hostilidades, gerando efeitos jurídicos nos direitos das

9 “Sobre o direito da Guerra e da Paz”.

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pessoas e dos bens nacionais, tecendo, inclusive, detalhes sobre indenizações de

guerra.

A Liga das Nações, já em 1920, exigia tratamento discriminatório contra

países que recorressem à violência. Isso não passou de letra morta, pois os conflitos

continuaram a ocorrer. Foi apenas uma negação diplomática do conflito ocorrido

entre 1914 e 1918. Teve como mérito o fato de só permitir represálias quando os

meios existentes fossem esgotados. Dificultou as guerras punitivas e preventivas.

Em 1928, em Paris, cerca de 15 nações firmaram um tratado de renúncia à

guerra, chamado Pacto Kellogg-Briand. O Brasil aderiu em 1934. De concreto, viu-se

que os países passaram a não fazer mais declarações de guerra.

A III Convenção de Haia (a primeira foi em 1899), já citava a necessidade de

ultimatum, dando ao oponente prazo limite para o início das hostilidades.

Embora a maioria das guerras termine com tratados de paz, isso pode não

acontecer. Tal prática pode ser cabível quando o país inimigo é conquistado ou

anexado. Um caso conhecido foi o da Alemanha e do Japão. As operações de

guerra terminaram em 1945, mas somente em 1951 (Alemanha) e 1952 (Japão)

entrou em vigor um tratado de paz.

A mais conhecida e completa convenção sobre guerra é a Convenção de

Genebra de 12 de agosto de 1949. Nela, procurou-se normatizar uma série de ações

a serem seguidas pelos países contendores durante uma guerra. Sua profundidade

e detalhamento passam por feridos e enfermos, estabelecimentos sanitários,

pessoal, edifícios e material, transportes, sinais convencionais das organizações de

paz, sanções, países neutros etc. Têm sido um importante fator de regulação dos

conflitos, embora nem sempre respeitada.

No quadro abaixo, pode-se ver a possível evolução de um quadro litigioso

externo. Verifica-se que ele pode nascer de uma simples competição econômica

internacional e desaguar num conflito armado, envolvendo todas as expressões do

Poder Nacional. Ressalta-se que a direção, em todas as situações, é do Poder

Político.

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Expressão do Poder Nacional Situação

Externa Atitude Medidas

Finalidade das

Medidas Participantes Direção Condução

Competição Persuasiva Persuasivas Preservação da Situação

de Normalidade Externa Todas Política

Conflito Dissuasivas

Crise

Dissuasiva ou

Coativa

Dissuasivas,

incluindo

Movimentação de

Meios Militares

Restauração da Situação

de Normalidade Externa Todas

Qualquer

Expressão,

conforme a

Situação

Externa

Conflito Armado Coercitiva ou

Operativa

Típicas do

Conflito Armado

Impor a Vontade

Nacional

Prevalência da

Militar

Política

Militar

Quadro nº 01 Atividades de defesa externa10

O estado bélico está profundamente arraigado no ser humano. Pode-se dizer

que é intrinsecamente ligado ao seu nascimento. O surgimento da guerra se perde

em obscuras eras, e confunde-se com o aparecimento dos primeiros hominídeos na

Terra. Faz parte da história do homem, da sua cultura e da sua realidade. Por mais

que grupos pacifistas, organizações não-governamentais, políticos, religiosos e

outros neguem a guerra como instinto humano, ela é um fato em nossa condição. O

recurso à violência é utilizado por diversos grupos com a intenção de sobrepujar um

outro oponente, chamar a atenção para uma causa ou desestabilizar um rival.

Quando se verifica que povos de culturas ou idéias diferentes entram em

contato, ocorre o conflito. Assim foi com as grandes descobertas e com o

aparecimento de novas religiões. Hoje se continua a ver tal quadro com os conflitos

árabes-israelenses e entre os mulçumanos e ocidentais.

No dia 11 de setembro de 2001, o ataque deflagrado pelos terroristas dos

talibãs (mais especificamente da organização de Bin Laden, conhecida como Al

Qaeda), nos EUA, demonstra a veracidade dessa afirmativa. O recurso violento

utilizado – terrorismo – buscou a desestabilização momentânea dos EUA e a

atenção para as causas do grupo terrorista. Pode-se dizer, sem medo de errar, que

os objetivos desses terroristas foram alcançados e ultrapassaram suas expectativas.

Do epicentro das torres gêmeas de Manhattan, e do Pentágono, propagaram-se

ondas mais ou menos intensas no Afeganistão, Paquistão, Israel, Palestina, Iraque e

outros recantos do mundo.

10

ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, Fundamentos doutrinários. Rio de Janeiro: ESG, 1997. p. 162.

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Tal tendência guerreira atinge até mesmo o nível prospectivo. É grande o

número de obras e até mesmo de filmes de ficção, que buscam retratar o futuro,

visualizando o porvir do homem inserido em conflitos com armas por motivos

diferentes.

Muitas teorias sobre a guerra já foram exaustivamente descritas, estudadas e

expostas em diversas obras. Foram - e ainda são - abordadas sob vários ângulos:

filosófico, científico, tecnológico, social, entre outros. Cada qual procura validar sua

tese embasada em profundos estudos em áreas específicas.

De todos esses estudos, pode-se inferir que a experiência histórica demonstra

que guerra é um fenômeno inerente à sociedade. Não se vê, no horizonte visível, um

mundo de plena paz. Desde o início da caminhada humana pelo planeta, ela existe

em graus, formas, amplitudes e espaços diferentes. Mas sempre acompanhando o

homem na sua evolução.

Os diversos estudos que tentaram e ainda tentam demonstrar que a guerra

não faz parte da natureza humana, perdem toda a sua força quando se verifica que

a história do homem - queiramos ou não - foi baseada em conflitos.

Por mais que se consiga melhorar a qualidade de vida, minimizar os

problemas sociais da humanidade, por intermédio de descobertas e inventos de

novos remédios, alimentos mais nutritivos e saudáveis, e confortos diversos, o

homem parece estar fadado a encontrar novos motivos para guerrear. Apesar de

melhoras contundentes ao longo dos anos, a guerra persiste, conforme se vê abaixo:

Área Comentário

Fome

# A produção agrícola no mundo em desenvolvimento aumentou 52% por pessoa.

# Desde 1800, os preços dos alimentos caíram mais de 90%. Em 2000 foram os mais

baixos da historia.

#A ingestão diária de alimentos no Terceiro Mundo aumentou de 1.032 calorias (1961)

para 2.650 (1998), com previsão de chegar a (3.020) em 2030.

# As pessoas que passam fome no Terceiro Mundo caiu de 45% em 1949, para os atuais

18% em 2000. A tendência é de que caia para 12% em 2010 e 6% em 2030.

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Fenômenos

climáticos

# O El Niño causou prejuízos de US$ 4 bilhões nos EUA (1997-1998), mas proporcionou

um lucro direto de US$ 19 bilhões com a redução de furacões e inundações de verão no

Atlântico.

Pobreza # caiu mais os últimos 50 anos do que nos 500 anos anteriores.

Expectativa de vida # 30 anos em 1900

# 67 anos em 2000

Quadro nº 02 Progresso humano11

É importante dizer que fica difícil acreditar que o mundo “melhorou”, vendo o

noticiário da TV. Contudo, há uma tendência, já estudada, de o ser humano de hoje

prestar mais atenção às notícias ruins, descrendo nos bons desempenhos com

argumentos totalmente desprovidos de embasamento científico – “medíocres”

segundo Bjorn Lomborg12 - e esquecer-se que existem sim, entre a comunidade

científica, pesquisadores que buscam qualquer meio para conseguir verbas ou

justificar aquelas que recebem. Um exemplo de distorção não-intencional, segundo

Lomborg, mas que ocorreu, foi com a Worldwide Found for Nature (WWF). Em 1997

a WWF disse, em um artigo oficial daquela entidade, que dois terço das florestas

mundiais estavam perdidos para sempre. O percentual real, já se sabe, é de 20%.

Queira-se ou não, o mundo de hoje é muito melhor do que o de ontem. Por isto

mesmo, deveria haver comemorações diárias, mas o que se vê, são guerras cada

vez mais constantes e letais.

O pensamento de Paul Kennedy, quando diz que “a força relativa das

principais nações no cenário mundial nunca permanece constante, principalmente

em virtude da taxa de crescimento desigual entre diferentes sociedades, e das

inovações tecnológicas e organizacionais que proporcionam a uma sociedade maior

vantagem do que a outra.”13, vai ao encontro da idéia contida neste livro. As

transformações cíclicas pelas quais as sociedades passam no sentido de melhorar

as condições dos habitantes do globo muitas vezes provocam guerras.

11 Baseado no artigo de LOMBORG, Bjorn. Visão apocalíptica oculta progresso humano. The Guardian: O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 ago. 2001, p. 1-11. Organização do autor. Todos os dados são baseados em informações oriundas da ONU. 12 idem 13 KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Transformação Econômica e Conflito Militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1991. p. 1.

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Algumas causas desse “estado bélico” permanente da humanidade parecem

ser perenes. Procura por água, alimentos, contenciosos religiosos e terras para

cultivar são alguns. Outros, entretanto, são mutáveis e estão diretamente ligados às

riquezas e aos valores específicos de uma época. Antes, os homens guerreavam por

escravos, especiarias (canela14 e pimenta, dentre outras), ouro, prata e tantos outros

bens ou necessidades pertinentes ao período em que viviam. Hoje, salvo raras

exceções, não se faz a guerra por tais motivos. Guerreia-se por causa do petróleo,

pelas reservas de minerais nucleares, pelas tecnologias de ponta ... E no futuro, por

que o homem guerreará? Pelo espaço, pelo domínio da rede mundial de

computadores?

Dentre as várias causas de eclosão de guerras e conflitos, destaca-se o

petróleo como a mais relevante nos dias atuais, merecendo análise mais acurada. O

chamado ouro negro é o suporte da economia mundial na atualidade. A sua

demanda aumenta significativamente a cada ano e, no curto prazo, não há

perspectiva de que este quadro mude radicalmente, diminuindo o seu consumo.

Segundo estudiosos do assunto, ainda falta algum tempo para que o mundo

fique sem petróleo e tenha que optar por uma nova fonte de energia que atenda às

necessidades que esta fonte energética vem dando conta desde que o “homem de

hidrocarboneto” passou a existir15.

A produção mundial de petróleo gira em torno dos 80 milhões de barris

diários16 e não dá mostras de parar com esta curva ascendente. O quadro

prospectivo diz que ela ainda tem fôlego para continuar subindo, mas deverá se

estabilizar e diminuir paulatinamente, já que se trata de uma fonte de energia não-

renovável. Quando esta tendência de declínio começar a se tornar visível, as

tensões irão aumentar e os conflitos pela posse das principais reservas mundiais

poderão se tornar insustentáveis, provocando guerras localizadas, envolvendo

países importantes no cenário internacional, como os EUA, a China e a Rússia,

dentre outros, ainda extremamente dependentes desse combustível fóssil.

Mas quando se dará o início desta temida queda? Para David Greene, do

laboratório Nacional de Oak Ridge, o pico da produção mundial será em 2040, 14 Portugueses e espanhóis lutaram ferozmente pelo domínio das chamadas ilhas das Especiarias, na região das Molucas. 15 Segundo Daniel Yergin em seu estudo O Petróleo: uma História de Ganância, Dinheiro e Poder (São Paulo, Scritta, 1992), Op. Cit. em APPENZELLER, Tim. O Fim do Petróleo Barato. National Geographic, São Paulo, Editora Abril, ano 5 , nº 50, junho 2004, pg 122. 16 Dados do 1o semestre de 2004.

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quando ocorrerá o início da precipitação da produção por pura falta de poços. Já

para o pesquisador Colin Campbell, mais pessimista, os picos de produção mundial

ocorrerão em 2016, e fora do Oriente Médio, em 2006. Embora tais estudos devam

sofrer variações em função de variáveis como melhoria do aproveitamento de

energias alternativas (eólicas, solar e nuclear, dentre outras), diminuição da

produção de carros convencionais dando lugar aos carros híbridos etc, a primeira

metade do século XXI será marcada pelo decréscimo da produção de petróleo.

Para que se tenha idéia da dimensão do problema e as possíveis

conseqüências da escassez do petróleo no futuro, os EUA absorvem nos dias de

hoje 25% do petróleo produzido no planeta, apesar de possuir apenas cerca de 5%

da população mundial. Os 48 estados continentais deste país já esgotaram suas

reservas mais antigas. O Alasca, na bacia de North Slope, está em franco declínio

no que tange à prospecção de petróleo.

Consumo de Petróleo - 2002

803 985

1935 1935

7191

0

1000

2000

3000

4000

5000

6000

7000

8000

Brasil Rússia China Japão EUA

em m

ilhõ

es d

e b

arri

s

Gráfico nº 01 Consumo de petróleo - 200217

Se forem considerados outros países produtores, verifica-se que estes

possuem problemas contundentes de ordem interna, dificultando sobremaneira a

sua aquisição em condições seguras por outros países:

17 Fonte: APPENZELLER, Tim. O Fim do Petróleo Barato. National Geographic, São Paulo, Editora Abril, ano

5 , nº 50, junho 2004. Organização do Autor.

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PAÍS PROBLEMA OBSERVAÇÃO Arábia Saudita Instabilidade interna preocupa compradores potenciais

Chade Desvio dos lucros advindos do petróleo e corrupção prejudicam a credibilidade deste país para potenciais compradores

A ExxonMobil solicitou auxílio do Banco Mundial para auxiliar na solução dos graves problemas sociais do Chade. O Banco Mundial sugeriu que o governo do Chade reservasse parte dos 109 milhões de dólares anuías ganhos com petróleo para investimento em infra-estrutura. O plano não funcionou. O Chade comprou armas no valor de 25 milhões de dólares, militarizando ainda mais a região.

Irã Instabilidade interna preocupa compradores potenciais

Iraque

Ocupação dos EUA e conflitos internos, notadamente entre xiitas, curdos e sunitas, dificultam o estabelecimento de produção em escala comercial segura

As sabotagens e destruições de instalações petrolíferas nesta região não proporciona, no curto prazo, boas perspectivas de comércio seguro.

Nigéria Distúrbios sociais e políticos ameaçam o fornecimento, bem como corrupção generalizada envolvendo os lucros do petróleo

Passados cerca de 30 anos produzindo petróleo comercialmente, a Nigéria dobrou sua população de miseráveis (66% da população)

Rússia Distúrbios na política interna

A dificuldade em se estabelecer uma base política confiável dificulta o comércio de petróleo russo com estrangeiros.

Venezuela Distúrbios sociais e políticos ameaçam o fornecimento

Quadro nº 03 Países produtores de petróleo com graves problemas internos

Ainda é cedo para se afirmar categoricamente que os EUA invadiram o Iraque

com a finalidade de controlar as reservas de petróleo daquele país. Todavia, uma

coisa é certa: o mundo precisa do petróleo produzido no Oriente Médio, em

particular os EUA. É sempre bom lembrar que desde que a humanidade assumiu o

petróleo como “mola propulsora” do desenvolvimento econômico, muitas guerras

foram travadas tendo o ouro negro como uma das causas.

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GUERRA, CONFLITOS OU ÁREAS DE FRICÇÃO QUE TÊM COMO CAUSA O PETRÓLEO

ANO

Venezuela X Colômbia (linha do rio Orinoco superior, canal Cassiquiare e parte do rio Negro)

1844(a)

Guerra do Chaco (Paraguai X Bolívia) 1932 Israel 1948(a) Israel 1967(a)

Israel X Egito, Síria 1973(a) Angola 1975(a)

Irã X Iraque 1979 Iraque X Kuat e coalizão liderada pela ONU 1991

Argélia 1992(a) Chechênia 1994(a)

Peru X Equador (Serra do Condor) 1995 Iraque X Colalizão liderada pelos EUA 2003(a)

Quadro nº 04 Principais áreas envolvendo disputa por petróleo

(a) ainda sem desfecho conclusivo

O fato é que a necessidade de matérias-primas para a economia de um país

ainda continua sendo uma das principais causas de guerra.

Hoje, já se pode antever prováveis guerras no futuro por esses mesmos

motivos. A maioria das reservas de cromo, fundamental na manufatura de turbinas a

gás, encontra-se em países subdesenvolvidos, notadamente na África. O cobalto,

também importante para a indústria farmacêutica e siderúrgica, tem a mesma

característica. A platina e o manganês, importantíssimos em processos industriais

atuais e do futuro, serão objetos de intensa procura. Só que ambos têm sua maior

incidência na África do Sul, e não nos países industrializados, que mais os utilizam.

Cabe ainda abordar o nióbio. Conhecido como “metal do terceiro milênio”, é

fundamental na produção de aviões supersônicos, satélites, trens de alta velocidade

que correm sem contato com os trilhos e na siderurgia pesada. O Brasil detém cerca

de 90% das reservas mundiais, das quais, uma parte considerável no norte do país.

Dentro deste quadro, um eventual bloqueio no fornecimento desses minerais,

importantíssimos para os países industrializados, tenderá a gerar focos de tensões

que podem ou não desaguar em conflitos em nosso continente. Mais uma vez, é o

fator econômico impulsionando as guerras.

Ainda poderia ser objeto de abordagem, mais amiúde, o problema da

escassez de água potável e a importância da Amazônia neste quadro. Mas todos já

sabem desses desafios no futuro, sobejamente explorados pelos meios de

comunicação, não sendo necessário estender-se neste campo.

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A Guerra e os Números

Evidentemente, em cada fase da história, as civilizações combateram de

forma, com armamento e com propósito diferentes. Mas um componente não

mudou: o homem. Este, seja com um tacape, com um arco, com um fuzil de

pederneira, com uma metralhadora ou, quem sabe, com um fuzil de assalto a laser

no futuro, será sempre algoz e vítima nessa viagem humana pela história da

civilização. Ele será sempre o alvo principal, porque é ele quem conduz as guerras,

idealiza as doutrinas militares e inventa as armas. A sua aniquilação, grosso modo,

sempre foi o objetivo da guerra. Seja matando o líder (político ou militar) das forças

em combate, ou destruindo pura e simplesmente tantos homens quanto forem

necessários para quebrar a vontade do oponente.

Uma sucinta análise do quadro abaixo nos dá uma idéia estatística da

freqüência de guerras no período entre 1740 e 1974.

PERÍODO NÚMERO DE CONFLITOS

1740-1799 41

1800-1899 173

1900-1974 152

TOTAL 366

Quadro nº 05 Estatística dos Conflitos18

Entre 1740 e 1974 existem 234 anos de intervalo, com 366 grandes conflitos.

Desses dados, somente foram considerados: 1) As guerras estrangeiras e civis; 2)

As ocupações pela força; 3) As invasões militares: 4) As revoluções; 5) As revoltas e

insurreições; 6) Os massacres, quase genocídios; 7) Os confrontos violentos de

valor importante. Os demais conflitos, embora em grande número e causadores de

mortes, não foram considerados.

Desta forma, verifica-se que se teve neste período uma média de 1,56

conflitos por ano. Como os conflitos se superpõem no tempo, infere-se que em

determinadas épocas, havia mais de dois conflitos acontecendo simultaneamente.

18 Dados retirados de BOUTHOUL, Gaston, CARRERE, René. O Desafio da Guerra: dois Séculos de Guerra – 1740-1974. Rio de Janeiro: Bibliex, 1979. p. 18. passim. Organização do autor.

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Nunca é demais lembrar que nem mesmo os relativos períodos de paz da

História (Pax Romana, do séc II; Pax Ecclesiae, do séc XIII e a Pax Britannica, do

séc XIX), foram capazes de impedir guerras.

Se levar-se em conta o período após 1974, encontraremos diversos outros no

mundo (Inglaterra X Argentina, Irã X Iraque, Guerra do Golfo, Bósnia, Angola, Zaire,

Moçambique, Índia X Paquistão, Israel X Palestinos, El Salvador, Chipre etc) essa

cifra subiria ainda mais.

Em 2002, existiam cerca de 27 (vinte e sete) conflitos armados significativos

ocorrendo. Eram, em sua maioria, de natureza interna, configurando-se como

guerras civis e movimentos separatistas. Todavia, se levar-se em conta que para

cada conflito, existe, diretamente envolvido, pelo menos um país interessado no

problema do outro, e que este interesse se revela por ajuda em armas ou ações

militares limitadas, ter-se-á, facilmente, um resultado que coloca pelo menos 50

(cinqüenta) países inseridos em conflitos no início do século XXI. Isso demonstra

que as guerras ainda fazem parte do cotidiano mundial.

Países

México Burundi Turquia

Colômbia Ruanda Afeganistão

Senegal Uganda Paquistão

Serra Leoa Sudão Índia

Nigéria Etiópia Sri Lanka

Angola Somália Mianmar

Namíbia Eritréia Rússia

Rep Democrática do Congo Geórgia Filipinas

Israel Argélia Indonésia

EUA Haiti Peru

Reino Unido Espanha Yugoslávia

Iraque Irã China

Quadro nº 06 Conflitos atuais em andamento19

19 Foram selecionados países que apresentam diversos tipos de conflitos: guerra interna, externa, ações de terroristas etc, em diversos níveis de gravidade: latente, eventual, constante, guerra declarada, guerra não-declarada.

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Some-se aos dados anteriores, a existência de, segundo o Departamento de Estado dos EUA, 30 organizações que praticam o terrorismo internacional, tais como:

NOME ONDE ATUA EFETIVO OBS

Organização Abu Nidal Iraque, Líbia e Egito Poucas centenas Já matou ou feriu mais de

900 pessoas

Grupo Abu Say Yaf Sul das Filipinas e

Malásia Não mais que 2.000

Em 2000 seqüestrou 30 estrangeiros em férias nas

Filipinas. Grupo Islâmico Armado

(GIA) Argélia -

Já matou mais de 100 estrangeiros

Ensinamento da Verdade Suprema

Japão e Rússia Entre 1.500 e 2.000 Atentado com gás sarin

no metrô de Tóquio ETA – Pátria Basca e

Liberdade Espanha e França -

Já matou mais de 800 pessoas

Grupo Islâmico (IG) Egito, Afeganistão,

Sudão, Reino Unido, Iêmen e Áustria

- -

HAMAS – Movimento de Resistência Islâmica

Territórios ocupados pelos Palestinos

Dezenas de milhares -

HUM – Harakat Ul-Mujahidin

Paquistão-Afeganistão Milhares -

HIZBOLLAH ( Partido de Deus)

Líbano, EUA, Europa, Ásia, África e América do

Sul

Centenas de terroristas e milhares de simpatizantes

Caminhão bomba contra a embaixada dos EUA em Beirute, explosão de um

centro comercial israelense na Argentina

Movimento Islâmico do Uzbequistão

Uzbequistão, Afeganistão, Tadjquistão

e Quirguistão Milhares -

Exército Vermelho Japonês

Japão e Oriente Médio Seis militantes e vários

simpatizantes -

Al Jihad Egito, Afeganistão,

Paquistão, Iêmen, Sudão, Líbano e Reino Unido

Centenas Matou o presidente

Anwar Sadat, em 1981

Kach e Kahane Chai Israel - Matou 43 palestinos em

1994 Partido dos Trabalhadores

do Curdistão Turquia, Oriente Médio e

Europa 4.000 a 5.000 -

Tigres Tâmeis Sri Lanka 8.000 a 10.000 - Exército de Libertação

Nacional do Irã Irã Milhares -

Exército de Libertação Nacional-Colômbia

Colômbia 3.000 a 6.000 -

Jihad Islâmica da Palestina

Israel, territórios ocupados, Jordânia e

Líbano. Possivelmente tem uma base na Síria

- -

Frente de Libertação da Palestina

Iraque - -

Frente Popular para a Libertação da Palestina

Síria, Líbano, Israel e territórios ocupados

800 -

Frente Popular para a Libertação da Palestina –

Comando Geral

Israel, faixa de Gaza. Bases na Síria e no

Líbano Algumas dezenas -

Al Qaeda (A Base) Afeganistão (quase Centenas a milhares Atentado contra os EUA

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destroçada) em setembro de 2001. Atentado a embaixada

dos EUA no Quênia e na Tanzânia, dentre outros.

FARC (Forças Armadas Revolucionárias da

Colômbia)

Colômbia, com ações esparsas na Venezuela,

Panamá e Equador . 9.000 a 12.000

Mantém laços com o narcotráfico

Autodefesas Unidas da Colômbia

Colômbia 8.000

Mantidos pela elite colombiana e pelo

narcotráfico. Mais de 1000 mortos e 203

seqüestros Organização

Revolucionária 17 de novembro

Grécia - -

Frente Revolucionária de Libertação Popular

Turquia - -

Luta Revolucionária do Povo

Grécia - -

Sendero Luminoso Peru 100 a 200 30.000 mortos. Movimento

Revolucionário Tupac Amaru

Peru Menos de 100 Manteve a embaixada

japonesa ocupada por 4 meses

Brigada Alex Boncayo Filipinas 500 - Exército para a Libertação

de Ruanda Congo e Ruanda Alguns milhares -

IRA – Exército Republicano Irlandês

Irlanda do Norte, Irlanda, Reino Unido e outros

países da Europa Centenas

Centenas de atentados a bomba, seqüestros,

extorsões e assassinatos Exército de Mohammed Paquistão e Caxemira Centenas -

Exército dos Justo Paquistão, Caxemira e

Afeganistão Mais de 100 -

IRA Autêntico Irlanda do Norte, Irlanda

e Reino Unido 150 a 200

Morte de 28 civis e ferimento em 220 pessoas

em 1998

Frente Revolucionária Unida

Serra Leoa, Libéria e Guiné

Vários milhares

Seqüestrou 222 soldados e 11 observadores da

Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000

Quadro nº 07 Grupos Terroristas em Atividade20

Complementando esses dados, pode-se acrescentar que, desde o término da

Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje, algo em torno de 160 conflitos

aconteceram na Terra. Calcula-se que nesses anos de entrevero (1945 até hoje)

cerca de 7,2 milhões de soldados pereceram em combate. Lembra-se que estas

informações referem-se apenas aos mortos. Excluíram-se os feridos e os mutilados,

além dos civis e daqueles que morreram em conseqüência das guerras (fome etc).

A fim de que se possa ter meios de comparação, é importante ressaltar que o

número de soldados mortos na Primeira Guerra Mundial foi de 8,4 milhões, ou seja,

no período compreendido entre 45 até hoje, lutou-se o equivalente a uma Guerra

20 Fonte: OS tentáculos do terror. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 set. 2001, p. 1-9. Organização do autor.

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Mundial. Acrescentando-se os civis mortos, atingiu-se a cifra de 33 a 40 milhões

(excluindo-se os feridos, estuprados, doentes crônicos, empobrecidos, etc)21

21 TOFFLER, Alvim. Guerra e Antiguerra: sobrevivência na aurora do terceiro milênio. Rio de Janeiro: Bibliex, 1995. p. passim.

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Mortos Feridos Prisioneiros e

desaparecidos Envolvidos

I GM II GM I GM II GM I GM II GM

Total dos

Aliados 5.079.522 9.166.255 12.800.706 3.468.402 4.116.590 2.794.551

Total das

Potências do

Eixo

3.386.200 5.380.108 8.388.448 8.741.000 3.629.829 13.670.464

Total Geral 8.465.722 14.546.363 21.189.154 12.209.402 7.746.419 16.465.015

Quadro nº 08

Perdas Militares nas duas Guerras Mundiais

Eric Hobsbawn22, fornece sua idéia sobre essa terrível “estatística da morte”.

Segundo ele, das 74 guerras internacionais ocorridas entre 1816 e 1965, as quatro

que mais mataram ocorreram no século XX: as duas guerras mundiais, a guerra do

Japão contra a China (1937-9) e a Guerra da Coréia. Todas elas, somadas,

mataram, pelo menos, 1 milhão de pessoas.

Ou seja, comparando-se tais números, chega-se a pelo menos duas

conclusões: o século XXI não será, em princípio, um século de paz total. Muitos

problemas entre países ainda estão por ser resolvidos e novos surgirão. É lícito

supor que parcela considerável destes problemas não será solucionada por acordos

diplomáticos.

Uma estatística do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo

(SIPRI), divulgou que somente no ano de 1990 existiam 31 conflitos em andamento

no mundo.

Ainda sobre números da guerra, deve-se levar em conta o custo econômico,

além das perdas humanas. As estatísticas são várias e discordantes. Mas, segundo

a Enciclopédia Barsa, o custo militar da Segunda Guerra Mundial ultrapassou 1

trilhão de dólares. O dano material causado às propriedades privadas beirou 800

bilhões de dólares e custaram mais de 4.700 barcos mercantes, num total de 21

milhões de toneladas brutas. Além disto, deve-se acrescentar os gastos que não se

findaram com o término da guerra. A ONU, só nos EUA, estima que gastou com

22 HOSBAWN, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. passim.

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ajudas financeiras e benefícios para veteranos de guerra e assistência aos inválidos,

cerca de 30 bilhões de dólares. A tabela a seguir fornece idéia sobre esses custos.

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Custo em US$ 1.000.000 País

I GM (a) II GM

POTENCIAS ALIADAS

Bélgica 1.154 3.250

Brasil ... 1.000

China - ...

EUA 27.729 317.600

França 25.813 97.940

Grécia 270 220

Império Britânico

África do Sul 300 ...

Austrália 1.437 6.500

Canadá 1.666 15.680

Grã-Bretanha 44.029 120.000

Índia 601 2.145 (c)

Nova Zelândia 379 165

Itália 12.314 -

Iugoslávia - 220

Japão 40 -

Noruega - 93

Países Baixos - 1.000

Polônia - 2.000

România 1.600 -

Sérvia 399 -

Tchecoslováquia - 1.500

URSS 22.594 192.000 (b)

TOTAL 140.325 761.313

POTÊNCIAS DO EIXO

Alemanha 37.775 272.900

Áustria-Hungria 20.623 ...

Bulgária 815 ...

Itália - 94.000

Japão - 96.000

Romana - ...

Turquia 1.430 -

TOTAL 60.643 462.900

TOTAL GERAL 200.968 1.224.213

Quadro nº 09

Custo Direto das Guerras Mundiais23

- Não há ocorrência de dados ... Dados não disponíveis

(a) Registro do Congresso Norte-Americano, 14 de abril de 1932 (b) Custo estimado pela URSS US$ 485.000.000.000 (c) Dados referentes a 1943

23 Baseado em dados da Enciclopédia Barsa. Passim. Organização do autor.

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Dentro da vertente estatística, os gráficos abaixo revelam que os gastos dos

países com a guerra ainda são altos e, o mais interessante, apresentaram

crescimento de 6% de 2001 para 2002 e de 11,5% de 2002 para 2003. Obviamente,

a invasão do Iraque é a causa mais visível deste fenômeno. Contudo, isto reflete que

não há uma tendência de diminuição imediata dos investimentos em armamentos e

nas novas tecnologias voltadas para o emprego bélico. No mínimo, o que existe é a

manutenção dos gastos ao longo dos últimos anos.

Gastos Militares Globais

0200400600800

10001200

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

Em

US

$ b

ilhõ

es

24

Gráfico nº 02 Gastos Militares Globais

A fim de que se tenha idéia do que significam esses números, de forma

comparativa com outras atividades humanas, verifica-se que mandar um homem a

Marte terá um custo estimado em 1 trilhão de dólares, que o montante previsto para

o combate a Aids pela ONU é de 10 bilhões de dólares e que o orçamento fiscal

brasileiro gira em torno dos 127 bilhões de dólares. Em 2003 o mundo gastou cerca

de 960 bilhões de dólares em guerras ou compra de armamentos.

24 Extraído do jornal O Globo, de 10 de junho de 2004, pg 31, artigo: Conflitos que custam caro, do editor.

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Gastos por países em 2003

47

36

4 4 4 5

01020304050

EU

A

Out

ros

Paí

ses

(153

)

Chi

na

Fra

nça

Rei

noU

nido

Japã

o

Em

%

25

Gráfico nº 03 Gastos por países em 2003

Países Gastos em Bilhões

de Dólares Estados Unidos $396.1

Rússia $60.0 China $42.0 Japão $40.4

Reino Unido $34.0 Arábia Saudita $27.2

França $25.3 Alemanha $21.0

Brasil $17.9 Índia $15.6 Itália $15.5

Coréia do Sul $11.8 Iran $9.1

Israel $9.0 Taiwan $8.2 Canadá $7.7 Espanha $6.9 Austrália $6.6 Holanda $5.6 Turquia $5.1

Cingapura $4.3 Suécia $4.2

Emirados Árabes Unidos $3.9 25 Fonte: jornal O Globo, de 10 de junho de 2004, pg 31, artigo: Conflitos que custam caro, do editor.

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Polônia $3.7 Grécia $3.3

Argentina $3.1 Paquistão $2.6 Noruega $2.8 Kuwait $2.6

Dinamarca $2.4 Bélgica $2.2

Colômbia $2.1 Egito $2.1

Vietnam $1.8 Iraque $1.4

Coréia do Norte $1.3 Portugal $1.3

Líbia $1.2 Republica Tcheca $1.1

Filipinas $1.1 Luxemburgo $0.9

Hungria $0.8 Síria $0.8 Cuba $0.7 Sudão $0.6

Iugoslávia $0.5 Quadro nº 10

Gastos com defesa26 (orçamento fiscal)272829

26 Fonte: International Institute for Strategic Studies e (DoD) Department of Defense (EUA) 27 Os dados tem como fonte os orçamentos fiscais da maioria dos governos, enquanto outros são estimativas. 28 Os gastos militares nunca podem ser dados como certos, geralmente há mais de uma fonte com valores bem diferentes, apenas para citar um exemplo temos a Rússia cujos valores estimados partem dos 20 bilhões de dólares e chegam a ultrapassar os 100 bilhões, desde os tempos da União Soviética os valores oficiais divulgados pelos russos são cerca de um terço das estimativas do ocidente 29 Os valores estimados para Líbia, Hungria, Síria, Iugoslávia entre outros parecem ser bem abaixo dos valores reais.

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Países Percentual do PIB PIB Estados Unidos 3 9.800

Rússia 23 251,1 China 4,12 1.100 Japão 1 4.800

Reino Unido 2,42 1.400 Arábia Saudita 10,5 173,3

França 2,6 1.300 Alemanha 1,48 1.900

Brasil 3 593,8 Índia 3,17 457

Quadro nº 11 Gastos Militares (PIB)30

Gráfico nº 04

Gastos Militares dos Principais países latinos (PIB)31

30 Fonte: Almanaque Abril 2003 (dados considerados de 2000) 31 Fonte: Almanaque Abril 2003 (dados considerados de 2000)

Gastos Militares na América do Sul

1,8 1,6 1,6 1,5 4,11

23,9

1,2 0,91 3

05

1015202530

Urugu

ai

Argen

tina

Parag

uai

Chile

Venez

uela

Brasil

% d

o P

IB

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Custo de guerras envolvendo os EUA

119 82584

4800

5886,4 3,2

Iraq

ue -

2003

Gol

fo -

1991

Vie

tnã

II G

M

I GM

His

pano

-A

mer

ican

a

Civ

ilA

mer

ican

a

Gráfico nº 05

Custo de guerras envolvendo os EUA. Valores em bilhões de dólares32.

Por outro lado, os dados do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz (Sipri),

sediado em Estocolmo, informam que o ano de 2003, apesar de ter sido o que gerou

maior gasto militar na última década, apresentou o menor número de conflitos

armados desde a Guerra Fria, com exceção de 1997. Seriam, segundo este instituto,

19 conflitos, assim distribuídos: 8 na Ásia, 4 na África, 3 no Oriente Médio, 1 na

Rússia e 3 na América. Tal situação, demonstra que apesar da diminuição do

número de conflitos, os gastos estão sendo mantidos, podendo revelar a tendência a

uma “paz armada” regional, visando possível defesa em caso de guerra em alguns

países.

O relatório do Sipri trata, ainda, de outros tópicos que merecem destaque: o

Brasil e a Índia aparecem como países que podem contribuir no médio prazo para

aumento global de gastos militares; os maciços investimentos na área militar por

parte da China, conduzem para corrida armamentista na Ásia (Índia, Japão, Coréia

do Norte e Paquistão tem razões históricas para se protegerem da China) e a venda

de armas ilegais, notadamente aquelas vindas de ex-repúblicas soviéticas,

preocupam as autoridades haja vista o poder que tais armamentos possuem, não só

32 REDAÇÃO, da. Custos de Guerra. Revista Época, São Paulo: Editora Globo, nº 316, de 7 de junho de 2004. p. 16.

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físico, mas psicológico, no sentido de deflagrar conflitos regionais latentes, em

particular os de vertente religiosa.

Finalizando a abordagem sobre a Guerra e os números, ao contrário do que

se pensa, as guerras do futuro não serão tão “cirúrgicas” quanto se supõe. As mortes

continuarão a acontecer, e não será a tecnologia bélica que irá minimizar essas

mortes. No conflito ocorrido no Iraque, em 1991, segundo relatório da ONU, foram

mortos cerca de 100 mil soldados iraquianos, 7 mil civis iraquianos, 30 mil kuatianos,

510 militares da Coalizão e deixados milhares de refugiados curdos. Os corpos

estraçalhados de militares e civis continuarão fazendo parte das estatísticas da

guerra por mais modernas que sejam as tecnologias. É preciso que qualquer nação

que resolva entrar em conflito saiba disso. É o preço dos conflitos humanos.

Guerra: aberração social ou parte da natureza humana?

Mas, se o homem historicamente esteve no estado de guerra mais do que no

de paz, por que repudia tanto a guerra, evitando-a ao máximo? Talvez por saber que

ela, embora seja uma constante na sua vida, é uma aberração da sua natureza.

Ao mesmo tempo, esse homem que tem verdadeiro pavor da guerra, sabe

fazê-la, levando-a às últimas conseqüências. Emprega toda a sua capacidade

intelectual e física no sentido de obter um resultado próximo da perfeição. É um

paradoxo que talvez leve alguns a pensarem que a humanidade possui uma dupla

personalidade: uma voltada para a paz e compreensão entre os homens, e outra

desenvolvida para a guerra. A primeira é utilizada até onde cada grupo acha

tolerável. Mas quando ela não é capaz de resolver os conflitos existentes, ele “muda”

sua personalidade para a segunda. Nela não há limites, a não ser aqueles que

atendam aos seus interesses.

É importante frisar que ao se fazer uma avaliação do histórico da

humanidade, conclui-se que os pontos de inflexão da história se caracterizam pela

presença marcante, cíclica e indubitável entre guerra e paz.

Muitos historiadores e pesquisadores do assunto, por convicções diversas ou

por prurido, não admitem a natureza humana da guerra. Realmente, ninguém em

seu juízo perfeito gosta da guerra, incita-a ou faz propaganda dela. Contudo, afirmar

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que ela não está, historicamente, ligada ao homem é, no mínimo, questionável sob

vários pontos de vista.

Mas, se o homem não é belicoso, como explicar a reação agressiva de

monges budistas contra a invasão chinesa no Tibet, em 1950? Ou a reação

extremamente violenta dos monges em acontecimentos ocorridos na região citada

na década de 90? Através da mídia, foi possível ver os “pacíficos e frugais” monges

quebrando móveis na cabeça de outras pessoas.

O estado de paz, diz o coração dos homens, é a regra para a humanidade. A

guerra é sua exceção. Entretanto, vive-se mais na exceção do que na regra.

A Declaração de Sevilha33, assinada em 1986, na Universidade de Sevilha,

condenou veementemente a natureza bélica humana. Ela contém cinco artigos,

todos iniciando com “É cientificamente incorreto...”. Sem exceção, todos os artigos

condenam qualquer caracterização do homem como naturalmente violento.

Essa importante e séria declaração, sem dúvida alguma possui validade.

Contudo, ela não responde à razão pela qual o homem se mantém num estado

belicoso constante. Parece que ela é muito mais uma mensagem positiva,

condenando a guerra e tentando convencer as pessoas a olhá-la sob o ângulo da

anormalidade, do que um estudo conclusivo sobre a não-violência humana.

Os inúmeros, profundos e antagônicos estudos publicados sobre a guerra

mostram a sua importância. Se assim não fosse, por que tantas mentes iluminadas

dedicaram-se e dedicam-se ao seu estudo? Evidentemente, não há dúvida da

relevância da pesquisa da famosa e universal indagação “Por que os homens

lutam?”.

Muitas idéias sobre a guerra e suas causas foram ventiladas por intermédio

de livros. Mas quais delas definem com exatidão a guerra?

Flagelo da humanidade advindo do pecado original, cujo ponto inicial seria o

assassinato de Abel por Caim. Um estado inseparável do estado da natureza,

segundo Thomas Hobbes, no século XVII. Fenômeno coletivo entre os “insetos

sociais”, assim definido por André Corvisier. Ato de violência, cuja finalidade é

obrigar o adversário a fazer nossa vontade; continuação da política por outros meios,

definição tão batida e desvirtuada de Clausewitz. Diferença entre príncipes ou

Estados que é decidida pelas armas. Talvez uma definição mais abrangente de

33 Reunião de estudiosos ocorrida em 1986 que procuraram discutir, entre outros assuntos, a problemática da guerra.

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guerra satisfaça, como a de Engels e Marx, que diziam que a guerra era de natureza

essencialmente econômica, diplomática e psicológica, e que só em última instância

deveria ser, também, de natureza militar. A negativa de Von Seeckt é também

interessante, dizendo que a guerra não é a continuação da política por outros meios;

é a falta da política. Quem sabe, a inversão feita por Lenine, inferindo que será a luta

permanente de classes, onde a paz é a continuação da guerra por outros meios?

