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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO A PRODUÇÃO DE SENTIDOS E SIGNIFICADOS DE FEMINILIDADE E MASCULINIDADE EM AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR VILMA CANAZART DOS SANTOS Piracicaba, SP (2008)

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS E SIGNIFICADOS DE FEMINILIDADE E MASCULINIDADE EM AULAS DE

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

VILMA CANAZART DOS SANTOS

Piracicaba, SP (2008)

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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS E

SIGNIFICADOS DE FEMINILIDADE E MASCULINIDADE EM AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

VILMA CANAZART DOS SANTOS

ORIENTADORA: PROFª. DRª. MARIA NAZARÉ DA CRUZ

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Piracicaba, SP (2008)

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Santos, Vilma Canazart dos. A produção de sentidos e significados de feminilidade e masculinidade em aulas de Educação Física escolar / Vilma Canazart dos Santos – Piracicaba, 2008

96f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de

Ciências Humanas - Universidade Metodista de Piracicaba. Orientador: Profª Drª Maria Nazaré da Cruz

l.Produção de sentidos. 2. Masculinidade e feminilidade. 3. Educação Física escolar. I. Santos, Vilma Canazart dos. I I. Título.

CDU: 37

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BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Maria Nazaré Da Cruz (Orientadora)

Profª. Drª. Anna Maria Lunardi Padilha

Profª. Drª. Eliana Ayoub

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo gracioso dom da vida, pela força Nele encontrada e Dele

concedida... que com infinito amor concedeu-me a oportunidade de aprender mais,

de trabalhar com entusiasmo, em todos os momentos. Obrigada, Pai, por estar

comigo sempre.

À minha mãe Ana, pelo amor, pela dedicação, pelas orações e por dividir

comigo mais essa conquista. Obrigada por entender e permitir a continuidade dos

meus estudos, pela confiança e paciência em todos os momentos de minha

existência.

Aos meus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas, pelo imenso amor, por

acreditarem, torcerem e rezarem por mim, em especial à minha irmã Valdilene, que,

mesmo à distância, sempre me incentivou. Obrigada pelo carinho e companheirismo.

Ao meu marido Maximiliano, pelo carinho, constante incentivo, paciência e

apoio.

Ao Valdir e à Júlia, que tornaram possível a minha vinda para São Paulo,

acolhendo-me em sua residência por dois anos. Obrigada pelo carinho e pela ajuda.

À professora Nazaré, pela orientação, pelo ensinamento e pela confiança em

todos os momentos.

Às escolas, nas figuras de seus administradores, que abriram as suas portas.

À professora e ao professor de Educação Física, que permitiram a realização da

pesquisa em suas salas de aula, e aos alunos, pela imensa contribuição e pelo voto

de confiança.

À secretaria da Pós-Graduação – Angelise e Dulce, pelo carinho, atenção e

prontidão em ajudar; e aos demais funcionários, pela agradável convivência.

Ao meu colega Ângelo e às minhas amigas Patrícia e Martha Joly, do Curso

de Pós- graduação em Educação, pelas ricas trocas de experiências e

conhecimento. Vocês foram essenciais durante essa jornada e sabem o quanto sou

grata a cada um/a pela colaboração, pelo incentivo, pelas risadas e pela ótima

convivência.

Às professoras e ex-orientadoras Diná e Emmi, da Universidade Federal de

Viçosa, que mesmo de longe acompanharam o desenvolvimento desta dissertação.

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Aos/às demais amigos/as, próximos/as e distantes, que souberam entender

um “hoje eu não posso ir”, mas que sempre estiveram disponíveis e que sempre

estiveram comigo em um lugar muito reservado.

Ao Programa de Bolsa de Mestrado do Estado de São Paulo, num primeiro

momento, e à CAPES, num segundo momento, pela grande oportunidade e pelo

financiamento dos meus estudos.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior – CAPES, Brasil.

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“A maior felicidade é aprender a ultrapassar-se a si mesmo, a cada dia”.