Kant diz que a humanidade deve percorrer o caminho sangrento das guerras, para

chegar um dia à paz. Finalmente, uma frase do General William Tecunseh

Sherman, que viveu a guerra durante praticamente toda a sua vida adulta. Disse ele:

“Estou farto da guerra. Sua glória é pura quimera [...] A guerra é o inferno”34. Talvez

seja isso que a guerra represente: um inferno criado pelos homens.

O fato é que o homem possui sentimentos pacíficos e belicosos debatendo-se

no seu íntimo. As condições e o meio em que vive irão determinar qual deles irá

aflorar com maior intensidade. Dizer que o homem é pacífico por natureza é, ainda,

uma proposição cheia de falhas.

A teoria do “Bom selvagem”, mitificada por Thomas Morus, na sua obra

Utopia, em 1516, servia-se da América como contraponto aos hábitos belicosos e

individualistas dos europeus da época.

Essa obra empolgou diversos estudiosos que queriam demonstrar que se o

homem vivesse longe dos vícios e cobiças existentes na Europa daquela época, ele

tornar-se-ia um ser pacífico por natureza.

Todavia, tal tese caiu por terra quando se verificou que os índios do Brasil, por

exemplo, apesar de viverem em total isolamento dos problemas morais europeus,

faziam guerras, praticavam antropofagia e matavam sem necessidade. O trecho

selecionado da carta de Américo Vespúcio35 é bastante ilustrativo. Havia seis dias

que o comandante da expedição, Gonçalo Coelho, mandara desembarcar dois

marinheiros para entrar na mata e tentar negociar com índios da tribo Potiguar.

Naquele dia, a praia se encheu de mulheres. Gonçalo envia, então, dois batéis com

homens a bordo. Quando o primeiro marinheiro desembarcou, algumas mulheres o

cercaram e começaram a apalpá-lo. Ato contínuo, uma mulher que havia se

escondido em um pequeno monte, corre na direção do marinheiro e desfere-lhe um

34 Apud KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras: Bibliex, 1996. p. 22. 35 Parte da famosa Lettera escrita por Vespúcio em Lisboa a 4 de setembro de 1504 e endereçada a Piero Soderini, importante figura política de Florença.

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golpe com um tacape, ferindo-o na nuca. Continuando a descrição do fato, ele

testemunha:

“Então, as outras mulheres imediatamente o arrastam pelos pés para o

monte, ao mesmo tempo em que os homens, que estavam escondidos, se

precipitam para a praia armados de arcos, crivando-nos de setas, pondo em tal

confusão a nossa gente, que estava com os batéis encalhados na areia, que

ninguém acertava lançar mão das armas, devido às flechas que choviam sobre os

barcos. Disparamos quatro tiros de bombarda, que não acertaram, mas cujo

estrondo os fez fugir para o monte, onde já estavam as mulheres despedaçando o

cristão e, enquanto o assavam numa grande fogueira, mostravam-nos seus

membros decepados, devorando-os, enquanto os homens faziam sinais, dando a

entender que tinham morrido e devorado os outros dois cristãos.”36 ·

A belicosidade de algumas tribos de índios brasileiros data de antes da

chegada dos europeus. Arosca, um cacique Carijó, da tribo guarani, ao travar

contato com os franceses capitaneados por Binot de Paulmier, resolve, em 1504,

enviar seu filho e herdeiro Essomeriq, para a Europa, com a missão de “aprender a

fazer canhões”37, com os quais Arosca queria esmagar seus inimigos tradicionais, os

Tupiniquim do litoral de São Paulo. Isso comprova que os europeus apenas

“incrementaram” a Arte da Guerra indígena, que, diga-se de passagem, já utilizava

táticas de guerrilha, como foi demonstrado na emboscada sofrida pelos infelizes

marujos de Vespúcio.

Finalmente, para que se tenha uma argumentação mais contundente de que

não basta o isolamento dos homens em lugares paradisíacos para extirpar o

fenômeno da guerra, recorre-se ao exemplo da Ilha de Páscoa. Localizada a mais de

3.200 quilômetros da América do Sul, no Pacífico meridional, e a quase 5.000

quilômetros da Nova Zelândia, a Ilha de Páscoa é considerada um dos lugares mais

isolados do mundo. Por conseguinte, pouco influenciada por quistos belicosos de

países mais desenvolvidos.

36 BUENO, Eduardo. Náufragos, Traficantes e Degredados: as Primeiras expedições ao Brasil,1500-1530. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p.45. 37 idem. p.94.

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É de se imaginar que neste lugar perdido, a guerra jamais iria ter lugar. O seu

povo não conhecia outras terras e vivia daquilo que era extraído da ilha. Porém, lá

existiu uma guerra que praticamente dizimou a população. Dos 7.000 habitantes

(número máximo estimado), foram encontrados apenas 111 pessoas em 1722 pelo

viajante holandês Roggeveen38. Isso tudo se deveu a um estado de guerra

impressionante, quando, por motivos ainda não comprovados, a população dividiu-

se em dois grupos e passou a guerrear. Sinais colhidos posteriormente, denunciam

a existência de guerra endêmica e de canibalismo, bem como a confecção de

fortificações rudimentares, tais como túneis, abrigos individuais e cavernas fechadas

com pedras polidas para proteger famílias. Em uma das extremidades da ilha foi

encontrada uma vala cavada para separar uma península com a finalidade de

defesa estratégica.

Europeus, índios, polinésios e tantos outros povos diferentes, fizeram a

guerra, cada um ao seu modo, sem saberem da existência dos demais. Será que

ainda se pode afirmar que o homem é pacífico por natureza?

Por outro lado, não se pode afirmar que o homem sempre será belicoso. As

transformações culturais pelas quais ele vem passando podem ser um indício de que

se caminha para um estado de menos guerras e mais compreensão.

“... a instituição da escravidão humana foi criada na aurora da raça humana e

muitos outrora julgaram-na um fato elementar da existência. Contudo, entre 1788 e

1888, essa instituição foi substancialmente abolida[...] e essa extinção parece, até

agora, ser definitiva. Da mesma forma, as veneráveis instituições do sacrifício

humano, do infanticídio e do duelo parecem ter fenecido ou sido eliminadas. Poder-

se-ia argumentar que a guerra, ao menos a guerra no mundo desenvolvido, está

seguindo uma trajetória semelhante.”39

De fato, a tendência atual é da minimização das guerras de grande

intensidade. No entanto, a incerteza do futuro, face aos múltiplos e velozes

caminhos que o homem está por percorrer, infere muita cautela em se afirmar que a

humanidade está se depurando a ponto de eliminar a guerra de sua cultura.

38 KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras: Bibliex, 1996. p. 43. 39 John Mueller, cientista político americano. Apud KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras: Bibliex, 1996. p. 77.

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A Guerra pode trazer benefícios?

Embora maléfica, merecedora do repúdio da humanidade, não é possível falar

da guerra sem lembrar de alguns dos seus efeitos positivos para os homens. As

guerras que levaram milhões de homens e mulheres ao túmulo, também foram

responsáveis pela ampliação de conhecimentos em diversas áreas.

Na psicologia, os estudos realizados com homens em combate, possibilitou a

descoberta de mecanismos de defesa humanos quando submetidos a grande

pressão psicológica. Lorde Moran, em sua obra The Anatomy of Courage, em

196640, verificou que o movimento ou o trabalho de qualquer natureza ajudava o

soldado a minimizar os sentimentos de medo ou estresse. Seus estudos,

possivelmente, foram utilizados em outros tratamentos de pessoas que não

estiveram envolvidas em guerra.

As pesquisas sobre fadiga em combate revelaram novos caminhos no

tratamento e diminuição das suas conseqüências em profissões que exigem grande

pressão e necessidade de manter-se em alerta por longos períodos, tais como

bombeiros, policiais, comandantes de navios, médicos etc.

Robert Andrey, Leonard Berkowitz e Konrad Lorenz41, segundo Kellett, no seu

livro “Motivação para o Combate”, fizeram profundos estudos sobre agressão, ódio,

frustração e hostilidade, baseados em relatos e pesquisas de combate.

O Exército Britânico realizou, em 1976, uma experiência interessante sobre o

efeito da falta de sono em combate. A primeira parte chamou-se Antecipada nº 1.

Suas conclusões demonstram que soldados que dormiam três horas por noite,

permaneciam eficientes por nove dias ou mais; os que dormiam uma hora e meia

por noite, eram eficientes por apenas cinco dias. Os soldados que nada dormiam,

perdiam sua eficiência em parcos três dias.

Na segunda experiência, chamada Antecipada nº 2 (nessa oportunidade não

houve intervalo de sono), os homens deixaram de ser considerados como força

eficiente após 68 horas sem dormir. Ao contrário do que se pensa, a perda da

eficiência física foi mínima. O que os tornou pouco eficientes foi o comportamento

inapropriado e irracional. Verificou-se, neste exercício, que todos os indivíduos que

40 Apud KELLET, Anthony. Motivação para o Combate. Rio de Janeiro: Bibliex, 1987. p. 255 – 258. 41 Renomados pesquisadores sobre o comportamento humano.

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participaram da experiência, relataram alucinações visuais depois de 72 a 96 horas

sem dormir. Vale ressaltar que tais alucinações foram mais intensas quando os

indivíduos estavam sós ou isolados socialmente. Disso, resultou que o Dr. Belenky,

do Instituto do Exército Walter Reed, concluiu que apoio social e estímulo sensorial

são importantes na manutenção do comportamento normal dos indivíduos cansados

e estressados, transportando os conhecimentos adquiridos para a prática em

doentes civis.42

No que concerne ao desenvolvimento tecnológico, o campo é imenso. A

mesma energia nuclear que foi desenvolvida para os artefatos nucleares, hoje é

utilizada na medicina, salvando milhares de vidas. O radar, um invento militar da 2ª

Guerra Mundial, hoje proporciona navegação segura para aviões e navios. Os

aviões a jato militares foram a mola propulsora para a existência de modernos

aviões comerciais que transportam as pessoas pelo mundo com rapidez e

segurança, além de foguetes que permitem colocar em órbita satélites e telescópios

que ajudam a conhecer melhor o mundo. Os atuais motores refrigerados a ar devem

seu aperfeiçoamento aos motores desenvolvidos para carros de combate que

atuaram nos desertos da África do Norte durante a 2ª Guerra Mundial.

A corrida espacial, durante a Guerra Fria, possibilitou o aperfeiçoamento de

diversos aparelhos de precisão e requintes tecnológicos inimagináveis. O GPS43, um

invento com finalidade predominantemente militar, atualmente é utilizado para a

navegação de navios, aviões, veículos e pessoas no mundo inteiro. Binóculos,

câmaras de filmar potentes que podem “enxergar” no escuro, computadores mais

eficientes que permitem precisão na prevenção de acidentes climáticos, rádios mais

poderosos e menores, sistemas de transmissão de dados mais rápidos e confiáveis,

motores menores e mais robustos, tudo isso foi resultado de pesquisas que,

inicialmente, tinham um só objetivo: proporcionar meios mais modernos e eficazes

para a guerra. A própria Internet foi um projeto militar americano para interligar

computadores militares para uma eventual guerra com a ex-URSS. Hoje fornece

educação, comunicação, salva vidas, ajuda pessoas, enfim, melhora a qualidade de

vida.

42 KELLET, Anthony. Motivação para o Combate. Rio de Janeiro: Bibliex, 1987. p. 255-259. 43 Global position System. Sistema também conhecido como NAVSTAR. Utiliza sinais de vinte e quatro satélites em órbita estacionária. Proporciona precisão de até onze metros para lançamento de mísseis e bombas “inteligentes”. O sinal disponível para o público em geral contém um erro programado de noventa e oito metros. Um segundo sinal, só pode ser decodificado por equipamento militar norte-americano.

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O campo espacial, que sofreu intensa pressão na Guerra Fria, foi o que mais

influenciou os avanços tecnológicos. Hoje, os satélites KH-11 (tira fotografias

extremamente nítidas de pessoas na Terra), Magnum (proporciona escuta de

conversas telefônicas estrangeiras), LACROSSE (colhe imagens de radar de

qualquer território da Terra), Jumpseat (detecta transmissões eletrônicas), além do

projeto Nuvem Branca (detecta navios inimigos em alto mar) são armas criadas para

a guerra convencional que auxiliam no salvamento de pessoas, no incremento de

avançadas tecnologias de comunicações, além de auxiliar o combate ao

narcotráfico.44

No que se refere à componente econômica, é preciso que se diga que uma

guerra “aquece” determinados setores da economia. Após o atentado de 11 de

setembro de 2001, os EUA aplicaram entre US$ 10 bilhões e US$ 15 bilhões para as

Forças Armadas. Some-se a isso, mais US$ 33 bilhões de aumento no orçamento

da defesa para 2002 . Como se não bastasse, há a intenção de o Pentágono solicitar

entre US$ 15 bilhões e 25 US$ bilhões, a título de verba adicional45. Todo esse

dinheiro será convertido em compra de armamentos, combustível, víveres e toda a

gama de necessidades, inclusive pesquisa de alta tecnologia, que dá suporte às

Forças Armadas dos EUA, gerando emprego.

Ainda no campo econômico, após esse atentado terrorista, segundo o jornal

Folha de São Paulo, a taxa de juros caiu de 3,5% para 3%, o Federal Reserve (BC

dos EUA) injetou US$ 100 bilhões na economia para aumentar a liquidez bancária,

além de injetar US$ 15 bilhões no setor aéreo e acenar com a possibilidade de

colocar mais US$ 71 bilhões de incentivo fiscal para a construção de ferrovias de

alta velocidade para minimizar as possibilidades de ataques terroristas similares. É

um reaquecimento pontual jamais visto na história econômica do mundo.

O próprio Brasil, com a revisão da política econômica dos EUA, já conseguiu

importantes passos na reunião da Organização Mundial do Comércio em Doha.

Muitas das barreiras comercias e problemas sobre subsídios dos países europeus

começam a ser desatados, haja vista a necessidade de os países ricos olharem com

mais atenção os países pobres. Isso nada tem a ver com bondade repentina. Mas

44 Para se aprofundar, ler o Cap. 12 de TOFFLER, Alvim. Guerra e Antiguerra: Sobrevivência na Aurora do Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Bibliex, 1995. 45 Segundo DAO, James. Crise impulsiona indústria bélica. The New York Times: Folha de São Paulo São, Paulo, 23 set 2001. p. 1-4.

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com a visão clara de que, se os ricos não dividirem melhor a riqueza, outros

atentados podem acontecer provenientes de áreas menos assistidas. Alvos

compensadores não faltam.

Outro aspecto positivo de um conflito é a necessidade de os países

envolvidos em rever suas políticas, tanto externa como interna. Embora ainda

prematuro de ser analisado, uma das conseqüências mais positivas do atentado aos

EUA em setembro de 2001, é a necessidade desse país rever sua política

isolacionista (incrementada por Bush) e parcial. Isso já pode ser notado em vários

aspectos, destacando-se a nova posição dos EUA em relação à Palestina e outras

áreas do Oriente. Como se vê na opinião de Avram Noam Chomsky, lingüista

americano, em entrevista para a Folha de São Paulo em 22 de setembro de 2001:

“Os EUA deveriam aderir ao consenso internacional que vem se formando e

que até agora foi bloqueado por Washington em relação a um acordo diplomático

sobre o conflito entre Israel e Palestina, pôr fim ao seu apoio a regimes repressivos,

remover as barreiras ao desenvolvimento econômico independente, abandonar os

ataques à população civil do Iraque, aceitar os princípios das leis internacionais e

assim por diante.”

Ainda dentro das conseqüências positivas de uma guerra ou conflito,

podemos citar as revisões de políticas internas. Num artigo para a revista Foreign

Affairs, intitulado “Keeping the Edge: Managing Defense for the Future”, Ashton B.

Carter (professor de Ciência e Relações Internacionais da Escola Kennedy de

Governo, de Harvard) e Jonh P. White, questionam sobre quais organismos internos

devem combater o terrorismo. Tal debate está propiciando aos EUA uma nova visão,

mais moderna, sobre combate ao terrorismo.

No campo social também existem benefícios. A inserção da mulher no

mercado de trabalho, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial, abriu

portas para a luta por direitos iguais e uma justa valorização da mulher e das suas

capacidades. A unificação de países, como a Itália e o Império Austro-Húngaro,

proporcionou um reordenamento político e social na Europa, para citar apenas dois

exemplos.

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O surgimento de entidades e grupos preocupados em preservar a paz é outro

produto de uma guerra. O Direito Internacional passa a ser mais aprofundado e o

arbítrio internacional a ser valorizado.

Apesar de todos esses avanços inegáveis que a guerra e as suas

conseqüências promoveram ao longo dos anos, ela não pode ser justificada através

desse viés de pensamento. Os rápidos resultados obtidos através dos conflitos não

justificam a sua existência nem a torna um comportamento social normal ou

necessário. O homem, provavelmente, atingiria estes conhecimentos, só que de

forma mais lenta. Contudo, é um fato que não pode ser deixado de lado num estudo

sobre ela. A guerra, principalmente aquela de grande amplitude, é um acelerador do

conhecimento humano.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

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CAPÍTULO 2

O Pensamento do Guerreiro

“Os soldados não são como os outros homens – eis a lição que aprendi de uma vida entre guerreiros.”

John Keegan

Para o homem das armas - independente das conclusões etimológicas,

morais, legais, psicológicas, lexicográficas, históricas, sociológicas ou até mesmo

filosóficas - a tentativa de definição exata e universal da guerra pouco importa

quando ele se vê diante dela. Este contexto, embora de extrema importância para a

sua compreensão nos níveis mais profundos, perde toda sua força diante dos

sentimentos humanos na iminência de transpor uma linha de partida para um

ataque.

Ao combatente só conta sair vivo do inferno da guerra. As considerações

científicas não são, definitivamente, do seu interesse naquele momento. O suor no

rosto, o cheiro de pólvora, o barulho das explosões, a poeira nos olhos, os gritos dos

moribundos, o som monótono das explosões, o ruído dos aviões com o seu rastro de

querosene invadindo suas narinas, a fome, o frio, o medo de morrer, a secura na

boca, a adrenalina correndo em suas veias e invadindo seu corpo, o clarão das

armas que apontam para ele e toda a imensa quantidade de estímulos aos seus

sentidos é que são a realidade da guerra. O restante é acessório, especulação e

adorno.

Os valores numa situação concreta de combate, muitas vezes, são

desfocados e dúbios, como se vê no trecho abaixo:

“Se você matar alguém, tudo bem, faz parte. Se alguém do seu grupo morrer,

também faz parte. Você teme mais o isolamento do que as balas dos inimigos. Seus

companheiros são tudo para você. E a presença da morte é sempre boa: mostra que

você está vivo”46

46 HAAG, Carlos. A Síndrome do Golfo. Jornal Valor Econômico, Rio de Janeiro, 21 mar. 2001. p. 12. Depoimento de Anthony Swofford, ex- fuzileiro naval dos EUA, combateu na Guerra do Golfo de 1991,é professor de literatura em Portland e autor do livro ”Jarhead: A Marine’s Chronicle of the Gulf War”.

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“Mas só os civis celebram o herói, a morte e a destruição da guerra, duas

coisas que os soldados nunca comemoram. A bagunça emocional chamada “vitória

nacional” importa pouco para os guerreiros”47

Para esse homem, valem as palavras de Gaston Bouthoul, que dizia que não

há guerra quando o sangue não corre. É essa constatação que faz um homem em

combate acordar e entender que está, efetivamente, numa guerra: sangue correndo.

É sobre ele que vai convergir todo o impacto de infinitos fatores que somente

uma guerra é capaz de produzir. Sobre seus ombros, independente do lugar que

ocupa na hierarquia militar, é que irão se abater toda uma série de fatores que só

uma guerra pode infligir ao ser humano, e que na maioria das vezes não está escrito

nos manuais de campanha.

Assunto vasto, polêmico, inconclusivo no seu todo, mas que acomete as

mentes dedicadas ao seu estudo de uma necessidade especulativa impossível de

ser contida no peito.

O Profissional Militar

“O soldado conhece a vida em toda a sua riqueza e estímulos”

Temugue (Gengis Khan)

Desse ponto, já se pode depreender que a profissão militar possui aspectos

tão peculiares e marcantes, que não nos permite compará-la com as demais.

O primeiro ponto que salta aos olhos é que, de uma forma ou de outra, os

militares do mundo inteiro e de todas as épocas juram colocar sua vida em risco e,

se preciso for, abrir mão dela para alcançar os objetivos traçados pelos seus chefes

em nome de uma decisão dos políticos que o governam. Desconhece-se qualquer

outra profissão que atinja tal abnegação, de forma oficial e patente.

Um médico, por exemplo, jura envidar todos os seus esforços para salvar

vidas. Um advogado jura promover a justiça aos homens. Um arquiteto tem por

objetivo projetar residências, prédios ou qualquer obra de arte de engenharia que

beneficie o ser humano, proporcionando-lhe conforto e condições básicas de vida. E

assim poderíamos descrever as mais variadas profissões.

47 idem

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O militar é o único que hipoteca a sua vida desde o início da sua caminhada

profissional. Não que os demais não possam – muitos o fazem – dar sua vida em

determinada situação. Contudo, um militar o faz de imediato, esperando ou não, que

chegue o momento em que lhe será cobrado na íntegra o seu juramento. Para que

se tenha a verdadeira noção da profundidade de um juramento feito por militares,

colocamos o juramento feito pelos mangoday (guerreiros) do exército de Gengis

Khan e o do Exército Brasileiro.

Juramento do Exército de Gengis Khan

Juro obedecer ao meu comandante e ao meu comandante supremo, o Kha-

Khan.

Juro ser fiel aos meus camaradas, às ordens recebidas e aos meus

comandantes.

Juro estar sempre pronto a sacrificar minha vida.(grifo do autor)

Juro consagrar-me a Deus e fazer o que ele considerar correto, sem

ambições pessoais e sem considerar as conseqüências.

Juramento do Exército Brasileiro

Incorporando-me ao Exército Brasileiro, prometo cumprir rigorosamente as

ordens das autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores

hierárquicos, tratar com afeição os irmãos de arma e com bondade os subordinados,

e dedicar-me inteiramente ao serviço da pátria, cuja honra, integridade e instituições,

defenderei com o sacrifício da própria vida.(grifo do autor)

Entre esses dois juramentos, há um espaço de pelo menos setecentos anos.

Contudo, os dois traduzem o mesmo sentido, ou seja, o de preservar o governo (no

caso do juramento do guerreiro de Gengis Khan, ao Kha-Khan, governo constituído

da época ou, contemporaneamente, o Estado) e empenhar a própria vida. Se

analisássemos qualquer outro juramento, de qualquer exército, certamente iria-se

encontrar, com estilos literários diferentes, mas com o mesmo teor, a conotação

acima.

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Essa diferenciação não é recente. O Frei Alfonso de Cabrera, no século XVI,

já ressaltava as peculiaridades da profissão militar, dizendo

“O que significa ser um soldado? Um homem determinado a morrer pelo bem

público e para que viva em paz a república. Nisso consiste a profissão militar, não

em andar ao som do tambor e do pífaro, com o fuzil ao ombro. De forma que, se

bem analisada, é uma profissão mais nobre que a de um religioso, cuja vida se

resume em viver sob a promessa de obediência, castidade e pobreza, porém o

soldado professa morrer.”48

A razão de se insistir nessa diferenciação, muitas vezes desconhecida da

maioria das pessoas, é a de que, para se tornar um militar, tanto o homem quanto a

mulher, necessitam de qualidades específicas, como idade, preparo físico, condutas

morais ilibadas, capacidades intelectuais apuradas etc. Normalmente, tais critérios

são rígidos e nem todos estão aptos a se enquadrarem neles.

Além disso, a sua formação geral, notadamente a do oficial e a do sargento,

impõe uma série de restrições na vida pessoal do profissional militar que a maioria

das outras profissões não necessitam. Horário integral dedicado à força,

necessidade de manutenção de padrões físicos permanentes, obrigatoriedade de

procedimentos e comportamentos morais compatíveis com a sua situação de militar

e uma formação disciplinar extremamente rígida, são apenas algumas.

A especificidade da formação escolar também é outro ponto que diferencia o

militar dos demais. A necessidade de uma educação em regime integral, com vasta

amplitude de conhecimentos, com teorias, práticas e estudo de diversas áreas que

numa universidade são estudadas por grupos específicos, torna a formação singular.

Um oficial, por exemplo, deve possuir conhecimentos de Física, Matemática,

Filosofia, Direito, Economia, Psicologia, História, Idiomas etc. Isso, por si só, já o

torna um profissional diferente, haja vista a necessidade de concatenar

conhecimentos específicos em uma só formação, aplicando-os de maneira

multidisciplinar no seu cotidiano.

48 LORA, Juan Boza de. Profissão e Sentido Profissional Militar. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXX, nº 1, p. 76, 1º Trim. 1990.

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Ao profissional militar, além das sanções legais previstas na justiça comum,

há ainda, as penas disciplinares que são impostas àqueles que por algum motivo

transgridem o sem número de normas e leis. Fato que não ocorre – na mesma

intensidade - com outras profissões.

Verifica-se, dentro da profissão militar, o imperativo de se realizar cursos ao

longo da carreira. Alguns de caráter obrigatório e outros de caráter facultativo. O fato

é que, se o militar não buscar, ao longo da sua permanência na força, aperfeiçoar-se

constantemente, corre o risco de perder promoções e comissões.

O risco de vida diuturno, companhia constante do militar, é outra vertente que

deve ser explorada. O manuseio de armamentos, munições, viaturas e outros

equipamentos, sempre operados no limite da capacidade técnica, coloca-o sob

constante perigo. Os problemas, ainda não comprovados, com o trato manual de

munições feitas de urânio empobrecido na Guerra do Golfo (1991) e nos combates

nos Balcãs, atestam tal assertiva.49

Por outro lado, isso não torna os militares, necessariamente, profissionais

melhores do que os demais. Trata-se apenas de uma diferença, mas que não deve

ser esquecida ao se analisar a profissão militar e a sua atividade fim: A GUERRA.

A guerra é a ocasião em que os militares têm por dever honrar na íntegra seus

juramentos. É nela que ele vai ser colocado frente-a-frente com os seus demônios,

suas fraquezas e suas virtudes. Será no combate que ele poderá tornar-se um herói,

um covarde ou apenas alguém que cumpriu ou não o seu dever. Somente ele

poderá julgar a qual dessas categorias pertence, independentemente do juízo que os

seus comandantes, pares ou subordinados façam dele.

A Guerra e seus Imponderáveis

“Equipment may fail; but, minds can improvise, make allowances and adjust50”.

Major-general/ EUA Lon E. Maggart

Inúmeras obras têm sido escritas sobre a guerra. Cada uma delas vê o

combate sob um determinado ângulo. Algumas estudam ou descrevem campanhas

ou batalhas específicas, como Dionísio Cerqueira em “Reminiscências da Guerra do

49 Estudiosos europeus suspeitam que o material usado na fabricação desta munição possa estar causando câncer em soldados, além de vômitos, dor de cabeça e fadiga precoce. Está sendo chamada de “síndrome dos Bálcãs”. 50 “Equipamentos podem falhar; mas, as mentes podem improvisar, analisar e ajustar” (tradução livre).

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Paraguai” ou Moshe Dayan, em “A guerra do Sinai”. Outras se preocupam com o

estudo dos generais que conduziram as batalhas, como Desmond Young em

“Rommel” , onde pinta um retrato bastante interessante sobre este brilhante general

alemão; e Reginald T. Paget, em “Manstein, Campanhas e Julgamento”. Existem as

que abordam as estratégias e as táticas utilizadas nas guerras ao longo da história,

esmiuçando-as em copiosos esboços ilustrativos, como as obras de Lidell Hart e

John Frederick Charles Fuller. Há, finalmente, aquelas que se debruçam sobre a

filosofia da guerra, suas causas, suas conseqüências, sua validade, enfim, sobre a

essência da guerra. Julian Lider, com “Da Natureza da Guerra”, Clausewitz, em “Da

Guerra”, e Sun Tzu, no seu mitológico “A Arte da Guerra”, são bons exemplos de

obras com essa finalidade.

De forma genérica, as obras de cunho militar são ricas em detalhes e

defendem, dentro de uma ótica, determinado ponto de vista do autor. Elas

complementam outras obras, abrangendo o espectro de informações sobre o

assunto. Todavia, não procuram ou não conseguem ser conclusivas.

E por que isso ocorre? Por que não é possível encontrar uma obra final, que

encerre o assunto de forma razoavelmente aceita por todos? Talvez, porque, além

de ser um assunto vasto e fascinante, a guerra tenha um ingrediente que não

permite que seja tratada de forma matemática: o HOMEM.

É precisamente este ser, preso nas suas idiossincrasias, que coloca por terra

muitas teorias, generalizações e conceitos formados ao longo da história da

humanidade em um único combate. Suas respostas, embora previsíveis até certo

ponto, podem apresentar resultados totalmente antagônicos daqueles julgados

“previsíveis”.

Por mais que se tente formular doutrinas, confeccionar manuais, atualizar

teorias, inventar armamentos, nunca se conseguirá colocar a arte da guerra sob um

prisma cartesiano.

Moltke já antecipava essa idéia – impossibilidade de se “calcular o

desenvolvimento do combate” - na primeira metade do século XIX, dizendo:

“Nenhum plano operacional pode ser planejado com certeza além do primeiro

engajamento com o inimigo. É uma ilusão pensar que podemos planejar toda uma

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campanha e chegar até o fim da forma planejada... A primeira batalha determinará

uma nova situação em que a maior parte do plano original será inaplicável.”51

É a sinergia de todos esses fatores, que só mostram a sua magnitude no

combate, que se chama de “imponderáveis da guerra”.

O inimigo que surpreende, a munição que acaba, o combustível que falta, a

comida que não chega, a ferida que rasga a pele, a incompetência do comandante,

a covardia do soldado, a quebra do carro de combate no meio do ataque, a aviação

que lança as bombas na tropa amiga, a fumaça que não permite enxergar o alvo, os

limites indefinidos do terreno, o frio e a chuva que abatem o ânimo, o sol que cega

as vistas, a lama impregnando e emperrando o armamento, a falta de adestramento,

a liderança tíbia, o socorro que não chega, a junção que não se efetiva, o rádio que

não funciona, o equipamento que não corresponde às expectativas, o armamento

novo do inimigo, a solidão, o medo...

As reações mais surreais podem acontecer num combate, como mostra

Turnipseed: “Durante um bombardeio que tentei entrar num ‘bunker’. Um sujeito,

olhos arregalados, de cuecas e uma pistola na mão gritava: ‘Saiam daqui! Esse é um

abrigo apenas para oficiais”.52

O que levou um oficial a tomar essa atitude, pondo em risco a vida de

soldados em razão de um simples abrigo? Falta de coragem, pânico?

Similarmente e de maneira muito mais grave, durante a Guerra do Vietnã, a

ação do então Tenente William Calley, do exército dos EUA, em May Lai, provocou

reações altamente negativas do povo americano ao saber que ele havia ordenado a

execução de 347 homens desarmados, mulheres e crianças. Ao se defender do

ocorrido, alegou que tratava-se de uma resposta “justa” pois diversos companheiros

seus haviam sido mortos em combate naquela região. Foi uma atitude inesperada e

que até hoje fica difícil achar explicação. São os imponderáveis da guerra mostrando

sua face mais tenebrosa.

Evidentemente, os autores que se dedicam a escrever e a pesquisar a guerra

sabem da dificuldade em se construir modelos matemáticos sobre ela. Contudo,

51 KRAUSE, Michel D. Moltke e as origens da arte operacional. . Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXX, nº 4, 4º Trim. 1990. p. 54. 52 HAAG, Carlos. A Síndrome do Golfo. Jornal Valor Econômico, Rio de Janeiro, 21 mar. 2001. p. 12. Relato de Joel Turnipseed, ex- fuzileiro naval dos EUA, combatente da Guerra do Golfo de 1991, filósofo e autor do livro “Baghdad Express”.

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alguns procuram perseguir uma formatação que não existe. Caso isso fosse

possível, ela seria uma arte simples – o que não é. Bastaria atacar de três para um e

a vitória seria certa. Fogos sincronizados e profundos teriam como resultado a

quebra da linha de suprimento inimiga. Superioridade tecnológica e experiência em

combate trariam uma vitória cirúrgica e insofismável.

Todavia, a História Militar nos mostra que Vietnã, Azincourt, Lawrence da

Arábia, na sua “guerra fluída” contra os turcos, Yom Kippur, Coréia e Afeganistão

(contra a ex-URSS) dentre outros, são fatos históricos de inegável constrangimento

para os “matemáticos” da guerra. Não que eles estivessem errados por completo,

mas porque outros vetores, como o humano, torna esta equação passível de

resultados diferentes daquele “calculado”.

A batalha de Farsália (48 a 47 a.C.) é um caso típico em que o mais forte

perde para o mais fraco, desafiando as projeções matemáticas. Esta batalha deu-se

entre Caio Júlio César (100-44 a.C.) e Pompeu. Ambos, após a morte de Crasso, em

53 a.C., passaram a disputar o governo do Império Romano. Caio derrotou-o nessa

batalha, malgrado estar em profunda desvantagem numérica: 25 mil infantes (cerca

de 9 legiões) e mil cavaleiros, contra 50 mil infantes (cerca de 18 legiões) e 7 mil

cavaleiros.

A batalha de Ilipa (206 a.C.), entre Públio Cornélio Cipião, o Africano, (234-

183 a.C.) e Aníbal (247-183 a.C.) é outro bom exemplo. Cipião contava com 45 mil

infantes e 3 mil cavaleiros, venceu Aníbal e o exército cartaginês composto por 70

mil infantes, 4 mil cavaleiros e 32 elefantes. Com essa batalha, Aníbal foi

definitivamente derrotado53 e deu-se o término da segunda Guerra Púnica.

Um caso atual corrobora os argumentos acima. Após a Guerra de 1967

(Guerra dos Seis Dias), o General Donn A. Starry54, do Exército dos EUA, frisou que

“os coeficientes iniciais não determinam o resultado de uma guerra. Não faz

diferença quem está em vantagem ou desvantagem numérica”55. O que realmente

conta, segundo Starry, é a iniciativa de um dos contendores. Os escalões atrás de

escalões, tão ao gosto dos chineses, não são necessariamente mais eficazes.

Essa afirmação foi fruto da mentalidade americana até 1984, que afirmava:

53 Aníbal suicidou-se antes de ser capturado pelos romanos ao fim dessa batalha. 54 Junto com o General Don Morelli, criaram o que eles mesmos chamaram de “Doutrina Ar-terra”. 55 Apud TOFFLER, Alvim. Guerra e Antiguerra: Sobrevivência na Aurora do Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Bibliex, 1995. p. 66.

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“....tinha como pressuposto –enraizado em jogos de guerra e manobras de

treinamento – era de que , se um dia os soviéticos atacassem na Alemanha, as

tropas da OTAN iriam recuar, lutar para ganhar tempo, e então passar à ofensiva e

fazê-los recuar. Se falhassem iriam recorrer ao uso de armas nucleares.”56

Hoje, fruto da reestruturação da doutrina militar americana e do avanço

tecnológico vertiginoso, viu-se que era um erro confiar apenas nos números.

Evidentemente, o fator matemático existe na guerra. Seria um despropósito

não aceitá-lo. O que merece ser analisado é o verdadeiro peso que o número de

homens, carros de combate, aviões, submarinos, bem como os seus alcances, raios

de ação e estado da arte tecnológica influenciam numa batalha. Tais dados são

fáceis de serem tabulados, estudados e, finalmente, analisados. Basta uma consulta

na Internet ou no último “Military Balance”, publicado pelo International Institute Of

Strategic Studies (IISS) para que um pesquisador atento e meticuloso faça um

balanço de forças que poderão se opor e seu provável desfecho. Mas isso seria

suficiente para se chegar a um prognóstico certeiro? Sabe-se que não...

Clausewitz, que de certa maneira tentou formatar a guerra com algumas

idéias chaves, alerta dizendo que “...Na guerra, tudo é retardado pela influência de

inúmeras circunstâncias insignificantes que não podem ser avaliadas no papel, mas

que podem levar um homem a não alcançar o seu objetivo.”57 Talvez, nesse ponto,

Clausewitz tenha interpretado com precisão e concisão a alma de uma batalha: a

imprevisibilidade.

Os motivos que levam um exército, uma divisão, um batalhão ou um simples

grupo de combate a vencer ou a perder uma batalha, transcendem o momento da

ultrapassagem da linha de partida e retroagem a passados distantes, que incluem a

história do exército a que o militar pertence, o seu grau de treinamento, a sua

religião, o seu moral e crença na batalha que está travando, os políticos que o

governam, a capacidade dos seus chefes, a logística que o apóia, o serviço de

saúde de campanha, os resultados de campanhas anteriores, a doutrina utilizada, o

terreno, as condições meteorológicas, a qualidade do seu equipamento, enfim,

inúmeros fatores que estas linhas não conseguiriam descrever. O caos da batalha

56 TOFFLER, Alvim. Guerra e Antiguerra: Sobrevivência na Aurora do Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Bibliex, 1995. p. 66. 57 CLAUSEWITZ, Carl von. On War, Princeton, 1976. Apud FREYTAG-LORINGHOVEN, Hugo von. O Poder da Personalidade na Guerra. Rio de Janeiro: Bibliex, 1986. p. 59.

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não se inicia na ordem de atacar, ele é mais pernicioso e envolvente do que se

imagina. E serão esses fatores, que podem ser adversos ou não, mas impossíveis

de serem quantificados integralmente, que irão determinar o resultado final do

combate.

A simplificação do combate é uma necessidade dos exércitos, como deixa

claro John Keegan, nos capítulos iniciais de sua obra “A Face da Batalha”58. O

militar é formado dentro de um prisma de concisão, objetividade e clareza. No fragor

da batalha não há espaço para tergiversar ou conjecturar profundamente. Há, sim, a

necessidade de ação, seja ela qual for. Disso resulta o pensamento pragmático -

para muitos insensível - do militar em situações de crise. Na realidade é um instinto

de autopreservação pessoal, dos seus homens e da sua missão. Ele sabe que deve

preservar o seu grupo, custe o que custar, bem como resolver o problema que se

apresenta com o menor número de baixas para ele e o maior para o inimigo.

Por outro lado, utilizar a simplificação de forma demasiada pode levar um

exército à derrota. Princípios, fundamentos e técnicas de abordagem automatizadas

para uma situação de combate são benéficas, pois permitem colocar sob uma ótica

cartesiana elementos dispersos que afetam, terrivelmente, a decisão do comandante

em qualquer nível, além de evitar a “paralisação por pânico” dos militares sob fogo

ou sob pressão de decisões inadiáveis e imediatas.

Entretanto, adicionar elementos e fatores, nem sempre palpáveis ou

catalogáveis que influenciam o resultado, é tão importante ou mais do que somente

seguir manuais ou regulamentos em combate. Somente homens de mente aberta,

formação sólida e com razoável capacidade de abstração dos dogmas militares

(doutrina, tática, regulamentos etc) saberão fazê-lo sob o fogo inimigo.

Posto assim, de forma escrita e ordenada, parece razoavelmente simples

formar este homem. Mas para a decepção de muitos, isso é extremamente difícil

para qualquer exército. Cada vez mais, os conflitos modernos exigem um homem

com “dupla personalidade”.

Ele deve ser capaz de reproduzir, automaticamente e sem vacilo,

determinados desempenhos e ações que se espera dele em combate. Ao receber

fogos de artilharia deve abrigar-se numa coberta. Ao ver o seu pelotão deparar-se

com uma coluna inimiga, deve desdobrá-lo, informar ao seu comandante, esclarecer

58 Para entender o ponto de vista de Keegan acerca da necessidade de simplificação da guerra, ler KEEGAN, John. A Face da Batalha. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000. p. 22. passim.

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a situação, adotar uma linha de ação (atacar, retrair, desbordar etc) e informar ao

seu comandante a linha de ação tomada o mais rápido possível, sem vacilações.

Quando realizar um salto de pára-quedas, ao tocar o solo, deve ter o seu armamento

à mão e reunir-se com o seu grupo no mais curto prazo e combater. Enfim, são

atitudes automatizadas inerentes ao militar e fundamentais para que a operação em

que ele esteja envolvido tenha as mínimas possibilidades de sucesso.

Todavia, ele deve ser capaz de fazer mais. Deve ter capacidade de analisar

todas as variantes que lhe aparecerem e tomar uma decisão que na maioria das

vezes não consta dos manuais nem pode ser treinada na paz.

Iludir o inimigo com artifícios e ardis, demonstrar mais poder do que possui,

arrastando galhos nas areias do deserto para levantar poeira e dar a impressão de

que uma coluna de viaturas leve é uma coluna de blindados, como fizeram ingleses

e alemães na 2ª Guerra Mundial. Lançar bonecos de pára-quedas, dando a

impressão de que o número de combatentes é maior do que o que realmente existe.

Ou, quem sabe, lançar o corpo de um falso major, de nome Willian Martin, nas

proximidades do rio Huelva, no sudoeste da Espanha, com falsos planos para

enganar os alemães quanto ao verdadeiro local do desembarque aliado na Sicília

em 10 de julho de 1943 como fizeram os aliados na 2ª Segunda Guerra Mundial.

Certamente, tais artifícios não constavam dos manuais. Foram frutos de decisões de

homens que ultrapassaram os ditames regulamentares e foram capazes de ampliar

suas possibilidades decisórias a fim de atingir seus objetivos de forma inesperada e

criativa.

Mas como saber quando o militar deve ser um autômato e quando deve ser

um analista criativo e versátil?

Muitos fatores irão levar o combatente a tomar um ou outro caminho. Todos

conhecem frases do tipo : “Você não é pago para pensar, mas para executar.” Ou,

quem não ouviu: “Aqui nós defendemos a democracia, porém não a praticamos.”?

São expressões que estão arraigadas em muitos exércitos e acabam influenciando o

homem na sua decisão, tornando-o mais ou menos criativo.

Às vezes se cobra iniciativa, impetuosidade e outros atributos de

personalidade dos subordinados extremamente importantes para um exército.

Todavia, esquece-se de que tais atributos são minados de forma inconsciente em

muitos exércitos, no seu nascedouro, ou seja, nas escolas militares. Os exércitos

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árabes são bastante conhecidos pela falta de criatividade e arrojo de suas tropas,

fruto de uma instrução extremamente rígida, inflexível e automatizada.

Com o passar do tempo, os militares, na sua maioria, adquirem o bom-senso

e passam a tomar decisões criativas e acertadas. Porém, o problema é que são os

mais novos, em geral, que sofrem as maiores pressões em combate. Isso porque

são eles que estão no front, vendo os “olhos do inimigo” e recebendo toda sorte de

fogos sobre suas cabeças.

Disso tudo, pode-se dizer, usando uma frase de John Keegan, em seu livro

“Uma História da Guerra”, que ”os soldados não são como os outros homens”.

Embora a guerra mantenha laços com todos as outras expressões do poder (política,

econômica, psicossocial, ciência e tecnologia), ela possui características que a torna

diferente na sua condução e no seu pensamento. Qualquer tentativa de se equiparar

militares a civis é perda de tempo e grave erro de análise. Trata-se de uma cultura

diferente, quase quixotesca, onde os mais altos valores morais são evidenciados ao

máximo.

O combatente profissional é, sem dúvida alguma, uma classe especial de

homem. Classe essa que existe há milhares de anos e continuará existindo por

muitos outros, de formas e maneiras diferentes, adaptando-se às mudanças do

tempo. Todavia, sempre conservará seus valores de sacrifício pessoal e coletivo em

prol de um grupo maior, chamado Nação. A consideração de Yen Tzu, em 493 a.C.,

sobre Ssu-ma Jang-chu, são conclusivas sobre o perfil de um bom soldado: “O

comandante ideal reúne cultura e temperamento bélico; a profissão das armas exige

uma combinação de dureza e suavidade”.

Importante se faz dizer que o combatente profissional aqui relatado é o militar

pertencente a uma organização estruturada, organizada e legitimada pela lei de um

país. Outras tropas, embora tenham combatido em guerras ao longo da história,

como os cossacos e os partzanos, não podem ser considerados militares

profissionais. Embora até utilizassem técnicas militares, terem na sua organização

alguma similitude com os exércitos regulares, tratava-se apenas de hostes

guerreiras, sem objetivos muito definidos e despidos de qualquer amparo legal que

legitimasse suas ações. Podem até servir como exemplos específicos a fim de se

colher lições sobre sua atuação, mas de forma nenhuma podem ser confundidos

com militares. Seria uma injustiça com últimos.

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CAPÍTULO 3

A Guerra e a Humanidade

“Sobre a pergunta se a guerra é arte ou ciência, a resposta a ser dada é que é uma

profissão.”

Engels e Marx

Como já foi visto, o homem repudia a guerra, mas está constantemente

preparando-se para ela. Ele não a quer, mas se ela acontecer, ele estará preparado.

Cada Nação, ao longo de sua história, se preparou e se prepara para um

eventual conflito de acordo com suas possibilidades. A expressão econômica é,

dentre todas as outras do poder nacional, quem dita o grau de preparo em tempo de

paz de um exército, embora cada uma das demais tenha participação significativa,

dependendo das origens culturais do país analisado.

Países ricos tendem a estar mais preparados para a guerra, e países pobres

menos. É o dilema das “espadas versus arados”59. Quanto mais desenvolvido um

país, mais investimentos em defesa ele necessita despender a fim de poder, numa

eventualidade, proteger os seus direitos e interesses. Os EUA são um exemplo

disso. Além de serem a maior economia do mundo, possuem o exército mais bem

equipado do globo, em condições de projetar o seu poder militar em qualquer parte

do planeta em poucas horas ou dias.

Essa teoria encontra eco em Friedrich List, que dizia “A guerra, ou a

possibilidade mesma da guerra, torna o estabelecimento de uma capacidade

industrial uma exigência indispensável para uma Nação de primeira categoria...”60 ,

em franca oposição com a visão de Adam Smith, que insistia em se manter os

investimentos militares em patamares baixos a fim de que estes não prejudicassem

o desenvolvimento do país.

59 Dilema macroeconômico, que juntamente com o dilema Consumo X Investimento, trata dos problemas econômicos relevantes da atualidade. 60 Segundo MACCORMICK, T. China Market: America’s Quest for Informal Empire. Chicago, 1967. Apud KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Transformação Econômica e Conflito Militar de 1500 a 2000.Rio de Janeiro: Campus, 1991. p. 512.

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Destinação da expansão das possibilidades de produção com o duplo objetivo de aumentar a SEGURANÇA e o BEM-ESTAR. Os padrões de vida podem permanecer estacionários. Se forem bem administrados pela política de governo, equilibram boas condições de aumento progressivo do bem-estar com a necessária segurança dos padrões de vida atingidos. Ex: EUA, Reino Unido, França

Destinação da expansão das possibilidades de produção prioritariamente para a SEGURANÇA. Os padrões de vida podem regredir, tornando o governo insustentável ao longo dos anos. O paradoxo de uma máquina bélica eficiente, porém cara e em descompasso com as precárias condições de vida da população podem levar aos distúrbios internos. Ex: ex- URSS, Coréia do Norte, China

X = Y

X < Y

X > Y

Eixo do X = Bem-estar Eixo do Y = Segurança

Quadro nº 12 Dilema Espadas versus Arados

Alguns países, aparentemente, fogem da regra geral de que a economia é a

mola de propulsão das guerras. A antiga URSS, hoje fragmentada, é um exemplo.

Embora a condicionante ideológica tivesse um papel fundamental, foi a economia da

ex-URSS quem ditou até aonde a ideologia poderia alcançar. A mesma economia

que impeliu o comunismo para boa parte do mundo, foi a que motivou o seu

crepúsculo, derrubando o vetor ideológico, obrigando aquele país a implementar a

Glasnost e a Perestroika.

Evidentemente, outros fatores podem fomentar um conflito. A religião, a

política, a necessidade de segurança estratégica regional, dentre outras. Todavia,

elas são dependentes das possibilidades econômicas de um país para empreender

uma luta armada.

Destinação da expansão das possibilidades de produção prioritariamente para o BEM-ESTAR. Os padrões de vida podem aumentar. A inexistência de forças armadas condizentes com o alto nível de conforto populacional, provocando cobiça de outros países, pode conduzir a conflitos externos em que o país não tenha as condições de defender o modo de vida adotado. Ex: Kuweit, Suíça

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Mesmo os acontecimentos atuais, ligados ao atentado terrorista de 11 de

setembro de 2001 aos EUA, não servem para contradizer o argumento da

importância do peso econômico sobre os conflitos. Embora haja, em acentuada

quantidade, o componente religioso, são os interesses econômicos dos EUA que

fizeram o diapasão da guerra vibrar. Afinal, o terrorismo só existe quando encontra

um terreno fértil em fome, desigualdade econômica e pobreza para proliferar.

O artigo “Onde o Nome da Religião é Petróleo”, de José Arbex Jr, tece amplo

comentário sobre a vertente econômica da guerra travada pelos EUA e aliados no

Afeganistão. Entre outras observações, Arbex argumenta que:

“o que está em jogo, na Tchetchênia, travestido de “conflito religioso”, é a

disputa pelo controle da economia do petróleo. Os cinco países da bacia do Cáspio

– Azerbaijão, Cazaquistão, Irã, Rússia e Turcomenistão – possuem reservas

estimadas em 200 bilhões de barris de petróleo e um volume comparável de gás.61”

Desnecessário dizer que o Afeganistão faz fronteira com o Turcomenistão e

Irã entre outros. Além disso, é importante destacar que o Azerbaijão, o Cazaquistão

e o Turcomenistão possuem mais petróleo e gás do que o Golfo Pérsico inteiro. Não

é a toa que empresas de petróleo dos EUA negociam acordos bilionários (exceto

com o Irã) com a finalidade de explorar essas reservas. Ainda haverá, segundo

alguns, a necessidade de se passar oleodutos e gasodutos em território afegão.

Apenas causas religiosas nesse conflito? Difícil de acreditar...

Como forma de sustentar a teoria de que o campo econômico e militar

andam, em tempos de crise, juntos, vale-se de Paul Kennedy: “...a riqueza é

geralmente necessária ao poderio militar, e este por sua vez é geralmente

necessário à aquisição e proteção da riqueza.”62

Em síntese, a expressão econômica é o aspecto fundamental das guerras,

embora não seja a única. O próprio Paul Kennedy alerta para algumas poucas

exceções, referindo-se ao posicionamento geográfico, a organização militar, a moral

nacional, ao sistema de alianças e outros. Porém, será a expressão econômica que

61 JUNIOR, José Arbex. Onde o nome da religião é petróleo. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 set. 2001, p. 9. 62 KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Transformação Econômica e Conflito Militar de 1500 a 2000.Rio de Janeiro: Campus, 1991. p. 2.

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dirá se pode ou não haver a guerra e, se esta for declarada, qual será a sua

amplitude.

A história mostra que os exércitos se prepararam e continuam se preparando

para a eventualidade de um conflito. Os diversos fatores que podem deflagrar uma

guerra são intimamente ligados ao fator econômico e à necessidade de

desenvolvimento dos países. Como esse desenvolvimento implica em tensões com

outras nações, tudo leva a crer que a guerra continuará a acompanhar a

humanidade por muitos anos.

Os Exércitos na Paz

“As bases principais de todos os Estados – sejam novos, antigos ou mistos – são as boas leis e os bons exércitos. E porque não pode haver boas leis onde não há bons exércitos e onde há bons exércitos convém haver boas leis,

deixarei de lado a discussão das leis e falarei dos exércitos”. Maquiavel

Os exércitos são organizados, adestrados e formados com o objetivo de usar

a violência, de forma legal, para atingir objetivos traçados pelos mandatários de um

Estado, dentro de uma situação de crise. Neste contexto, eles se preparam nos

períodos de paz para responder a um eventual chamado.

A preparação para a guerra em tempo de paz é complexa e difícil de ser

cumprida na íntegra. Exige recursos que uma Nação normalmente não dispõe na

necessidade exigida e que poderiam ser carreados para outras áreas mais

importantes e prementes, com: saúde, educação, saneamento básico, transportes,

moradias etc.

Outro aspecto difícil de ser entendido pela população é que o produto final

dos exércitos não é palpável. Se o governo investe em moradias, a população as vê

construídas e, uma parte, usufrui dela. No caso dos exércitos, o seu “produto final” -

a segurança - não é facilmente perceptível.

Um exército em tempo de paz deve ter como objetivo principal tornar-se um

vetor de dissuasão contra interesses divergentes de outras nações em relação aos

da Nação a que pertence. A sua principal tarefa é, em conjunto com as outras

expressões do poder, evitar a guerra. Para conseguir tal intento, ele deve ser capaz

de convencer a população e as demais nações da sua capacidade de responder a

qualquer ameaça eventual que os canais governamentais, notadamente o político e

o diplomático, não consigam responder.

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Isso só é possível se esse exército for bem adestrado, equipado, dotado de

quadros capazes (em todos os níveis) e possuir uma doutrina experimentada e

coerente com os objetivos de segurança do país. Esses fatores, aliados a outros,

tais como política responsável, diplomacia firme, autodeterminação, posições

internacionais claras e economia pujante, formam um complexo conjuntural positivo

que tornam a Nação relativamente segura63, em condições de prosseguir na

conquista dos objetivos nacionais, sem necessitar de recorrer à guerra.

O Brasil, dentro das limitações e óbices conjunturais, procura estar preparado

para dissuadir qualquer crise, respondendo com suas Forças Armadas quando for

preciso, segundo depreendemos das palavras do Ministro Geraldo Quintão:

“A avaliação permanente dos quadros regional e mundial, conduzida

conjuntamente pelo Itamaraty e pelo Ministério da Defesa, é um elemento importante

para a identificação de ameaças e oportunidades. O novo sistema de defesa

nacional deverá, portanto, em cumprimento ao estabelecido na Política de Defesa

Nacional, buscar sintonia cada vez maior com o Itamaraty no delineamento de suas

ações voltadas para a defesa externa. A consolidação da paz é o nosso principal

objetivo, mas o ambiente internacional de hoje, nem sempre amigável, nos obriga a

estarmos preparados para garantir a integridade territorial e a soberania do País

diante da emergências que demandem resposta armada.”64

Contudo, manter um exército nessas condições por um longo período é

extremamente difícil e oneroso. Com o passar do tempo, é possível que ele comece

a perder sua identidade e adote outros rumos que pouco a pouco o tornam ineficaz

contra a eventualidade de um conflito. Isso não quer dizer que um exército necessite

entrar em guerras constantes e desnecessárias de tempos em tempos para manter-

se eficiente.

Tal tendência vem tornando os exércitos de alguns países ineficazes para os

fins a que se destinam. Isso é extremamente preocupante, haja vista as

características da guerra moderna, que tendem a ser mais rápidas na sua evolução 63 Segurança é um elemento indispensável à busca do Bem Comum, caracterizado pelo fato de a Nação sentir-se garantida contra ameaças de qualquer natureza, pelo emprego do Poder Nacional. Defesa é um ato diretamente ligado a determinado tipo de ameaça, caracterizada e dimensionada. (Fundamentos Doutrinários da Escola Superior de Guerra). 64 Palestra proferida pelo Ministro Geraldo Quintão, em 28 de agosto de 2000, aos alunos do Instituto Rio Branco, sobre o tema “Defesa, Diplomacia e o Cenário Estratégico Brasileiro”

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de estado de paz, para o estado de preparação e, finalmente, para o estado de

guerra propriamente dito. É imperativo que uma Nação possua uma força armada

pronta e capaz de atuar em pouco tempo, dentro dos interesses e das necessidades

do país.

Para exemplificarmos a crescente velocidade no desenvolvimento de

conflitos, tomem-se alguns exemplos brasileiros.

O Brasil declarou guerra ao Eixo em 22 de agosto de 1942. A Força

Expedicionária Brasileira (FEB) foi criada em 9 de agosto de 1943 pelo Ministro

Eurico Gaspar Dutra. O primeiro escalão chegou a Nápoles somente em 16 de julho

de 1944 e só entrou em combate em meados de novembro de 1944. Foram 25

meses desde a declaração de guerra até o seu batismo de fogo. Nesse perído foi

possível organizá-la, adestrá-la e equipá-la da melhor forma possível para entrar no

conflito com as mínimas chances de sucesso.

Recentemente, em 1997, o Exército Brasileiro teve problemas na sua fronteira

com a Colômbia. Elementos das Forças Armadas Revolucionarias Colombianas

(FARC) ameaçavam ampliar o conflito além das fronteiras colombianas. O Exército e

a Força Aérea Brasileira, em pouco mais de 36 horas, desdobraram efetivos e

equipamentos ponderáveis na região, dissuadindo de imediato qualquer pretensão

das FARC em penetrar nas fronteiras brasileiras. Isto mostra claramente a

necessidade de se manter efetivos adestrados e prontos para intervir em poucas

horas em situações como estas.

O pelotão de PE do Exército Brasileiro, designado para juntar-se às Forças de

Paz da ONU, no Timor Leste, teve pouco mais de quatro dias para ser organizado,

embarcar e atuar. No dia 15 de setembro de 1999 o Presidente Fernando Henrique

autorizou o envio de tropas. No dia 20 de setembro fizeram escala no Rio de Janeiro

e decolaram para o Timor Leste.

Esses três exemplos mostram o crescimento geométrico da necessidade de

grande velocidade de resposta que uma tropa deve ter para ser empregada. Isto

ensina que os exércitos, mesmo em tempo de paz, precisam ter um mínimo de

preparo para um emprego imediato. Mas será que todos os exércitos são ou foram

assim? Veja a transcrição do texto abaixo:

“A Nação vive a transição entre as 1ª e 2ª Guerras Mundiais.

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O Exército espelha as atitudes do povo. O que hoje acontece já ocorria há um

século. A massa de oficiais e praças é destituída de qualquer senso de urgência.

Atletismo, recreação e entretenimento têm precedência, na maioria das unidades,

sobre o treinamento sério. Alguns dos oficiais, devido aos longos anos de paz,

criaram pra si mesmos profundos sulcos de rotina profissional, dentro dos quais se

abrigam contra irritantes idéias novas e os problemas perturbadores. Outros,

atolados num posto por muitos anos, pois o tempo de serviço é, praticamente, a

única base para a promoção, abandonaram a esperança de progresso.

Não há nenhuma defesa segura contra carros de combate ou aviões

modernos. As tropas carregam modelos de madeira de morteiros e metralhadoras e

podem estudar novas armas apenas por cópias de desenho técnico. Equipamentos

de todo o tipo estão em falta, e muitos dos que estão em uso foram, originalmente,

produzidos para a última guerra.

Além disso, as verbas militares durante a última década restringiram os

treinamentos à base de pequenas unidades. Mesmo a munição de armas portáteis,

para o tiro ao alvo, é racionada e distribuída ocasionalmente.

Veículos, carros de combate modernos e equipamentos antiaéreos são

criticamente escassos.

O exército concentra-se em cuspir e polir formaturas para revistas e paradas,

porque o povo, na sua repugnância à guerra, nega a si mesmo uma situação militar

razoável.

A doutrina e a teoria militares, conseqüentemente, não podem ser

suplementadas com a aplicação prática; os oficiais e as praças não possuem a

segurança que se obtém apenas com a experiência e a prática em campanha.

Apesar da crescente preocupação com a guerra, a Nação está tão

despreparada para aceitá-la com seriedade, que o treinamento não pode ser

conduzido em imitação realística do campo de batalha. Tem de ser efetuado no

estilo xarope calmante, calculado para levantar o mínimo de ressentimentos dos

soldados e das famílias. Muitos oficiais superiores têm medo de uma manchete

sensacionalista contra a exposição dos soldados ao tempo inclemente ou ao

cansaço de extensas manobras e, assim, não ordenam o único tipo de treinamento

que renderá dividendos, tão logo as balas comecem a voar.65

65 Apud MINERVINO, Oacyr Pizzotti. Forças Armadas em tempo de paz: reflexões. A Defesa Nacional, Rio de Janeiro: Bibliex, nº 760, p. 41 – 42, abr. – jun. 1993.

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Ao concluir a leitura do trecho acima, a maioria é tentada a imaginar que o

exército descrito pertence a algum país em desenvolvimento, muito provavelmente

na América Latina, África ou talvez, no Oriente. Mas essa descrição é do Exército

dos EUA, no início da década de 40, quando a Alemanha já lutava na Europa.

Na ante-sala da 2ª Guerra Mundial, a França também sofria com essa

despreocupação irresponsável em relação às suas forças armadas.

“É inegável que um impulso obscuro compele nossos legisladores a reduzir

cada vez mais a duração do serviço ativo. Em dois lustros, ela baixou de três anos

para um só, encurtando recentemente. Já se fala em oito meses e não tardará o dia

em que se proponha seis ou quatro. Ora, os recrutas que, por dupla fornada,

passam cada ano pelos regimentos, mesmo que consigam aprender o uso de suas

armas por um milagre de ardor dos instrutores, não poderiam tornar-se bons

técnicos do combate. Nas 24 semanas, a que se reduz de fato a instrução de cada

soldado, deduzindo-se as demoras de incorporações e de licenciamento, as festas,

as folgas, as moléstias, as medidas sanitárias, os trabalhos extraordinários etc,

pede-se à infantaria que prepare e adestre metralhadores, fuzileiros, granadeiros e

volteadores, observadores, sinaleiros, condutores, telefonistas e radiotelegrafistas,

tornando-os tanto quanto possível intercambiáveis e adaptando-os, além disso, à

ação de conjunto, quando a simples formação de uma equipe selecionada de futebol

reclama tantos esforços e cuidados. Grupos sempre provisórios, dispersos, apenas

reunidos, como figuras de um jogo de cartas incessantemente distribuídas e

baralhadas, eis em que, para falar a verdade, consistem nossos corpos-de-tropa. Em

lugar de um rendimento máximo, que uma combinação de atividades bem reguladas

poderia tirar de um material aperfeiçoado, nunca se vai além de esboços

apressados. E como, por outro lado, não se pode mais contar com a perícia dos

antigos combatentes, já desaparecidos dos fichários das reservas, nossas unidade

mobilizadas só poderiam adquirir a habilidade coletiva exigida pelo material depois

de um largo prazo, que tende a se tornar cada vez maior. Basta ver, empilhado nos

depósitos, o montão de armas, instrumentos, aparelhos, fardamentos, veículos,

munições etc, destinados a qualquer das unidades de formação e imaginar a

multidão de indivíduos sem experiência e sem coesão que, da noite para o dia, teria

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de servir-se de tudo isso, para se avaliar que imenso desperdício de homens e de

material acarretaria a entrada em fogo de modo precipitado.66

O testemunho profético de De Gaulle cairia como uma avalanche sobre a

cabeça dos mandatários franceses em 1939. O Exército da França pouco pode fazer

contra o potente ataque alemão. Suas tropas, além de estarem despreparadas,

foram ineficazes na defesa do país.

Os soldados franceses, por culpa não só dos políticos, mas também da alta

administração militar, eram desqualificados e possuíam um adestramento deficiente

e mal feito.

Das descrições vistas anteriormente, pode-se verificar que existem um sem

número de óbices, falhas e equívocos que podem ser cometidos por um exército em

tempo de paz que refletem negativamente na guerra.

Alguns responsáveis pela defesa de um país, por falta de comprometimento

com a segurança do país, ou por não conhecer com profundidade como um exército

deve funcionar, acabam considerando normal o afrouxamento de certos

procedimentos durante a paz. Acreditam que quando a guerra vier, as deficiências

da paz serão sanadas em poucas semanas de combate. É um equívoco inaceitável

para qualquer país que deseja ter sua soberania preservada.

Contudo, uma boa preparação para a guerra não isenta um exército de sofrer,

em intensidade infinitamente menor, com a inexperiência em combate. Mesmo

tropas muito bem preparadas encontram sérias dificuldades nos primeiros meses de

combate. O Canadá, durante a 2ª Guerra Mundial, adquiriu uma experiência

interessante sobre a necessidade e a relatividade do treinamento. O depoimento

data de 1948, de autoria do General Foulkes, que comandou o 1º Corpo Canadense

no final da guerra.

“Na última guerra precisamos de quatro anos para nos aprontarmos... Quando

levei a 2ª Divisão para o noroeste da Europa ela tivera quatro anos de árduo

treinamento. Treinamos dia e noite; pensei que ela estivesse tão perfeita quanto era

possível, como instrumento de combate. Quando entramos na luta em Falaise e

Caen esbarramos logo com as experientes tropas alemãs e sentimos que não

66 GAULLE, Charles De. Por um Exército Profissional. Rio de Janeiro: José Olympio: Bibliex, 1996. p. 56 – 57.

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poderíamos nos comparar com eles... Não teríamos tido sucesso não fosse o apoio

de fogo, aéreo e de artilharia. Tínhamos mourejado durante quatro anos...e levamos

cerca de dois meses para colocar a Divisão em ordem e dizer que éramos uma

organização militar que podia lutar.”67

O interessante deste depoimento é que apesar de bem treinada, a tropa

canadense foi obrigada a vencer vários obstáculos que o melhor treinamento

possível não foi capaz de prever. Imagine-se quanto maior seriam as dificuldades se

ela não estivesse preparada. Quantas vidas preciosas não teriam sido ceifadas

desnecessariamente pela falta de treinamento e zelo dos responsáveis em tornar

essa divisão um vetor de combate?

A guerra, por si só, cobra preços caros aos que se preparam. Quando ela

encontra pessoal e estrutura despreparada, esse preço é ainda mais alto e menos

justificável.

Mas como as atividades do tempo de paz podem influenciar tanto no decorrer

de uma guerra? Quais são os aspectos que merecem atenção e cuidado na paz,

para minimizar os efeitos de uma guerra sobre um exército? Mostrar-se-ão alguns

deles nos próximos capítulos.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

67Apud KELLET, Anthony. Motivação para o Combate. Rio de Janeiro: Bibliex, 1987. p.100.

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CAPÍTULO 4

A Preparação para a Guerra

Os Recursos Humanos Quadros

“A guerra é uma arte de execução e do que o Exército precisa é de oficiais aptos ao serviço, oficiais robustos, enérgicos, conhecedores da profissão, convictos de sua missão militar, social e política,

como oficiais de verdade” Marechal José Pessôa Cavalcanti de Albuquerque

Os quadros profissionais – oficiais e sargentos - de um exército são o seu

maior bem. Neles repousam todo o conhecimento técnico-profissional, suas virtudes,

sua competência, sua liderança, enfim, os quadros são a “pedra de toque” de um

exército. Se forem ruins, o exército fatalmente será ruim. Se forem bons, haverá

grandes chances de se minimizarem outras vertentes deficientes, como armamentos

obsoletos e falta de recursos.

No tempo de paz os quadros são formados de maneira diferente do tempo de

guerra. Os recursos humanos e o seu gerenciamento tendem a se distanciar daquilo

que seria o melhor para o tempo de guerra.

Pequenos detalhes, aparentemente insignificantes, podem corroer a coesão

do grupo e a sua preparação para a guerra. As pequenas querelas, personalismos e

vaidades de toda ordem começam a atrapalhar o desenvolvimento da atividade-fim:

o combate. A administração e a burocracia “engolem” as atividades militares,

jogando-as para planos secundários.

Isso é bastante característico em exércitos com longos períodos de paz.

Passa-se a dar importância demasiada para as atividades burocráticas, expedição

de relatórios de pouca importância, ofícios, partes, quadros detalhados sobre a

situação da munição, do combustível etc. Ordens, mensagens e diretrizes que não

necessitariam de mais de uma página, acabam se tornando documentos imensos,

dos quais se extrai algumas poucas idéias importantes. A falta de objetividade

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administrativa é grande, pois ela permite, muito mais do que o adestramento,

divagações e demonstrações de preciosismos descabidos.

As medalhas passam a ser entregues não pelo mérito pessoal, mas para

aqueles que estão mais próximos dos chefes mais bem posicionados na hierarquia

militar. As comissões mais importantes e as que, fruto da sua natureza, importam em

ganhos econômicos e profissionais, nem sempre são distribuídas aos mais capazes

ou aptos para determinada missão. O pessoal da tropa começa achar que está

marginalizado em relação aos quadros que trabalham nos gabinetes. Por vezes se

esquecem que o trabalho realizado em gabinetes, estados-maiores e comandos

elevados são de vital importância para o sucesso daqueles que se encontram nos

corpos-de-tropa. Esta falsa idéia de dicotomia entre troupiers e militares

comissionados em quartéis-generais gera um distanciamento entre a tropa e os

estados-maiores de níveis mais elevados.

Durante o Conflito de Canudos, na Bahia, as conseqüências dessa distância e

a falta de preocupação com a preparação da tropa, tanto de militares como de civis,

fez-se sentir. O despreparo das tropas para lá mandadas e a falta de conhecimento

profundos dos problemas existentes por parte de militares e políticos mais bem

posicionados na época são razões importantes dos insucessos iniciais. As brigas e

ofensas entre políticos e militares são inúmeras. O texto abaixo retrata esta situação

de despreparo e desconhecimento, frente a um revés sofrido pelo Tenente Manoel

da Silva Pires Ferreira, do 9º Batalhão de Infantaria.

“(...) a força foi posta à disposição do governador, por ordem do governo

federal; e sob a responsabilidade e instruções dele foi desempenhar aquela

comissão; entretanto, recorreu ao comando do distrito militar, por descrença e falta

de confiança no governador, pelo inqualificável descuido e até menosprezo com que

tratou a força do exército que tão injusta e ilegalmente lhe foi confiada; fazendo-a,

em uma diligência tão arriscada, embrenhar-se por caminhos escabrosos e

longínquos, áridos e inóspitos, inteiramente desamparada, sem recursos nem

proteção de natureza alguma”. 68(grifos do autor)

68 Apud ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares contra canudos: seu aspecto moral. Rio de Janeiro: Bibliex, 1985. p. 13. Trecho da carta do General Solon Ribeiro comandante do 3ª Distrito Militar (Bahia) às autoridades estaduais, repudiando a maneira com que o exército era tratado e das condições de escassez de material e instrução para tal empreitada. Publicada no Jornal do Comércio de Recife, em 23 de abril de 1897.

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Os critérios de promoção tornam-se duvidosos para alguns, os instrumentos

de avaliação meritórios são precários, tendo em vista que é extremamente difícil

avaliar certos atributos imprescindíveis em combate, tais como coragem moral e

física, liderança, desprendimento, arrojo e capacidade de tomar decisões sobre

pressão em período de paz. Dentro desse quadro, acaba-se por formar-se grupos

privilegiados e grupos de “excluídos”.

Tal fato, acarreta que nem sempre aqueles militares que são destaques no

tempo de paz, serão necessariamente os que estarão mais aptos a liderar tropas na

eventualidade de uma guerra. Isso, até certo ponto, é normal em função da

dificuldade de avaliação. Em alguns casos, verifica-se até mesmo a dificuldade em

encontrar homens para exercerem funções importantes e de responsabilidade numa

guerra.

Essa situação foi bastante comum no exército dos EUA, por ocasião da

Guerra do Vietnã, onde diversos militares, até então considerados destaques na

força, encontraram as mais diversas desculpas e formas para não irem para o

campo de batalha.

O Brasil, durante a 2ª Guerra Mundial, também sofreu, em menor escala,

esse problema. O depoimento do Marechal Floriano de Lima Brayner, na época

coronel e Chefe do Estado-Maior (EM) da FEB, fornece sua idéia sobre o problema

vivido no alvorecer daquela força expedicionária:

“Decidido o envio de tropas, esquematizada a organização da 1ª Divisão do

Corpo Expedicionário, passou o Ministro da Guerra à escolha de seu comandante.

Em 9 de agosto de 1943, era dirigida uma consulta ao general de Divisão

(este era o mais alto posto da hierarquia militar) João Batista Mascarenhas de

Moraes, com requintes de delicadeza: “Consulto prezado camarada se aceita

comando de uma das Divisões que constituirão Corpo Expedicionário”.

Essa consulta, quase humilde, já havia sido endereçada a outros generais

que, por motivos pessoais, a rejeitaram. E nada sofreram, não sendo sequer

anotado nos seus assentamentos militares. No entanto, o General Mascarenhas de

Moraes, que talvez fosse o único que poderia alegar imperiosas razões para não se

afastar do Brasil naquele momento, respondeu com muita dignidade, no dia

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imediato, 10 de agosto de 1943: “Muito honrado, e com satisfação, respondo

afirmativamente consulta que V. Excia acaba fazer-me” 69·

O interessante é que tal distorção não é prerrogativa dos níveis mais elevados

de um exército. A narrativa abaixo, bastante sucinta, mas extremamente reveladora,

mostra situação semelhante.

“Começaram a circular levemente, nas rodas oficiais, os boatos da existência

de ordem para a criação de uma Força, que deveria atuar fora do Brasil. Vagos

indícios iam-se acumulando, levando-nos à convicção de que algo estava realmente

em preparação, ao mesmo tempo em que os quinta-colunistas, como que tocados

por vara mágica, subitamente se empenharam em terrível campanha de ridículo e

desmoralização de nossas tropas” representativas de uma sub-raça desfibrada e

doentia “.

Eu, nessa época, era tenente, e servia na Fortaleza de São João, sob as

ordens de um reconhecido patriota de tendências totalitárias, o tenente-coronel

Affonso de Carvalho.

Dele ouvi a primeira palavra oficial sobre a participação do Brasil,

efetivamente, na guerra: “todo o soldado má-conduta será imediatamente transferido

para as unidades que vão combater”...

Dias após, outro aviso sintomático surgia: ordens verbais emanadas

diretamente das fontes do poder, determinavam a baixa imediata de inúmeras

praças, todas elas apadrinhadas por personagens bem colocadas na sociedade, na

política e nas finanças...

Uma guerra que se transformara rapidamente numa atividade complexíssima,

exigindo as mais variadas aptidões, cada soldado sendo obrigado a ser um técnico,

a agir com rapidez e inteligência, ia o BRASIL recrutar homens da pior espécie,

aqueles que se tivessem revelado a borra dos quartéis.

Por outro lado, os filhos das famílias abastadas, os que da Pátria só tiveram o

melhor bocado, os sadios de corpo e esclarecidos de espírito, os que fugiram das

unidades de campanha para um período de adestramento nos recantos

maravilhosos da Guanabara como são nossas fortalezas, eram justamente os que

69 BRAYNER, Floriano de Lima. A Verdade Sobre a FEB. Memórias de um Chefe de Estado-Maior na Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 17.

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se esquivavam ao dever de lutar pela Nação que só lhes dera alegrias, para serem

substituídos pelos pobres de fortuna, pelos que da terra mãe só provaram travosos

frutos.”70 (grifos do autor)

Embora com um tom de mágoa e indignação, perfeitamente compreensíveis,

a narrativa acima mostra um quadro que certamente não foi a regra de

comportamento dos oficiais e praças da FEB, é conseqüência natural de qualquer

exército que passa de um estado de paz duradouro para um estado de guerra

repentino. Entretanto, tal fato se reflete de forma altamente negativa no seio da

tropa, levando-a a perder sua confiança e estima nos chefes, já que o raciocínio

lógico seria o de impedir qualquer baixa no exército nesse período.

Tal fato é ainda mais contundente quando os militares de um exército

possuem ampla participação na política nacional. Isso acaba afastando, ainda mais,

os verdadeiros objetivos de um exército para outros que não são apanágio da

instituição. Isso revela, indubitavelmente, as mazelas e os procedimentos

específicos da política, que prejudicam sobremaneira os quadros e não se

coadunam com os propósitos de um exército profissional.

Vale lembrar que, segundo Eric Hobsbawn, em “A Era dos Extremos”71, o

inverso aconteceu com o Reino Unido no início da Primeira Guerra Mundial.

“Os britânicos perderam uma geração – meio milhão de homens com menos

de trinta anos – notadamente entre suas classes altas, cujos rapazes, destinados

como gentleman a ser os oficiais que davam o exemplo, marchavam para a batalha

à frente de seus homens e em conseqüência eram ceifados primeiro. Um quarto dos

alunos de Oxford e Cambridge com menos de 25 anos que serviam no exército

britânico em 1914 foi morto. “ (grifo do autor)

Para não se fugir muito de exemplos ocorridos no Brasil, verifica-se situação

similar no Exército Brasileiro durante a Guerra do Paraguai: “Segui para a Praia

Vermelha com outros recrutas, todos das camadas mais baixas da sociedade.

70 HENRIQUE, Elber de Mello. A FEB Doze Anos Depois. Rio de Janeiro: [s.n.t], 1957. p. 34. 71 HOSBAWN, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 34.

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Compreendi, então, a sobranceira com que os mártires cristãos afrontavam a cólera

da turba de pagãos na arena ensangüentada do anfiteatro de Flávio.”72

Outra tendência verificada, é a distorção por parte dos quadros no

discernimento dos objetivos principais e secundários na tropa em tempo de paz. É

comum, como mostrado no trecho sobre o exército dos EUA no início da década de

40, que atividades meio e complementares tomem o lugar da atividade-fim. O

exagero na importância das competições desportivas, na implementação de projetos

pessoais do comandante, na realização de festas e formaturas que “param” a

instrução e a manutenção da organização militar são comuns. Isso traz no seu bojo,

uma série de implicações.

A primeira delas é a de que aqueles homens comprometidos com a atividade-

fim (instrução, manutenção etc), acabam se tornando insatisfeitos ou frustrados. O

seu trabalho não é reconhecido, enquanto os outros que, de forma calculada ou não,

dedicam-se a outras tarefas que lhes possibilitem mais destaque perante os mais

antigos, são postos em evidência. Isso acaba desestimulando segmentos mais

capazes de um exército, obrigando-os a “dançar conforme a música” ou retirar-se da

força assim que possível e carrear sua dedicação para outras atividades em que ele

possa despender sua capacidade e qualificações recebendo o reconhecimento que

ele julga ser justo.

Verifica-se ainda, em relação aos quadros, uma certa tendência ao desleixo

nas suas condições físicas. Há, em muitos exércitos, a constatação de que os

quadros, principalmente os oficiais e praças de nível intermediário para cima, deixam

seu preparo físico para um plano secundário. Isso gera reflexos negativos. Tais

militares não conseguem acompanhar seus subordinados nos exercícios físicos

rotineiros nem nos de campanha; tendo como conseqüência o enfraquecimento da

liderança. Doenças que poderiam ser adiadas ou até mesmo eliminadas começam a

aparecer precocemente: enfartos, aneurismas, problemas de coluna, colesterol alto,

enfraquecimento muscular, câncer, dentre outros. Um exército acaba perdendo,

muito cedo, militares que ainda poderiam ser úteis por um período maior. Isso

provoca danos no sistema de saúde, que se torna mais oneroso, mais solicitado e

menos eficiente.

72 Palavras de Dionísio Cerqueira, apud IZECKSOHN, Vitor. O Cerne da Discórdia. A Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1997. p. 163.

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Somente como referência, no ano 2000, o exército americano, fruto da grande

incidência de obesos em suas fileiras, viu-se obrigado a desligar do serviço ativo

centenas de militares, além de empreender uma forte campanha para mudança dos

hábitos alimentares de seus homens e mulheres. As conseqüências de um efetivo

obeso era visível e afetava o rendimento do pessoal bem como a imagem do

Exército dos EUA.

No campo da liderança também há reflexos, já que a higidez física é um vetor

importantíssimo no exercício do comando em qualquer nível. Na apresentação

individual diária pode-se também verificar conseqüências negativas neste sentido, já

que os uniformes dos militares menos preparados fisicamente ficam amarfanhados e

largos, aparentando falta de zelo.

O problema da apresentação individual pode parecer banal, mas não é. O

soldado, ao chegar em uma unidade, não pode e nem tem a capacidade de

conhecer o seu comandante profundamente. Ele não sabe que apesar de o seu

sargento, tenente, capitão, coronel ou general poder ter, eventualmente, problemas

de saúde de difícil tratamento ou dificuldades físicas vista a olho nu, ele pode ser um

competente instrutor, planejador ou administrador. Ele enxerga o seu comandante e

o avalia pela sua compleição física, capacidade nos exercícios da sua tropa e na voz

de comando. Um pouco mais adiante, irá avaliá-lo pela sua conduta profissional,

principalmente ao tomar decisões que reflitam no seu bem-estar, tais como

dispensas e punições.

Individualmente, ele irá sempre colocar uma eventual falha no preparo físico

como severa crítica a qualquer outra falta que não estiver ligada ao problema físico.

Para os oficiais e sargentos mais novos que não possuem boa compleição física, o

problema é ainda mais contundente, prejudicando sobremaneira a liderança.

Face ao exposto, infere-se que os quadros devem ser uma preocupação

constante dos comandantes de uma força. Os treinamentos, as exigências e os

detalhes que dizem respeito ao seu adestramento, bem-estar, anseios e

necessidades devem ser motivo de monitoração diuturna.

Os sistemas de promoção, reconhecimento, e toda a sorte de decisões que

os envolva merece ser considerado com cuidado. Deve ter como objetivo primordial

valorizar o homem que realmente se dedica à força. Mesmo na paz, é imperativo

que se mantenha um espírito guerreiro entre os homens, afastando-os de áreas que

não são ligadas ao seu preparo profissional e aos interesses da força.

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Adestramento competente, transparência nas ações, justiça nas decisões e

preocupação com as necessidades dos homens são as melhores maneiras de

manter os quadros ocupados e acreditando na sua missão.

Formação de Oficiais “Sua missão continua imutável, determinada, inviolável. E ela é vencer nossas guerras...Na guerra não há substituto para a vitória.”

General Douglas MacArthur dirigindo-se para os formandos de West Point em 1962

Como já foi visto, os quadros são a alma de um exército. Se isso é

verdadeiro, pode-se dizer que os seus oficiais são o espectro mais brilhante desta

alma. São eles, junto com as praças, que fazem a instituição (elemento atemporal)

funcionar.

Aos oficiais cabe a responsabilidade de conduzir um exército, ditando-lhes

regras, procedimentos e políticas. São eles que otimizam as diretrizes emanadas do

poder político, respondendo-as com as melhores soluções de treinamento, aquisição

de equipamento e formando a doutrina correspondente para um país ser atendido

naquilo que foi definido pela política de defesa nacional.

Para que todo esse complexo decisório dê certo, o fator preponderante nessa

equação é a capacidade profissional dos oficiais deste exército. Seja ele o general

de maior hierarquia, seja o tenente mais moderno. Todos, sem exceção, devem ser

capazes de executar suas tarefas dentro do seu nível, da forma mais competente

possível.

A sua formação é a chave para que isso aconteça dentro do esperado. Se a

formação foi frágil, se os ensinamentos adquiridos não foram bem aprendidos, se os

valores do exército a que o oficial pertence não foram marcados na sua alma militar

a “ferro e fogo” nas escolas, haverá distorções no futuro.

Durante três anos fui instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras. Devo

reconhecer que fui bastante rígido com os cadetes que estiveram sob minha

responsabilidade nesse período, principalmente nas atividades de campo. Algumas

vezes fui criticado por eles, pelas exigências a que os submeti, sempre dentro do

previsto nos Planos de Matéria, agora chamados de Planos de Disciplinas.