(Madre Valentina)

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RESUMO

Nesta pesquisa foram analisados os sentidos e significados de feminilidade e masculinidade produzidos em relações sociais vividas em aulas de Educação Física. Para isso, os referenciais teóricos adotados estão ligados à perspectiva histórico-cultural e à concepção enunciativo-discursiva. Esses referenciais se fazem necessários e pertinentes, uma vez que Lev Vigotski e Mikhail Bakhtin compartilham de idéias como a importância do outro e da cultura na constituição da subjetividade; a orientação social da linguagem e dos discursos; a produção da polissemia no contexto interlocutivo; e a interdependência entre pensamento e linguagem e sua natureza histórico-cultural. Acompanhamos, durante quatro semanas, as aulas de dois professores, sendo uma do sexo feminino e outro do sexo masculino, em duas escolas de médio porte situadas em regiões periféricas da cidade de Sumaré. Os/as alunos/as das 5as séries – uma sala por escola – também constituíram o universo da pesquisa, perfazendo um total de 69 alunos/as, sendo 30 meninas e 39 meninos, com a média das idades igual a 13 anos. Utilizamos as observações diretas das aulas de Educação Física, buscando focalizar a tríade professor/a, aluno/a e atividades, bem como as relações intersubjetivas, isto é, as interações estabelecidas entre os/as atores/atrizes sociais, privilegiando a dimensão dialógica. Durante as observações acabaram ocorrendo conversas com o professor e com os/as alunos/as. Como forma de registro, foi utilizada a videogravação e o diário de campo. As leituras dos episódios, transcritos e recortados, aliadas à interlocução com a bibliografia sobre o tema feminilidade e masculinidade, Educação Física e o referencial teórico adotado, possibilitaram a construção, durante a análise, de quatro eixos temáticos: indícios de sentidos de feminilidade e de masculinidade socialmente construídos e culturalmente transmitidos; dinâmica das produções de sentidos, interações e tensões em aulas de Educação Física; mediação do/a professor/a; e o diálogo que a pesquisadora promoveu com os/as alunos/as. Foi possível identificar que muitas falas de alunas, alunos, professor e professora trazem fortes indícios da internalização de valores e discursos, social e culturalmente construídos, que participam da institucionalização de certas normas, práticas e prioridades para cada gênero, sem, contudo, serem necessariamente percebidos. Maneiras de ser, de se comportar, de realizar práticas corporais, bem como padrões estabelecidos para um ou para outro sexo, balizam sentidos e significados de feminilidade e masculinidade, que articulam passado e presente através de novos discursos e de novas maneiras de significar. Esses sentidos manifestam-se transitórios e, ao mesmo tempo, permanentes, porque já estão gravados em nossa memória, assumindo, contudo, formas sempre reinventadas. Palavras-chave: Produção de Sentidos. Feminilidade e Masculinidade. Educação Física escolar.

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ABSTRACT

In this research we examined the senses and meanings of masculinity and femininity produced in social relations lived in lessons of Physical Education. For this, the theoretical adopted benchmarks are linked to the historical and cultural perspective and design enunciative-discursive. These references are made necessary and appropriate, since Lev Vygotsky and Mikhail Bakhtin share ideas as the importance of culture and the other in the constitution of subjectivity, the social orientation of language and discourse, the production of polysemy in the interlocutive context; and the interdependence between language and thought and its historical and cultural nature. We followed, for four weeks, the lessons of two teachers, one female and one male, in two mid-size schools located in remote areas of the city of Sumaré. The 5th grades students- a room for school - also formed the universe of search, a total of 69 students, being 30 girls and 39 boys, with the average age equal to 13 years. We use the direct observations of the lessons of Physical Education, seeking focus the triad teacher, student and activities, and the inter relations, that is, the interactions between the set / the actors / actresses social, focusing on dialogical dimension. During remarks came occurring conversations with the teacher and with the students. As a record was used to video and diary of field. The readings of the episodes, transcripts and cut, coupled with the communication with the literature on the subject femininity and masculinity, Physical Education and theoretical reference adopted, enabled the construction during the review, four main thematic areas: evidence of the senses of femininity and masculinity socially constructed and culturally transmitted; dynamics of production of senses, interactions and tensions in lessons of Physical Education; mediation of the teacher; and the dialogue that promoted researcher with the students. It was possible to identify that many words of students, pupils, teachers and teacher bring strong evidence of the internalization of values and speeches, socially and culturally constructed, involved the institutionalization of certain standards, practices and priorities for each gender, without, however, not necessarily perceived. Ways to be, to behave, to conduct body practices and standards established for one or other sex meten senses and meanings of masculinity and femininity, which articulate past and present through new words and new ways to mean. These senses spoke up transient and at the same time, permanent, because already recorded in our memory, assuming, however, always reinvented forms. Keywords: Production of Senses. Femininity and Masculinity. Physical Education classes.

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 FEMINILIDADE, MASCULINIDADE E EDUCAÇÃO FÍSICA______ 11 1.1 Aproximando da temática _______________________________________ 11

1.2 Feminilidade e masculinidade: uma construção cultural e histórica _______ 16

1.3 Lá vem com a história... _________________________________________ 22

1.4 O revelar de uma outra história: a dimensão cultural e simbólica na/da

Educação Física__________________________________________________ 32

CAPÍTULO 2 A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE PELA ALTERIDADE _____________________________________________________ 37

2.1 A constituição do funcionamento humano ___________________________ 38

2.2 Linguagem: um instrumento semiótico _____________________________ 40

2.3 Os signos em Bakhtin __________________________________________ 44

2.4 Bakhtin e as práticas discursivas __________________________________ 45

CAPÍTULO 3 OS CAMINHOS DA PESQUISA____________________________ 50

3.1 Trajetória e sujeitos da pesquisa __________________________________ 50

3.2 Construção de dados ___________________________________________ 52

CAPÍTULO 4 À BUSCA DE SENTIDOS_________________________________ 54

4.1 Examinando os achados: as condições de produção de sentidos e

significados de feminilidade e masculinidade em aulas de Educação Física ___ 54

4.1.1 As primeiras impressões: indícios de sentidos e significados de

feminilidade e de masculinidade socialmente construídos e culturalmente

transmitidos ___________________________________________________ 56

4.1.2 Condensando a discussão: interações e tensões existentes em

aulas de Educação Física_________________________________________ 62

4.1.3 A mediação do/a professor/a__________________________________ 72

4.1.4 Dialogando com os/as alunos/as_______________________________ 78

4.2 Pra onde caminha essa história... _________________________________ 87

REFERÊNCIAS ____________________________________________________ 92

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Confraternização de final de ano dos funcionários da escola

A diretora distribui mimos aos professores e em seguida entrega a cada criança um presente. O Matheus, filho da professora Adriana, pega o seu presente e pede à sua mãe para abrir. Ela abre e fala:

Adriana: Olha Matheus! Um carrinho! [Matheus, vendo a cor do carrinho, que é rosa,

fecha a cara e fala] Matheus: Não quero! [e sai de perto] Adriana: Mas é um carrinho. Matheus: Rosa eu não quero! [as professoras ao redor acham engraçada a situação.

Adriana chama o Matheus e fala para ele pedir à diretora que troque seu presente. Ele pega o embrulho, vai atrás da diretora e pede que ela o troque. A diretora, ao ver o carrinho rosa, fala]

Dora: Ah, rosa não pode, né?! [e pega o embrulho e troca por outro. O Matheus leva o embrulho para sua mãe abrir e, quando ela desembrulha, ele abre um enorme sorriso]

Adriana: Um carrinho vermelho! [Matheus pega o carrinho e vai brincar] Não sei de onde ele tirou isso. Lá em casa não diferenciamos nada. [pausa] Só pode ser na escolinha.

Reunião da Família Canazart

Os meus sobrinhos – João Victor, Ana Laura, Juliana e Raphael – brincam na área de serviço. As duas primeiras crianças citadas começam a brigar. Um adulto interfere. Depois de alguns minutos, eles discutem novamente e minha irmã mais velha intervém na discussão e fala:

Geralda: Os meninos irão brincar de brincadeira de menino num canto e as meninas de

brincadeira de menina em outro lugar. [O João Victor, filho dela, discorda] João Victor: Nada a ver. Nós podemos brincar juntos. Brincadeiras de menina e

brincadeiras de menino. Geralda: Pode parar, João Victor. Cada um no seu canto e chega de brigas. [A Juliana

chama a Ana Laura para brincar na sala de visitas, enquanto o João Victor e o Raphael vão para o quarto ficar com a minha irmã mais nova e comigo]