Dois aspectos me conduziram a esse tipo de procedimento. O primeiro

remonta da minha formação acadêmica, quando tive, na sua maioria, excelentes

instrutores, que durante boa parte dela exigiram o máximo, nunca o mínimo.

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Exercícios duros, operações continuadas, a área afetiva constantemente cobrada,

ocasião em que éramos submetidos a situações em que nos víamos obrigados a

superar não só os desconfortos físicos, mas os psicológicos, forjaram na maioria de

nós um sólido caráter militar. Quando concluí o meu curso e fui desempenhar as

minhas funções de oficial subalterno de Cavalaria no corpo de tropa, verifiquei,

aliviado, que não tinha dúvidas do que esperavam de mim nem como agir. Eu tinha

um parâmetro vivo e sólido em minha mente: confiança na minha formação.

Lamentei apenas os momentos em que não fui cobrado de forma mais rígida.

O segundo aspecto é o de que a escola de formação de oficiais de qualquer

exército deve ser o modelo do oficial. Lá, mais do que em qualquer outro lugar, as

exigências devem ser máximas e não mínimas ou medianas. Será na escola de

formação, e em nenhuma outra que ele vier a cursar, que devem ser implantados no

futuro oficial os parâmetros fundamentais da sua linha de pensamento militar e

moral. Nas escolas de formação devem estar retratados os mais sagrados e rígidos

padrões de conduta de um exército e os seus valores centrais

As escolas de formação de oficiais devem exigir níveis de respostas altos. A

instrução deve ser diuturna, os atributos afetivos devem ser desenvolvidos ao

máximo, a gama de ensinamentos deve ser a mais abrangente possível, a disciplina

e a hierarquia devem ser cultivadas de forma quase sagrada e o quadro de

instrutores deve ser objeto de minuciosa seleção. Será por intermédio de conceitos e

procedimentos profundamente enraizados no futuro oficial que estar-se-á

construindo um exército com esqueleto forte e inquebrantável.

É preciso que ele aprenda a pensar sob pressão, que tome decisões rápidas

e compatíveis, que solucione problemas com as ferramentas que possui, que ele

tenha em mente que para cada problema existem diversas soluções. As técnicas

aprendidas por ele são apenas ferramentas e não soluções formatadas para os

problemas. Só uma formação feita nestas condições, em que ele seja obrigado a

raciocinar constantemente diante de desafios novos, poderá fornecer aos exércitos

um oficial capaz de combater sob quaisquer condições.

Os exercícios devem ser conduzidos apresentando situações novas e

inesperadas, já que a guerra é o encontro do inesperado. Um exercício de

reconhecimento, por exemplo, pode ser inserido num quadro de guerra química por

algumas horas. Isso trará, certamente, dificuldades de coordenação e controle para

o comandante do pelotão. Ele sofrerá restrições no uso de seus rádios e na eficácia

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de suas armas, além de diminuir a eficiência operacional de sua fração. Mas existem

soluções e ele deverá encontrá-las. O uso de meios auditivos e visuais para

coordenar sua fração é uma das várias respostas possíveis. Fumígenos, bandeirolas

e sinais manuais serão necessários. O importante é que ele continue cumprindo a

sua missão. Se ele confiou o cumprimento da missão somente no rádio ou não

possui a iniciativa necessária, terá problemas...

Contudo, após vencer tais dificuldades, ele irá valorizar outras técnicas de

coordenação e irá agregar a sua bagagem profissional maior capacidade de

responder a problemas desconhecidos.

Ainda durante a minha permanência como oficial na AMAN73, foi montado um

exercício de força-tarefa de subunidade num quadro de aproveitamento do êxito74.

Ela contava com cerca de 12(doze) carros blindados. À medida que realizávamos o

exercício, as quebras e panes de muitos carros eram inevitáveis, haja vista a idade

dos mesmos.

Esse fato me chamou a atenção, pois achei que o instrutor-chefe deveria ter

suspendido o exercício por algumas horas para que os carros quebrados fossem

manutenidos. Todavia, as quebras continuaram e o exercício também. Ele só

interrompeu o exercício quando contávamos apenas dois carros em condições de

uso. Após a manutenção, o treinamento continuou e chegou-se ao final conforme

planejado.

Durante a análise pós-ação do exercício, o instrutor-chefe explicou-nos sua

decisão. Sabia que poderia parar o exercício por algumas horas e manutenir os

carros para que os cadetes em função de comandante de pelotão sempre tivessem

seus pelotões completos. Mas ele deixou uma pergunta: “Será que em combate nós

poderíamos pedir um tempo ao inimigo para manutenir os nossos carros?”

Evidentemente que não.

Foi uma lição formidável para mim e, acredito, para os demais oficiais e

cadetes envolvidos. Não importam os meios disponíveis em combate, a missão deve

ser cumprida de qualquer forma. Esse espírito deve ser aprendido na escola de

formação! Os exércitos precisam de oficiais que tenham capacidade de responder

aos imponderáveis da guerra sem titubear e manter-se no cumprimento da missão.

73 Academia Militar das Agulhas Negras. Estabelecimento de ensino militar de nível superior que tem como missão formar o oficial de carreira combatente do Exército Brasileiro. 74 Tipo de operação ofensiva que ocorre logo após o êxito de um ataque. Visa infligir ao inimigo mais baixas e diminuir suas possibilidades de se reorganizar para um contra-ataque.

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Um dos mais contundentes exemplos de formação de oficiais flexíveis,

criativos e cumpridores de missão, forjados numa escola de oficiais extremamente

exigente com seus alunos, é o de Israel. Se não fosse assim, passagens heróicas

envolvendo seus oficiais nunca teriam sido escritas.

Vale a pena ler com cuidado a descrição em que foi protagonista o Tenente

Zvi (“Zwicka”) Greengold, do Exército de Israel, durante a Guerra do Yom Kippur em

1973.

Neste episódio, esse bravo tenente, ao saber que Israel estava sendo atacado

por forças sírias, saiu de sua casa e dirigiu-se ao posto de comando em Nafekh.

Perguntou ao oficial de operações se podia receber um comando. Soube que em

breve chegariam quatro carros, três deles danificados em combate. Em poucos

minutos, recebeu os carros, acompanhou o seu conserto e recebeu a missão

diretamente do subcomandante da Brigada Barak (que se encontrava cercada),

tenente-coronel Yisraeli. Este determinou que Zwicka pegasse os carros e atuasse

na rodovia Tapline, destruindo qualquer carro sírio que avistasse.

Quando Zwicka entrou em combate, não sabia no que estava se metendo. A

proporção, em favor dos sírios, era de 50 para 1. Combatia à noite.

Nesse momento, Zwicka fora avisado pelos carros que o acompanhavam que

se aproximava uma coluna de blindados sírios equipados com pequenas luzes

laterais. Às 21:20 horas, avistou na estrada o primeiro carro sírio, O primeiro tiro, a

curta distância, pôs em chamas o inimigo, mas o choque fez com que seu sistema

de comunicações entrasse em pane. Zwicka sinalizou para que o carro mais próximo

se aproximasse; trocou de lugar com o oficial que o comandava e ordenou-lhe que o

seguisse e que o imitasse em tudo que fizesse. Após percorrer poucas centenas de

metros, verificou que perdera seu acompanhante; ao galgar uma elevação, avistou

na estrada três carros sírios com pequenas luzes laterais acesas. Três tiros rápidos

e os três irromperam em chamas, que arderam por toda noite. 75(grifos do autor)

Naquele momento, ele tinha duas alternativas: abandonar o combate, por

insuficiência de meios (além de estar combatendo numa proporção de 50 para 1,

seu rádio quebrou) ou reestruturar as forças que tinha e manter-se em combate,

75 HERZOG, Chaim. A Guerra do Yom Kippur. Rio de Janeiro: Bibliex, 1977. p. 121. Para se aprofundar nesse combate, onde o Ten Zwicka combateu durante 20 horas ininterruptas, consultar p. 111 – 136, incluindo fotos.

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abatendo os carros sírios por partes, aproveitando-se da deficiência síria em

combater de forma integrada. Optou pela segunda linha de ação e obteve êxito.

Criatividade, adestramento - três tiros, três carros destruídos - arrojo, tirocínio e

flexibilidade foram os fatores preponderantes e não o fato de ele estar em

desvantagem material.

Um outro exemplo que confirma a assertiva sobre os militares israelenses,

também ocorrido na Guerra do Yom Kippur, foi o protagonizado pelo TC Avigdor,

comandante da 7ª Brigada israelense, quando travou um dos mais sangrentos

combates daquele conflito.

Numa 2ª feira, a sua brigada enfrentara um poderoso ataque da 3ª Divisão

Blindada e da 7ª Divisão de Infantaria, ambas sírias, além de elementos da Guarda

Republicana do Egito. Ao final daquele dia, suas tropas estavam esgotadas. Havia

três dias que combatiam sem parar. Não havia tempo para comer, para dormir ou

qualquer outra atividade que não fosse lutar. Ele sabia que, mais cedo ou mais

tarde, sua linha de defesa iria cair. Além da superioridade em carros, os sírios e os

egípcios possuíam equipamentos de visão noturna e os israelenses não. Isso

implicava em combates continuados.

Na manhã de 3ª feira, verificou que sua tropa estava em situação

desesperadora. Naquele momento, seu carro foi atingido e ele ferido. Abandonou o

carro e subiu em um outro. Era o segundo carro que perdera naqueles dias. Pouco

tempo depois recebeu um chamado da Força Tigre, solicitando autorização para

retrair e remuniciar, pois se encontravam quase sem munição. Não havia tempo para

isso. Avigdor não autorizou (quando, mais tarde os reforços chegaram, encontram,

incrédulos, os homens da Força Tigre combatendo atrás dos carros, com fuzis e

granadas de mão). Disse que só poderia retrair quando cada carro tivesse somente

um tiro.

Após uma análise rápida, decidiu que a única saída seria um contra-ataque

de desorganização, a fim de atrasar as forças sírias e egípcias. A confusão era

tamanha que a distância entre os carros contendores estava entre 50 a 27 metros!76

A capacidade mental e física das guarnições israelenses era mínima. Apoio ao

combate e logístico não existiam mais. Chegavam a quatro noites de luta,

76 Para saber mais sobre essa batalha ler HERZOG, Chaim. A Guerra do Yom Kippur. Rio de Janeiro: Bibliex, 1977. p.148 – 161.

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ininterruptas. O cansaço era tamanho que quando Avigdor falava com o seu oficial

de operações, este adormeceu no rádio.

Foi neste momento que o TC Yossi, comandando o que restara da Brigada

Barak (onze carros), penetrou na defesa de Avigdor e proporcionou-lhe algum

reforço. A 7ª Brigada encontrava-se com apenas sete carros dos cem iniciais.

Observadores israelenses verificaram que os sírios estavam recuando e

detendo o ataque. As perdas estavam sendo inaceitáveis para eles. O que sobrou da

7ª Brigada mais as tropas da Brigada Barak, indo contra qualquer lógica,

deflagraram um pequeno contra-ataque contra as forças sírias que se retiravam.

Destruíram ainda, carros e transportes inimigos. Ao atingir um fosso anticarro,

pararam o contra-ataque. A 7ª Brigada atingira o limite das possibilidades física e

mental dos seus homens e mecânicas dos carros.

O que levou a 7ª Brigada a conseguir realizar empreitada tão magnífica?

Determinação do seu comandante, liderança em todos os escalões, adestramento

de altíssimo nível, profundo conhecimento das possibilidades do equipamento, são

algumas razões. Sabedores que o inimigo possuía um equipamento melhor, trataram

de usar o limite máximo dos que possuíam. Tabelas de tiro foram preparadas,

roteiros de tiro minuciosamente confeccionados, fossos anticarros escavados,

criteriosa utilização do terreno, ocupando elevações que lhes possibilitava

comandamento sobre o oponente. A isso tudo, chamamos de adestramento bem

feito e forte liderança e criatividade dos oficiais.

As narrativas acima mostram a importância de um exército possuir oficiais

bem formados. As iniciativas do Tenente Zwicka e do TC Avigdor não foram acaso

ou exceção. Outros relatos confirmam que os atos protagonizados por estes

militares eram a regra das Forças de Defesa de Israel (FDI). Apesar de que só a

vitória interessava aos israelenses, já que a derrota significava o fim do Estado de

Israel, o resultado positivo para Israel foi fruto de formação militar bem feita e sob

duras condições de execução.

Verifica-se, desta forma, que a formação dos quadros deve ser preocupação

constante dos comandantes de um exército. O espectro que abrange a manutenção

de elevados padrões no seu seio vão desde justiça na distribuição de recompensas,

passando por elevado grau de exigências intelectuais, físicas e morais, desaguando

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em treinamentos duros77, exigentes e próximos do real. Além de um oficial ou

sargento disciplinado, o que os exércitos necessitam são de homens com

capacidade de liderança, flexibilidade e arrojo.

Adestramento da Tropa

“Se muito perdemos, muito ainda temos; Se não dispomos da força que outrora

Movia céu e terra, o que somos, somos: Um grupo coeso, corações heróicos,

Fracos no tempo e na vida, mas prontos: Lutar, buscar, chegar, jamais ceder.”

Trecho do poema Ulisses, de Alfred Lord Tennyson

O adestramento ou o ato de tornar as tropas hábeis, capazes e habilitadas ao

desempenho de suas funções na guerra é extremamente importante no tempo de

paz. Sem isso, um exército é descaracterizado. Será por intermédio de um

adestramento bem planejado, coordenado e executado de acordo com as

necessidades de segurança de um país, que as chances de êxito aumentarão no

caso de conflito.

O primeiro aspecto que deve ser visto ao se tratar desse assunto diz respeito aos

objetivos traçados para o adestramento da tropa. As possibilidades atuais de conflito são

enormes, bem como suas variantes, como pode-se ver abaixo:

Convencional

(1º Guerra Mundial)

Guerra Regular Nuclear

(última fase da 2ª Guerra Mundial)

# ser declarada, em princípio

# ser externa e entre Estados

# ser reconhecida à luz do Direito

Internacional

# utiliza, em princípio, a plena ação

das forças armadas

Insurrecional

(lutas de independência na África)

Guerra Irregular Revolucionária

( tomada de Cuba por Fidel Castro)

# luta violenta pela tomada do

poder

# desenvolve-se, quase sempre,

dentro dos limites espaciais do

Estado

# pode ser, basicamente, uma

agressão indireta.

Quadro nº 13 Classificação Genérica dos Conflitos78

77 Importante ressaltar que tratamento duro não significa humilhação e a quebra da auto-estima do militar. Isto seria covardia em relação ao subordinado, além de formar militares desvirtuados.

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Um exército, salvo poucas exceções, não tem condições de se adestrar para

todos os tipos, variantes e possibilidades de conflitos existentes. A gama de

modalidades não permite: conflitos de alta , média e baixa intensidade, guerrilha,

narcotráfico, atividades do tipo polícia, terrorismo, combate em localidade, combate

em terreno montanhoso, deserto, sob frio intenso, em largas ou pequenas frentes,

selva etc.

Este quadro obriga os exércitos a selecionarem suas prioridades de emprego

e, conseqüentemente, suas prioridades de adestramento. Aqueles que têm a

possibilidade de serem empregados em diversos pontos do planeta e sob diversas

condições têm pela frente uma tarefa das mais complexas, obrigando os

responsáveis pela segurança de um país a executarem adestramentos diferentes

dentro de um mesmo exército. Tal fato ocasiona a necessidade de possuírem

quadros extremamente versáteis, capazes de adequarem-se em curto espaço de

tempo, para missões de contingência.

Um erro na interpretação do tipo de adestramento adequado para um exército

pode ser fatal em tempo de guerra. Se um exército for adestrado para combater

contra o narcotráfico, como é o caso do exército da Colômbia atual, ele poderá não

lograr êxito tão facilmente se for colocado em uma situação de guerra regular

convencional. Além de o seu material não estar adaptado para esse tipo de conflito,

seus homens aprenderam a “pensar” o combate de forma diferente. No combate ao

narcotráfico o inimigo é ardiloso ao extremo, os imperativos logísticos são menos

significativos, o nível de comando é menor, privilegiando as pequenas frações, a

conduta de guerra diferente, os objetivos do combate são limitados, a presença da

mídia e da política são maiores, enfim, o desenvolvimento do combate e a sua

condução se apresentam totalmente diferentes de um ambiente convencional.

Isso quer dizer que o ponto fundamental do adestramento deve ser dirigido

para responder a ameaça mais imediata e lógica. Evidentemente, isso se torna cada

vez mais difícil nos dias de hoje.

O Brasil sofreu esse dilema. Até bem pouco tempo, nas décadas de 70 e 80,

nossas forças armadas tinham uma orientação de adestramento voltada para um

possível conflito no sul do país. As tropas blindadas e mecanizadas se adestravam

78 MINISTÉRIO DO EXÉRCITO. Evolução da Arte da Guerra e do Pensamento Militar no Século XX. Coletânea do C Prep EsCEME. Rio de Janeiro: A Escola, 1997. Organização do autor.

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para combater em largas frentes, em combates convencionais e de curta ou média

duração. Viveu-se nesse entremeio, períodos em que as tropas foram orientadas

para um adestramento de guerra irregular, tendo em vista a atuação de elementos

de guerrilha no País. A ênfase era voltada para as ações de pequenos grupos,

infiltrações, patrulhas de combate, técnicas de interrogatório, ações isoladas,

incursões com helicópteros, instruções de fuga e evasão e forte liderança nos

pequenos escalões.

Com o fim da guerrilha, dos governos militares na América do Sul e do

período áureo dos Movimentos Comunistas, houve a necessidade de redirecionar os

objetivos de adestramento. Por um tempo, ainda foi mantida a orientação de

adestramento convencional para a hipótese de conflito mais provável (sul do país).

Contudo, com o advento do Mercado Comum do Sul (Mercosul), da globalização e

do aumento da interferência de outros países na soberania alheia, principalmente

por parte dos EUA, apareceu uma outra hipótese de conflito mais lógica: a

Amazônia. Com a possibilidade cada vez maior de transformação da Amazônia

numa área internacional, houve a necessidade de o país redirecionar seus objetivos

de segurança e, como conseqüência, o adestramento. Hoje, uma parte considerável

do Exército Brasileiro mantém-se adestrada para um eventual conflito na região

amazônica.

Tal é a preocupação do governo brasileiro com a defesa da região norte do

País, que para lá foram carreados diversos meios militares, além de tomadas

diversas providências no sentido de manter aquela região sob cuidadosa vigilância.

Hoje existem cerca de 40.000 homens desdobrados na região. Os

equipamentos do SIVAM/SIPAM79 estão sendo instalados e em breve operarão na

sua máxima capacidade. As Forças Armadas brasileiras desenvolvem doutrinas

militares compatíveis com aquele possível teatro de operações.

Para que se possa aquilatar a dificuldade em se estabelecer doutrinas para os

exércitos no mundo de hoje, basta se verificar a profusão de brigadas que o Exército

Brasileiro se viu obrigado a adotar em função do cenário difuso no que tange ao seu

emprego. Há alguns anos, o Exército se limitava às divisões de Cavalaria e de

Infantaria para se organizar para o combate. Depois, vieram as brigadas de

79 Sistema de Vigilância da Amazônia. Projeto desenvolvido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, juntamente com O Comando da Aeronáutica e Ministério da Justiça. Tem por objetivo zelar pela Amazônia Legal.

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Cavalaria Mecanizada, Blindada, de Infantaria Motorizada,. Blindada, Pára-quedista,

Leve, Selva e outras. No início deste século, o Exército já criou novos tipos de

brigadas, como a de Operações Especiais (combate ao terrorismo entre outras

missões) e planeja a criação das brigadas de Força de Paz e de Garantia da Lei e

da Ordem.

Esse quadro complexo de organização para o combate, com múltiplas

missões, cada vez mais especializadas, obriga a manutenção de quadros

adequadamente preparados, de meios específicos para cada tipo de organização,

de homens conhecedores profundos dos seus misteres e de um gerenciamento

muito sério por parte dos órgãos de direção no sentido de manter essas grandes

unidades realmente aptas para o emprego em tempo muito curto. O adestramento

contínuo será a única ferramenta capaz de manter esta pletora de meios

diversificados em condições de emprego. A sua falta poderá torna-las ineficientes e

fonte de frustração para aqueles que depositam confiança na sua capacidade de

responder às operações de contingência.

Esse não é um problema atual. Muito antes da década de 70 do século XX,

durante a Guerra do Paraguai, o Exército Brasileiro sentiu o problema da falta de

adestramento80. Vivia-se o tempo em que os oficiais ditos “bacharéis” eram a regra.

Poucos conheciam da Arte Militar. E os mais antigos e experientes haviam

direcionado suas carreiras para a política. A guerra surpreendeu, de certa forma, a

todos. Inúmeros oficiais, principalmente os mais jovens, ao entrarem na guerra,

rebelaram-se contra essa defasagem no adestramento. Neste sentido, destacaram-

se Dionísio Cerqueira, André Rebouças (crítico severo de Osório), Senna Madureira

(oficial engenheiro de currículo altamente qualificado, que devido a quantidade de

punições por criticar seus superiores e o amadorismo reinante, pediu baixa do

Exército – prontamente recusada por Caxias) entre outros.

O fato é que há necessidade de os exércitos estarem adestrados para

responderem de imediato à hipótese de conflito mais provável, além de não poderem

ficar sem objetivos de adestramentos perfeitamente delimitados pela doutrina

vigente e pelas diretrizes do alto-comando. Isso poderia colocar um exército sob as

rédeas do achismo e do preciosismo pessoal.

80 Caxias teve importante papel, mais uma vez, no sentido de preparar a tropa, organizando-a em equipamento, adestramento-a e proporcionando os apoios necessários. Sua capacidade de planejamento foi fundamental para os êxitos obtidos nas campanhas lideradas por ele.

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A necessidade de correção de rumos de adestramento constante traz alguns

reflexos negativos para a tropa. Um deles é a dificuldade de os mais velhos

reformularem pensamentos e atitudes. Como exemplo, pode-se analisar o papel da

mídia na guerra. Há alguns anos esse fator era pouco importante. Isso por várias

razões, principalmente pela dificuldade tecnológica em se levar os fatos do campo

de batalha para os lares da população dos países envolvidos no conflito.

Atualmente, com satélites, câmaras que filmam no escuro e jornalistas cada

vez mais presentes nos cenários de guerra, a mídia cresceu de importância. O

Vietnã, a Guerra do Golfo e o conflito no Kosovo são bons exemplos disso. O papel

da mídia foi fundamental para que tais conflitos mudassem seus rumos em função

da pressão popular de repúdio ao tomar contato mais direto com as mazelas da

guerra.

Os fundamentos, técnicas e táticas de ontem podem não ser importantes

hoje. Às vezes, o conhecimento de uma determinada técnica, como “estouro de

aparelho”, outrora importantíssima num ambiente de guerrilha urbana, passa a ser

secundário numa hipótese de conflito de combate convencional. Aí começam os

problemas entre gerações.

Aquele militar que foi educado e que treinou exaustivamente uma

determinada técnica, acaba querendo que ela permaneça, de qualquer jeito, sendo

aplicada. Os mais novos, por sua vez, tendem a querer implementar as novas e

necessárias técnicas, pois já foram doutrinados dentro delas. Nesse momento

acontecem os problemas de transição. Duram pouco, é verdade, mas atrasam

sobremaneira a implantação dos novos objetivos de adestramento. Peguemos um

exemplo do Brasil durante a Guerra do Paraguai, quando André Rebouças evidencia

o desequilíbrio entre “jovens e velhos” ou entre “oficiais instruídos” e “tarimbeiros”81: 82

“O espírito acentuadamente crítico e agressivo com que Rebouças redige o

Diário parece aguçar-se nos últimos tempos da Campanha. O seu inconformismo

traduz-se em críticas violentas contra os superiores, em freqüentes atritos com seus

chefes e em referências impiedosas às deficiências de orientação tática e à

81 Oficiais que não cursaram a Escola Militar. 82 Maria Odília Silva Dias, apud IZECKSOHN, Vitor. O Cerne da Discórdia. A Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1997. p. 164.

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morosidade da guerra. Descontando-se o arroubo de seu temperamento e levando-

se em conta circunstâncias peculiares que revelam um estado psicológico de revolta

latente, resta, sem dúvida, muito de procedente em suas observações sobre a

desorganização do Exército e da vida militar, nos primeiros tempos de guerra, e a

improvisação com que a enfrentaram os chefes militares”.83

Quando Heinz Guderian iniciava seus estudos e experimentações na

utilização de carros de combate no campo de batalha, em 1929, a resistência dos

oficiais mais antigos foi enorme. As palavras de despedida do General Otto von

Stulpnagel, Inspetor de Cavalaria de então, após inspecionar as novas tropas de

Guderian, retratam bem este ceticismo: “O senhor é muito impetuoso. Acredite-me,

nenhum de nós verá carros de combate alemães em operação durante nossa

vida”.84

Um dos muitos benefícios que um adestramento bem realizado proporciona é

o aumento do espírito de corpo entre os integrantes de uma unidade. Ninguém pode

esquivar-se em aceitar que determinadas forças no mundo são merecedoras da

nossa admiração não só pelos seus feitos passados, mas pela excelência do seu

adestramento. Assim é com os Marines, com os Boinas Verdes, com os Rangers e

com a 82ª e 101ª Divisão Aeroterrestre (EUA), com a Legião Estrangeira (França),

com os SAS85 e SBS86 (Inglaterra), com os Spetnaz (Rússia) e com as FDI, dentre

muitos outros. São assim consideradas em razão do seu profissionalismo e do

adestramento que seus homens possuem, proporcionando confiança dos seus

chefes e reconhecimento da sua capacidade profissional dentro e fora dos seus

exércitos.

No Brasil não é diferente: reconhece-se e admira-se tropas como as do 1º

Batalhão de Forças Especiais e de Ações de Comandos, da Companhia de

Precursores Pára-quedistas e das tropas de Selva, dentre outras. O fulcro dessa

admiração, sem dúvida alguma, vem da qualidade do seu adestramento, gerando

respeito, confiança e orgulho profissional.

83 idem, p. 164. 84 GUDERIAN, Heinz. Panzer Líder. Rio de Janeiro: Bibliex,1966. p. 13. Para saber mais sobre a criação da força blindada alemã consultar op. cit. p. 4 – 39. 85 Special Air Service. 86 Special Boat Service.

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Adestramento dos Quadros

Um aspecto que merece ser analisado mais detidamente diz respeito ao

adestramento dos quadros. É comum nos exércitos com períodos prolongados de

paz, dar ênfase ao adestramento do soldado. Normalmente, o período de

adestramento dos recrutas é caracterizado por intenso trabalho e uma profusão

quase caótica de instruções, gritos de guerra e competições de instrução salutares

entre as frações. Diferentemente, aquele período referente às instruções de quadros

é caracterizado por uma relativa calma e dedicação às lides administrativas. Muitos

justificam essa tendência afirmando que a instrução de quadros é cara e que esses

já estão suficientemente adestrados.

Isso é erro grave. A formação do soldado é relativamente simples se

comparada com à dos quadros. O soldado é adestrado em táticas individuais e

conhecimentos limitados às suas missões, normalmente simples. Tiro,

maneabilidade individual e coletiva, preparo físico básico, topografia, orientação em

campanha e outras disciplinas requerem pouco tempo para sua absorção. A

experiência mostra que em três ou quatro meses se forma um bom soldado, desde

que tenha bons instrutores e seja submetido a um regime intenso de trabalho. Em

caso de conflito iminente, esse período cai consideravelmente. Na Primeira Guerra

Mundial, levava-se dez semanas entre a convocação e o batismo de fogo de um

soldado inglês.

Todavia, a formação de um oficial ou sargento é contínua no tempo. Não se

resume apenas ao seu período de formação. Além disto, devido às peculiaridades e

detalhes das tarefas a serem desempenhadas em combate pelos quadros, é

necessário um profícuo trabalho de execução constante e de aperfeiçoamento das

técnicas aprendidas.

Somente uma instrução muito bem planejada, orientada por pessoal

competente e executada com seriedade pode proporcionar aos quadros a qualidade

que se pretende neles. Oportunidades não faltam para que isso seja feito. Exercícios

na carta, adestramento com armamentos de dotação, discussões dirigidas sobre

condutas, exercícios em postos de observação, análise de operações já realizadas,

estudo da História Militar, revisões doutrinárias, instruções com rádios,

equipamentos e procedimentos de combate, exercícios no terreno com figuração,

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são apenas alguns exemplos das múltiplas possibilidades de adestramento dos

quadros.

O maior problema está em se achar que os quadros foram bem formados nas

escolas e não carecem de instruções mais apuradas na tropa. É um engano. Os

quadros precisam e querem aprender mais. Antes de tudo, é um dever dos

comandos enquadrantes proporcionar-lhes uma instrução de alto nível durante toda

a sua vida militar.

Se realmente um exército quer ser conhecido pelo seu profissionalismo, há a

necessidade de um compromisso por parte dos comandantes desse exército de que

a instrução em tempo de paz deve ser a prioridade um. Tudo, tudo mesmo, o que

estiver fora disso é acessório. Aí se incluem festas inoportunas, competições

desportivas em época imprópria e com importância acima do que merecem,

representações no horário da instrução etc.

Essa falta de comprometimento dos escalões mais altos pode minar

iniciativas na área de instrução dos escalões mais baixos. Não pode haver, no seio

de um exército sério, dúvidas de que tanto para o general de mais alta antigüidade

ao soldado mais moderno, a instrução e o adestramento – e tudo o que se relaciona

com esses dois aspectos - é a prioridade do exército a que pertencem.

É preciso que todos, sem exceção, aceitem as inovações, os

aperfeiçoamentos e as mudanças no sistema de instrução que visem a elevar o

aumento da operacionalidade de um exército. Qualquer preconceito contra

modificações, típico de um exército de paz acomodado, deve ser combatido com

argumentos, com instruções e com exercícios que comprovem a eficácia das novas

metodologias.

Ao se analisar, muito superficialmente, as causa da derrota do Exército

italiano na 2ª Guerra Mundial, verifica-se, sem muito esforço, que faltaram

equipamentos mais modernos e liderança. Mas, a principal causa do fracasso foi a

falta de adestramento sério e interesse dos mais altos chefes e estadistas no que se

referia à segurança daquele país.

Por força de costumes e também por comodismo, os quadros acabam

tornando-se apenas instrutores do soldado. Normalmente são bons nessa área.

Ensinam muito bem as tarefas nos níveis mais baixos. Contudo, acabam carecendo

de conhecimentos e experiências vivas no desempenho de suas funções.

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Será por intermédio de exercícios onde os quadros sejam executores e não

somente instrutores, que se poderá aquilatar o nível da unidade e realizar as

correções necessárias, além de se testar efetivamente a doutrina vigente, corrigindo

possíveis erros. Os quadros são a alma da operacionalidade!

Os alemães, antes da 2ª Guerra Mundial, já se preocupavam em manter seus

quadros hábeis. A redução drástica de efetivos e equipamentos preconizada pelo

Tratado de Versailles determinava, entre outras coisas, que o Exército alemão não

poderia possuir mais do que sete divisões de Infantaria e três divisões de Cavalaria.

Não deveria, ainda, ultrapassar os 100.000 homens, sendo que aí estariam incluídos

oficiais e elementos logísticos. Desse efetivo, somente 4.000 homens poderiam ser

oficiais.

A verdadeira intenção do tratado era de proporcionar à Alemanha apenas um

efetivo suficiente para resolver problemas de ordem interna, nunca de ordem

externa, ou seja, conduzir uma guerra em alta escala como fizera em 1914.

Contudo, os aliados não esperavam o aparecimento de uma figura importante

no cenário militar alemão, que iria mudar completamente a concepção de

adestramento de tropas até então vigente na Europa. Seu nome era General Hans

von Seeckt, conhecido na Alemanha como “o homem que preparou a Segunda

Guerra Mundial”.

Ao invés de enveredar pelo caminho da acomodação com o status quo

alemão, o General Seeckt decidiu investir em um sólido núcleo de profissionais -

oficiais e sargentos - nos quais poderia, segundo ele mesmo, “transformá-lo em

fôrma para derramar a massa de recrutas quando isso fosse possível”87. Foi ele

quem selecionou pessoalmente os oficiais e sargentos que iriam auxiliá-lo nesta

empreitada. Como curiosidade, vale a pena destacar que dentre os primeiros

militares a passar pelo crivo de Seeckt estavam os jovens oficiais Erwin Rommel e

Hanz Guderian. Ambos teriam destacado papel no futuro, durante a Segunda Guerra

Mundial.

Para atingir seu objetivo, von Seeckt e sua equipe usaram de forma generosa

a criatividade. Para que se tenha idéia da amplitude dessa criatividade, ao iniciar o

estudo de teoria sobre blindados, Guderian comandou um batalhão com modelos

simulados. Eram armações cobertas com lona e empurradas por homens a pé. As

87 YOUNG, Desmond. Rommel. Rio de Janeiro: Arte Nova: Bibliex, 1975. p. 51.

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viaturas eram simulacros, os canhões anticarro eram de madeira, tudo era

improvisado. Isso se passou em 1929. Em 1939 a Alemanha assombrava a Europa

com sua “Guerra Relâmpago”. Em apenas dez anos, sem equipamento no início,

com soldados mal selecionados e adestrados, mas com quadros minuciosamente

escolhidos e duramente treinados, a Alemanha, sob as rédeas de Von Seeckt,

revolucionou um exército, tornando-o uma potente máquina de guerra.

Seu objetivo primordial era o de adestrar os quadros, fazendo-os entender a

mecânica da guerra, as decisões que deveriam tomar à luz do terreno, as medidas

de coordenação e controle dos seus pelotões e companhias, enfim, a tática do nível

pelotão até o de exército de campanha – como diz Marshall em seu livro “Homens

ou Fogo?”, criar o “soldado-pensante”. Formar soldados era uma questão

secundária, formar quadros capazes e com experiência era fundamental. Essa lição

ficou arraigada no seio dos oficiais alemães até os nossos dias. Basta verificar o

prestígio que eles possuem nos exércitos ocidentais, como oficiais íntegros,

disciplinados, dedicados e arrojados. Certamente há uma semente plantada por von

Seeckt nesta tradição alemã.

A lição do Exército alemão, que sempre teve o apanágio de possuir

excelentes quadros em seu exército – incluindo o lendário Estado-Maior Alemão –

ensina que a melhor forma de proporcionar satisfação aos homens em combate e

possibilidade real de vitória, é ministrando uma instrução de primeiro nível na paz.

Essa atitude foi capaz, inclusive, de minimizar os problemas da perda de auto-estima

e prestígio, baixos salários e frustração profissional que grassavam nas Forças

Armadas alemãs após a 1ª Guerra Mundial.

É importante que o adestramento seja feito levando-se em conta o máximo de

realismo possível dentro daquilo que se pode esperar numa guerra. Deve, ainda, ser

avaliado em itens mensuráveis e determinar que se atinja padrões específicos. Ou

seja, o comandante de pelotão deve ser capaz de receber uma missão, aprestar o

seu pelotão, realizar o estudo de situação, planejar, transmitir seu planejamento à

luz do terreno e cumprir a sua missão. Dentro desse prisma, ele deverá atingir

inúmeros padrões específicos: Soube interpretar a sua missão? Planejou dentro da

sua esfera de atribuições? Estabeleceu medidas de coordenação e controle para os

seus homens? Foi capaz de emitir sua ordem de forma verbal, simples e concisa?

Durante o exercício, ele procurou cumprir o que planejou? Ao deparar-se com

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situações inesperadas, colocadas pela coordenação do exercício, ele foi capaz de

contorná-las? Seguiu a intenção do seu comandante imediato?

É preciso que todos os aspectos sejam levados em consideração. A sua

VBC88 estava com a escotilha fechada, dificultando a sua visão – como será em

combate - ou ele foi com ela aberta? Seu carro de combate estava com toda a

munição prevista, diminuindo o espaço no interior do carro? Foram lançados

fumígenos no terreno que ele operou, para confundir sua orientação, como

provavelmente acontecerá numa situação real?

Quando o piloto americano, Capitão Scott O’Grady, foi abatido com sua

aeronave F-16 Falcon, às 15:03h de 2 de junho de 1995, sob os céus do noroeste da

Bósnia, o jornalista Chistopher Bellamy, escreveu um artigo interessante sobre o

fato. O’Grady pertencia ao 555º Esquadrão de Caças dos EUA e cumpria missões

de patrulhamento nos céus da Bósnia (Operation Deny Flight ) autorizadas pelo

United Nations Security Council Resolution number 816. No momento em que um

míssil SA-6 atingiu seu avião, ele ejetou e caiu em território bósnio. Sobreviveu cerca

de 6 dias sem ser capturado pelas forças bósnias, sendo resgatado por uma equipe

de fuzileiros navais americanos. Foi recebido como herói.

Vista assim, essa estória prova a capacidade e adestramento do militar. Mas,

segundo Bellamy, as coisas foram um pouco diferentes.

“(...) Mas ele escapou mais por sorte do que por raciocínio, segundo

funcionários da OTAN89 na Itália. Em vez de “fazer tudo certo” durante os seis dias

que passou em território inimigo, O’Grady fez tudo errado. Militares da OTAN

disseram que foi um milagre os sérvios e os bósnios não o terem prendido. Se ele

tivesse seguido as instruções, teria sido salvo dias antes. (...) A série de erros

cometidos por O’Grady começou quando ele decolou, usando apenas uma camiseta

sob seu uniforme de vôo. Ele deveria estar preparado para um frio intenso e talvez

ter que ficar fugindo por dias. Seus colegas confirmaram que os sérvios apontaram o

radar para seu avião F-16 várias vezes antes de derrubá-lo. “Deveria ter fugido

imediatamente”, disse um piloto. Mas ele continuou a voar num círculo previsível a

15 mil pés, até que um míssil sérvio derrubou seu avião. Ao aterrissar, ele deveria

ter contatado a chefia de vôos com um pequeno rádio de sobrevivência, mas não

88 Viatura Blindada de Combate. Nome técnico como são chamados os carros de combate sobre lagarta. 89 Organização do Tratado do Atlântico Norte.

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sabia operar o rádio. Também havia um sistema de posicionamento global capaz de

informá-lo sobre sua posição, mas teve problemas para usá-lo. Demorou dias até

descobrir como utilizar o auxílio-resgate. Também não deveria ter se afastado tanto

do lugar onde caiu.(...) Mas ele não entendeu corretamente e caminhou mais 24 km

em território inimigo, para tentar chegar ao ponto de referência. Quando a equipe de

resgate aterrissou, O’Grady correu da mata com uma pistola carregada e com a

trava solta. Um sargento que correu ao seu encontro foi obrigado a tirar a pistola das

mãos dele antes de permitir que subisse no helicóptero. Um dos pilotos disse:

“Estamos felizes que tenha sido salvo, mas isso dá uma boa idéia sobre seu

treinamento.”90 (grifo do autor)

São pequenos detalhes no adestramento que diferenciam um verdadeiro

treinamento de uma demonstração ou pseudotreinamento, que só serve para

registrar que houve o adestramento da unidade e causar problemas como aqueles

ocorridos com o Cap O’Grady. É importante que se lembre: o combustível, a

munição e o dinheiro são sempre parcos em tempo de paz. Deve, por isso, ser

utilizado da melhor forma possível, visando o adestramento sério e competente.

O Exército Americano já utiliza um tipo de treinamento inovador nesse campo.

Trata-se do famoso Centro Nacional de Instrução (CNI), localizado em Fort Irwin, na

Califórnia, onde há a sinergia da tecnologia com exercícios bastante realísticos. Lá,

são utilizados o sistema MILES91 , figuração inimiga experiente - montada de acordo

com a doutrina do exército opositor - controladores e avaliadores.

O Exército Brasileiro criou recentemente o Centro de Avaliação de

Adestramento do Exército (CAAEx), no Rio de Janeiro. Bastante parecido com o seu

congênere americano, vem realizando diversas avaliações em tropas do Exército

Brasileiro em condições mais próximas da real do que em outros treinamentos,

inclusive fazendo uso do MILES. Isso tem possibilitado ao Exército conhecer suas

deficiências e corrigi-las de forma mais científica. Os seus frutos serão cada vez

maiores e certamente sentidos nos corpos de tropa por intermédio de

90 BELLAMY, Chistopher. Piloto dos EUA foi salvo apesar de seus erros. Trad de Lise Aron. Folha de São Paulo, São Paulo, jun. 1995. p. 8. 91 Simulador Integrado Múltiplo a Laser. Esse sistema, colocado em cada homem e viatura, permite saber quando um alvo foi atingido e por quem. Além disso, controla o número de tiros dados e quem acertou cada alvo. Possibilita, inclusive, a descoberta de fratricídio durante os treinamentos.

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recomendações, lições aprendidas e diretrizes dos escalões superiores,

aperfeiçoando técnicas e táticas.

Durante um exercício na AMAN, em 1995, tive a oportunidade de verificar o

quanto é importante um treinamento o mais próximo do real. Estávamos realizando

um exercício no terreno com cadetes do 4º ano em que eles seriam avaliados,

durante um reconhecimento de eixo92, na sua conduta frente a um ataque aéreo. Em

outras oportunidades, nós simulávamos os ataques aéreos por intermédio de apitos

ou outros meios. Entretanto, naquela oportunidade, conseguimos o apoio do 1º

Grupo de Aviação de Caça, que iria realizar a tarefa de reconhecimento armado93 e

realizar algumas surtidas sobre a nossa tropa, de valor esquadrão.

Durante a leitura do relatório94 após o exercício, verificou-se o seguinte: 1)

Não foi conseguido contato rádio com os aviões no PI; 2) a utilização de cortina de

fumaça por parte dos carros de combate, durante um ataque aéreo não se mostrou

recomendada. Os pilotos das aeronaves F-5 Tiger relataram que no início tiveram

bastante dificuldade em localizar nossas tropas. Mas, quando o primeiro carro

lançou os fumígenos de proteção (conforme é previsto), eles tiveram sua tarefa

simplificada. Mesmo que os blindados não ficassem à vista, o simples emprego de

bombas sobre a fumaça certamente traria baixas à tropa, tendo em vista o seu

grande efeito de sopro95 e demolição.

Segundo os pilotos, a atitude mais correta para dificultar o trabalho deles,

nesse caso, era a procura imediata de matas densas e bosques para proteção e o

abandono imediato das estradas não pavimentadas. O contraste entre o verde dos

carros e o vermelho das estradas facilita a sua localização. Caso o terreno não

oferecesse as facilidades de cobertas próximas, a melhor maneira para dificultar o

trabalho da força aérea inimiga é dispersar a unidade ao máximo e abandonar as

viaturas. Isso, segundo os pilotos, minimiza as baixas no caso de um ataque

surpresa onde não se disponha de meios antiaéreos imediatos e eficazes.

A maior lição desse exercício foi a de que treinar imaginando é bem diferente

de treinar fazendo. A velocidade dos aviões, o ruído produzido e a conseqüente

92 Operação militar que visa colher dados sobre uma determinada estrada e suas adjacências para subsidiar comandos superiores no planejamento de outras operações de maior envergadura. 93 Missão típica da Força Aérea que consiste em sobrevoou ao longo de um eixo (estrada, por exemplo) com a finalidade de destruir alvos inimigos compensadores. 94 Relatório Final Operação AMAN, do 1º Grupo de Aviação de Caça, 31 Mar 95-19 Mai 95. 95 Deslocamento de grandes massas de ar de maneira repentina e violenta, em todas as direções. Este efeito provoca danos ao corpo humano mais ou menos graves em função da distância de arrebentamento da munição.

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confusão gerada na formação foi grande. Verificou-se o quão difícil é para uma tropa

responder a um ataque deste tipo. Aprendeu-se, ainda, que nem sempre o uso de

fumígenos para mascarar uma tropa é a melhor solução. Ele pode proporcionar um

resultado inverso, ou seja, denunciar TODAS as nossas viaturas para a aviação.

O mesmo deve ocorrer com o pessoal de apoio no que tange ao

adestramento. Eles merecem um treinamento rigoroso e dentro das condições que

encontrarão em combate. As equipes de manutenção devem ser adestradas a

reparar danos sob condições de pouquíssima visibilidade, pois em combate não

poderão acender holofotes sob o risco de chamar para si o fogo inimigo. O trabalho

de ressuprimento deve ser feito com disciplina de ruídos e luzes, os comboios

devem ser treinados para transitarem com limitada velocidade e visibilidade, mesmo

que isso implique em que o café da manhã só chegue na frente de combate na hora

do almoço. Provavelmente será assim mesmo no combate.

Durante a Guerra das Malvinas/Falklands, em 1982, verificou-se o quanto é

importante adestrar tropas para combater em situações de contingência. Os

Argentinos ficaram vivamente impressionados com a capacidade dos ingleses em

executar movimentos a pé, em terrenos rochosos, com lama profunda, totalmente

equipados, combater e vencer.

O deslocamento de 80 km através de pântanos, sob nevascas e temperaturas

inclementes, realizado pelas tropas inglesas na parte setentrional das Falklands

Orientais demonstra a importância de um bom adestramento. Mesmo levando-se em

conta que os ingleses possuíam equipamentos individuais modernos para

protegerem-se do frio, esta façanha só foi alcançada com treinamento anterior duro

e sob condições próximas da realidade. Aqueles que já realizaram marchas longas

sabem que mesmo com o melhor equipamento, o que concorre para que a tropa

atinja seu objetivo em condições de combate é o treinamento. O equipamento ajuda,

mas não resolve o problema. Como afirmou Gary L. Guertenr, em seu artigo “A

Guerra dos 74 Dias: Nova Tecnologia e Velhas Táticas”:

“A coragem e o profissionalismo demonstrados pelos britânicos não foram

acidentais. Seu treinamento salienta orgulho, disciplina e responsabilidade para com

os companheiros desde o início, e dá ênfase às operações em qualquer tempo e

condições. Não se vence batalhas com aeronaves no solo, navios ancorados e

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soldados nos quartéis durante longos períodos de seus ciclos de instrução.”96 (grifo

do autor)

Ou seja, a imensa quantidade de equipamentos modernos à disposição dos

ingleses, tais como helicópteros Chinook, Sea King, aviões Sea Harrier, morteiros

médios, carros de combate leves Scorpion, Scimitar e mísseis Rapier não

substituíram o fulcro de uma tropa: o adestramento individual e coletivo sério, sob

condições próximas da realidade e conduzidos diuturnamente.

A importância do adestramento na paz pode ser verificada e patenteada no

“Informe Oficial do Ejército Argentino – Conflicto Malvinas – Tomo I – Desarrollo de

Los Acontecimientos”, de 1983. Este relatório, bastante elucidativo e pormenorizado,

confeccionado pelo Exército Argentino, presta-se a importantes conclusões sobre

diversos aspectos que envolvem uma guerra, mesmo de pequena magnitude como

foi a das Malvinas/Falklands.

“a. El combatiente individual

En este aspecto, deben tenerse en cuenta los factores siguientes:

1) Los soldados argentinos carecían de la capacitación y el equipo necesario

para combatir en el ambiente geográfico de las ISLAS MALVINAS...

...la oportunidad en que se los empleó coincidió com el período del año en

que las unidades poseen comparativamente el menor pie de instrucción,

teniendo en cuenta la estructuración del año militar normal.

2)El soldado inglés contó com un prolongado período de adiestramiento

(grifos do autor) en operaciones, en los niveles específicos, conjunto y

combinado (NATO).

Mais adiante, o relatório diz:

“En el 95% de los casos, los ataques se ejecutan durante la noche, ya que el

enemigo dispone de gran cantidad de medios técnicos para visión y detección

nocturnas. Además, es excelente su nivel de instrucción.”97

Ao final, na sua “Reflexión Final”, verificamos:

96 GUERTNER, Gary L. A guerra dos 74 dias: nova tecnologia e velhas táticas. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXIII, nº 2, 2º Trim. 1983. p. 78. 97 EJÉRCITO ARGENTINO. Conflicto Malvinas. Tomo I – desarrollo de los Acontecimentos. Buenos Aires: Ejército Argentino, 1983. p. 17 - 18.

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“Según há podido apreciarse, el deselace del conflicto fue natural

consecuencia de factores condicionantes severamente adversos. Ya se han

enumerado, en forma conveniente, las duras condiciones geográficas, la carencia de

los apoyos aéreos y navales necesarios, los exiguos niveles de abastecimeiento, la

falta de movilidad y, en suma, la desigual relación de combate, integralmente

considerado. Todo esto, que en su momento jugó como elemento contrario, se unió

a outro aspecto que, en justicia, debe tenerse en cuenta: la capacidad de los

mandos tácticos ingleses, y el valor y adiestramiento de sus tropas”98 (grifos do

autor).

Os trechos acima são apenas alguns dos muitos possíveis de serem

selecionados. Durante a leitura de tal relatório, são muitas as oportunidades em que

se depreende a importância do adestramento e o arrependimento argentino em não

ter tido cuidado maior com o preparo de suas tropas.

No que se refere ao treinamento de estados-maiores em tempo de paz, a

dificuldade em mantê-los aptos na solução de problemas atinentes aos seus

encargos também existe em muitos exércitos. Além do conhecimento profundo sobre

a doutrina a ser empregada, é necessário que se tenha em mente que o trabalho

será árduo e desgastante.

Sobre essa distância entre o trabalho de Estado-Maior na paz e na guerra, o

Marechal Lima Brayner nos esclarece:

“Foram grandes os ensinamentos que colhi neste particular. A preocupação

principal nas nossas grandes escolas era o brilho teórico das operações, face à face

com o inimigo “azul” ou “vermelho”. O funcionamento dos Serviços, não exigindo

maiores esforços de imaginação, sempre se deixou arquitetar à base de dados

fictícios que nunca exprimiam uma imagem da realidade”.99 (grifos do autor)

Outro aspecto que não pode ser esquecido é a grande pressão, notadamente

psicológica, que os membros de um Estado-Maior sofrem. Se tudo der certo, o

98 idem. p. 177. 99 BRAYNER, Floriano de Lima. A Verdade Sobre a FEB. Memórias de um Chefe de Estado-Maior na Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 46.

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mérito é da tropa que combateu. Se algo der errado, será culpa do planejamento do

Estado-Maior:

“Todo trabalho construtivo era inteiramente acionado sob a persistência

daquele pequeno grupo, pois qualquer insucesso que pudesse ocorrer seria

colocado sob a responsabilidades dos seus componentes, arrastando a todos nós,

Comandos e Estado-Maior, a um descrédito irremediável no campo profissional.100

Finalmente, é preciso que um comandante, em qualquer nível, saiba escolher

bem os integrantes do EM que irá para a guerra. Estudos diversos, principalmente

americanos, tratam desse assunto. É extremamente perigoso montar-se uma equipe

somente de “luminares” ou de personalidades fortes demais. É preciso inteligência

nessa escolha. Deve-se mesclar oficiais persistentes, com oficiais comedidos.

Homens de temperamento forte, devem ser escolhidos junto com homens de

temperamento equilibrado, pragmáticos e com forte embasamento teórico.

Napoleão, como nos contam muitos historiadores, foi mestre em selecionar

guerreiros para liderar e compor seus EM. Além de líder inconteste, era profundo

conhecedor da alma humana. Sabia que determinados marechais eram brilhantes

atuando isoladamente. Mas se os reunisse, o desastre era certo, frente à fogueira de

vaidades.

Usando, mais uma vez, as palavras de Brayner, e de Castello Branco (E3101

do Estado-Maior da FEB), pode-se ver o quanto é difícil o convívio diário entre

aqueles que sofrem pressões físicas e psicológicas, que devem decidir sob pressão,

que não podem – e não devem – procurar agradar a todos, que recebem ordens de

pessoas diversas, com personalidades distintas e com opiniões, muitas vezes,

conflitantes. O relato abaixo mostra o quanto é difícil esse trabalho e que mesmo

vencendo e demonstrando competência ao final – como foi o caso da FEB – um EM

sofre demasiadamente na guerra. Talvez um adestramento em tempo de paz mais

real e menos fictício possa ajudar a minimiza os problemas que não estão escritos

nos manuais de Estado-Maior:

100 Idem, p. 50. 101 Um Estado-Maior do nível brigada para cima é, via de regra, composto pelos seguintes oficiais: oficial de pessoal (E1), oficial de inteligência (E2), oficial de operações (E3), oficial de logística (E4) e oficial de comunicação social (E5).

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“Uma surpresa desagradável estava reservada ao EM da FEB.

Em setembro de 1945, estava ele reunido no Rio, na sua antiga sede da rua

S. Francisco Xavier.

Não tinha aquele humor virginal, digamos assim, da vida que vivíamos antes

de partir para a Itália, quando tudo era ânsia honesta de aprender, de adquirir

envergadura de guerreiro, de desprender o espírito da vida de rotina, para predispor-

se às realidades da guerra.

Agora, o EM da 1ª DIE estava ali, entediado, rememorando um grande acervo

de decepções e mágoas.

Realizou a experiência que todos haviam imaginado, através da dureza da ida

de campanha, do tremendo desgaste físico e moral, com os dias e as noites

angustiadas pela incerteza, sempre admitindo a vizinhança da morte numa curva de

estrada ou num desvão de montanha, afora os conflitos emocionais que

despontavam em cada jornada, resultantes da exaustão e do entrechoque de

personalidades tão heterogêneas.

Uma das mais chocantes conseqüências da guerra e da vida de campanha é,

sem dúvida, com o convívio dia a dia, o desenvolvimento do senso psicológico e o

crescente conhecimento das profundezas da alma humana, com o seu cortejo de

grandezas e pusilanimidades.

Acontece muitas vezes que indivíduos que se acotovelam conosco nas

atividades normais da vida sabem se manter egoisticamente indevassáveis, nas

diversas facetas de sua personalidade, enquanto outros deixam ler, como num livro

aberto, tudo o que se pode esperar de seu caráter e de sua formação moral.

O vendaval da guerra, entretanto, com sua inexorabilidade, sacode o velho

tronco milenar da criatura humana, obrigando-o a liberar as flores que pudicamente

escondia, e as imperfeições que intimidavam ante a luz da ribalta.

A solidariedade humana, o espírito de sacrifício, a suprema renúncia e o

senso de cooperação, a bravura que diviniza, exercida pelo bem comum, a

capacidade de perdoar, enfim, são guirlandas que envolvem em claridade esse

escrínio que é a alma humana. Mas, no outro extremo, há a inveja, a ambição, a

ganância, a preocupação de destruir, de menosprezar, de desfigurar o trabalho

alheio.

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O espírito de competição desonesta, enrodilhado pela intriga e pela ambição

de predomínio, de usurpação daquilo que outros produzem, são os fatores negativos

que não respeitam sequer a ronda da morte.

O caso do EM da 1ª DIE já foi focalizado nos capítulos iniciais deste trabalho

(do livro do Marechal Brayner). A falta de unidade espiritual na sua organização

manteve-se durante toda a Campanha.”102

“...A guerra é um empreendimento muito difícil e brutal. Por isso, vemos os

homens como eles são, e não como desejam ser. Aparecem como numa radiografia.

Os homens, então, mostram sentimentos inigualáveis, inclusive o desprendimento e

o sacrifício da vida.

Mas outros ficam verdadeiramente em trajes menores: abaixam-se,

desfalecem, precipitam-se, ou se tornam inúteis. Ah! Os homens...como eu os

conheço. Quanta qualidade, quanta fraqueza!...”103

Aqui vale dizer: apesar de todos os problemas que permearam a constituição

e o trabalho do EM da FEB, os oficiais brasileiros realizaram um trabalho digno de

nota. Aqueles que já estudaram a História da FEB com espírito crítico, sabem da

avalanche de problemas que caiam diariamente sobre o ombro desses poucos

oficiais, os quais tinham necessidades de resolução sempre urgentes. O General

Mark Clark por diversas vezes elogiou o trabalho do EM da FEB, visto que

acompanhou boa parte das refregas que o EM brasileiro teve de enfrentar.

As palavras de Brayner, além da coragem moral digna de admiração e

encanto, revelam realidades as quais qualquer EM, de qualquer país, está sujeita.

Cabe àqueles que trabalham ou trabalharão em um EM, sabendo desses problemas,

regularem as paixões humanas, as ambições profissionais e pessoais, a

prepotência, enfim, os sentimentos humanos mesquinhos que emperram o ser

humano na consecução de tarefas num nível aceitável. Mesmo assim, a guerra, por

mais que nos controlemos, trará feridas que nem o tempo poderá cicatrizar. Daí a

validade deste depoimento: mesmo vitoriosos, a guerra deixa marcas.

102 BRAYNER, Floriano de Lima. A Verdade Sobre a FEB. Memórias de um Chefe de Estado-Maior na Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 524-525. 103 MATTOS, Carlos de Meira. Castello Branco e a Revolução. Rio de Janeiro: Bibliex, 1994. p. 188.

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O adestramento é vital para que um exército atinja seus objetivos de guerra.

Um bom adestramento proporciona espírito de corpo forte, disciplina, orgulho, moral

elevado e confiança nos combatentes, além de minimizar baixas e proporcionar

satisfação aos homens.

Ele deve ser realizado nos períodos de paz sempre tendo em mente a

possibilidade de emprego no mais curto prazo possível. Nos dias atuais, não haverá

muito tempo entre “a declaração de guerra e o batismo de fogo”.

O tipo de adestramento de um exército é função direta das hipóteses de

conflito definidas pelos escalões mais altos. Deve também ser flexível a fim de

responder aos imperativos de um mundo cada vez mais dinâmico e sujeito a

mudanças repentinas e drásticas. Para isso, ele deve formar homens com grande

capacidade de raciocínio, flexibilidade e criatividade para resolver problemas. Além

de grandeza moral, necessária para que as decisões tomadas tenham como farol a

missão, e não devaneios pessoais, não é desejável para qualquer exército, que

estes sejam autômatos em combate.

Por fim, deve abranger todos os militares envolvidos: soldados, sargentos e

oficiais. Estes devem ser treinados dentro das suas funções com o máximo de

realismo possível. Qualquer outro caminho é perda de tempo, de dinheiro e

caracteriza o desvirtuamento daquilo que um país espera de suas forças armadas.

Liderança

“Reconhece-se o verdadeiro chefe por este sinal: sua simples presença é, para os homens que ele

dirige, um estímulo para se superarem a serviço da causa comum.

Substitua-se “presença” por “lembrança” e teremos o grande chefe.

Gaston de Courtois

“O comandante militar é o destino da nação.”

Helmuth von Moltke

De todas os aspectos que envolvem a profissão militar, a liderança é o

principal deles. Ela funciona como elementos químicos que transmitem aos diversos

órgãos do corpo humano as ordens emanadas do cérebro. Sem a liderança, os

armamentos, aquartelamentos, soldados e vontades são inúteis. No máximo,

trabalharam de forma a garantir a sobrevivência da instituição.

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É fundamental que o oficial e o sargento de qualquer exército saiba liderar

suas tropas, em qualquer nível, sabendo que irá encontrar mais dificuldades do que

facilidades. Ele deve ser capaz de comandar homens sob condições de grande

pressão, inferioridade de efetivos, linhas de comunicações e suprimentos longas e

vulneráveis, apoio logístico e de fogos restritos, e toda uma sorte de óbices que

certamente serão impostos durante o combate. Para se antepor a esse quadro,

somente uma liderança sólida e inquestionável vai lhe proporcionar ferramentas para

superar as deficiências que certamente irão aparecer.

Antes de continuar, é preciso diferenciar bem um líder de um chefe,

comandante etc. Existem inúmeras definições sobre a diferença entre ambos. De

maneira simplificada, o chefe é colocado na situação de mando, geralmente por

força de lei, regulamento ou instrumento jurídico. Gosto de pensar no líder como

alguém que transcendeu ao chefe. Ele, além de possuir todas as condições legais

necessárias para comandar, possui qualidades que não estão nos livros e que não

se pode ensinar. Só a experiência de vida, o comprometimento com a causa e a

visão de que há algo maior na sua missão pode explicar um líder.

Existem muitas maneiras de se tornar um líder. Cada uma delas têm sua

validade dentro do contexto em que o militar estiver inserido. Variantes culturais,

religiosas, econômicas, políticas, épocas, objetivos dos exércitos, diretrizes dos

comandantes e muitas outras são fatores que irão delinear a maneira como se deve

liderar uma tropa.

Um trecho do livro “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, mostra uma abordagem,

embora primitiva, sobre a liderança entre 500 a.C. e 300 a.C.

Sun Tzu, cujo nome individual era Wu, nasceu no Estado de Ch’i. Sua Arte da

Guerra chamou a atenção do Ho Lu, Rei de Wu. Ho Lu disse-lhe: “Li atentamente

seus 13 capítulos. Posso submeter sua teoria de dirigir soldados a uma pequena

prova?”

Sun Tzu respondeu “Pode”.

O rei perguntou: “A prova pode ser feita em mulheres?”

A resposta tornou a ser afirmativa e então trouxeram 180 senhoras do

palácio. Sun Tzu dividiu-as em duas companhias e colocou duas concubinas

favoritas do rei na direção de cada uma delas. Depois mandou que todas pegassem

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lanças e falou-lhes assim: “Suponho que saibam a diferença entre frente e costas,

mão direita e esquerda?”

As mulheres responderam: “Sim”.

Sun Tzu prosseguiu: “Quando eu disser sentido, têm de olhar diretamente

para frente. Quando eu disser Esquerda volver, têm de virar para a sua mão

esquerda. Quando eu disser Direita volver, precisam virar-se para sua mão direita.

Quando eu disser Meia-volta volver, vocês têm de virar de costas”.

As moças tornaram a concordar. Tendo explicado as palavras de comando,

ele colocou as alabardas e achas-d’armas em forma, para começar a manobra.

Então, ao som dos tambores, deu a ordem “Direita volver”, mas as moças apenas

caíram na risada.

Sun Tzu disse, paciente: “Se as ordens de comando não foram bastante

claras, se não foram totalmente compreendidas, então a culpa é do general”. Assim,

recomeçou a manobra e, desta vez, deu a ordem “Esquerda volver”, ao que as

moças quase arrebentaram de tanto rir.

Então ele disse: “Se ordens de comando não forem claras e precisas, se não

forem inteiramente compreendidas, a culpa é do general. Porém, se as ordens são

claras e os soldados, apesar disso, desobedecem, então a culpa é dos seus oficiais.

Dito isso, ordenou que as comandantes das duas companhias fossem decapitadas.

Ora, o Rei de Wu estava olhando do alto de um pavilhão elevado e quando

viu sua concubina predileta a ponto de ser executada, ficou assustado e mandou

imediatamente a seguinte mensagem: “Estamos neste momento muito contentes

com a capacidade do nosso general de dirigir suas tropas. Se formos privados

dessas duas concubinas, nossa comida e bebida perderão o sabor. É nosso desejo

que elas não sejam decapitadas.”

Sun Tzu retrucou, ainda mais paciente: “Tendo recebido anteriormente de

Vossa Majestade a missão de ser o general de suas forças, há certas ordens de

Vossa Majestade que, em virtude daquela função, não posso aceitar”. Conseqüente

e imediatamente mandou decapitar as duas comandantes, colocando prontamente

em seu lugar as duas seguintes. Isso feito, o tambor tocou mais uma vez para novo

exercício. As moças executaram todas as ordens, virando para a direita ou

esquerda, marchando em frente, fazendo meia-volta, ajoelhando-se ou parando com

precisão e rapidez perfeitas, não se arriscando a emitir um som.

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Então, Sun Tzu enviou uma mensagem ao rei, dizendo ““ Os soldados,

senhor, estão agora devidamente disciplinados e treinados, prontos para a inspeção

de Vossa Majestade. Podem ser utilizados como seu soberano o desejar. Mande-os

atravessar fogo e água e agora não desobedecerão. “Mas o rei retrucou:” Que o

general pare o exercício e volte ao acampamento. Quanto a nós, não desejamos

descer e passar os soldados em revista.”

Respondendo, Sun Tzu disse, calmo: “O rei apenas gosta muito de palavras,

e não sabe transformá-las em atos.”104

Depois disso, o Rei de Wu viu que Sun Tzu sabia como comandar um

exército e nomeou-o general.

Evidentemente, este exemplo não é aplicável aos dias de hoje. No entanto, é

ainda atual na medida em que mostra que é possível aplicar a liderança em qualquer

grupo humano. O que deve ser levado em consideração são as ferramentas

utilizadas para se atingir os objetivos. A liderança de um pelotão de soldados utiliza

meios diferentes daqueles usados para se liderar comandantes de unidade, por

exemplo.

A figura do líder é tão importante que Napoleão disse:

“Os gauleses não foram conquistados pelas legiões romanas, mas por César.

Não foram as muralhas de Cartago que fizeram tremer os soldados romanos, mas

Aníbal. Não foram as falanges macedônias que chegaram à Índia, mas Alexandre.

Não foi o Exército francês que atingiu o Weser e o Inn, mas Turenne. A Prússia não

se defendeu por sete anos, contra as três maiores potências européias, com seus

soldados, mas com Frederico, o Grande.”105

Lendo as palavras de Napoleão, enxerga-se outra faceta do líder. Ele tem a

capacidade, quase mágica, de transformar forças amorfas em ações e fatos reais.

Ele consegue reunir as vontades, ainda sem objetivos definidos e presas dentro de

seus egoísmos e paixões, e catapultá-las na direção de objetivos factíveis. O líder,

das mais variadas formas, é capaz de obter a sinergia de forças vigorosas dispersas.

104 TZU, Sun. A Arte da Guerra. Org. Adap. James Clavell. Trad. José Sanz. São Paulo: Record, 1996. p. 10 – 13. 105 LANNING, Michael Lee. Chefes, Líderes e Pensadores Militares. Rio de Janeiro: Bibliex, 1999. p. 12.

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Por outro lado, a liderança usada de forma errada e maniqueísta pode se

tornar perigosa para um exército. Isso acontece quando o líder perde o ponto focal

da sua missão. Ao mesmo tempo em que ele leva um exército para a glória, ele

pode levá-lo para a derrota e o descrédito. Hitler é um exemplo disso. A sua conduta

destruiu a liderança e a coragem moral de seus generais, conforme Liddel Hart, em

“O Outro Lado da Colina”, afirma:

“(...) os generais alemães podem ser devidamente criticados é pela maneira

como parece terem feito vista grossa aos excessos dos nazistas e por falta de

coragem moral, com algumas exceções, de protestarem contra coisas que eles

próprios jamais teriam efetuado. Contudo, fica patente de qualquer exame das

brutais ordens de Hitler que a escalada de atrocidades e os sofrimentos dos países

ocupados teriam sido muito piores ainda, se suas ordens exterminadoras fossem

tacitamente negligenciadas ou, pelo menos, modificadas pelos comandantes

militares. Coragem moral de protestar não é uma característica comum em nenhum

exército. Conheci inúmeros generais aliados que deploravam intimamente a

desumanidade da nossa política de bombardeio, quando tinha por objetivo principal

aterrorizar a população civil, embora ignore que algum deles haja se aventurado a

protestar oficial ou publicamente contra esta medida. Igualmente, procuraram não

ver outros exemplos de “barbarismo” cometidos pelas forças aliadas. Todavia,

nenhum risco corriam em protestarem, como acontecia aos generais alemães,

exceto o de prejudicarem suas expectativas de carreira”106

O General Patton, um chefe que embora tenha pautado sua vida profissional

por balançar ora no campo da personalidade positiva e ora no personalismo

negativo, demonstrou o quanto é importante, mesmo em tempos de paz, possuir

coragem moral e colocar sua carreira em jogo pelos subordinados, merece ser

citado em uma passagem como instrutor em Fort Riley:

“Certa vez, quando eu era instrutor em Fort Riley, realizei em minha casa uma

festa só para homens e oferecida aos integrantes da turma do segundo ano.

Evidentemente fizemos muito barulho, mas ninguém se portou como bêbado, nem

106 HART, Liddell. O Outro Lado da Colina. Rio de Janeiro: Bibliex, 1980. p. 12.

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mesmo de forma descontrolada. No dia seguinte fui chamado pelo comandante, um

homem que vivia dominado pela esposa; declarou-me haver recebido um informe

verdadeiro, a respeito de um tenente que comparecera à minha festa e que se

tornara inconvenientemente embriagado. O comandante desejava saber o nome do

oficial. Respondi-lhe que não denunciaria ninguém. Disse-me ele ”Daqui a um mês e

meio terminará o seu tempo de instrutor; se o senhor não responder à minha

pergunta, desligá-lo-ei imediatamente e prejudicarei a sua folha de serviços, até

agora excelente”. Menti, declarando que estava tão embriagado, na festa, que não

notara o estado dos outros oficiais. O comandante não fez nada contra mim.” 107

No entanto, é preciso que se entenda que a liderança não se limita somente a

tomar decisões heróicas, muitas vezes até românticas, dentro de um quadro

maniqueísta entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, sempre assumindo o lado

moralmente correto. Existem momentos em que o líder precisa e deve tomar

decisões cujo arcabouço moral poderá ser contestado no momento ou, até mesmo,

no futuro pelos historiadores e pesquisadores.

O navegador português Fernão de Magalhães e sua épica jornada através

dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico, é excelente estudo de caso para se abordar

a necessidade da firmeza do líder, embora adotando atitudes passíveis de críticas.

Foi graças a sua firmeza em cumprir a missão recebida do Rei Carlos I (mais tarde

Carlos V, imperador do Sacro Império Romano), circunavegando o planeta, que

possibilitou que a jornada fosse completada.

Para que se tenha alguma idéia da dramática epopéia de Fernão de Magalhães

– e da conseqüente necessidade de liderança incontestável - vale a pena resumir

parte importante dela. Sua expedição partiu de Sevilla, em 1519, com cerca de 260

homens e cinco embarcações. Em 6 de setembro de 1522, três anos depois,

somente um navio (o Victoria) chegou ao porto de Salúcar de Barrameda, na

Espanha. Apenas 18 homens e 3 cativos haviam sobrevivido108 à expedição.

As mortes ocorridas e as condições da viagem foram as mais severas

possíveis: escorbuto, tortura, afogamento, execuções sumárias e antropofagismo

foram alguns dos fantasmas que rondaram aqueles homens. Some-se o frio, as

107 PATTON JR, George S. A Guerra que eu Vi. Rio de Janeiro: Bibliex, 1979. p. 334. 108 Fernão de Magalhães morreu em combate na ilha de Mactan (Filipinas), no Índico, em 27 de abril de 1521, não conseguindo completar sua missão.

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tempestades açoitando os navios, o cheiro fétido dos porões, as calmarias

intermináveis, o calor insuportável, as vaidades, as traições, os motins, as

superstições, a religiosidade exacerbada e a fuga de marinheiros, e ter-se-á um

quadro de relacionamento humano dos mais complexos, onde a liderança era a

única ferramenta capaz de manter aquele grupo de homens diariamente testados

nas suas capacidades no cumprimento de sua missão.

Um dos pontos de inflexão da viagem, no que tangia à liderança de

Magalhães, foi o motim ocorrido em 1520 quando a frota de Magalhães navegava

próximo ao que hoje chamamos de Terra do Fogo, na costa argentina. Era um

momento crítico da expedição, pois havia a necessidade de se “tatear” a costa leste

do extremo sul da América a fim de encontrar a tão procurada passagem para o que

viria a ser chamado de oceano Pacífico. As dúvidas e as frustrações diuturnas

criaram condições para a eclosão de um motim contra o chefe da expedição. Das

cinco embarcações, três se amotinaram, sob o comando de Gaspar de Quesada.

Apesar da enorme desvantagem numérica, Magalhães valeu-se de sua frieza,

do seu tirocínio e da confiança na sua competência que desfrutava entre a marujada.

A sua grande virtude naquele momento de crise foi a de contornar a revolta por

partes, vencendo, um a um, os navios amotinados. Evitou o ataque frontal a todos os

navios rebeldes simultaneamente. Na verdade, foi um jogo de xadrez que envolveu a

máxima capacidade de liderança de Magalhães.

Após estudar a situação, decidiu dominar primeiramente o navio que, segundo sua

avaliação, estava menos firme acerca do motim. Em poucas horas retomou o

Victoria. Tempos depois, após encurralar o Concepción numa baía, Magalhães

travou batalha com esta embarcação, fazendo com que a tripulação amotinada

vacilasse, mudando de lado e voltando a ser fiel ao capitão- mor. Vendo-se sem

saída, a última nave amotinada, o San Antonio, rendeu-se. Magalhães, em menos

de 24 horas, retomou sua frota. Mais do que excelente tático, Magalhães

demonstrou possuir características fundamentais a um homem apto a liderar

homens em situações de crise extrema: senso de avaliação, capacidade de abstrair

o importante do supérfluo, calma, espírito de cumprimento de missão e destemor

perante o risco.

Entretanto, a sua confirmação como líder daquela expedição não havia

terminado com o fato de debelar o motim. Ainda era necessária medida corretiva a

fim de evitar outras contestações à sua liderança. Ele sabia que as provações

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estavam apenas começando. Haveria, no futuro, necessidade de que todos

soubessem quem era o líder daquele grupo, independente das situações adversas

que se anunciavam.

Como era o costume à época, as penas foram brutais. O corpo de um dos

amotinados (Mendoza) foi esquartejado, com traços de violência impactantes109. O

astrônomo-astrólogo Andrés de San Martín, Hernando Morales e um padre foram

condenados por traição. San Martín foi torturado por intermédio do strappado110.

Hernades Morales veio a morrer sob tortura. Apesar de ter condenado outros 40

homens à morte, resolveu comutar a sentença em trabalhos forçados. Quanto a

Quesado, este foi condenado à morte por decapitação111. Outros dois homens, Juan

de Cartagena e o padre Pero Sanchéz de la Reina foram degredados em de San

Julian. Pode-se imaginar o que seria tentar sobreviver numa região gelada, sem

provisões e, o pior, habitada por canibais.

Dessa forma, Magalhães consolidou sua liderança. Havia demonstrado a todos

que o seu comando não poderia ser questionado e, muito menos, ser objeto de

qualquer tentativa de sublevação. Sua atitude manteve-o vivo, sua frota unida e a

frota sob forte liderança.

Analisar as atitudes extremas de Magalhães é desafiante. Deve-se ter em conta

a época em que Magalhães vivia. A Era dos Descobrimentos, com suas dificuldades

físicas e com o desconhecido supervalorizando as reações humanas, aliado às

práticas da Santa Inquisição, tornavam tais medidas aceitáveis e legais segundo as

leis espanholas. O fulcro da descrição acima, no que se refere à liderança, é a de

que o líder deve utilizar todos os meios disponíveis e legais para levar o seu intento

ao objetivo programado. Dentro deste quadro, o líder deve, ainda, ser possuidor de

uma personalidade equilibrada para, nos momentos de crise aguda, inspirar

confiança e manter a posição necessária ao desafio descortinado. É preciso, em

109 “Os amotinados estavam para descobrir que desafiar Magalhães era ainda mais perigoso do que a tempestade mais violenta no mar. ...Em seguida, ordenou a que o corpo de Mendoza fosse esquartejado. O procedimento complicado e grotesco geralmente começava com a vítima na forca, e, quando estivesse apenas parcialmente estrangulada, era cortada. O executor ou um assistente fazia uma incisão no abdômen do condenado, removia seus intestinos e, inacreditavelmente, os queimava na frente da vítima semimorta.” Citado em BERGREEN, Laurence. Além do Fim do Mundo. A Aterradora circunavegação de Fernão de Magalhães. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. Pg 155. 110 Tortura comum naquele período, constituída de cinco estágios. No último estágio a vítima tinha pesos amarrados aos membros com a finalidade de arrancar, em vida, os membros do condenado. San Martín sofreu os cinco estágios. 111 Magalhães obrigou o criado de Quesada a executar a sentença sob pena de, também, decapita-lo.

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muitas situações, ser duro e frio, como Magalhães e Sun Tzu, dentre outros, foram

ao seu tempo.

De concreto, depreende-se que a tibieza, a falta de comprometimento com a

missão recebida, a vaidade, a fraqueza de caráter, a falta de visão prospectiva, a

prepotência, a inexperiência, o desvirtuamento dos objetivos da Instituição e o bom-

mocismo são inimigos peremptórios da liderança. Corroem as estruturas e

esfacelam qualquer exército.

Outro aspecto que deve ser cuidado dentro de um exército são as falsas

lideranças. Surgem, via de regra, dos vícios de liderança. A mais grave distorção de

liderança é o bom-mocismo, comum em muitos exércitos. Essa prática, que tem por

princípio evitar a tensão com o subordinado e com o superior, deixando que

transgressões sejam cometidas sob a capa de serem pouco importantes ou que não

justificariam as conseqüências, é danosa e corroí qualquer sistema baseado na

disciplina. O seu mote é a omissão; o seu produto, a indisciplina. Ela é danosa à

medida que nivela bons e maus militares em um único conjunto, desestimulando a

dedicação e o sacrifício, visto que para o comandante bom-moço, todos são sempre

iguais.

André Rebouças, primeiro-tenente de Engenharia durante a Guerra do

Paraguai, disse sobre alguns poucos, mas despreparados chefes da época, a sua

dificuldade em servir homens assim: “Sofrer tais chefes, meu bom Deus, é

indubitavelmente o maior sacrifício que faço persistindo em continuar até Humaitá

esta Campanha.”112

Por intermédio da leitura de obras sobre chefia e liderança, somadas à

experiências de diferentes militares que me foram relatadas, acabei por simplificar os

tipos de chefias. Dividi-as em três categorias, não necessariamente estanques. Ela

não é fixa, podendo ora ser mais ou menos evidenciada. Além disso, não possui

grandes fundamentos teóricos nem se baseia em um exército específico. Como

disse, é mais dedutiva do que qualquer outra coisa. São simples, mas sintetizam a

personalidade do chefe.

Na esmagadora maioria das vezes, os integrantes do primeiro grupo não

passam de incompetentes e descomprometidos com a força a que pertencem.

Mascaram sua falta de preparo profissional e coragem moral sob o manto de

112 IZECKSOHN, Vitor. O Cerne da Discórdia. A Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1997. p. 133.

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militares amigáveis e tranqüilos. São, quase sempre, um desestímulo para aqueles

profissionais que se dedicam aos seus afazeres com seriedade. Criam o que eu

chamo de “comunismo perfeito”: tanto faz o militar trabalhar como não trabalhar que

tudo será igual para todos: o soldo, os elogios, as punições, o tratamento. Esse tipo

de chefe é o mais daninho. Preocupa-se com a carreira e com o que os outros

pensam. Nada mais. Para eles só existe a primeira pessoa – “eu fiz” é a sua frase

predileta. Diante de chefes mais antigos, desafiam as leis biológicas e, transmutando

a cor de sua pele, qual um camaleão, mostram-se de uma forma totalmente diferente

do que realmente são. Em tempo de paz, alguns se destacam fruto da sorte e da

bajulação, apesar da mediocridade. São descartáveis para qualquer exército em

qualquer tempo. Marco Dídio Juliano, Imperador de Roma em 193 d.C., é um típico

exemplo. Rico, viveu sob bajulação e, mediante manobras ardilosas, assumiu o

poder após a guarda pretoriana assassinar Públio Hélvio Pertinax. Comprou o poder,

da própria guarda pretoriana, com ouro. Dois meses depois, sua incompetência

ostensiva levou-o a morte. No Brasil não foi diferente. O General Zenóbio da Costa

foi vítima desse tipo de comportamento. Um diálogo entre ele e Lima Brayner, é

bastante elucidativo: “- Brayner, você é meu amigo e é testemunha do que aqui

tenho sofrido, em silêncio, restrições e maldades. Ninguém me levará ao desespero.

Mas, no dia em que regressarmos ao Brasil, direi toda a verdade sobre a FEB”113. A

respeito desses chefes, a sua existência só é possível em face da omissão daqueles

que comandam e convivem com eles. Sobre a negativa dos vários generais

“convidados” para o comando da primeira tropa brasileira a ir combater na Europa,

pode-se depreender, sem medo de ser injusto ou maledicente, que havia problemas

de liderança na cúpula do Exército nesta época. No meu entender, deveria haver

disputa salutar por esse comando, mas ao contrário: houve fuga elegante e

diplomática da missão. E o pior, nas palavras de Lima Brayner, “nada sofreram, não

sendo sequer anotado nos seus assentamentos militares114.” Triste, mas verdadeiro.

Apesar da minha pouca experiência, mas enorme curiosidade em observar as

reações humanas, acredito que seja fácil reconhecer, desde cedo, oficiais que

trilham nesta vereda. Seu modus operandi é conhecido: falam muito e alto, preferem

a liderança autocrática para defender seus interesses, trabalham pouco, conhecem

113 BRAYNER, Floriano de Lima. A Verdade Sobre a FEB. Memórias de um Chefe de Estado-Maior na Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 3. 114 idem. p. 17.

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apenas as generalidades da profissão (o suficiente para não ter sua incompetência

descoberta pelos mais antigos), nunca opinam de forma contundente (o muro é o

seu palco), via de regra usurpam o trabalho alheio e, se puderem, aumentam os

defeitos e minimizam as qualidades dos outros.

Os que pertencem ao segundo grupo, são chefes possuidores de alto senso

de disciplina, extremamente duros consigo e com os subordinados, mas que

carecem de certas qualidades para entrar no terceiro grupo. Normalmente, são

inseguros e possuidores de pouca bagagem cultural, não se afastando um milímetro

dos assuntos militares. São exímios conhecedores das técnicas de trabalho de

comando. Contudo, não têm a necessária visão abrangente que um militar de escol

deve ter. Em tempo de paz são os que mais se destacam. Na guerra, se respeitadas

certas condições, podem se destacar. Um exemplo desse tipo de líder foi Máximo

(173-238 d.C.). Imperador de Roma, era um soldado vigoroso, conhecedor das

técnicas militares da época, mas faltavam-lhe “as qualidades indispensáveis a um

grande general e principalmente o discernimento, a inteligência e a sagacidade de

um homem de Estado para controlar a situação caótica...Imperador mais musculoso

do que brilhante, o brutal Máximo não conseguiu manter a autoridade sobre o

exército.”115 Foi assassinado pelos seus próprios soldados, visto a sua

incompetência como general romano.

Finalmente, existem os do terceiro grupo. Estes são poucos, quase ouro em

pó. Diria que em combate seriam os candidatos naturais a vaga de líderes. São

militares seguros, sabem o que querem e preocupam-se em demonstrar isso. Não

são necessariamente simpáticos, mas também não são antipáticos. Possuem

qualidades que podem, inclusive, minimizar seus defeitos: coragem moral, lealdade

em todas as direções, comprometimento com a força e com a sua missão,

preocupação com a justiça e um carisma que impressiona. Normalmente chegam

com fama de difíceis e, após o convívio com seus homens, mostra-se justo e amigo.

O seu pensamento pode ser resumido assim: um chefe não tem que ser bom nem

mau, tem que ser justo. Esses chefes têm uma outra característica que a priori

parece paradoxal: uma liderança mais democrática do que autocrática. Isso se deve

a confiança e a certeza de que suas decisões são baseadas na justiça e

perfeitamente morais. Normalmente evidenciam suas qualidades na guerra.