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CAPÍTULO 1 FEMINILIDADE, MASCULINIDADE E EDUCAÇÃO

FÍSICA

... a história vem produzindo e sendo produzida por homens e mulheres e essa distinção não é apenas natural e biológica, mas também histórico-cultural: nós aprendemos a ser homens e mulheres nas relações que estabelecemos entre nós, mediados pelos significados e pelas práticas culturais. (FONTANA, 2003, p.35)

1.1 Aproximando da temática

A idéia de que é preciso definir uma pergunta para prosseguir numa

investigação tornou-se, inicialmente, incômoda, uma vez que esta pesquisa não

possibilitou de saída uma pergunta, mas fragmentos de duas histórias. Histórias

essas que remeteram a outras e, só então, suscitaram perguntas (LIMA, 2005).

Histórias passadas que parecem se fazer também presentes com discursos

impregnados de valores, concepções, expectativas sociais e crenças, implicando

diferenças para meninos e meninas, homens e mulheres, pertencentes a uma dada

cultura. Nos fragmentos das duas histórias transcritas, essas diferenças acabam por

gerar conflitos e tensões, que não estão apenas lá fora, distantes, mas estão se

fazendo e refazendo, constantemente, próximas, no cotidiano, e têm a ver com as

nossas práticas sociais e, também, com a minha prática pedagógica.

Conflitos e tensões que geraram em mim inquietações, tomando proporções

maiores à medida que percebia que não se tratava apenas de buscar soluções

momentâneas, mas era mister compreender o processo de constituição do ser

humano, pois, apoiada em um referencial cultural percebo que é nas relações com o

outro que os modos de compreensão e de elaboração do mundo e de si mesmo são

produzidos, reproduzidos e transformados num movimento contínuo que articula

dialeticamente o sujeito e a sociedade.

Todavia, percebi que tal inquietação sobre a diferenciação, que se mostrava

constante entre meninas e meninos, homens e mulheres no que diz respeito,

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particularmente, às práticas corporais, apresentava elementos sociais e históricos se

entrelaçando de forma intensa, na qual uma abordagem estruturada em termos

culturais ainda não se apresentaria suficiente para compreender a identidade

subjetiva dos sujeitos masculinos e femininos, bem como suas relações.

Essa reflexão levou-me a buscar uma compreensão da Educação e da

Educação Física na perspectiva do gênero, necessitando, para isso, empreender

uma nova construção. O estudo de gênero permitiu-me o desvelar ou, quem sabe, o

revelar de sentimentos e crenças que com o tempo fui desenvolvendo, mas que

agora passam a determinar uma nova atitude diante da vida e da minha profissão.

Não se trata apenas de um novo conhecimento que foi assimilado, e sim de uma

construção que, tenho certeza, estará sendo implementada durante a minha vida,

atingindo ou beneficiando aqueles/as que estão à minha volta.

Dessa forma, voltei-me com um novo olhar para a Educação Física e,

conseqüentemente, para a minha inquietação, tendo em vista que novos aspectos

foram identificados e outros que pareciam "naturais" foram desmistificados e

fundamentados, questionamentos foram compartilhados, concepções e percepções

foram desenvolvidas; entretanto, algumas aflições foram agravadas, aumentando a

minha responsabilidade como profissional que trabalha com o corpo, pois, conforme

Moreira (1995, p.30):

A corporeidade é, existe, e através da cultura ela possui significado. Daí a constatação de que a relação corpo-educação, por meio da aprendizagem, significa aprendizagem da cultura – dano ênfase aos sentidos dos acontecimentos –, e aprendizagem da história – enfatizando aqui a relevância das ações humanas. Corpo que se educa é corpo humano que aprende a fazer história fazendo cultura.

Assim, as diferenças de gênero interferem no processo de construção de

nossa subjetividade e na constituição do nosso ser e fazer profissional. Elas

imprimem, segundo Fontana (2003), especificidades e nuances a esses processos,

do mesmo modo que a escola mediatiza o modo como mulheres e homens

vivenciam a condição feminina e masculina e a difundem, pois, no ato educativo, os

gestos, os ritos, assim como os conteúdos e as técnicas de ensino, não são naturais

nem neutros, encarnando e transmitindo, ao mesmo tempo, uma certa maneira de

perceber o mundo e o(s) outro(s). Dessa forma, nossos/as alunos/as apreendem,

também no cotidiano escolar, modos velados de ser mulher e ser homem,

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concepções de feminilidade e de masculinidade, que emergem por entre aquilo que

lhes dizemos, pelos dizeres dos colegas e pelo muito que silenciamos.