115 MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe: Comentários de Napoleão Bonaparte. Rio de Janeiro: Hemus: Bibliex 1998. p. 210.

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Napoleão é, sem sombra de dúvida, um bom exemplo desse tipo de chefe. Dotado

de genialidade militar e política, não tem rival na História Militar quando o assunto é

liderança. O seu carisma mítico sempre fascinou. Ao se ler o livro “Napoleão 1812”,

que tratava da Campanha na Rússia e do seu malogro, logo percebe-se que as

potencialidades de líder de Napoleão superavam em muito aquilo que a maioria

pensava. Ele conduziu cerca de 600.000 homens para o interior da Rússia, foi

derrotado, obrigado a abandonar parte considerável dos seus homens na heróica

travessia do rio Berenzina. Voltou com apenas 30.000 homens. Qualquer homem,

em qualquer tempo, seria severamente punido e sofreria revolta de toda a

população. Exceto Napoleão. Permaneceu na chefia do exército e do país ainda por

cerca de dois anos, deixando o poder somente em 11 de abril de 1814. A liderança

do “pequeno cabo”116, superava até desastres como o ocorrida na Rússia.

Um exemplo brasileiro é, indubitavelmente, Caxias. Sua visão militar e política

impressionam. Sua concepção política era clara: manter a integridade da Nação a

qualquer custo; sua visão militar, ainda mais contundente na Guerra do Paraguai:

“restabelecer a disciplina militar, preservar a natureza da instituição, que por

determinação constitucional, deveria ser “essencialmente obediente”.117 Quantos

militares não só no Brasil, mas em outras partes, poderiam igualar-se a Caxias no

sentido de andar entre o fio da política e do Exército sem se ferir?

Enriquecendo ainda mais com exemplos brasileiros, destacamos a figura

ímpar do General Euclydes Zenóbio da Costa, comandante da Infantaria brasileira.

Segundo Lima Brayner, era “zeloso de suas tradições de bravura e de grande

realizador...Troupier impetuoso e heróico...amava o perigo e gostava de desafia-lo.

Era sempre garantia de êxito nas missões difíceis.” Continuando, disse sobre

Zenóbio, “Chefe que pedia missão e partia, sem perda de tempo, para a execução,

dando exemplo de destemor, pois estava sempre junto aos escalões mais

avançados.118” Diversos outros oficiais que serviram com Zenóbio destacam sua

capacidade de liderança e visão de conjunto.

116 Alcunha obtida frente as demonstrações de coragem que Napoleão brindava suas tropas, como na batalha de Lodi, onde conduziu pessoalmente uma carga de baionetas por uma ponte contra forças austríacas. Os soldados franceses que não estavam acostumados a esse tipo de exemplo por parte de altos oficiais, apelidaram o bravo chefe de 1,62m de altura dessa forma. 117 IZECKSOHN, Vitor. O Cerne da Discórdia. A Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1997. p.139 – 140. 118 BRAYNER, Floriano de Lima. A Verdade Sobre a FEB. Memórias de um Chefe de Estado-Maior na Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 166. Para saber mais sobre a opinião de

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Quando se fala de liderança, não se pode deixar de comentar, embora que

muito rapidamente, outra deturpação da liderança: o personalismo. Tal

desvirtuamento pode ser entendido como conduta de quem refere tudo a si próprio.

Embora toda instituição seja moldada e desenvolvida por homens, estes não

podem ser maiores que ela. Ao se estudar a História Militar, verifica-se que a maioria

dos desastres ocorridos teve grande influência daquilo que chamamos de

“personalidade do comandante”. Tal expressão, foi desvirtuada ao longo dos anos,

desaguando no personalismo e na vaidade. Isto, num exército com longo período de

paz, é patente e tende ao crescimento se não for devidamente coagido.

A diferença entre personalidade e personalismo pode ser exemplificada. Se,

por um lado, um comandante determina que uma instrução de armamento seja

iniciada de forma simples e sem pressão, para que o soldado compreenda todos os

passos e, ao final desta instrução, os soldados estejam em condições de realizar a

desmontagem, a manutenção e a montagem após correr um percurso de 5 km e sob

condições de visibilidade nula, tem-se, perfeitamente delineada, a personalidade do

comandante. Neste caso, o comandante não se afastou daquilo que é previsto, está

direcionando os esforços físicos e materiais que lhe foram confiados para atingir um

objetivo explicitado nos programas de instrução, dentro da sua personalidade

agressiva e combatente.

Por outro lado, se esse mesmo comandante determinasse que a instrução de

armamento tivesse o seu tempo diminuído ou, até mesmo, suprimido para que

fossem realizadas obras no quartel ou treinamento de equipes desportivas pois ele

“tem” que ganhar as olimpíadas naquele ano, teríamos um exemplo de personalismo

do comandante. Ele passou a usar os meios que a Nação lhe confere visando a

preparação para a guerra para “realizar sonhos”, obras desnecessárias e fora de

uma prioridade lógica ou implementar aquilo que ele acha certo mas não encontra

respaldo específico no regulamento, temos o personalismo do comandante.

Quando a personalidade do comandante começa a se transformar em

personalismo, distorcendo a expressão, conduzindo a um comando de vontades e

manias? No momento em que meios físicos e pessoais são tirados de sua

designação e diretrizes do escalão superior de forma constante, para realizar atos

grande e respeitado chefe militar que desfrutava Zenóbio, ler p. 59 – 60, 140, 145, 164, 209, 259, 275, 316, 327, 331, 358, 399, 401, 406 – 407, passim. op. cit.

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que, travestidos de “personalidade”, prejudicam a instrução ou a vida vegetativa da

organização militar.

A leitura atenta da História Militar mostra que, infelizmente, tal prática não é

rara na maioria dos exércitos. Um sem número de atividades são desenvolvidas nos

diversos níveis dentro desse contexto de “personalidade do comandante” ou, sob o

manto da “criatividade” – esta, quando bem direcionada, fundamental para um

exército.

Muitos procuram acobertar tais atividades sob o pretexto de atividades-meio e

complementares. Ora, tais atividades são previstas na maioria dos exércitos, mas de

forma nenhuma podem ser realizadas em detrimento da atividade-fim. Este é um

ponto importante. Além do que, estas atividades fazem parte das diretrizes

emanadas pelos comandantes e atendem às políticas do Estado. Não são, de forma

alguma, desvirtuamento das forças armadas.

Na maioria das vezes, quando um exército cumpre outras atividades

diferentes da instrução ortodoxa voltada para o combate, ele está se adestrando. Ao

construir estradas, ao dispor seus elementos de inteligência no combate ao crime

organizado, ao realizar uma ACISO119 e tantas outras tarefas, ele certamente está

adestrando os seus engenheiros, operadores de máquinas, médicos, analistas de

informações etc. O que não pode ocorrer é o desvirtuamento por excesso de

personalismo.

O fato é que um bom comandante – em qualquer nível - não tem que

transformar seus gostos ou aptidões particulares em normas paralelas dentro do

grupo que comanda. O regulamento não lhe confere isso. Caso isso ocorresse, o

caos seria uma questão de tempo, pois as idiossincrasias iriam corroer pilares

importantes para um exército profissional.

Personalidade militar é ser agressivo no combate como foi Plínio Pitaluga,

Zenóbio da Costa, Patton e Rommel; ou moderado como Montgomery na Segunda

Guerra Mundial. Ter personalidade é comandar pessoalmente suas tropas como

Osório e Caxias fizeram nas diversas oportunidades em que entraram em combate.

Ter personalidade, enfim, é verificar pessoalmente o estado da tropa no campo ou

na rotina diária, não abrindo mão da sua liderança sob a cortina nefasta do bom-

119 Ação Cívico-Social. É um tipo de ação desenvolvida por militares que visa proporcionar aos locais menos assistidos, de forma temporária, serviços que minimizem as carências existentes. Consta de apoio médico, sanitário e de palestras sobre temas variados de interesse geral.

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mocismo e da falsa camaradagem. Ficar o tempo todo preocupado com a banda de

tambores, com as lanças da guarda ou com a grama do campo de futebol não é

personalidade, mas personalismo e falta de senso. Isso nunca foi apanágio dos

grandes líderes.

Um comandante deve comandar dentro daquilo que se espera dele, evitando

desvirtuamentos e invenções. Para um exército, ter comandantes cônscios desse

imperativo é uma dádiva. Ter comandantes personalistas, eivados de preciosismos e

individualismos que visam apenas a projeção pessoal é um estorvo a ser combatido.

Outra faceta importante da liderança diz respeito aos níveis em que ela deve

ser exercida. Em linhas gerais, a cada graduação ou posto, há um tipo de liderança.

É comum, infelizmente, vermos tanto na História Militar, quanto na rotina diária,

comandantes em todos os escalões cometendo erros desse tipo. O divisor entre a

presença eficaz e regeneradora do chefe e a intromissão inoportuna, que leva à

quebra de liderança dos subordinados, é tênue.

É preciso que se entenda que a liderança do coronel é diferente da

desenvolvida pelo tenente, no espaço, na forma e no tempo. Quando um general

começa a controlar o trânsito de uma via de acesso ou avenida (como fez Patton na

Campanha da Itália), duas conclusões são possíveis: ou todos os seus subordinados

encarregados daquela tarefa (no máximo um sargento) eram incompetentes e,

conseqüentemente, deveriam ser orientados e adestrados de forma a cumprir aquela

missão; ou o general não tinha o que fazer. Isso não é liderança, isso é

personalismo e falta de crença na capacidade dos subordinados. Procedimentos

deste tipo minam a liderança e a confiança dos comandados. Com atos assim, ao

contrário do que se pensa, o chefe está desprestigiando seus homens. Bastaria

Patton mandar o seu ajudante-de-ordens orientar e corrigir o erro e tudo estaria

resolvido.

Certa vez, ainda tenente, um comandante de divisão estava acompanhando

um exercício da minha brigada. Num certo momento, ele determinou que somente

os tenentes subissem num M 113120 e começou a nos mostrar os erros cometidos

durante o nosso ataque. Suas observações eram extremamente pertinentes e

corretas. Contudo, viu-se, nitidamente, o constrangimento dos comandantes de

unidade. Os nossos coronéis, nossos chefes na rotina diária, estavam no chão, sem

120 Viatura Blindada de Transporte de Pessoal (VBTP) fabricada nos EUA sobre lagarta. Pode transportar cerca de 11 homens equipados, inclusive atravessando rios.

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poder falar nada. Isso causou um constrangimento enorme. Se, por um lado, a

liderança do general aparentemente elevou-se, por outro custou a liderança dos

seus comandantes de unidade, pois a impressão que poderia ter ficado era a de que

os comandantes não teriam competência para liderar seus tenentes em um simples

exercício. Evidentemente, esta não foi a intenção daquele general, mas foi o que

transpareceu para nós, imaturos tenentes à época.

Uma outra solução seria o general chamar os comandantes, expedir suas

diretrizes e observações e cada um deles transmitir aos seus tenentes e capitães à

luz do terreno e considerando as respectivas zonas de ação. Horas depois, no

almoço, o resultado era o esperado: desconforto e certa revolta com o general por

ter exposto o nosso comandante, mesmo sem querer fazê-lo.

A presença do chefe, na rotina diária e nas mazelas do combate, é

fundamental. Disso não se duvida. Mas é preciso que, quanto mais graduado for o

oficial, mais cuidado tome. Nos níveis mais altos, ela deve ser mais subjetiva do que

objetiva. Ela deve impulsionar, inspirar e encorajar.

Já que usou-se Patton para um exemplo negativo de liderança, será utilizado,

desta vez, numa oportunidade altamente positiva em que ele soube conduzir a

liderança inata da sua personalidade. Ele mesmo a descreve:

“Na manhã de 9 de novembro de 1942, desembarquei na praia, em Fedala,

acompanhado pelo meu ajudante-de-ordens, Tenente Stiller. Deparamo-nos com

uma situação muito ruim. As embarcações chegavam à praia e não retornavam ao

mar depois de descarregadas. Explodiam granadas e os aviadores franceses

metralhavam a praia. Os tiros franceses passavam longe das embarcações, mas

nosso pessoal corria para os abrigos, o que retardava a operação de descarga;

maior prejuízo ocorria na descarga de munição, suprimento de necessidade vital em

face do combate travado a 1.500 metros ao sul da praia.

Com a minha permanência na praia, com a interferência pessoal no

despacho, para o mar, das embarcações descarregadas e não me abrigando

quando os aviões inimigos sobrevoavam a área, creio que contribuí para acalmar os

nervos do pessoal e para transformar em sucesso o desembarque inicial. Permaneci

na praia cerca de dezoito horas, e com o uniforme molhado durante o tempo todo.

Dizem que este comportamento não é próprio para um comandante de exército. A

minha opinião é que um comandante de exército faz o que for necessário para

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cumprir sua missão, e quase oitenta por cento desta missão consiste em elevar o

moral de seus homens.”121 (grifo do autor)

Este trecho mostra que Patton não interferiu diretamente nos homens que ali

lutavam. Apenas mostrou que se o comandante do exército não tinha medo de ser

atingido, por que os demais teriam? Foi uma atitude corajosa e perigosa, pois ele

poderia ter perecido naquela praia. Mas as circunstâncias, de total premência e risco

para os futuros combates, justificavam a posição dele. Note-se que ele não quebrou

a liderança dos seus comandantes, ao contrário, inspirou-os a prosseguir na missão.

Antes de encerrar esse tópico, não se pode deixar de falar sobre o tenente.

Durante três anos trabalhei diretamente com cadetes na Academia Militar das

Agulhas Negras. Neste tempo, vi o quanto é difícil conscientizar os nossos futuros

oficiais da importância de uma liderança firme.

De todos os postos e graduações, a liderança do tenente que comanda um

pelotão é, talvez, a mais difícil e importante, portanto a que merece maior atenção

por parte dos comandantes mais antigos. Vale a pena lembrar que vários autores

sobre a 2ª Guerra Mundial destacam o papel importante do tenente à frente do seu

pelotão. Muitos dizem que, em determinados momentos, foi uma “guerra entre

pelotões”.

Os atributos naturais do tenente, tais como energia, preparo físico e

juventude, dentre outros, o ajudam nessa tarefa. Contudo, não lhe confere êxito

instantâneo na liderança de pequenas frações.

Além dos predicados naturais supracitados, é preciso que ele tenha um

preparo profissional consistente, adquira no mais curto prazo maturidade e firmeza

de propósitos, além de cultivar o idealismo, a humildade e outros atributos que lhe

permitam compensar a sua maior desvantagem: a inexperiência.

Todos os militares que já comandaram um pelotão sabem o choque que se

sente ao receber o primeiro comando na vida. São homens, mais ou menos

experientes, que passam a depender substancialmente daquele jovem recém-saído

de uma escola. Os olhares se voltam para ele, procurando extrair de início alguma

coisa sobre o novo comandante. Todos os seus aspectos externos passam, então, a

serem avaliados: apresentação individual, voz de comando, maneira de falar,

121 PATTON JR, George S. A Guerra que eu Vi. Rio de Janeiro: Bibliex, 1979. p. 336.

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modos, compleição física e toda a sorte de características que seus homens

puderem extrair dele.

Na realidade, caberá aos futuros comandantes do aspirante a tarefa de

complementar o trabalho de formação da Academia. Para isso, é preciso que os

comandantes entendam – comprovei que muitos não entendem – que o aspirante

deve ter uma atenção especial ao chegar no seu primeiro quartel. É fundamental que

ele seja designado para a subunidade que possua os oficiais considerados mais

maduros, experientes e equilibrados. O capitão comandante da subunidade do

aspirante deve ser o melhor dentre os disponíveis na unidade.

Vi muitos aspirantes e tenentes com excelente potencial profissional se

perderem, inclusive sendo punidos, por falta de orientação adequada. Não se pode

conceber que um aspirante seja comandado por um tenente com dois ou três anos

de tropa, quando existem, na mesma unidade, capitães comandando subunidade.

Isso acontece. E a justificativa,em face desse erro, é sempre a mesma: a AMAN não

está formando bons oficiais. Isso não é verdadeiro. O que acontece é que todos

devemos entender que a formação do aspirante continua no corpo de tropa. Se for

bem orientado, dará bons frutos. Se for relegado a um plano secundário, é provável

que ele acabe cometendo erros por falta de experiência e conhecimento. O aspirante

deve sim ser “paparicado” no bom sentido. Ele precisa – e nós, mais antigos,

devemos a ele – palavras de orientação diariamente. Além disso, a mais poderosa

arma de que os mais antigos dispõem deve ser utilizada de forma maciça: o

exemplo. Assim estar-se-ão formando os líderes do futuro, e não meros

administradores de quartéis.

Concluindo a vertente da liderança, foi possível verificar sua importância sem

se ater somente aos conceitos já conhecidos e batidos. Procurei inovar a

abordagem, tecendo comentários, expondo pontos de vista baseados em leituras e

observações oriundas da experiência, bem como tocando em aspectos mais

palpáveis, como a liderança do tenente.

Sinteticamente, fica a idéia de que um exército jamais será uma máquina de

guerra eficiente motu próprio. Às armas, aos veículos, aos soldados, aos

investimentos, aos prédios e aquartelamentos que caracterizam um exército

fisicamente, deverá ser pulverizada, de preferência em doses generosas, uma

liderança baseada na justiça, na firmeza e na competência profissional.

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ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

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CAPÍTULO 5

A Preparação para a Guerra

Os Recursos Materiais

Equipamentos

“Nada é permanente, tudo se modifica”.

Heráclito, filósofo grego.

“Desde que Vulcano ensinou aos homens a arte de forjar o ferro, até o período moderno, a couraça dominava os

campos de batalha. Estar protegido, ou crer nisto, pelo menos, que tranqüilidade para o indivíduo e, por

conseguinte, que virtude!”

Charles De Gaulle

O homem sempre utilizou equipamentos para fazer a guerra. Fossem para

protegê-lo, fossem para eliminar o inimigo da forma mais rápida e segura.

Inicialmente, foram as pedras, os ossos e os galhos das árvores,

principalmente os mais duros, como o cedro. Posteriormente, passou-se a utilizar o

cobre, o primeiro metal não precioso com o qual o homem aprendeu a trabalhar.

Além de ser abundante na natureza, era facilmente moldável e permitia uma

proteção infinitamente mais eficaz do que a madeira.

Após o homem aprender a técnica de fundição, pôde associar o cobre ao

estanho, produzindo o bronze. Este, já uma liga, era mais eficaz e muito mais duro

do que o cobre. Os trabalhadores da Mesopotâmia, com o passar do tempo,

ampliaram as técnicas de trabalho com os metais, inclusive nas áreas de soldagem,

fundição e moldagem. Daí, em épocas diferentes, surgiram os machados, espadas,

adagas, maças e tantos outros artefatos que pudessem ser utilizados contra o

inimigo.

Depois, com a descoberta do ferro meteórico, por volta de 2300 a.C.,

provavelmente na Mesopotâmia, outro metal veio a ser utilizado para a confecção de

armas e proteções para os guerreiros: o ferro. O aperfeiçoamento das fornalhas e do

combustível utilizado nelas foi fundamental, já que o ferro necessita de temperaturas

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maiores para ser fundido. Além disso, verificou-se que este metal, para obter a

dureza necessária às armas, deveria ser malhado no calor e temperado com água.

Após esses aperfeiçoamentos tecnológicos no seu trato, este se espalhou pelo

mundo, possibilitando que muitos povos dominassem a arte de fundição e fabricação

de equipamentos.

O ferro abriu horizontes maiores na arte da guerra. Além das armas

individuais, ele passou a ser utilizado na construção de bigas, armaduras, lanças,

pontas de flechas e outros aperfeiçoamentos nas armas e nas fortificações. Deu-se

a vitória dos romanos, protegidos por espadas, elmos, couraças e distribuídos

taticamente no terreno em formações compactas, contra os bárbaros germânicos,

dispersos no terreno, aliando a bravura no seu estado mais puro e ingênuo com

armas rústicas e escudos de madeira.

Posteriormente veio o aço, ao fundir-se o ferro com o manganês. Esta liga,

ainda mais dura, mais resistente à corrosão e mais leve, proporcionou avanço

surpreendente nos equipamentos, notadamente nos navios e viaturas.

Desse ponto, com o domínio tecnológico cada vez mais apurado, chegou-se

às modernas ligas de alumina, carboneto de silício, diboreto de titânio, spectra122,

kvelar, policarbonato acrílico e tantas outras.

Hoje, ligas leves e ultra-resistentes, como as utilizadas nos aviões F-117

americanos, munições de dureza impressionante, como as de titânio e urânio

empobrecido, e blindagens reativas123 são comuns em muitos exércitos.

As munições com estojos consumíveis, o desenvolvimento do canhão

eletromagnético, que proporciona uma velocidade de até 5.000 m/s à munição, o

canhão “Electrothermal” que, ao invés de carga de projeção, utiliza um propelente

não explosivo acionado eletronicamente, as munições “inteligentes”, conhecidas

como MERLIN, são algumas das novidades que já estão ou em breve estarão sendo

testadas nos campos de batalha.

Somente para que se imagine o impacto que toda essa tecnologia vai impor

ao campo de batalha moderno, tomemos como exemplo uma munição para carros

de combate que alcance a velocidade de 5.000m/s. Considerando mil metros como

distância média de engajamento de um carro de combate por outro inimigo; do

122 Tipo de blindagem feita de materiais têxteis altamente resistentes a impactos. 123 Tipo de blindagem feita com blocos de explosivos colocados na parte frontal dos carros de combate. São particularmente eficazes contra munições cinéticas.

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instante em que o atirador acionasse o gatilho do carro até o momento do impacto,

levaria meros 0,2 segundos! Considerando-se, também, que a probabilidade de

acerto dos carros de combate atuais gira em torno de 95 a 99 % de eficiência no

primeiro tiro, pode-se ter uma idéia das transformações e da letalidade que as

guerras do futuro irão trazer para aqueles que ousarem empreendê-las.

No campo das armas não-letais, o avanço também é expressivo. Os chineses

desenvolveram o Perturbador Laser Portátil ZM-87, capaz de tontear e cegar

pessoas a uma distância de 3.000 m. O míssil de cruzeiro AGM-86, dos EUA, lança

pulsos eletromagnéticos destruindo sistemas de comunicações inimigos. Além

destes, existem outros mais criativos, como os superácidos124, as Silver Shroud125,

as espumas aderentes, os infra-sons etc.

Verifica-se, por intermédio de um estudo dos equipamentos e armamentos

através da história, que há um axioma militar no qual a cada novo armamento ou

equipamento introduzido no campo de batalha, logo é criado um meio para anular ou

minimizar os seus efeitos. Isso pode acontecer na forma de um novo armamento e

equipamento ou na mudança do emprego tático e estratégico da força oponente.

Tomando por base a Idade Média, pode-se ilustrar este desenvolvimento de

arma e contra-arma, criando um círculo dialético, que trouxe como conseqüência um

espectro variadíssimo de armamentos e equipamentos de grande complexidade no

seu emprego e alta tecnologia na sua fabricação. Filosoficamente, seria a eterna

tríade da TESE – ANTÍTESE – SÍNTESE, sempre renovada com equipamentos mais

aperfeiçoados que geram outros equipamentos, ainda mais modernos, a fim de

neutralizar os primeiros.

124 Os EUA desenvolveram um superácido para combate específico para sabotar viaturas sobre rodas inimigas. Injeta-se o agente no pneu e em vez de rodar 80.000 km, um conjunto de pneus militares começa a desfazer-se em menos de 80 km. Citado em ALEXANDER, John B. Armas Não-letais. Alternativas para os conflitos do século XXI. Rio de Janeiro: Welser-Itage: Condor, 2003. p. 104. 125 Manta de prata anticarro. Ao serem lançadas sobre viaturas, impedem que os motoristas enxerguem a estrada.

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EQUIPAMENTO MEIO DE NEUTRALIZAÇÃO

Tacape lança, flecha, adaga, massa, Armadura, escudo, elmo, malha de ferro,

Rádio, radar Interferência eletrônica, tecnologia “stealth”126,

Porta-aviões Submarino

Avião Artilharia antiaérea, radar, mísseis

Mísseis intercontinentais Sistema “Guerra nas Estrelas” (J-STARS)127

Fuzil, metralhadora Carros de combate

Carros de Combate Helicópteros de ataque, minas AC128, aviões caça-tanques

Munição AC Blindagens

Fortificações Aríete, catapulta, artilharia, cercos

Tropas de infantaria Minas AP129

Quadro nº 14 Evolução dos armamentos e contra-armamentos

No mundo de hoje, os armamentos atingem capacidades extraordinárias.

Tornam-se mais leves, mais precisos, com alcances maiores e com letalidade nunca

imaginada. É uma pletora de meios à disposição do combatente que fica difícil

avaliar as conseqüências e o ponto que irão atingir nos próximos anos. Como

exemplo desta complexidade e capacidade, citam-se os navios-aeródromo nucleares

da classe Nimitz que podem percorrer um milhão de milhas sem reabastecimento!130

Tais armamentos e equipamentos conferiram ao homem um poder de

interferência no combate e possibilidade de ampliação do espaço geográfico

envolvido numa guerra para a escala mundial.

Mas será que toda essa tecnologia é suficiente para se afirmar que o homem

perdeu sua importância na condução do combate? Será que o homem transformou-

se num mero “apertador de botões” ?

126 Tecnologia utilizada em aviões de combate modernos. Alia alta velocidade das aeronaves, elevado teto de operação, material de grande absorção de ondas de radares e engenharia e arquitetura da aeronave avançada, marcada por perfil baixo e silhueta discreta. Este conjunto de medidas confundem os radares, dando a impressão que a aeronave é “invisível” aos radares inimigos. O avião F-117 (EUA) é um exemplo que utiliza este tipo de tecnologia. 127 Joint Surveillance and Attack Radar System (Sistema conjugado de Radar de Vigilância a Ataque a Alvos). Trabalha junto com aviões AWACS (Airborne Warning and Control System [Sistema de Aviso e Controle Aerotransportado]). Este conjunto realiza varreduras no céu (360 graus) em busca de aviões, mísseis e outros alvos de interesse da tropa envolvida. 128 Minas anticarro. Este tipo de mina destina-se a produzir baixas em veículos sobre rodas e sobre lagartas, obstruindo estradas e diminuindo a velocidade de deslocamento de comboios. 129 Minas antipessoal. Este tipo de mina destina-se a produzir ferimentos nos membros inferiores de combatentes. 130 ALEXANDER, Bevin. A Guerra do Futuro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1999. p. 53.

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Deve-se ter em mente que não será a tecnologia embutida nos armamentos

que irá garantir a vitória. A tecnologia dos armamentos atuais, crescendo de forma

geométrica, não pode ser levada a um plano maior do que aquele que realmente

merece.

O Major - General Lon Maggart, ex-comandante do U.S Army Armor Center,

aborda esse assunto da seguinte forma:

“Our soldiers are the best in the world because our Army takes care of them

from the ground up, with tough, realistic training, opportunities for advancement, skill

and professional development, and quality support for them and their families. Make

no mistake: Operation Desert Storm was not won by high technology or smart

weapons. It was won by tough, smart soldiers, who knew their equipment and fought

with skill and bravery, because they knew the Army would take care of them. Our

soldiers are the bone, the muscle, and the lifeblood of our Army, our country - and it

will never be any other way.”131

Em outro artigo, o mesmo autor corrobora suas idéias: “The more

sophisticated our machines become, the more important it is that we pay attention to

our primary weapon – the minds of the soldiers that guide these machines.”132

Evidentemente, a tecnologia dos novos armamentos tem a sua importância.

Mas o que ocorre é o exagero nas suas reais possibilidades e empregos, além dos

problemas intrínsecos que ela traz. Um exemplo é a necessidade de maiores

investimentos em pessoal qualificado para operá-los.

No momento em que os EUA “caçam” Osama Bin Laden por todo o

Afeganistão e outras partes do mundo, pode-se verificar que a tecnologia, sozinha,

não será capaz de garantir a captura do atual inimigo número um dos EUA.

Algumas técnicas que necessitam de homens para implementá-las e faze-las

131 MAGGART, Lon E. Bulding Victory from the Ground Up. Armor, Fort Knox, EUA: vol CV, nº 5, p.6, set.-out. 1996. “Nossos soldados são o melhores do mundo porque nosso Exército os leva do chão ao topo, com treinamento duro, realístico, oportunidades para avançar na carreira, desenvolver habilidades profissionais, e apoio de qualidade para eles e suas famílias. Não cometa um erro de avaliação: a operação Tempestade de Deserto não foi ganha por tecnologia avançada ou armas inteligentes. Foi ganho por soldados duros, inteligentes que conheciam os seus equipamentos e lutaram com habilidade e coragem, porque eles sabiam que o Exército cuidaria deles. Nossos soldados são o osso, o músculo, e a essência de nosso Exército, do nosso país - e nunca será de outro modo”. (tradução livre). 132 MAGGART, Lon E. Your Mind is Your Primary Weapon. Armor, Fort Knox, EUA: vol CV, nº 4, p.5, jul-ago. 1996. “Quanto mais sofisticadas as nossas máquinas se tornam, torna-se mais importante que nós prestemos atenção em nossa arma principal - as mentes dos soldados que guiam estas máquinas".(tradução livre).

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funcionar ainda continuam sendo utilizadas. Um oficial da Central de Inteligência

Americana (CIA), morto em ação no Afeganistão, quando interrogava prisioneiros de

guerra, é um exemplo. Com toda a tecnologia para colher dados, o velho e bom

interrogador ainda tem “emprego”. Por mais que os EUA saturem com bombas as

montanhas afegãs, eles terão de mandar gente (da Aliança do Norte ou soldados

americanos) ir de caverna em caverna pegar Osama e seus colaboradores. Isso só

não ocorrerá se ele for morto por uma explosão, suicidar-se ou se entregar. Caso

contrário, serão necessários homens – não máquinas - para procurá-lo.

De qualquer forma, não se pode negar que os novos armamentos e

equipamentos proporcionam capacidade de ver a maiores distâncias, disparar armas

de maior alcance, mover-se mais rápido, operar sob quaisquer condições de

visibilidade, minimizar o número de baixas, finalizar o combate em menor tempo,

engajar alvos de forma mais rápida, eficiente e precisa, entre outras qualidades.

A fim de atestarmos essa evolução tecnológica nos armamentos, basta dizer

que em 1881 uma frota inglesa jogou granadas de artilharia sobre fortes egípcios na

Alexandria. Foram 3.000 granadas e somente dez atingiram o alvo. Na Guerra do

Vietnã, os pilotos dos EUA realizaram 800 surtidas e perderam dez aviões (1,2%)

com a finalidade de destruir a ponte de Thanh Hoa. Posteriormente, quatro F-4

armados com as primeiras bombas inteligentes realizaram a missão sem nenhuma

perda.

Atualmente, um único F-117, em uma única surtida, largando uma única

bomba faz o mesmo “trabalho” de um B-17 voando 4.500 surtidas e largando 9.000

bombas (Segunda Guerra Mundial), ou 95 surtidas e 190 bombas na Guerra do

Vietnã.133.

Contudo, isso tem um preço. Aumento das necessidades de investimento é

uma delas. Um blindado com tecnologia de ponta custa cerca de três milhões de

dólares. Um avião de caça moderno pode chegar aos vinte e dois milhões de

dólares. O B1 chega a três bilhões de dólares. A manutenção é cara e exige pessoal

qualificado.

133 TOFFLER, Alvim. Guerra e Antiguerra: Sobrevivência na Aurora do Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Bibliex, 1995. p. 92. Para se aprofundar em dados estatísticos e detalhamento de armas e sistemas de armas, recomenda-se a leitura da op. cit. e ALEXANDER, Bevin. A Guerra do Futuro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1999.

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Equipamento Características Preço

B -2 Avião invisível ao radar. Voa continuamente por mais de

30 horas e leva 18 Ton de bombas 2 bilhões de dólares

B – 52 Avião bombardeiro. Leva até 35 Ton de bombas. -

Tomahawk

Míssil lançado por avião ou navio e dirigido por satélite.

Alcança a velocidade de 800 km/h e tem 1600 km de raio

de ação

1 milhão de dólares

Predador

Avião espião não tripulado. Transmite imagens em

tempo real das áreas controladas pelo inimigo. Voa a

7600 m de altitude.

-

M 1 Abrans

Carro de combate americano. Possui avançado sistema

de aquisição de alvos computadorizados. Dotado de um

canhão de 120 mm, acerta um alvo em movimento a

4000 m

De 3 a 5 milhões de dólares.

MLRS (Multiple-Launch

Rocket System)

Sistema de artilharia de saturação de área, com alcance

de 45 km. Lança doze cargas de munições e

“busca”alvos blindados.

-

Quadro nº 15 Custo e Características dos Equipamentos Militares

O fluxo de informações possíveis de ser disponibilizado hoje em dia (graças à

tecnologia) é benéfico ao comandante, pois lhe fornece maiores dados para que

tome uma decisão mais acertada. Por outro lado, essa enorme quantidade de

elementos irá sobrecarregar órgãos de assessoramento a fim de concluir sobre os

informes recebidos. Isso poderá “emperrar” a tomada de decisões ou mesmo viciar

comandantes no sentido de exigirem minuciosos detalhes para decidirem. A Guerra

do Golfo deixou isso patente ao reunir uma quantidade enorme de imagens, dados e

informações que chegavam sem que houvesse tempo útil para serem devidamente

interpretadas.

Muitos militares e civis ficam deslumbrados com a capacidade e a letalidade

de determinado armamento ao ler as suas características técnicas e ao vê-lo em

demonstrações no campo.

Dois aspectos devem ser considerados. Em primeiro lugar é necessário uma

equipe muito bem adestrada para operar tais equipamentos para se obter a

plenitude de suas potencialidades. Relatos de equipes mal treinadas e

despreparadas para operarem novos equipamentos são bastante comuns. Vejamos

o que disse Maggart em relação à necessidade de adestramento frente aos novos

armamentos:

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“ It is easy to be impressed by the technology of the M1A2 Abrams tank. Its

accurate main gun, its thermal sights and computerized fire control, its powerful

engine, and its digital architecture are the best in the world. But, without the four

crewmen who have the knowledge, courage, and desire to close with and destroy the

enemy, all of the attributes of great fighting machine will be wasted.”134

O segundo ponto a ser analisado diz respeito ao natural desgaste que tais

equipamentos sofrem em combate. Sua durabilidade é curta, necessitando de

manutenção complexa e durante tempos regulares. O então secretário da Marinha

Americana, James Webb, em 1987, já abordava o assunto na revista Parede, de 5

de julho:

“Todo esse sofisticado equipamento é um negócio incrível, mas os soldados

não devem se tornar dependentes dele. A natureza de um conflito será diferente no

início, com toda essa nova tecnologia – mas, após algumas semanas, voltará a ser

como sempre tem sido. Grande parte desse equipamento de elevada tecnologia

ficará emperrada, devido à areia ou à lama. Um batalhão de fuzileiros, todavia,

continuará a combater.”135

O Vietnã proporciona lições interessantes sobre esse tema. Apesar de uma

disparidade gritante no contexto tecnológico, com saldo positivo para os EUA, os

norte-vietnamitas foram capazes de sustentar e vencer a guerra. Isso se deveu a

uma série de fatores que não foram bem analisados pelos EUA antes de lançarem-

se na guerra. O terreno, o clima, a vegetação, a motivação dos norte-vietnamitas, a

cultura asiática e a sua obstinação em vencer os americanos, mesmo a um custo de

vidas chocante, neutralizaram o poderio de helicópteros UH-1H, aviões F-4, B-52 e

bombas de napalm.

134 MAGGART, Lon E. Your Mind is Your Primary Weapon. Armor, Fort Knox, EUA: vol CV, nº 4, p.5, jul-ago. 1996. “É fácil ficar impressionado com tecnologia do carro de combate M1A2 Abrams. Sua arma principal precisa, sua visão térmica e controle de fogo computadorizados, seu poderoso motor, e sua arquitetura digital é a melhor no mundo. Mas, sem os quatro tripulantes, que têm o conhecimento, a coragem, e o desejo de encontrar e destruir o inimigo, todas as qualidades dessa grande máquina de guerra serão desperdiçadas”. (tradução livre). 135 Apud BERENS, Robert J., Fuzis, audácia e capacidade de durar na ação – ainda os fatores decisivos. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXVIII, nº 2, p. 55-56, mar-abr. 1988.

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A técnica utilizada pelos norte-vietnamitas foi simples: obrigaram os

americanos a combater no nível deles, pois sabiam que, se tentassem um combate

no nível operacional e tecnológico dos americanos, iriam fatalmente perder.

Obrigaram os EUA, inclusive, a um combate prolongado, diminuindo pouco a pouco

a sua capacidade tecnológica tendo em vista a natural queda de desempenho que

equipamentos muito complexos tendem a revelar com o passar dos dias de

combate.

Em 3 de outubro de 1993, dezoito norte-americanos foram mortos e 48

feridos, durante uma emboscada em Mogadiscio, capital da Somália. Mesmo bem

equipados e adestrados – havia tropas Rangers e Delta Forces - os americanos

perderam helicópteros abatidos por simples lançadores de granadas. Mais tarde,

soube-se que a causa do fracasso havia sido culpa da CIA. Os agentes confiaram

em uma única fonte, cuja credibilidade era questionável.

Os afegãos fizeram exatamente a mesma coisa contra a ex-URSS na década

de 80. Na Guerra da Coréia, os chineses, com armamentos bem inferiores

tecnologicamente, destruíram diversos carros de combate norte-americanos com

cargas explosivas colocadas embaixo dos veículos militares. Os russos, na 2ª

Guerra Mundial, fizeram o mesmo com a Alemanha.

O aparecimento do GPS (Global Position System), um sistema que permite a

navegação terrestre, aérea e marítima por intermédio de uma constelação de

satélites estacionários colocados sobre a Terra, é um exemplo de como não

devemos ser dependentes de tais tecnologias. O seu funcionamento e eficácia é

notoriamente comprovado. Ele possibilita uma navegação extremamente precisa,

além de proporcionar uma exatidão maior nos fogos de artilharia e de aviação.

Contudo, todo o sistema de satélites se encontra nas mãos dos EUA. Caso

um dos contendores não atenda interesses americanos, um exército que se valer

unicamente de tal sistema para lançar seus mísseis, deslocar suas tropas ou guiar

seus aviões passará por sérias dificuldades. Em pouco tempo deverá retornar à

velha bússola, carta e terreno para realizar estas missões. Caso os seus homens só

tenham sido instruídos com GPS para atividades que exijam navegação terrestre,

aérea ou naval, certamente terão sérios problemas para se deslocarem de um ponto

ao outro. Enfim, o combate voltará a ser travado nos níveis de antes. A questão é:

eles estarão preparados?

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É comum, como já visto anteriormente, a supervalorização de determinados

equipamentos. Seja por parte do fabricante, que tem o óbvio desejo de vendê-lo,

seja por parte dos militares, ansiosos em operar armamentos novos e que resolvam

suas deficiências num passe de mágica.

A experiência tem demonstrado que, quando tais equipamentos são

submetidos às necessidades de um combate real, suas possibilidades, de maneira

geral, ficam abaixo do esperado.

Sabe-se que durante a Guerra do Vietnã o apoio de artilharia americano era

infinitamente superior ao dos seus inimigos (praticamente não possuíam). Isso

facilitaria a vitória, certo? Nem tanto. Os EUA gastaram, no conflito inteiro, duas

vezes mais bombas e munições que em toda a Segunda Guerra Mundial136. Só a 1ª

Divisão da Cavalaria realizou 132.000 disparos de artilharia. Matou 1.342 vietcongs.

Isso significa cerca de noventa e oito projéteis para matar um homem, sem contar

com as bombas de aviação e outros artefatos utilizados.

Os mísseis Patriot, utilizados na Guerra do Golfo pelos EUA (1991), são um

bom exemplo. Apesar da tão propalada capacidade em interceptar e destruir mísseis

Scud inimigos no ar, após o término do conflito, a mídia divulgou os resultados do

desempenho desses armamentos. Sabe-se, hoje em dia, que eles não foram tão

eficazes na proteção de Israel, por exemplo, quanto se imaginava.

Assistir a uma demonstração de tiro de um novo carro de combate é bem

diferente do que vê-lo em combate. São pequenos detalhes que, somados no

conjunto de uma guerra, acabam frustrando muitas expectativas. Atirar com um

carro com a escotilha aberta, com alvos brancos de pano contrastando com o verde

da área de tiro, com a guarnição descansada, com ausência de fumaça, sem a

pressão de tiros de artilharia inimiga, com os rádios funcionando e tanques de

combustível plenos é uma atividade totalmente diferente da realidade do campo de

batalha. Neste caso, os alvos são pulverizados com um mínimo de tiros realizados.

Já tive, infelizmente, a oportunidade de ver demonstrações que eram verdadeiros

“teatros”, superestimando as potencialidades de um equipamento, do pessoal e da

técnica empregada. Isso levou alguns a creditarem que o que viram era real e

facilmente executável.

136 ALEXANDER, Bevin. A Guerra do Futuro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1999. p. 63.

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Contudo, quando entram os imponderáveis e o caos da guerra, ou seja, o

barulho ensurdecedor do campo de batalha, o movimento da viatura subindo e

descendo valetas, a dificuldade de controle da formação, as péssimas condições de

visibilidade, a fumaça das explosões mais variadas, o rádio que não funciona, o

carro que foi avariado ou atolou na progressão, o inimigo que “não fez aquilo que se

imaginava” e o medo de morrer, agindo de forma inexorável na capacidade da

tripulação em engajar alvos, transmitir comandos exatos e manobrar corretamente o

carro, tudo isso muda. O desempenho cai vertiginosamente e a nossa crença no

armamento passa a decair, tachando-o de mal projetado ou de imprestável.

Na verdade o que há é uma supervalorização do equipamento em detrimento

do adestramento do homem. Há uma tendência natural em se “jogar todas as fichas”

em um novo equipamento, para suprir deficiências de adestramento individual e

coletivo dos homens.

Ao invés de receber o novo equipamento como ferramenta para aumentar o

poder de combate de um determinado exército, opta-se pelo caminho mais fácil:

utilizar esse equipamento para preencher eventuais lacunas na instrução. Acredita-

se que um moderno equipamento, operado por homens “mais ou menos” treinados

resultará em vitória. É um grave engano em tempo de paz.

Em 9 de junho de 1982, Israel desencadeou um maciço ataque contra 19

baterias sírias de mísseis SA-6 SAM137, localizadas no vale do Bekaa, no Líbano.

Este “ataque preventivo”, tão comum no linguajar israelense, tinha como objetivo

impedir bombardeios por intermédio destes mísseis, por parte da Organização para

Libertação da Palestina (OLP) contra povoados israelenses no norte de Israel.

Os sírios estavam equipados com mísseis soviéticos de tecnologia de ponta e

creditavam a eles o sucesso numa eventual intervenção aérea israelense no vale do

Bekaa.

O resultado mostrou-se desanimador para os sírios. Em 10 minutos, a Força

Aérea Israelense destruiu 17 das 19 baterias sírias. Mas por quê? Os equipamentos

não eram bons?

Algumas das respostas podem ser encontradas em dois erros cometidos

pelos sírios. Ambos dizem respeito ao mau uso dos equipamentos disponíveis por

falta de adestramento em situação de combate.

137 mísseis terra-ar de fabricação soviética

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O primeiro foi um erro tático, já que os sírios não usaram a mobilidade que

tais baterias permitiam. Optaram por mantê-las enterradas no terreno por mais de

um ano. A instrução russa recomendava que as baterias deveriam ser adestradas

para realizarem contínuas mudanças de posição. Mas os sírios acharam que era

desnecessário. A grande gama de aparatos tecnológicos seria suficiente para vencer

Israel, mesmo parado. Quando o ataque começou e as baterias começaram a ser

destruídas, uma a uma, os seus operadores eram incapazes de movimentá-las e

mantê-las atirando. Além do que, Israel já as havia detectado com antecedência.

O segundo erro, este de adestramento, foi a falta de conhecimento do

equipamento no que se refere às emissões de radiação por parte dos controladores

sírios de SAM. Como não estavam adestrados da forma necessária, os sírios

emitiam mais radiações do que o necessário para engajar as aeronaves israelenses.

Tal fato tornou fácil o trabalho de Israel. Não só a localização, mas também a

“assinatura digital” das baterias foram descobertas pelas FDI. Bastou um trabalho de

interferência eletrônica para anular todo o aparato tecnológico da Síria.

Antes mesmo do desastre ocorrido no vale do Bekaa, os sírios já haviam tido

uma lição neste sentido. Contudo, não aprenderam com ela. Em 1967 estavam

equipados com carros de combate modernos e certos de uma vitória contra os

israelenses. Todavia, o resultado foi diferente do esperado. Embora possuíssem

viaturas mais modernas, praticamente todos os seus carros que foram engajados em

combate foram destruídos. A causa deste revés foi a de que acharam que com os

carros novos, não necessitariam de espaldões para protegê-los. Os israelenses, em

atitude ofensiva, puderam engajar facilmente os carros de combate sírios, sem a

proteção adicional de espaldões de areia. Suas tripulações haviam sido mal

adestradas e acreditavam que os novos carros de combate iriam suprir suas

deficiências, inclusive nas instruções básicas de organização do terreno. Na Guerra

do Yom Kippur, em 1973, contra Israel, foram vítimas, mais uma vez, deste mesmo

tipo de armadilha.

A agressividade pessoal e a capacidade combativa individual ou de pequenos

grupos, tendo em vista a posse de equipamentos modernos, também não garantem

vitória. Ainda na guerra do Yom Kippur, pode-se verificar tal assertiva num trecho de

Chaim Herzog, em seu livro “A Guerra do Yom Kippur”, na sua parte conclusiva.

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“O consenso predominante foi de que os sírios lutaram melhor do que haviam

feito no passado, por terem sido treinados especificamente para a missão que

tinham a cumprir e à qual não fugiram. De um modo geral, o Comando sírio exibiu

um grau de audácia até então jamais demonstrado. Individualmente, o soldado sírio

provou ser valente, mas o padrão das guarnições de seus carros de combate era

extremamente baixo. Como acontecia nos demais exércitos árabes, nunca se

afastavam da doutrina que lhes tinha sido ensinada e, quando surgiam situações

para as quais não tinham sido preparados, geralmente mostravam-se indecisos”138

(grifos do autor).

Verifica-se, que apesar de possuírem carros de combate russos modernos, os

sírios não investiram o suficiente no adestramento de suas guarnições. Vale lembrar

que, em termos tecnológicos, os carros de combate israelenses, em geral, ficavam

atrás dos seus oponentes. Mas as unidades blindadas israelenses sempre

depositaram grande esforço e esperança no adestramento das guarnições e não

somente na tecnologia dos seus carros.

Outro aspecto que chama a atenção é a falta de iniciativa dos sírios. O

adestramento deles era altamente rígido, resultado da influência soviética e do

totalitarismo sírio, não incentivando qualquer criação por parte dos subordinados.

Mais uma vez, a tecnologia foi superdimensionada em detrimento do adestramento

flexível e dinâmico visando responder às perguntas e aos imperativos que só o

campo de batalha pode impor.

As modernas tecnologias em armamentos e equipamentos são fatores

importantes para que um exército possa atingir a vitória. Todavia, não são

fundamentais e não garantem o sucesso das operações. A tecnologia pode

minimizar perdas, aumentar a letalidade de uma tropa, permitir análises mais

apuradas, precisão nos engajamentos, aumentar a amplitude do campo de batalha,

além de ser um fator de dissuasão para os exércitos que as possuem em grande

quantidade. Pode, dependendo da situação, até definir o resultado de um conflito.

Por outro lado, ela não pode vencer batalhas por si só. O seu potencial não

pode ser superdimensionado em detrimento de outros fatores, tais como:

138 HERZOG, Chaim. A Guerra do Yom Kippur. Rio de Janeiro: Bibliex, 1977. p. 374.

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adestramento, liderança, estrutura organizacional lógica e eficiente, bravura,

criatividade e experiência em combate, dentre outros.

É importante lembrar que a maioria dos exércitos não possui tais

equipamentos na quantidade necessária, pois são extremamente caros e sua

aquisição é dificultada por aqueles que os fabricam. Mais importante do que ter

armamentos no “estado da arte”, é saber utilizar bem aqueles existentes e

disponíveis, sempre consciente das suas vulnerabilidades frente à realidade do

combate.

Os EUA, que possuem, sem qualquer espaço para contestação, os melhores

e mais modernos equipamentos bélicos do mundo teriam tudo para não se

preocuparem com isso. Mas, ao contrário, a sua preocupação é grande, como

escrito no excerto abaixo:

“The Army will field the best equipment money can buy to win on the

battlefields of the 21 st Century. But at same time, we must understand that

advanced technology alone will not solve all of our problems. I believe that the best

weapon available to the monted force is one that already exists between the ears of

ours soldiers – the brain. A trained and educated mind is the most important weapon

on the battlefield today and will be well into the future.139”(grifo do autor)

Sob bons comandos, treinamento eficiente e com moral elevado, é possível,

conforme demonstrado nas linhas acima, que homens de valor consigam diminuir o

fosso tecnológico entre exércitos oponentes. O homem é - e sempre será - o

equipamento mais moderno no campo de batalha.

Investimentos nas Forças Armadas e Soldos Os militares, na sua maioria, são um estamento despido de grandes

aspirações econômicas. A própria similaridade com o sacerdócio, em certos pontos,

já desestimula que pessoas com ambições materiais extremadas procurem a

139 MAGGART, Lon E. Your Mind is Your Primary Weapon. Armor, Fort Knox, EUA: vol CV, nº 4, p.5, jul-ago. 1996 “O Exército vai se exercitar com o melhor equipamento que o dinheiro pode comprar para vencer nos campos de batalha do Século XXI. Mas ao mesmo tempo, nós devemos entender que a tecnologia avançada sozinha não resolverá todos os nossos problemas. Eu acredito que a melhor arma disponível para equipar um força é uma que já existe entre as orelhas dos nossos soldados - o cérebro. Uma mente treinada e educada é a arma mais importante no campo de batalha hoje e no futuro”. (tradução livre).

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profissão militar. Um militar sabe que, ao escolher a profissão das armas, o desgaste

físico e psicológico, o conforto limitado, e a escassez de recursos serão companhias

rotineiras durante sua vida castrense. Porém, é imperioso que a Nação lhes pague

de forma justa. A sua vida atribulada, com exercícios que lhes toma boa parte do

tempo, viagens e outras tarefas que não o permite cumprir um expediente similar às

demais profissões, torna-o dependente de um soldo que atenda suas necessidades

normais.

Em tempo de paz, os soldos, forma pela qual se chama o salário dos

militares, tendem a ser cada vez menores, visto que a sociedade não reconhece a

necessidade do seu trabalho facilmente.

Caso esse exército pertença a um país que sofreu alguma intervenção direta

das Forças Armadas no campo político, o problema se torna mais contundente. É o

caso de diversos países da América Latina, África e Ásia. O poder político civil,

subseqüente ao militar, numa atitude de revanchismo ou de necessidade política

para manter a sua lógica governante de oposição “histórica” aos “governos

ditatoriais”, impõe sacrifícios econômicos aos militares de maneira geral.

Se, por um lado, tal atitude possa ser considerada natural, haja vista as

feridas abertas durante um regime mais duro, por outro, os governantes que assim o

fazem, se esquecem da importante função política e social das Forças Armadas em

tempo de paz. Elas são, dentro do Poder Nacional, uma expressão fundamental que

ancora ou, no mínimo, lastreia diversas decisões de Estado.

Leia-se a transcrição do texto abaixo, referente ao Exército russo, para que se

tenha uma visão prática das conseqüências de uma tropa mal remunerada e com

investimentos escassos com o passar dos anos, às vésperas da 1ª Guerra Mundial.

“...A necessidade de agradar ao poder, para galgar ao generalato, e o temor

permanente de desgostar o chefe, para não perder a comissão, explicam de sobejo

a inépcia do alto comando, com exceção de alguns raros generais.

As paradas e os desfiles assumem papel preponderante.

A despeito do serviço militar obrigatório, nem 50% dos jovens servem à

instituição, os demais obtêm isenção por privilégios injustificáveis. Os apadrinhados

furtam-se ao serviço militar.

Os generais são, de modo geral, incompetentes, acomodados e

subservientes. Os chefes de algum valor ignoram completamente a situação social

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do país e, por isso, serão ultrapassados pelos acontecimentos, quando forçoso lhes

for tomar decisões de cunho político.

O corpo de oficiais pode ser considerado bom, no seu conjunto. A ampliação

e excelente rendimento de suas escolas de formação, de aperfeiçoamento e de

especialização têm produzido bons resultados. Bem instruídos e profissionalmente

capazes, apegados à tropa e, sobretudo valentes, os oficiais são verdadeiros

condutores de homens. Contudo, o corpo de oficiais não apresenta homogeneidade.

Superada a clássica e universal competição de armas, distingue-se uma rivalidade

de classes entre os oficiais com e sem o curso de estado-maior.

Os oficiais têm origens sociais muito heterogêneas. A posição social do

oficial é das mais modestas. Soldos baixíssimos, péssimas guarnições, desprestígio

público e obrigação de manter uma representação condigna, só tendo compensação

no amor à profissão. Sua situação econômica e a implacável vigilância política

fazem-nos correr sérios riscos de estagnação e conformismo. Muitos deles, por

ambição, amor ao estudo ou reação contra a ignorância, candidatam-se ao Curso de

Estado-Maior. Sendo o número de aprovados muito reduzido, é natural que surja um

grande número de descontentes e frustrados que hostilizam o Quadro de Estado-

Maior.”140 (grifos do autor)

No texto acima, verifica-se um estudo de caso onde se pode ver de forma

clara e explícita as mazelas que a falta de investimento e soldos baixos acarretam

para um exército. Os seus reflexos vão desde a cúpula do exército, onde os generais

se vêem obrigados a tomar atitudes que normalmente não tomariam, mas o fazem

tendo em vista as escassas possibilidades econômicas, até os quadros da mais

baixa hierarquia.

O aumento de intrigas internas, falta de estímulo, frustração profissional e

pessoal, conformismo, estagnação na carreira, perda da capacidade combativa do

exército são, dentre muitos outros, conseqüentes de um soldo injusto e,

principalmente, de pouco investimento nas forças armadas.

Recentemente, em 2000, com o afundamento do submarino russo Kursk, no

Mar de Barents, tais aspectos, fruto do sucateamento das forças armadas russas e

dos seus quadros, foram sobejamente mostrados em diversas áreas da mídia.

140 Apud MINERVINO, Oacyr Pizzotti. Forças Armadas em tempo de paz: reflexões. A Defesa Nacional, Rio de Janeiro: Bibliex, nº 760, p. 40 – 41, abr. – jun. 1993.

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Mostrou-se, inclusive, militares que, por absoluta falta de dinheiro, foram obrigados a

levar famílias inteiras para bordo de navios ou para morarem dentro das próprias

unidades. Quais serão os reflexos disso para a eficiência das forças armadas russas

no futuro próximo? Quantos anos os russos levarão para conseguir colocar suas

instituições militares num estado de eficiência compatível com os interesses do

Estado? Certamente décadas e gerações de militares serão necessárias.

Quanto menos coesa for a tropa, quanto mais mal paga, menos eficiente ela

será. Além disso, menos estímulo existirá no seu seio para que os seus quadros se

aperfeiçoem.

A falta de salários condizentes, aliada à impossibilidade jurídica de o militar

realizar outros serviços que completem as necessidades econômicas dele e de sua

família, acabam por desvirtuar certas atitudes. Passa a ser normal a esposa possuir

um negócio em seu nome (juridicamente a maioria dos exércitos não autoriza que o

militar gerencie qualquer tipo de negócio), mas que na realidade é “tocado” pelo

próprio militar.

Apenas como curiosidade, quando o futuro presidente do Brasil, Ernesto

Geisel era tenente e Secretário de Obras do governo paraibano, passou por uma

fase difícil, em que os militares eram mal pagos e tinham que recorrer a subterfúgios

para complementar os salários. Aliado a isto, havia a crescente politização dos

quadros militares. No caso de Geisel, a solução foi montar uma sociedade com o

industrial Drault Ernanny, para atuar na área de cimento.141

Este quadro acarreta desgaste ao militar, refletindo na perda pelo interesse

em algumas atividades militares que possam prejudicar o andamento do negócio

fora da caserna (exercícios no campo, por exemplo), além de trazer-lhe problemas

de ordem social, já que pouco tempo passa com a família. Some-se a isso os

problemas intrínsecos, tais como abuso do álcool e outras drogas, problemas

psicológicos (depressão, agressividade, irresponsabilidade) e o aumento da prática

de atos ilícitos por parte do pessoal militar. Alguns países da ex-URSS são exemplos

típicos nesta direção. Parcela expressiva dos seus quadros, segundo a mídia,

encontra-se em situação similar ao descrito acima.

Além do mais, pelas suas qualidades morais e intelectuais, quando ocorre a

desvalorização do militar, uma grande parte de militares extremamente capazes não

141 MORAIS, Fernando. Chatô, o Rei do Brasil. São Paulo: Schwarcz, 1994. p.321.

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se preocupam em concorrer aos cargos mais altos da força. Quando atingem o

tempo para solicitar sua reserva, eles os fazem. Isso se justifica na medida em que

ele vê horizontes mais promissores na vida civil, onde poderá utilizar sua capacidade

profissional e experiência adquirida na caserna em trabalho que lhe traga maiores

dividendos financeiros e bem-estar para sua família.

Conclui-se, no que se refere aos investimentos na forças armadas e nos

soldos dos militares, que este é um vetor importante na manutenção de um exército

preparado. Os investimentos devem ser suficientes para manter os padrões dos

materiais existentes. Eles devem, ainda, proporcionar ao longo do tempo uma

reposição dos meios militares a fim de atender às necessidades bélicas de um país,

mantendo seus equipamentos o mais próximo possível do “estado da arte” e

compatíveis com as hipóteses de conflito de cada país.

Os investimentos em pessoal são, em suma, extremamente importantes por

ser a profissão militar uma carreira típica do Estado. Como os militares dependem

unicamente dos seus soldos, torna-se imperioso pagar-lhes de forma justa. Além de

ser uma carreira de sacrifícios, ela impõe um aperfeiçoamento constante, além de

sacrifícios pessoais e dos seus familiares. A dedicação exclusiva tem como corolário

bons soldos. A não observância deste detalhe pode minar seus homens, fazendo

com que a carreira militar torne-se pouco atrativa, não incentivando que homens

capazes façam parte dela. Enfim, o militar deve ser tratado como profissional.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

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CAPÍTULO 6

A Preparação para a Guerra

Outros aspectos Sociedade, Política e Militares

“Quando nos tornamos soldados, não deixamos de ser cidadãos”.

Gambetta

A política e os militares possuem uma ligação estreita em qualquer país.

Ambos representam expressões do poder nacional de uma Nação. As relações entre

eles tendem a ser delicadas em alguns países, via de regra naqueles em

desenvolvimento. Em outros, notadamente os mais desenvolvidos, ela percorre

caminhos naturais, nos quais os choques são fortuitos e de pequena monta.

Isso ocorre porque, nas nações mais desenvolvidas, com um período histórico

mais longo, os campos do poder já atingiram grau de maturidade que permite a

coexistência pacífica entre todos eles. Cada expressão do poder nacional sabe até

onde vai sua esfera de atribuições e, o mais importante, confia que as demais estão

fazendo o seu trabalho de forma séria e dentro dos ditames legais.

As palavras do ex-Ministro da Defesa, Geraldo Quintão, são interessantes

dentro desse contexto:

“O monopólio que os militares exerceram por muito tempo sobre temas

relacionados à segurança impediu a formação de uma "cultura de defesa" tanto nas

áreas que deveriam ter vínculo direto com o assunto, como a Chancelaria e o

Congresso, quanto nas que poderiam contribuir com novas idéias e abordagens,

como as universidades e a imprensa.

A Política de Defesa Nacional, adotada em 1996, representa o resultado do

esforço conjunto de diplomatas e militares, um importante marco na parceria entre

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civis e militares no Brasil, no sentido de fixar as linhas mestras do planejamento

estratégico brasileiro. De outra parte, o processo que culminou com a criação do

Ministério da Defesa, que contou também com a participação de civis de diversas

áreas do Governo, entre eles vários diplomatas, tornou possível a abordagem mais

abrangente e multidisciplinar das questões de defesa, cuja complexidade envolve

atores extra-estatais, transcende fronteiras e perpassa, muitas vezes, o aspecto

puramente militar.

Criada a pasta da defesa, uma das principais tarefas do Ministro passou a ser

a de estabelecer novos conceitos estratégicos para o País. Com o entrosamento das

Forças Armadas à estrutura ministerial civil do Governo, não cabe mais a elas

determinar isoladamente, como ocorria no passado, seus objetivos e missões.

Compete ao Ministro da Defesa, com base nas premissas ditadas pelo Presidente da

República, elaborar as diretrizes de alto nível que irão orientar a configuração do

sistema de defesa nacional. Esta tarefa, que se encontra em andamento, deverá

basear-se na avaliação racional dos arranjos vigentes e considerar seu eventual

reequacionamento, à luz dos condicionantes internos e externos que deverão afetar

o País nas próximas décadas.”142

Contudo, em alguma fase da história de um país, o estamento militar tem um

papel preponderante. Normalmente, essa preponderância se dá no alvorecer da

Nação ou após uma crise nas instituições. No seu nascedouro, um país encontra

forças adversas que tentam impedir o seu parto, em especial aquelas sob imposição

de uma metrópole. Como as forças políticas de uma Nação jovem ainda são débeis,

há a necessidade natural da intervenção militar com a finalidade de proporcionar

condições para que os outros campos se desenvolvam e haja o rompimento com as

forças metropolitanas.

À medida que as forças políticas, econômicas e outras encontram o seu

caminho e adquirem maturidade, a tendência é a desmilitarização do Estado.

Entretanto, essa desmilitarização é complexa, pois trata de definir novos limites aos

militares, reduzindo sua representatividade. Isso implica em enormes problemas no

período de transição. Caso essa transição não seja bem executada, os males

142 Palestra proferida pelo Ministro Geraldo Quintão, em 28 de agosto de 2000, aos alunos do Instituto Rio Branco, sobre o tema “Defesa, Diplomacia e o Cenário Estratégico Brasileiro”

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anteriores poderão ressurgir, obrigando o campo militar a extrapolar suas

atribuições.

Na América Latina, isso foi comum nos últimos cinco séculos. Vários motivos

levaram a este estado de “militarização política”. A própria descoberta e a

colonização da América Latina sofreu, desde o início, uma influência militar

gigantesca por parte de Portugal e da Espanha. Estes dois países, com ênfase para

a Espanha143, a fim de conseguir controlar as novas terras, se utilizaram dos

militares para tal tarefa, haja vista a inexistência de meios civis na quantidade e na

qualidade que tal empresa carecia. Esta conjuntura viria a impregnar na cultura

latina, com algumas exceções, um espírito militar acendrado no que diz respeito aos

assuntos de Estado.

Na África e na Ásia, fenômeno semelhante ocorreu, já que as potências

colonizadoras também se utilizaram maciçamente de meios militares para impor a

ordenação política nos países conquistados. A Inglaterra foi o maior expoente nesse

tipo de ação, com a sua política colonial militarista.

Quando tais países tornaram-se independentes, essa “marca cultural” torna-

se assimilada, levando as forças armadas de cada país a conduzir os processos de

emancipação política.

Nos EUA, a ingerência militar na política foi sentida em diversas ocasiões. A

guerra contra o México, a conquista do Oeste Americano são exemplos de

predomínio militar na política. Nestes casos, ancorado na necessidade dos EUA em

ampliar seu território. Lá, haja vista essa predominância militar na política, muitos

militares acabaram galgando importantes postos na política. Grant e Taylor Jackson,

dentre outros, foram militares e ocuparam a presidência dos EUA.

No que se refere aos países europeus, tal fato também ocorreu. Inglaterra,

França, Espanha, Itália e muitos outros países sentiram a necessidade de uma

participação militar na formação dessas Nações. A diferença é que nestes países,

por possuírem uma história que remonta há milênios, esse processo já havia sido

vencido. A sua elite política, em maior ou menor grau, já havia amadurecido o

suficiente para ocupar o seu lugar dentro dos campos do poder.

Posto isso, verifica-se que a participação militar na política é uma realidade na

maioria esmagadora dos países, principalmente por ocasião dos movimentos de

143 Uma importante característica da colonização espanhola foi o belicismo exacerbado, oriundo dos séculos de lutas entre espanhóis e mouros na península Ibérica.

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emancipação, ampliação de território e outros em que os objetivos nacionais

obrigam tal preponderância.

Pretender afirmar que os militares não estão ligados ao processo político de

uma Nação em alguma fase de sua história, é falta de conhecimento ou erro

provocado a fim de desinformar ou modificar a história.

A entrada ou não de militares no cenário político é função da maturidade do

sistema político de um país, do compromisso da classe política com os anseios

populares e dos rumos que a política adotada conduz um país.

As forças armadas, na maioria dos países, não são uma corporação elitizada.

Ela congrega no seu seio uma significativa amostra da sociedade. Em alguns casos,

ela se torna a única instituição verdadeiramente representativa das idéias do povo.

Isso é muito comum quando a classe política que governa um estado se dissocia

desses anseios e começa a navegar por mares estranhos às necessidades do povo

e que atendem apenas a interesses particulares.

Gilberto Freyre reduz essa dicotomia em uma interessante análise:

“Ninguém assegura que seja normal, em qualquer país, quer seja ele

considerado democrático ou socialista, que o exército dirija ou oriente a Nação. Mas

ninguém pode ignorar a utilidade ou mesmo a necessidade desta anormalidade

quando ela for ditada pelos interesses nacionais postos em risco.” ·144

Roberto de Abreu Sodré vai mais longe: “Se os civis se envolverem em

demasia com suas preocupações especiais e esquecerem de suas obrigações para

com o país, como se surpreender com os militares ao ocuparem eles o espaço a

ponto de organizar a própria sociedade civil?”145 ·

Os militares não podem e não devem ser considerados um corpo estranho

aos poderes constituídos. Eles são parte integrante e extremamente importante no

contexto da organização política de uma Nação. O General Ernani Ayrosa também

fornece sua idéia sobre o assunto:

144 FREYRE, Gilberto. Forças Armadas e Outras Forças. Recife: Imprensa Oficial, 1965. Apud HAYES, Robert Ames. Nação Armada. A Mística Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Bibliex,1991. p. 219. 145 Discurso proferido em 1966, quando era governador eleito. Apud HAYES, Robert Ames. Nação Armada. A Mística Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Bibliex,1991. p. 219.

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“Estas considerações sobre fatos que considero normais em todas as famílias

sem vínculos com o meio militar expressam também o pensamento do meio civil,

onde a ignorância sobre a atuação do Exército gera uma certa parcela de risco para

o regime democrático brasileiro. A interpretação de fatos e acontecimentos que

freqüentemente ocorrem pode levar a massa, manipulada por falsos líderes, a

atitudes impatrióticas, vulgares e sem sentido cívico. Menosprezam as Forças

Armadas com a leviana declaração de que somos diferentes, fingindo que

desconhecem seu valor. Somos povo, somos Brasil e jamais nos desligamos dos

interesses da Nação146.”

Destaca-se das palavras do general a ignorância do povo sobre o Exército. O

Exército Brasileiro ainda tem muito o que melhorar neste aspecto. Um local que é

pouco explorado e deve ser motivo de atenção especial são as universidades. É

preciso que mais militares dirijam-se às faculdades e falem, em palestras e reuniões,

sobre as nossa Forças Armadas. Eles não sabem sobre nós e querem saber!

Aos militares cabe o importante papel de dar o suporte seguro para que os

demais campos atuem. Esquecer-se disso é colocar em risco que se atinjam na

plenitude os objetivos nacionais, levando, possivelmente, a um estado bélico interno

ou externo no futuro.

A sociedade em geral tem a percepção da importância de suas forças

armadas. Deposita nelas grande respeito e admiração, e entende que os eventuais

reveses sofridos são conseqüências normais de uma instituição que trabalha sempre

em momentos de crise, seja ela interna ou externa.

Outro aspecto a ser analisado, neste pequeno estudo sobre militares e

política, é a razão pela qual os militares em diversos países são levados a interferir

no poder político. Uma das causas é, sem dúvida, a inépcia pontual de uma

determinada classe política em conduzir um país dentro dos rumos que a sua

população acredita ser a melhor, atingindo um ponto de inflexão em que não há

retorno. Outra causa, é o momento histórico vivido. No contexto da Guerra Fria, a

partir do final da década de 40 do século XX, houve a aceitação e, até mesmo, o

estímulo por parte dos EUA para que tomadas do poder por forças militares

ocorressem como prevenção ao comunismo.

146 SILVA, Ernani Ayrosa da. Memórias de um Soldado. Rio de Janeiro: Bibliex, 1985. p.164.

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Contudo, há também uma componente militar. O Marechal Castello Branco

teceu alguns comentários sobre o problema. Ele dizia que havia, dentro do seio

militar, duas mentalidades: uma profissional e outra miliciana. A primeira era voltada

para a Instituição e defesa do Brasil; a outra era de cunho partidário e direcionada

para interesses pessoais. Segundo Castello Branco, quanto mais profissionais as

forças armadas, menor será a possibilidade de se imiscuir em assuntos que não são

da sua esfera de atribuições. Castello, justiça seja feita, combateu como pôde os

chamados “militares milicianos” ou “forças autônomas” dentro do Exército. O Trecho

da carta abaixo, demonstra isso:

“Está sendo amplamente divulgado que oficiais associados aos que

conduzem investigações, querem fechar o teatro onde se exibe “Liberdade”. Procurei

de imediato conhecer a natureza da peça. O DOPS147 da Guanabara examinou-a e

decidiu que não se trata de perturbação da ordem pública, que é isenta de conteúdo

subversivo. Além disso, Riograndino mandou seu adjunto mais inteligente e mais

revolucionário ver e ouvir a peça. Ele concordou com o Coronel Gustavo Borges.

Não obstante, os boatos de que oficiais fecharão o teatro ameaçam a liberdade de

opinião.

Além disso, alguns oficiais determinaram a apreensão de livros. Isso só serve

para baixar o nível intelectual da Revolução. Além de não produzir qualquer

resultado, constitui um ato governamental usado somente em países comunistas ou

nazistas.

Em conseqüência, solicito a você que examine e tome todas as providências

sobre o assunto a que me referi. A “força autônoma” necessita, urgentemente, ser

esclarecida, contida e, se necessário, reprimida.”148

Mas Castello, com sua imensa capacidade de antever o futuro, disse, em

1955, numa palestra para a Escola Superior de Guerra, de forma quase profética:

“...Há quem diga que a melhor maneira de as Forças Armadas cooperarem na

recuperação moral do País é a da intervenção e da posse do governo. Os mais

147 Departamento de Ordem Política e Social. 148 Apud MATTOS, Carlos de Meira. Castello Branco e a Revolução. Rio de Janeiro: Bibliex, 1994. p. 180 – 181. Trecho da carta de Castello Branco a Costa e Silva, de 02 de junho de 1965.

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sinceros alegam que isso se impõe, diante da incapacidade das instituições políticas

na resolução dos problemas da Nação.

As Forças Armadas têm capacidade política para empreenderem a solução

dos problemas políticos e administrativos da Nação?

Ou se deseja, na realidade e simplesmente, que elas, num regime de

ditadura, mantenham uma facção no poder e custodiem uma outra facção?149”

(grifos o autor)

Sobre esse problema – o de militares “milicianos” se imiscuírem em

problemas políticos numa Nação – podemos aprender um pouco com o livro

“Militares, Confissões”, de Hélio Contreiras. Nesta obra, são entrevistados vários

almirantes, generais, brigadeiros e coronéis que participaram do movimento de 64. A

maioria esmagadora, senão todos, apontam como erro principal do movimento o

tempo excessivo – Castello queria passar o poder para um civil o quanto antes – e o

AI-5 com seus excessos. Dois depoimentos merecem destaque:

“Disse ao Ednardo (General Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II

Exército) que seus oficiais(...) mostravam um despreparo porque estavam

exacerbados ideologicamente. Percebi que eles não estavam profissionalmente

preparados para as funções que exerciam, e poderiam ocorrer excessos. A morte de

Herzog no Doi-Codi não me surpreendeu e poderia ter sido evitada.”150

“Participei do regime militar, e nunca me coloquei na oposição, naquela

época. Não quero agora colocar o regime no banco dos réu. Mas tenho de

reconhecer que cometemos erros, até porque, na realidade, revelamos uma falta de

condições para exercer a chamada atividade política, para a qual não somos

formados.”151

149 Idem. p. 189. 150 CONTREIRAS, Hélio. Militares: confissões: Histórias Secretas do Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p.121. Depoimento do General Antonio Carlos de Andrada Serpa, chefe do Departamento Geral de Pessoal do Exército no governo Figueiredo. 151 idem. p.78 – 79. Depoimento do Brigadeiro Octávio Moreira Lima, chefe do Departamento de Ensino da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR) em 1969 e ministro da Aeronáutica do governo Sarney.

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Segundo Samuel Huntington, em sua obra The Soldier and the Nation,

existem dois tipos de controle civil sobre os militares. O primeiro ele denomina

subjetivo, ou seja, ele acontece quando um grupo civil controla os militares em

proveito do próprio grupo. Isso torna os militares verdadeiras guardas pretorianas

dos interesses de um grupo político civil que não representa, necessariamente, os

interesses nacionais. Obviamente é uma distorção.

A outra denominação é o controle objetivo. Consiste na simples

profissionalização das forças armadas, de forma que ela atenda especificamente aos

interesses da Nação, sendo neutros e politicamente estéreis. Nesse ponto, ele diz “O

corpo de oficiais altamente profissionalizado encontra-se pronto para sustentar as

aspirações de qualquer grupo civil que exerça autoridade legítima no interior do

Estado.”·

O fato é que tentar colocar o papel dos militares em um patamar abaixo do

que realmente ele representa dentro de um país é erro de avaliação e falta de

conhecimento da história.

Os militares sempre ocuparão, dentro da política do Estado, um papel

importante. Quanto mais desenvolvida e amadurecida politicamente for a Nação,

melhor esse papel será compreendido e executado de forma natural, sem colisões.

O controle civil sobre os militares é natural e saudável. Contudo, este controle

deve ser de tal forma que não desvirtue a instituição e nem a coloque em níveis

inferiores ao que realmente lhe cabe. Essa conscientização, principalmente nos

países que saíram de regimes sob tutela militar, é fundamental a fim de que não

propicie intervenções ainda mais contundentes no futuro.

A América Latina vem passando por esse processo com relativa sabedoria.

As tensões estão sendo esvaziadas e os poderes políticos atuais, na medida em que

o tempo passa, vêm equilibrando essas forças. Na África e no Oriente, encontram-se

os maiores problemas nesse sentido. Nações que se encontram na infância

democrática têm tido problemas para redimensionar o papel dos militares no

contexto nacional e de construir instituições sólidas, em harmonia com a cultura

local. As expressões política e econômica, principalmente, não conseguem

responder, no nível necessário, aos anseios populacionais. Grupos políticos civis

brigam pelo poder, dissociando a capacidade de muitos países. Essa disputa interna

irresponsável acaba obrigando ou estimulando militares a tomar o poder a fim de

manter a soberania e evitar confrontos internos sangrentos. Entretanto, muitos

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grupos de militares acabam distorcendo essas intervenções, desaguando em

corrupção, clientelismo e outras pragas que grassam em países imaturos

politicamente. É, sem dúvida, uma situação difícil, onde quem mais sofre é a

população, que não tem uma alternativa que atenda suas demandas mínimas.

O Exército Nacional do Afeganistão é um caso típico de instituição militar

cujas bases não estão assentadas em alicerces sólidos. Sua história, nos últimos

150 anos, demonstra falta de unidade e de identidade. Neste período, ele foi

reconstruído três vezes. No momento, passa pela sua quarta reestruturação, sob

influência dos EUA.

A causa dessa instabilidade institucional é, sem dúvida, a baixa coesão e

falta de profissionalismo dos seus efetivos militares frente às inúmeras guerras

externas e revoltas internas, sempre seccionando o exército e desestruturando-o. O

grande desafio das autoridades afgãs quando se referiam ao seu exército, era o de

tentar polarizar interesses divergentes numa instituição militar dividida em três

vertentes: o exército regular, os grupos armados tribais e as milícias comunitárias.

Segundo Ali A. Jalali152, o exército regular era mantido pelo Estado, servindo aos

líderes governamentais; os grupos tribais armados – configurando forças irregulares

– obedeciam aos respectivos chefes tribais, sob contrato e por tempo pré-negociado;

as milícias comunitárias obedeciam às orientações de chefes ou dirigentes

comunitários. Deste caldeirão de forças militares e paramilitares, conformava-se o

exército que deveria defender o país.

Certamente, os resultados foram negativos, redundando em desastres e

terreno fértil para o aparecimento de focos de guerrilhas antagônicos baseados em

tradições tribais, além de regiões fora do controle do poder central, refletindo em

bases locais visando a formação de terroristas. Pode-se dizer que a lealdade às

tradições e aos ícones tribais suplantava a lealdade e o compromisso com o Estado.

Esta dicotomia moldou uma organização militar dispersa, altamente instável em suas

respostas, dependente de negociações políticas complexas e subserviente aos

ditames daqueles que estavam no poder. Tal conjuntura levou Edward Hensman,

observador britânico da sociedade afegã, a dizer que:

152 JALALI, Ali A. Reconstituindo o Exército Nacional do Afeganistão. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXXXIII, nº 3, 3º Trim. 2003. p. 33.

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“Ao afegão não lhe falta a coragem inata e é inigualável no combate em

terreno montanhoso, contanto que a luta tenha as características do combate de

guerrilha. Mas uma vez que se lhe pede esquecer a sua própria identidade e se

tornar meramente uma unidade dentro de um batalhão, perde toda a autoconfiança,

e é mais disposto a pensar mais em se ausentar do que em se manter firme, como o

teria feito junto aos seus amigos, liderados pelos próprios chefes.”153

A afirmação de Hensman corrobora a argumentação de que um exército

não pode estar ligado – cultural, histórica, religiosa ou politicamente – a um

determinado grupo social ou casta dentro de uma nação. Ao contrário, deve possuir

identidade própria, cultuar heróis significativos para toda a instituição e montar, ao

longo dos anos, o seu próprio ethos, dissociado de qualquer tendência regional.

Somente assim terá possibilidades reais de, ao longo das crises nacionais – internas

e externas – ter capacidade de filtrar os verdadeiros anseios do povo daqueles

fabricados por forças alheias aos objetivos nacionais permanentes. Sem dúvida

alguma, este será o maior desafio para os EUA tanto no Afeganistão como no

Iraque154.

O conhecimento pleno sobre a cultura militar é outra característica importante

para que um governo possa exercer com eficiência seu controle em relação às

forças armadas. Em muitos países verifica-se que aqueles que querem e devem

controlar as forças armadas desconhecem-nas. No Brasil, raros são os civis que

conhecem em profundidade assuntos ligados à Segurança Nacional. Muitos sequer

pisaram em uma unidade do corpo de tropa a fim de conhecer a rotina dos homens e

mulheres que labutam diariamente visando a segurança do País. Vê-se em muitas

matérias publicadas em jornais ou na Internet, um verdadeiro mercado editorial de

achismos e visões tendenciosas.

É fundamental que aqueles que desejam falar sobre os militares os conheçam

em profundidade. É imperioso que entendam o modus vivendi dos militares, suas

crenças, seus regulamentos e, o mais importante, como os militares pensam e as

razões que os levam a pensar de uma determinada forma.

153 JALALI, Ali A. Reconstituindo o Exército Nacional do Afeganistão. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXXXIII, nº 3, 3º Trim. 2003. p. 33. 154 Em maio de 2002 as Forças Especiais dos EUA iniciaram cursos de treinamento e adestramento de batalhões no Afeganistão, numa tentativa de criar um exército nacional coeso. Cada curso dura 10 semanas e forma 600 homens.

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Ora, quando alguém tem o objetivo de falar sobre assunto específico e

complexo, um dos primeiros passos para se obter o conhecimento integral, é

procurar conhecer esse assunto dentro das mais variadas perspectivas.

Infelizmente, isto não ocorre em muitas situações. São homens e mulheres que se

lançam num vôo sem rota, permitindo-se abater alvos fortuitamente, sem saber se

são amigos ou inimigos, gerando informações e opiniões distorcidas, induzindo ao

erro de avaliação sobre assuntos atinentes às forças armadas.

Nesses novos tempos, quando se verifica uma tendência dos países recém-

saídos de governos militares em colocar os militares abaixo da importância que lhes

pertence, acabam-se cometendo erros crassos, que pretendem apenas atender a

interesses de minorias. Em muitos desses países, a classe política acha que o

estamento militar deve ser controlado e mantido sob a tutela política de um civil,

independente da qualificação que o ocupante deste importante cargo tenha, crendo

que tal atitude, por si só, bloqueie a influência dos militares em outras esferas. Como

já foi visto anteriormente, tal atitude acaba colocando pessoas completamente

despreparadas em funções que exigem conhecimentos complexos sobre segurança

nacional, gerando descrédito, cisão e desconfiança entre as pessoas envolvidas.

Os ministérios da defesa, criados em diversos países, têm sido usados como

ferramenta para tal propósito. Ao se colocar um civil sem conhecimento dos

“negócios da guerra” , na intenção de evitar futuras “quarteladas”, acaba-se por

propiciar um terreno fértil para descontentamentos e futuros problemas

desnecessários.

Os EUA, tidos como o maior exemplo de democracia do mundo, demonstrou

o contrário. O presidente George Bush, eleito em 2000, nomeou como Secretário de

Estado nada menos do que Collin Powell155, General e ex-comandante de tropas na

Guerra do Golfo (1991). Isso demonstra que para um governo o que interessa não é

se o ocupante do cargo é civil ou militar, mas sim a sua competência para tratar dos

assuntos pertinentes à segurança.

Tentar apagar ou minimizar o papel que muitos exércitos tiveram na formação

de fronteiras, na estabilização política de um país no seu nascedouro e, até mesmo,

como poder moderador em determinadas fases históricas – como foi o caso de

155 O qual teve as análises mais cautelosas sobre o ataque desferido contra o Iraque em 2003. Provavelmente, tomou esta atitude exatamente por ser militar, ter participado da Guerra do Golfo de 1991 e saber em profundidade das dificuldades em se combater inimigo altamente motivado pela religião, pelos costumes muçulmanos e em território conhecido.

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Exército Brasileiro - é falta de conhecimento histórico da formação e evolução do

país e total ignorância dos fatos e instituições que participaram efetivamente da

construção da Nação. Desde que o exército desse país não seja formado por uma

elite, é lícito supor que todas as vezes que ele foi obrigado a ultrapassar suas tarefas

constitucionais, foi em função da identidade que possui com o povo ao qual

pertence.