Portanto, o processo de educação do ser humano presume uma construção

social e corporal, implicando diretamente o processo de ensino-aprendizagem de

valores, conhecimento e gestos corporais tidos como femininos ou masculinos, que

se estendem a todos os espaços sociais e que acabam por configurar em diferentes

práticas corporais.

Entendendo que o fenômeno educacional, antes de mais nada, é, conforme

Faria (1998), um fenômeno social que compreende a múltipla ação de inúmeras

variáveis agindo e interagindo ao mesmo tempo, numa fluência dinâmica de

mudança de todo ser humano, haveria de buscar conhecer os discursos dos

indivíduos, uma vez que, de acordo com a teoria adotada, tomamos esses discursos

como constitutivos do pensamento.

Nessa perspectiva, os/as alunos/as internalizam as informações transmitidas

pelo meio social, reelaboram e criam idéias sobre a maneira de ser e agir das

pessoas com quem dialogam e convivem, iniciando um ciclo em que surgem as

construções sociais de masculinidades e feminilidades dotadas de alta eficácia

simbólica.

Hoje, as relações de gênero estão evidenciadas em diversas áreas de

atuação das pessoas, tendo em vista as transformações que vêm ocorrendo na

sociedade. Ao olharmos a produção acadêmica brasileira, relacionada com o campo

de estudos de gênero, constatamos algumas tentativas de diálogo entre os diversos

campos do saber. Isto tem se dado, sobretudo, nos últimos anos, considerando o

caráter plural da concepção de feminino e de masculino vigente na atual sociedade,

na qual o conceito de gênero tem permitido, entre outras instâncias, a compreensão

de construções históricas em torno do sexo, enfatizando os mecanismos e as

instituições culturais e sociais que estão envolvidas nessa construção.

De forma parecida, há cada vez mais atenção dada, nas ciências humanas, à

centralidade das práticas corporais na formação de subjetividades e identidades

coletivas, embora nem sempre salientada sua dimensão de gênero.

Pesquisas que conciliem esses dois universos – gênero e práticas corporais –

podem jogar luz sobre a história e sobre as tendências atuais desse espaço de

conflitos e lutas sociais e simbólicas significativos. Nota-se, portanto, que a produção

acadêmica brasileira carece de estudos nesta área.

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Nesse contexto, torna-se urgente a necessidade de estudos e reflexões que

conciliem esses universos, sobretudo calcados no princípio de que os corpos são

significados na e pela cultura, e por ela continuamente ressignificados. Deve-se levar

em consideração também que a escola e particularmente a Educação Física

Escolar, devido à sua própria história, constituem dimensões importantes das

apropriações de feminilidade e masculinidade.

Essa necessidade nos direciona a uma maior aproximação aos estudos

culturais associados à feminilidade e masculinidade como mais um recurso de

compreensão e explicação das transformações que acompanham a sociedade,

especialmente no que se refere ao impacto dessas mudanças sobre o universo das

práticas corporais em aulas de Educação Física.

Desse modo, a questão de pesquisa é: quais são os sentidos e significados

de feminilidade e masculinidade que vão sendo produzidos em aulas de Educação

Física?

Para isso, acompanhamos durante quatro semanas as aulas de dois

professores, sendo uma do sexo feminino e outro do sexo masculino, em salas de 5ª

série do ensino fundamental – uma sala por escola selecionada. Nesse ínterim,

foram videogravadas as aulas de Educação Física, buscando focalizar a tríade

professor/a, aluno/a e atividades, bem como as relações intersubjetivas, isto é, as

interações estabelecidas entre os/as atores/atrizes sociais, privilegiando a dimensão

dialógica.

O primeiro capítulo deste texto apresenta a temática da feminilidade e

masculinidade, através de um passeio prévio nas discussões sobre o gênero e em

suas implicações na construção de identidades, com a ajuda de autoras/es como

Louro, Scott, Meyer, Sousa & Altmann e Scharagrodsky. Ao abordar a Educação

Física, apresenta algumas considerações a respeito de sua história, trazendo

estudos de autores/as que abordam questões que envolvem o corpo, a sociedade e

a Educação Física. Entre esses estudos estão o de Soares, Goellner e Castellani.

Algumas referências sobre a dimensão cultural e simbólica na/da Educação Física

também são apresentadas por meio de autores/as como Daolio, Soares, Saraiva,

entre outros/as, constituindo parte do referencial teórico desse estudo.

No segundo capítulo é apresentada a fundamentação teórica. Para interpretar

os episódios recortados e escolhidos para o desenvolvimento da pesquisa,

utilizamos a perspectiva histórico-cultural e a concepção enunciativo-discursiva. No

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que tange à perspectiva histórico-cultural, apoiamo-nos em seu principal

representante – Vigotski, que busca a sustentação de teorias sobre os processos

humanos, possibilitando, assim, discussões acerca do desenvolvimento humano.

Buscamos fundamentação teórica também em Bakhtin para analisar os discursos, as

falas e os gestos captados durante as interações sociais de professor/a e/ou

alunas/os em aulas de Educação Física, utilizando a sua concepção enunciativo-

discursiva.

No terceiro capítulo são abordados os caminhos percorridos pela

pesquisadora na busca de um campo empírico para realizar a pesquisa, bem como

os instrumentos e formas de registros utilizados para a construção de dados, que

foram analisados à luz do referencial teórico adotado e na perspectiva de outros/as

autores/as da Educação Física.

O quarto capítulo remete à apresentação e às análises dos episódios,

contendo discursos de alunos, alunas, professora e professor. Visando a

compreender os sentidos e significados de feminilidade e masculinidade produzidos

em aulas de Educação Física, procurou-se nos enunciados sua dimensão axiológica,

visto que todo enunciado é socialmente dirigido e determinado pela situação social

imediata e pelo meio social, o que faz com que ele emerja sempre num contexto

cultural impregnado de significados e sentidos.

Torna-se mister dizer que não pretendemos comparar as práticas desses

professores, e sim estabelecer aproximações que permitam melhor compreensão da

produção de sentidos e significados de feminilidade e de masculinidade, uma vez

que, partindo da concepção de Vigotski e Bakhtin, elaboramos o mundo e nos

elaboramos no mundo pela palavra do outro.

A fim de trazer algumas contribuições para a presente temática, esperamos

que esta pesquisa possa contribuir para um contínuo e profundo debate e suscitar

outras questões e análises sobre possíveis articulações entre a feminilidade e

masculinidade e a Educação Física Escolar, necessárias para um permanente

repensar da área. Não cremos em soluções definitivas para as tensões provocadas

pelas multiplicidades de sentidos e significados de feminilidade e masculinidade;

entretanto, não há dúvidas de que essas tensões nos fazem refletir e buscar outros

modos de ação.

Por fim, pensamos que esse é apenas o início de um processo que não se

finda com a formação, mas que tem a necessidade de perdurar numa perspectiva de

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constantes retomadas e no dia-a-dia da prática pedagógica de todos/as os/as

profissionais da Educação Física, bem como da Educação.

Apenas o começo...

1.2 Feminilidade e masculinidade: uma construção cultural e histórica

(...) a identidade não é algo dado, mas está em permanente construção e realiza-se nos variados espaços públicos por onde os indivíduos circulam, negociam e renegociam com os outros. (FOUCAULT, 1988, p.86)

Alvo de constantes análises oriundas dos mais diversos campos do saber,

talvez o corpo nunca tenha sido tão discutido, fragmentado e cultuado como nos

últimos tempos. O corpo, inserido numa rede de relações sociais, é uma construção

cultural, um conjunto de signos e marcas, produto de discursos e representações1

que buscam fixar sobre ele identidades. Identidades essas apontadas por Louro

(1997) como sendo sexuais e de gênero.

A autora identifica como sexuais aquelas identidades que se constituiriam

através das formas pelas quais os sujeitos vivem sua sexualidade, com parceiros/as

do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Essa

afirmação nos leva a tomar toda identidade sexual como um constructo instável e

mutável, em permanente estado de construção e transformação.