É fundamental que uma Nação incentive civis a formarem um corpo de

pesquisadores e pensadores sérios e isentos sobre a Defesa Nacional, suas

prioridades, seus objetivos e meios para sua realização. Assim como é de

importância capital que os militares sejam conhecedores profundos do conjunto

sócio-político do país ao qual servem, e não simples aventureiros, que encubrem

intenções autoritárias e incompatíveis com a democracia. As distorções, de ambas

as partes, proporcionam que pensamentos como o transcrito abaixo encontre eco na

sociedade.

“Algumas práticas próprias dos casos estudados podem ser aplicadas no

ensino militar brasileiro...a limitação ou a eliminação da prática da ordem unida, o

uso do tratamento informal entre os cadetes...”156

ou

“A democratização das forças armadas brasileiras, particularmente o ensino

realizado por elas, implica a anulação do papel constitucional de defesa interna, ou

pelo menos sua clarificação e delimitação em termos de ação cívica, visto que essa

democratização é incompatível com a tarefa tradicional de proteção aos interesses

dos setores dominantes da sociedade e ao capitalismo internacional via instauração

de expedientes políticos autoritários.157

Afirmações desse tipo demonstram que apesar de o autor ser professor

adjunto da Academia da Força Aérea e doutor em Educação, como está transcrito

no livro de sua autoria, não conhece com profundidade o estamento militar.

As principais finalidades de uma formatura são: verificar a ordem unida, a

apresentação individual dos homens, a higidez física da tropa, recepcionar

oficialmente uma autoridade, aumentar o espírito de corpo das frações e servir como

156 LUDWIG, Antonio Carlos Will. Democracia e Ensino Militar. São Paulo: Cortez, 1998. p. 105. 157 idem. p. 108.

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ferramenta para desenvolver atividades da área psicomotora e afetiva que exija

sincronização e espírito de equipe. Posto isso, verifica-se que as formaturas não são

inúteis, como alguns pensam. São utilizadas por todos os exércitos do mundo,

inclusive o suíço, citado por Ludwig como exemplo de “exército democrático”.

No que se refere a incompatibilidade constitucional das forças armadas

realizarem as missões de defesa interna, é oportuno lembrar que os EUA, “oratório

sagrado” da democracia moderna, usam sempre que necessário suas forças militar

para debelar problemas de ordem social. Como ilustração, lembremos dos

incidentes ocorridos na Califórnia (rebeliões contra o racismo), onde a Guarda

Nacional foi utilizada, e a postura atual de colocar as forças armadas para policiar,

prender e até mesmo gerenciar tribunais contra o terrorismo. Tal assertiva, visando o

afastamento das forças armadas dos problemas internos, ao que parece, busca

outros objetivos, obscuros para muitos, mas claríssimos para os autores de tais

idéias. Dentro dessa linha de raciocínio, as forças armadas de um país, já que

devem manter-se alheias aos problemas internos, deveriam ficar estacionadas em

algum país de clima ameno, enquanto aguarda uma guerra externa. Vemos aí, um

grande erro de avaliação.

Outra afirmação contida na mesma obra, merece atenção:

“É o caso, por exemplo, da Venezuela. Nesse país, onde foi possível evitar a

interferência militar no contexto político em face da predominância do regime

democrático, pelo menos até um passado recente, o processo formativo dos oficiais

visa, ao mesmo tempo, preparar o profissional da guerra e o cidadão, cujas

características são várias, como a de compartilhar com os governantes a mesma

visão relativa ao interesse nacional, participar enfaticamente nos assuntos públicos e

defender a Constituição.158”

Nesse trecho, verifica-se, mais uma vez, a análise precipitada. Atualmente, a

Venezuela, com o Presidente Hugo Chavez – militar eleito democraticamente –

passa por grave problema político. O presidente toma medidas autoritárias (segundo

a oposição), com apoio de parcela da população e das forças armadas. Outra parte

das forças armadas tentaram até mesmo dar um golpe de Estado contra Chavez.

Alguns partidos de oposição, segundo a mídia, como a Ação Democrática, dizem

158 idem. p.102 – 103.

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que ele está “louco” e tentam modificar a Constituição para tirá-lo do poder. Onde

está, dentro desse turbilhão de opiniões, a tão propalada isenção militar, dentro de

“uma formação democrática”, segundo escrito no texto em destaque? Em lugar

algum, porque isso não existe da forma em que o autor tenta induzir. O que leva as

forças armadas a intervirem ou não, como já foi dito, não é o fato de ela ter ordem

unida em seu currículo ou não; ou o fato de a Constituição dizer que ela não pode

participar da Defesa Interna.

O que dá certeza a um país de que suas forças armadas irão cumprir sua

missão constitucional são inúmeros fatores, muito mais grandiosos e importantes do

que determinadas modificações no ensino: maturidade política, confiança da

população na capacidade dos políticos em resolver crises, identificação com os

valores nacionais etc.

Na sua obra “Dever Militar e Política Partidária”, o General Estevão Leitão de

Carvalho, trata do assunto de forma magistral. Destaco o seguinte trecho:

“A estranha teoria de que os militares, não obstante os compromissos que os

prendem ao poder constituído – a que devem obediência e lealdade, - devem ter

ouvidos para ouvir as queixas das correntes políticas descontentes com a ação ou a

omissão do governo, e servir-se das armas, que lhes fora entregues para a

manutenção da ordem e garantia das instituições, em proveito dos elementos

rebelados, é um dos mais graves erros que os homens públicos podem cometer. A

força armada, com o seu formidável poder de destruição, é como o cão de guarda

açaimado: a legislação e a disciplina amortecem-lhe os ímpetos bravios e

neutralizam-lhe a perigosa presença. Para que desviá-la desse estado de

dormência, em que atua, em geral, pela presença, acenando-lhe com outras

funções, de juiz e de executor da sentença, em causa de que não pode conhecer o

processo? Desviá-la do caminho do seu dever, para servir, hoje, a uma corrente,

nada impede que o faça amanhã em outra direção, contrariando a primeira.

E quem impedirá que o faça em benefício próprio? É para esse objetivo

ameaçador que caminhamos, se as paixões políticas exacerbadas não se

acalmarem e o bom senso, que no caso é o senso de realidade, não abrir os olhos

dos que, cegos e obstinados, querem conduzir a Nação brasileira à fogueira do ódio

em que pereceu Roma: Mário e Cila, César e Pompeu.

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E a cura do mal depende de todos os brasileiros.”159

É bom frisar que as modificações no ensino são importantes e fundamentais.

Um ensino moderno, bem estruturado, humanista e democrático será sempre

importante para qualquer exército. Mas quando tais teorias são aplicadas de forma a

corroer as bases de um exército – hierarquia e disciplina – e sua tradição histórica,

elas só podem pretender descaracterizar uma força armada.

Isso ratifica que além de títulos acadêmicos, é preciso isenção e

conhecimento histórico embasado para se falar sobre as instituições militares.

Pessoas com posições distorcidas sobre as forças armadas, que alcancem postos

decisórios num país, são temerárias.

Da sinergia entre civis letrados nas artes militares, e militares conhecedores

do universo ao qual devem obediência, surge, de maneira natural e eficaz, uma

política de segurança firme, adequada à realidade existente e pronta para responder

aos possíveis cenários adversos em que os militares tenham que ser empregados

em defesa dos interesses nacionais. Desta forma, têm-se forças armadas e poder

político, perfeitamente harmônicos e amalgamados.

Relações entre Civis e Militares

Existe uma expressão, muito utilizada erroneamente no Brasil e em outros

países, para separar os militares dos civis: “sociedade civil”. É como se os militares

pertencessem a uma outra sociedade, estranha às demais de uma Nação. É um

equívoco.

Em primeiro lugar, é preciso saber (alguns não sabem!) que a expressão

sociedade civil foi criada por Montesquieu, apenas com a finalidade de distinguir as

coisas do Estado das do restante da Nação. Não se trata, de forma alguma, de

dividir a Nação entre militares e civis, de forma maniqueísta.

O Dicionário Aurélio dissolve essa dúvida com a seguinte definição, entre

muitas outras, de sociedade: “Agrupamento de seres que vivem em estado gregário;

meio humano em que o indivíduo se encontra integrado; relação entre pessoas; vida

em grupo, participação, convivência; reunião entre indivíduos que mantêm relações

159 CARVALHO, Estevão Leitão de. Dever Militar e Política Partidária. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1959.

p.11.

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sociais e mundanas.” Mas de todas essas, a que mais se presta ao nosso estudo é a

sua definição com base na sociologia: “Corpo orgânico estruturado em todos os

níveis da vida social, com base na reunião de indivíduos que vivem sob determinado

sistema econômico de produção, distribuição e consumo, sob um dado regime

político, e obedientes às normas, leis e instituições necessárias à reprodução da

sociedade como um todo; coletividade.”

Como se vê, os militares não são uma sociedade, mas sim um estamento,

intimamente ligado à sociedade como um todo.

No que se refere à expressão “sociedade civil”, o mesmo Aurélio nos

esclarece: “Associação que não tem por finalidade objeto atos de comércio.”

É bem verdade que os militares, por características inerentes à sua profissão,

são regidos por leis e regulamentos específicos. Contudo, isso, por si só, não os

coloca na posição de uma “sociedade”.

Esse esclarecimento se faz necessário na medida em que se verifica em

alguns estudos a classificação dos profissionais militares como “sociedade”.

Não é possível separar militares da Nação. Um não existe sem o outro. Além

disto, é preciso que se entenda que os militares, na maioria dos países, são uma

amostra da sociedade. Mesmo porque, nunca é demais lembrar, que antes de ser

um militar, o homem ou a mulher já eram cidadãos, com seus deveres e direitos

claramente especificados em leis. O fato de ele vestir uma farda, não lhe tira tais

deveres e direitos. Ao contrário, atribui-lhe ainda mais responsabilidades perante o

seu país.

O caso do Brasil é exemplar. Para se entrar nas suas Forças Armadas como

um militar de carreira, os oficiais e sargentos devem, em alguma fase, prestar um

concurso público. Desta forma, garante-se que o acesso à carreira das armas é

universal, independendo de qualquer tipo de discriminação. Sendo assim, o seu

contingente profissional é uma amostra da sociedade brasileira, com suas

qualidades e deficiências.

Não se trata, portanto, de uma casta, de um grupo privilegiado ou de ser

estranho ao tecido social, como tenta conduzir o raciocínio de Ludwig, em seu livro

“Democracia e Ensino Militar”. Diz o autor:

“No caso brasileiro isso é um fato tradicional – que a origem social dos oficiais

encontra-se nos setores privilegiados da sociedade – e os dados apresentados

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servem para comprovar essa tradição. Os setores dominantes têm consciência de

que a força das armas deve estar nas mãos de grupos leais e confiáveis”160

Típica falácia. Se a maioria dos oficiais, como está escrito no seu livro161,

pertence a pais divididos em 25% de oficiais, 6% comerciantes, 4% de funcionários

públicos, 2% de advogados e engenheiros, isso só reflete que estes possuem as

qualidades de ensino necessárias para o ingresso –em concurso público – na

AMAN. Além do mais, afirmar que Os setores dominantes têm consciência de que a

força das armas deve estar nas mãos de grupos leais e confiáveis162, equivale a

firmar que o concurso é manipulado para atingir esse fim – coisa que não é!

A negação da importância dos militares em um determinado país,

normalmente, é um contraponto a um período em que eles tiveram papel

preponderante nos negócios do Estado: guerras, revoluções, golpes militares, etc. A

França, após a 1ª Guerra Mundial, é um caso típico. As idéias pacifistas levadas a

pontos extremados e dissociados da realidade da Europa naquele momento e, como

disse o coronel Macedo de Carvalho, na introdução de “Por um Exército Profissional”

de Charles de Gaulle, dominada por uma “psicose antimilitarista” sem precedentes,

acabou ofuscando a realidade e levando a França a uma retumbante derrota no

início da 2ª Guerra Mundial.

O mais interessante nesse episódio foi que a Alemanha, mesmo arrasada

com o término da 1ª Guerra Mundial, tomou um caminho contrário ao francês. Tratou

de organizar suas forças armadas e preparar-se para a guerra que viria anos depois.

Evidentemente diversos fatores contribuíram para isso: cultura germânica, visão

política, sentimento de revanche, necessidade do “espaço vital” e muitas outras. O

fato é que a Alemanha viu que nunca poderia sobreviver como Nação sem um

exército que desse suporte para as decisões políticas mais críticas.

Conclui-se, parcialmente, no que se refere às relações entre militares,

políticos e a sociedade em tempo de paz, que a participação militar no contexto

político de um Estado é fundamental. O grau de equilíbrio entre eles vai depender da

maturidade política do país e da profissionalização das forças armadas.

160 LUDWIG, Antonio Carlos Will. Democracia e Ensino Militar. São Paulo: Cortez, 1998. p. 23. 161 Idem. p. 23. 162 Idem. Ibidem.

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Se por um lado a supervalorização dos militares na política é maléfica, na

medida em que descaracteriza as forças armadas, fazendo com que se dediquem

demasiadamente a assuntos que são de competência de políticos, por outro, a

minimização do verdadeiro papel dos militares frente à política nacional durante os

períodos de paz é perniciosa e irresponsável. Ela afasta um segmento importante e

apto – os militares – do processo decisório e participativo nos assuntos de vital

importância para o Estado, como a política de defesa nacional e de desenvolvimento

social.

Não se deve esquecer que, além de serem cidadãos, os militares são uma

amostra fiel da sociedade à qual servem, além de conhecerem em profundidade o

território nacional e seus problemas. Possuem quadros preparados e prontos para

colaborar com a política nacional em ampla gama de campos de atuação.

Há, em muitos países, a necessidade de se formar uma massa crítica de civis

que conheçam as forças armadas e principalmente assuntos relacionados com a

defesa nacional, que, agindo em sinergia com os militares, encontrarão as melhores

soluções para a defesa de um país. No Brasil, destaca-se o início de movimentos no

sentido de se estabelecer ligações mais consistentes entre os meios militar e civil. A

existência de núcleos de estudos militares ou estratégicos, como os existentes na

Universidade de Campinas e na Universidade de São Paulo, dentre outros,

corrobora esta assertiva.

O controle dos militares por parte dos civis é corolário de uma política madura

e com ideais democráticos. É sempre importante lembrar que a guerra busca atingir

objetivos políticos. Ela não é um fim em si mesma. Contudo, esse controle não pode

ser exercido de forma a sufocar as necessidades intrínsecas do estamento militar.

Estas necessidades são fundamentais para a própria existência delas. A hierarquia e

a disciplina são apenas dois exemplos. Além disso, é preciso maturidade política

para enxergar o que deve ou não deve ser feito pelas forças armadas de um país.

Quando estas tendem a ser desviadas das finalidades constitucionais, das

possibilidades materiais e da sua instrução, é um sinal de alerta aos políticos de que

algo está errado. No mínimo, outros componentes do Estado estão deixando de

fazer o seu trabalho e delegando-o para as forças armadas.

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História Militar “Quando um Chefe do Estado-Maior Imperial escreveu que” nunca teve tempo para estudar em detalhes a

História Militar “foi como se o Presidente da Real Academia de Cirurgiões tivesse dito que nunca tivera tempo para estudar anatomia ou praticar dissecação”

B.H. Liddell Hart O estudo da História Militar é uma das melhores formas, conjuntamente com

adestramento ralístico, de se aprender sobre a guerra durante a paz. Um exército

sério precisa incentivar todos os seus membros a ler exaustivamente a História

Militar do seu país e do restante do mundo.

Será por intermédio dessas leituras que o militar irá obtendo uma visão cada

vez mais ampla e clara da sua profissão. Somente assim, ele conseguirá subsídios,

detalhes, causas e conseqüências de vitórias e derrotas no campo militar,

agregando valor ao profissional e facilitando-lhe o desempenho profissional ao longo

da carreira.

A leitura obrigatória de clássicos nas escolas militares é fundamental para que

tais objetivos sejam alcançados. Cada escola, seja ela de formação,

aperfeiçoamento, altos estudos, especialização ou extensão, deve prever uma lista

de leituras obrigatórias e outra de leituras recomendadas.

Ao contrário do que alguns pensam, a leitura de assuntos militares ligados à

história não é um afastamento da realidade do campo de batalha ou mera abstração.

Ela transcende tais aspectos e proporciona ao seu estudioso um espectro de

conhecimentos que complementam as atividades profissionais diárias e o auxiliam a

tomar decisões mais embasadas, maduras e acertadas.

O conhecimento profundo da História Militar do país a que um exército

pertence é fundamental. Por intermédio desse conhecimento, será possível

identificar características culturais do soldado, falhas repetidas ao longo do tempo,

tipos mais comuns de personalidades, reações dos homens perante o combate,

formas mais corretas de exercer a liderança, detalhes sobre a influência do terreno,

das condições meteorológicas, dos armamentos, da fadiga do combate, enfim, de

um sem número de variantes e aspectos envolvidos numa guerra que apenas a

experiência de exercícios não seria suficiente. Não é por acaso que os grandes

generais da história sempre foram ávidos leitores de livros de História Militar, cartas,

croquis e relatórios de batalhas passadas.

Um exemplo pouco conhecido de oficial que obteve êxito em combate, tendo

como fundamento o estudo da História Militar, foi o do Major General Hunter Ligget,

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do Exército dos EUA. Atuou de forma magistral durante a Primeira Guerra Mundial,

comandando um exército nas Forças Expedicionárias Americanas naquela

oportunidade. Foi impulsionador da modernização do ensino no Exército dos EUA e

modificou, com a sua maneira de liderar, paradigmas aceitos até então. Simples,

humilde e compenetrado, sabia tratar seus homens com respeito e sincera

admiração. Não foi um carreirista, ao contrário, sabia da efemeridade da sua

posição. Era um daqueles homens que têm sempre uma pequena lanterna acesa,

procurando ajudar as pessoas a atingir sus objetivos. Não era obstáculo, mas

impulsionador dos seus subordinados.

Apesar de pertencer a um exército estagnado e com enormes problemas, o

estudo diuturno da guerra possibilitou-lhe “se libertar do pequeno e estático exército

de áreas remotas que havia ingressado em 1879163”. Nos seus primeiros 20 anos no

exército, a maior unidade tática existente era um regimento pouco afeito aos

exercícios de campanha, foi capaz de comandar com brilho raro um exército na

Primeira Guerra Mundial. Boa parcela desse sucesso, dizia ele, era graças ao

estudo da História Militar. Como disse Lidell Hart, “Ligget evitou a estagnação devido

ao seu interesse pela leitura”164. Isso tudo sem incorrer no erro de muitos militares,

pois foi capaz de misturar o conhecimento teórico com a prática de campanha,

dando a sinergia necessária para que obtivesse êxito nas batalhas de Chauteau-

Thierry, Mosa-Argona e as alturas de Barricourt, dentre outras.

Sua característica marcante foi a de estudar sempre para o que chamava de

“próximo conflito”. Dizia ele:

“(...) competia a todos os oficiais, seja qual fosse a patente, desenvolver uma

preparação eficaz para o exercício do comando, através de contínuos estudos e

reflexões. Ninguém sabe quão cedo um cidadão pode ser convocado para o serviço

militar em defesa de seu país. Muito pode ser aprendido através de um estudo

inteligente de história militar e ninguém pode acomodar-se achando que está bem-

preparado para as grandes responsabilidades de uma guerra.”165 (grifos do autor)

163 BIGELOW, Michel E. Aprendendo e Fazendo. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXXIX, nº 1, 1º Trim. 1999. p. 35. 164 Apud BIGELOW, Michel E. Aprendendo e Fazendo. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXXIX, nº 1, 1º Trim. 1999. p. 33. 165 BIGELOW, Michel E. Aprendendo e Fazendo. Military Review (edição em português), EUA: ECEME/EUA, Vol. LXXIX, nº 1, 1º Trim. 1999. p. 34.

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Por meio da História Militar, um tenente pode “descobrir” e acreditar o quanto

é importante, por exemplo, uma correta instrução sobre a utilização de senhas em

combate para os seus homens, como se pode ver no texto abaixo:

Cerca de 01:30 hora, enquanto soprava um vento leste gelado, cinco vultos

aproximaram-se de duas sentinelas alemãs, próximo da ponta leste da localidade e

gritaram de uma certa distância: “Alô, 477º Regimento! Alô camarada!” Os alemães

que, em virtude da neve levantada pelo vento, podiam apenas ver até uns 20 metros

de distância, ao chegarem eles a uma distância de 10 metros, gritaram: “Alto!

Avance a senha!” A resposta foi ”Não atire! Somos camaradas alemães“... e

continuaram a avançar. As sentinelas perceberam, nesse momento, um certo

número de homens a cerca de 25 metros atrás dos cinco soldados que se

aproximavam. Uma vez mais, gritaram:” Avance a senha ou atiramos!” Novamente, a

resposta foi ”Não atire, somos camaradas alemães!” Enquanto isso, os 5 russos em

uniforme alemães já estavam a 6 metros de distância e passaram a atirar granadas

de mão que feriram uma das sentinelas alemãs. A outra sentinela disparou seu fuzil

para dar o alarme, mas ao fazê-lo foi abatida pelos russos que imediatamente

avançaram em direção à primeira casa, seguidos pelo grosso da patrulha de

combate.166

Outra prova contundente de que a História Militar fornece, em todos os níveis,

subsídios para a tomada de decisões, foi a linha de ação adotada por John F.

Kennedy durante a crise dos mísseis cubanos em 1962. Leitor voraz, aprendera

como a 1ª Guerra Mundial havia sido iniciada, já que nenhum dos principais

beligerantes havia recuado em suas posições. Decidiu dar um pequeno recuo,

possibilitando uma saída honrosa para Nikita Kruschev, esvaziando, desta forma, a

crise que ameaçava o mundo.

São essas experiências, dentre muitas outras, repassadas por homens que

decidiram guerras, estudaram as batalhas ou que estiveram em combate e

conheceram suas dificuldades, que a História Militar pode nos passar de forma

inteligente e - por que não? - agradável.

166 ESTADOS UNIDOS,Army. Ação das Pequenas Unidades Alemãs na Campanha da Rússia. Rio de Janeiro: Bibliex, 1987. p.28.

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De Gaulle já exprimia sua preocupação quanto a necessidade de uma cultura

ampla para aqueles que sonhavam em comandar exércitos:

“O vigor do espírito implica uma diversidade que não se encontra na prática

exclusiva da profissão, pela mesma razão por que não há quase divertimento no

seio da família. A verdadeira escola do Comando é, por conseguinte, a cultura geral.

Graças a ela o pensamento fica capacitado a se exercer com ordem, a distinguir,

nas coisas, o essencial do acessório, a perceber os prolongamentos e as

interferências, em suma, a se elevar até o grau em que os conjuntos aparecem sem

prejuízo das nuanças. Não há um só capitão ilustre que não tenha tido o gosto e o

sentimento do patrimônio do espírito humano. No fundo das vitórias de Alexandre

encontra-se sempre Aristóteles.”167

Entretanto, é preciso discernimento ao se estudar a História Militar. Ela não

fornece padrões de respostas para determinados problemas. Se assim fosse, após o

desastre das tropas pára-quedistas em Creta, por parte dos alemães168,nunca mais

teríamos outros assaltos aeroterrestres. O mesmo poderia ocorrer com o sucesso de

soldados profissionais ingleses face aos conscritos argentinos. Se isso fosse uma

verdade dogmática, invalidaria a vitória de soldados israelenses da reserva contra

soldados regulares árabes. É preciso critério para obter-se dados da História Militar.

O estudo da História Militar é fundamental na formação de oficiais e praças.

Ela fornece idéias mais detalhadas das doutrinas, sugestões para a resolução de

problemas táticos e estratégicos, considerações sobre erros e acertos, além de uma

experiência cognitiva que só a guerra pode ultrapassar. Vai ainda mais longe, na

medida em que obriga o militar a uma reflexão mais profunda sobre a profissão das

armas, inclusive sobre o aspecto moral envolvido.

Todavia, ela, por si só, não torna um militar completo. É um importante vetor

na complementação da formação do militar, agregando à sua bagagem profissional

importantes ensinamentos.

Ao militar profissional, não basta apenas saber marchar bem, ser um exímio

atirador e emitir ordens claras. É necessário um escopo cultural e um sólido

167 DE GAULLE, Charles. Por um Exército Profissional. Rio de Janeiro: José Olympio: Bibliex, 1996. p. 135. 168 Embora os alemães tenham vencido na Batalha de Creta, na 2ª GM, as pesadas baixas sofridas pelos pára-quedistas, levaram alguns generais alemães a acharem que o uso de grandes formações pára-quedistas era um erro.

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conhecimento das ciências em geral. Isso só se consegue com muita dedicação à

profissão e muita leitura seguida de reflexões.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

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CONCLUSÃO

“Quia nominor leo”169

Fedro

A profissão militar e a preparação de forças armadas em tempo de paz para

uma eventual guerra foram o ponto focal do presente livro. Contudo, por diversas

vezes, outras áreas relacionadas com o tema foram abordadas. Isso se deveu, em

grande parte, a complexidade do assunto e a tentativa do autor em abrir amplo

espectro de idéias. Mais do que concluir ou expor pontos de vista, o principal

objetivo deste trabalho foi o de concitar o leitor, tanto civil quanto militar, a pensar

sobre alguns temas relacionados com as forças armadas.

Além disso, num tempo em que o dinamismo dos acontecimentos, a

velocidade das descobertas e a gama de conhecimentos humanos se ampliam de

maneira vertiginosa, torna-se muito útil a reflexão sobre uma instituição ainda

cercada de opiniões conflitantes.

Por serem organizações tradicionalmente herméticas, as instituições militares,

em sua maioria, não possuem mecanismos de controle externo eficazes, que

cobrem, indaguem e corrijam erros eventuais170. Isso é extremamente perigoso e

danoso para ambos os lados. Os civis acabam por não conhecerem a profissão

militar, suas vicissitudes, suas dificuldades, suas falhas, sua maneira de pensar,

enfim, sua filosofia de trabalho. Por outro lado, os militares acabam achando que

somente eles podem opinar, falar e corrigir as eventuais falhas. Como sabemos, isso

não é verdade.

Uma idéia importante deve ser a de que não são apenas as forças armadas

que devem analisar como deve ser organizado o poder militar de um país. São as

autoridades constituídas, juntamente com as necessidades e possibilidades de

defesa do país, sua posição estratégica e seus anseios dentro do contexto

internacional, que devem contribuir na formulação da Política de Defesa de uma

Nação. Evidentemente, deverão ser auxiliadas e assessoradas por militares em

todas as fases do processo. Constitui erro crasso qualquer tentativa de solucionar 169 É o que nos conta Fedro em uma de suas fábulas. Perguntado por que ficava com a maior e melhor parte, respondeu: porque sou um leão. É a razão do mais forte sobre o mais fraco. 170 Destaca-se o Comitê de Defesa do Senado dos EUA, o Parlamento Britânico e Alemão como algumas exceções, caracterizando-se por firme controle das ações das suas respectivas forças armadas.

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problemas que envolvam assuntos militares sem o assessoramento destes, visto

que os militares, por excelência, possuem os conhecimentos técnicos e a vivência

necessária neste ramo do conhecimento.

No Brasil, a Marinha passa por um problema típico. Muitos não entendem que

não foi a Marinha sozinha que decidiu pela construção de um de submarino de

propulsão nuclear. Foi a Política de Defesa Nacional, emanada do executivo, que

criou essa necessidade de possuirmos uma plataforma naval ágil, silenciosa, de

longo alcance e de grande poder de fogo em função, dentre outras razões, do

extenso litoral brasileiro.

No que concerne especificamente aos militares, no desenvolvimento deste

livro, foi possível destacar que são muitas as áreas de atuação e de influência na

capacitação de um exército para a guerra. Além dos inúmeros setores que

necessitam ser trabalhados, há o problema econômico, notadamente nos países

mais pobres. Possuir e adestrar um exército em tempos de paz é difícil e caro.

Contudo, qualquer descuido em uma dessas áreas pode iniciar um processo

lento e inexorável de descaracterização e perda da sua eficiência operacional e

conseqüente queda do poder de combate. Tal processo é muito parecido com o

fenômeno físico da oxidação. Começa lento e invisível aos olhos. Quando nos

damos conta, o metal já está perdido e necessita ser reposto de forma urgente.

Os sinais de que um exército está perdendo sua capacidade de combate e

desvirtuando sua destinação constitucional são muitos, porém nem sempre claros

aos olhos de um observador menos atento. Além disto, não será apenas um sinal,

mas a conjugação de vários aspectos e fatores, levando-se em conta a sua

dimensão e sua profundidade, que vai traduzir se um exército está em franca

decadência de facto. Ou seja, a constatação da existência de um ou mais

problemas, não quer dizer, necessariamente, que esteja havendo uma corrosão em

um determinado exército. Muitas vezes esses problemas são pontuais e restritos a

alguns setores.

Nesse sentido, é oportuno destacar alguns desses sintomas, vistos nos

capítulos anteriores: politização dos quadros, liderança populista e tíbia, resistência

generalizada às mudanças propostas, transgressões e crimes militares constantes,

carreirismo exacerbado por parte dos quadros, falta sistemática de recursos,

excesso de personalismo na tomada de decisões (o chefe torna-se maior do que a

instituição), falta de conhecimento técnico dos quadros, descrença na capacidade

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dos chefes em resolver os problemas da força, falta de iniciativa dos quadros,

subserviência em lugar da disciplina consciente, supervalorização das atividades

meio e complementares em detrimento da atividade-fim (preparação para a guerra),

salários excessivamente baixos ou excessivamente altos (fora da realidade nacional

e sem valorizar o profissional), existência de castas dentro da instituição,

desprestígio por parte da cúpula governamental às suas forças armadas, entre

outros.

Em seu livro “Por Um Exército Profissional”, De Gaulle nos ensina:

“O Exército é, efetivamente, por sua própria natureza, refratário às mudanças.

Não, certamente, porque o senso do progresso falte a seus servidores, Provar-se-ia

mesmo, sem dificuldade, que dentre todas as instituições, é o Exército que fornece o

mais rico contingente de homens de pensamento, de ciência e de ação. Mas essa

largueza de espírito dos indivíduos não impede a cautela coletiva. Vivendo de

estabilidade, de conformismo e de tradição, o Exército receia, instintivamente, tudo o

que tende a modificar sua estrutura. Além disso, uma hierarquia severa filtra com

prudência, por vezes excessivas, os projetos que surgem. Enfim, os hábitos próprios

do tempo de paz criam, entre os organismos em que se elaboram as decisões,

rivalidades e ciumadas que se ompõem às rupturas de equilíbrio.”171

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

Retornando ao mote inicial das primeiras páginas, volto a pergunta: É da

natureza humana fazer a guerra? Quanto mais nos aprofundamos nesse assunto,

mais verificamos que a resposta é difícil, inconclusiva e relativa.

Difícil, porque devido a complexidade do assunto, ao posicionamento de

diversos estudiosos sobre o tema e ao moralismo e ética que o envolve, uma

resposta absoluta, seja ela negativa ou positiva, pode ser facilmente derrubada. A

única certeza é a de que a guerra, correta ou não, faz parte da nossa história e ainda

continuará existindo no horizonte histórico visível. Quem duvida, basta acompanhar

os desdobramentos dos atentados de 11 de setembro de 2001.

171 DE GAULLE, Charles. Por um Exército Profissional. Rio de Janeiro: José Olympio: Bibliex, 1996. p.138 e 139.

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Inconclusiva, na medida em que não há, nem do lado daqueles que explicam

a guerra como fenômeno social, nem daqueles que a condenam como aberração

comportamental, argumentos definitivos e contundentes que esgotem o assunto. A

cada fato histórico, novas indagações são feitas, novos posicionamentos são

tomados e novas argumentações e teorias são postas a prova.

Relativa, visto que varia em função dos valores da pessoa ou do grupo de

pessoas que a estuda e procura responder a essa clássica indagação. Religião,

ideologia política, formação humanística, profissão, época, cultura são algumas das

inúmeras variáveis que influenciam sobremaneira na resposta a nossa indagação.

Tito Lívio, já teorizando sobre o relativismo da guerra, dizia que “A guerra é justa

para aqueles aos quais é necessária e as armas são santas quando nelas

unicamente reside a esperança”172(grifo do autor)

Um exemplo atual desse relativismo foi a reposta dos habitantes dos EUA

diante dos ataques terroristas em 11 de setembro. Expressões como “guerra justa”,

“eixo do mal”, “retaliação proporcional”, “defesa da honra americana”, enfim,

palavras de ordem comuns aos radicais e extremistas mulçumanos surgiram no seio

daquela que se diz a população mais democrática e respeitadora dos direitos

individuais do mundo. Existe maior direito individual para um ser humano do que a

vida? Seres humanos são apenas os americanos? A chamada “guerra justa” não

seria a mesma “guerra santa” dos mulçumanos radicais? Isso tudo só demonstra o

relativismo das posições face ao momento que vivem os envolvidos e à dificuldade

que encerra o assunto.

Ora, se é uma resposta difícil, inconclusiva e relativa, o que se pode fazer?

Continuar estudando a guerra de forma cada vez mais ampla, buscando

mecanismos que a evitem é uma boa maneira para se entender e minimizar o

impacto que a guerra impõe à humanidade.

Além disso, é preciso, como foi visto no desenvolvimento desse livro,

preparar-se para a guerra pari passu com as tentativas de evitá-la, entendendo que

esta preparação é, também, uma forma de se dissuadir povos a entrarem em

conflito. Enquanto não existirem instrumentos ou fatos que afastem os conflitos

bélicos da face da Terra, todos os países têm o dever de preparar-se para ela. Não

se trata de corrida armamentista, idealismo bélico ou qualquer outro termo que

172 Apud MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe: Comentários de Napoleão Bonaparte. Rio de Janeiro: Hemus: Bibliex 1998. p.215.

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denote uma visão belicosa. A guerra é um fato na sociedade humana – se é anormal

ou não, é outro problema - assim como as quedas dos impérios, os grandes êxodos

humanos, enfim, ela é uma possibilidade mais ou menos remota – depende de

inúmeros fatores – para um país.

Em face disso, estar preparado para ela, é uma obrigação do Estado e não

uma decisão pessoal ou ideológica de um governante. A sobrevivência de uma

Nação, incluindo aí sua cultura, povo, idéias, crenças e aspirações, pode, um dia,

ser garantida unicamente manu militari. Se esta falhar, o preço pode ser até mesmo

a eliminação do Estado do cenário internacional. Império Austro-húngaro, URSS,

Congo, Yugoslávia e muitos outros nomes familiares, hoje são apenas história...

No que se refere especificamente aos exércitos, verifica-se que a paz é o

objetivo maior de qualquer força armada. Mas há um preço a se pagar: a constante

vigilância dessas instituições no sentido de que elas não se esqueçam que devem

se preparar para a guerra sempre. Todos os seus atos, todas as suas energias

devem ser direcionadas nesse sentido. Cada centavo da Nação gasto por um militar

deve ser no intuito de preparar-se, direta ou indiretamente, para um conflito mesmo

que distante, longínquo ou inimaginável. A maioria dos conflitos atualmente ocorrem

de uma hora para outra, não possibilitando muito tempo de preparação. Quantas

pessoas no mundo poderiam dizer que às 14h05 do dia 6 de outubro de 1973 o

Egito e a Síria atacariam Israel, ou que nos primeiros dias de abril de 1982 a

Argentina iria invadir as Ilhas Malvinas/Falklands? Somente aqueles envolvidos

diretamente no planejamento destas operações. Quanto à possibilidade de um

ataque terrorista nos EUA por volta das 08h35 do da 11 de setembro de 2001, não é

preciso comentar que se qualquer cidadão comum falasse disso no dia 10 de

setembro seria taxado de desequilibrado.

Esse cenário moderno, de incertezas, demonstra, de forma irrefutável, a

dinâmica dos conflitos atuais e a necessidade de estarmos preparados para

eventualidades. Hoje, falar sobre uma invasão na Amazônia poderia ser qualificado

como falta de visão estratégica ou necessidade de os militares justificarem sua

existência como Instituição. Talvez, num futuro – próximo ou não – tenhamos que

conviver com um conflito assim no norte do País.

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

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A profissão militar, principalmente nos países em desenvolvimento e que

querem atingir um nível mais elevado no concerto das nações ditas desenvolvidas,

deve ser discutida, estudada e aperfeiçoada. Ela não deve ser encarada como mera

abstração dos homens de farda. Assim como os militares estudam, lêem, discutem e

pensam os mais diversos campos do poder, os civis devem fazer o mesmo com

relação ao campo militar. Todos, militares e civis, terão muito a ganhar. Nicolau

Maquiavel, ao falar “Da relação entre o príncipe e os exércitos”, nos ensina que:

“Um príncipe deve, portanto, ter como único objetivo, único pensamento e

única preocupação a guerra e sua regulamentação e disciplina, pois é a única arte

que compete a quem comanda, detendo tão grande valor que não somente mantém

os que nascem príncipes no poder, como também muitas vezes faz ascender a

esse grau os homens de condição ordinária.” 173( grifo do autor)

Sobre a convivência utópica entre Nações desarmadas perante um mundo

cada vez mais preparado para o combate, que alguns advogam, ainda usamos

Maquiavel para a devida reflexão:

“Nenhuma proporção existe entre alguém armado e alguém desarmado e não

é razoável que quem esteja armado obedeça de bom grado a quem esteja

desarmado e que aquele que não disponha de armas possa viver em segurança

entre servidores armados”.174

Usando uma expressão cunhada por Bevin Alexander175, um país deve

vencer ou evitar guerras? Evidentemente, o primeiro passo é evitá-las. Todavia, isso

nem sempre será possível, e neste caso, deverá vencê-las.

Em ambas as situações, a existência de um exército forte, preparado,

adestrado, cônscio dos seus deveres e responsabilidades é fator imprescindível. O

conselho de Theodore Roosevelt176 para os homens que ia negociar os interesses

americanos – evitar a guerra - sintetiza essa idéia da necessidade de uma força 173 MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe: Comentários de Napoleão Bonaparte. Rio de Janeiro: Hemus: Bibliex 1998. p. 112. 174 Idem. p. 113. 175 Escritor americano, especialista em estratégia militar. Autor, dentre outras obras de How Great Generals Win (sem tradução para o português) e A Guerra do Futuro, publicado pela Bibliex. 176 Presidente dos EUA entre 1901 e 1909.

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armada para dar respaldos às decisões diplomáticas em tempos de crise: “Fale

baixo, mas leve um grande porrete”.177

Agindo assim, o Estado estará preparado para defender seus interesses em

todas as instâncias e fóruns internacionais, de forma justa, eficaz e legal, atendendo

aos anseios do seu principal cliente: o povo.

Se a conclusão é a síntese do que foi desenvolvido, o texto abaixo se encaixa

perfeitamente nesse objetivo. Essas poucas linhas resumem e concluem o teor e a

intenção desta pequena obra.

“Por conseguinte, o príncipe não deverá nunca desviar o pensamento do

exercício da guerra, devendo exercitar-se mais nos períodos de paz que nos tempos

de guerra, o que pode realizar de duas formas: uma através das ações e outra

através do pensamento178. Quanto às ações, além de manter seus homens bem

disciplinados e exercitados, será conveniente praticar regularmente a caça, deste

modo acostumando o corpo às durezas...e aprender a conhecer a natureza dos

lugares...

Filopêmeno, príncipe dos aqueus, recebeu dos historiadores, entre outros

elogios, o de que nos tempos de paz só pensava nos meios de conduzir a guerra. E

quando caminhava com eles: “Se os inimigos estivessem naquela colina e nos

encontrássemos com o nosso exército aqui, quem estaria em vantagem? Como

poderíamos investir contra eles sem desordenar nossas tropas? Se desejássemos

bater em retirada, como poderíamos faze-lo? Se eles batessem em retirada, como

poderíamos perseguí-los? E lhes indicava, andando por ali, todos os casos que

poderiam ocorrer a um exército. Escutava as opiniões deles e expressava a sua,

sustendando-a com argumentos racionais de forma que, habituado a essas

constantes reflexões, quando se achava realmente à frente dos exércitos não havia

para ele nunca uma situação imprevista que fosse incapaz de enfrentar e superar.

Com relação ao exercício do pensamento, o príncipe deve ler as obras de

História179 e aí considerar as ações dos grandes homens, observar como se

comportaram nas guerras, examinar os motivos de suas vitórias e derrotas de modo

177 Apud ALEXANDER, Bevin. A Guerra do Futuro. Rio de Janeiro: Bibliex, 1999. p. 203. 178 MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe: Comentários de Napoleão Bonaparte. Rio de Janeiro: Hemus: Bibliex 1998. p. 113. Napoleão comentaria em Elba, sobre esta colocação de Maquiavel: “Que segredo lhes revela, Maquiavel! Porém eles não te lêem nem lerão jamais! 179 Idem. p. 114. “Desgraçado do estadista que não as lê!“, segundo comentário de Napoleão.

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que possa estas evitar e aqueles imitar; e, sobretudo, deve agir como alguns

grandes homens do passado, que tomaram como modelo um homem que antes

deles fora louvado e glorificado...”

Um príncipe sábio deve observar maneiras semelhantes e jamais permanecer

ocioso nos tempos de paz, mas sim fazer destes tempos um capital de que se possa

valer na adversidade, a fim de que quando sua sorte mudar o encontre pronto para

resistir-lhe.”180 (grifos do autor)

Eis é a nossa missão: si vis pacem, para bellum181. Ou alguém ainda duvida?

ΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨΨ

180 Idem. p. 115. 181 “Se queres a paz, prepara-te para a guerra.”

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