Para entender o gênero como constituinte das identidades dos sujeitos, Louro

(1997, p.28) explicita que é possível pensar essas identidades de modo semelhante

às sexuais, pois,

elas também estão continuamente se construindo e se transformando. Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e

1 O termo representação será entendido no trabalho como um modo de produção de significados na cultura,

envolvendo as práticas de significação e os sistemas simbólicos através dos quais estes significados são construídos.

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esses arranjos são sempre transitórios, transformando-se não apenas ao longo do tempo, historicamente, como também transformando-se na articulação com as histórias pessoais, as identidades sexuais (...).

Desse modo, podemos considerar que, tanto na dinâmica do gênero como na

dinâmica da sexualidade, as identidades não são dadas ou acabadas num

determinado momento, mas elas estão sempre se constituindo social e

historicamente e são, portanto, passíveis de transformação.

Segundo Louro (1997), ao aceitarmos que a construção de gênero é histórica

e se faz incessantemente, estamos entendendo que as relações entre homens e

mulheres, os discursos e as representações dessas relações estão em constante

mudança.

Mas, afinal, o que vem a ser gênero?

Partindo da necessidade de se compreender e explicar a condição de

subordinação social das mulheres na civilização ocidental, exigência feita pelos

movimentos feministas ressurgidos nos anos 60 do século XX, pode-se constatar

que não existiam trabalhos sobre a mulher nas áreas sociais e humanas, tampouco

uma história que mostrasse a gênese e o desenvolvimento da dominação dos

homens sobre as mulheres, relata Meyer (2003).

Nesse contexto, as feministas se viram frente ao desafio de demonstrar que

não são características anatômicas e fisiológicas nem desvantagens

socioeconômicas que definem as diferenças apresentadas como justificativa para

desigualdades de gênero. Na contraposição dessa idéia, algumas feministas

passariam a argumentar que

são os modos pelos quais características femininas e masculinas são representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pelas quais se re-conhece e se distingue feminino de masculino, aquilo que se torna possível pensar e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir, efetivamente, o que passa a ser definido e vivido como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histórico. (MEYER, 2003, p.14)

O termo gênero, então, recebe diferentes definições, mas todas elas

convergem em um ponto:

Com o conceito de gênero pretendia-se romper com a equação na qual a colagem de um determinado gênero a um sexo anatômico que lhe seria “naturalmente” correspondente resultava em diferenças inatas e essenciais, para argumentar que diferenças e desigualdades entre mulheres e homens

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eram social e culturalmente construídas e não biologicamente determinadas. Como construção social do sexo, gênero foi (e continua sendo) usado, então, (...) como um conceito que se opunha a – ou complementava a – noção de sexo e pretendia referir-se aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a cultura inscrevia sobre o corpo sexuado. (MEYER, 2003, p.15)

A autora menciona ainda que o conceito de gênero seria ressignificado e

complexificado, em especial por Scott (1995) e Louro (1997).

Para Scott (1995, p.86), a definição de gênero repousa sobre a relação

fundamental entre duas proposições: “o gênero é um elemento constitutivo de

relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e gênero é

uma forma primária de dar significado às relações de poder”. Ao desenvolver essas

proposições, completa dizendo que, “como um elemento constitutivo de relações

sociais baseadas nas diferenças entre os sexos”, o gênero implicaria quatro

elementos: os símbolos culturalmente disponíveis numa sociedade que “evocam

representações simbólicas (e com freqüência contraditórias)”; os conceitos

normativos (doutrinas religiosas, educativas, políticas, etc.) que “expressam

interpretações dos significados dos símbolos”; as instituições sociais, a organização

política, social e econômica; as identidades subjetivas – “as formas pelas quais as

identidades genereficadas são substantivamente construídas” pelos indivíduos

(p.86-88). Assim, o gênero seria um campo no qual a história foi e ainda é vivida.

Louro (1997, p.20-21) afirma que

é necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos.

A autora ainda justifica que, ao dirigir o foco para o caráter social, não há a

pretensão de negar a biologia dos corpos sexuados, mas busca-se enfatizar,

deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características

biológicas. Dessa forma, o conceito pretende se referir ao modo como as

características sexuais são compreendidas e representadas ou, dito de outro modo,

como essas características são trazidas para a prática social e integradas ao

processo histórico.

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De acordo com Meyer (2003), o conceito de gênero propõe um afastamento

de análises que tendem a focalizar apenas papéis e funções de mulheres e homens

para aproximar-nos de abordagens mais amplas, que consideram que as instituições

sociais, os conhecimentos, os símbolos, as normas e as políticas de uma sociedade

são constituídos e atravessados por representações e pressupostos de feminino e

de masculino, ao mesmo tempo em que estão implicados com a produção e

ressignificação dessas representações.

O conceito passa a ser usado, então, conforme o dizer de Louro (1997), com

um forte apelo relacional, já que é no âmbito das relações sociais que se constroem

os gêneros. Nas palavras de Sousa & Altmann (1999), gênero é uma categoria

relacional porque leva em conta o outro sexo, em presença ou ausência.

Ao mencionar o aspecto relacional do gênero, Scharagrodsky (2004, 2007)

afirma que não se pode entender a feminilidade sem dar conta da masculinidade e

vice-versa, pois os problemas vinculados à construção das feminilidades estão

diretamente relacionados à construção das masculinidades. Isso implica que as

mudanças em um coletivo geram necessariamente modificações sobre o outro

coletivo, o que nos leva a considerar que os gêneros se fazem e se refazem

continuamente ao longo da existência, e essas mudanças, na visão de Altmann

(2006), evidenciam que polaridades de gênero e de sexualidade são socialmente

construídas e, portanto, passíveis de problematização e desconstrução.

Para Louro (1997), na medida em que o conceito afirma o caráter social do

feminino e do masculino, obriga aquelas/es que o empregam a levar em

consideração as distintas sociedades e os diferentes momentos históricos de que

estão tratando, o que passa a exigir que se pense de modo plural. Haveria conceitos

de feminino e de masculino, social e historicamente diversos, transformando-se ao

longo do tempo.

Dessa forma, este estudo será fundamentado em posicionamentos que

utilizam o conceito de gênero como uma construção sócio-histórica das

diferenciações baseadas no sexo, o que vale dizer que a feminilidade e a

masculinidade, ao contrário do que algumas correntes defendem, não são

constituídas propriamente pelas características biológicas, mas são o produto, em

constante processo de transformação, de tudo o que se diz ou representa de tais

características.

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Em um dos seus trabalhos, Scharagrodsky (2007) afirma que nenhum ser

humano é exclusivamente homem ou mulher, masculino/a ou feminino/a ou outra

opção possível. Cada um/uma é resultado do entrecruzamento de múltiplos atributos

e funções, os quais têm uma importância central na configuração da própria

identidade. De acordo com Louro (1997, p.34), “uma das conseqüências mais

significativas da desconstrução dessa oposição binária reside na possibilidade que

abre para que se compreendam e incluam as diferentes formas de masculinidade e

feminilidade que se constituem socialmente”.

Assim, tomaremos, a princípio, feminilidade e masculinidade como

construções culturais que se produzem e reproduzem socialmente e que não podem

ser definidas fora de um contexto, ou seja, de condições históricas e culturais em

que o indivíduo se constitui. Essa decisão conduz-nos a reiterar que feminilidade e

masculinidade estão em permanente transformação, não sendo determinações fixas,

e possuem uma multiplicidade de formas de ser homem ou mulher em nossa

sociedade, multiplicidade esta em que afloram inúmeras tensões, conflitos e

cenários.

Parafraseando Scharagrodsky (2007), somos o que somos não só porque

nascemos com certos órgãos sexuais, mas também porque aprendemos a ser

homens e mulheres de uma determinada maneira e em espaços, como no seio da

família, no meio sociocultural e no âmbito escolar. Enfim, definir-nos por ser homem

ou mulher faz parte de um processo cultural e de socialização. A escola detém um papel muito importante no processo de transmissão

cultural, e nela encontramos papéis atribuídos socialmente aos homens e às

mulheres, determinados através do tempo e culturalmente ancorados em diversas

atividades, constituindo-se, portanto, em construções históricas e, como tais,

modificáveis.

Sousa (1994), ao refletir sobre o ensino da Educação Física na escola,

destaca a importância do processo de educação na construção de sujeitos

masculinos e femininos e expõe que essa construção não se limita ao social, pois,

corporalmente, cada ser humano aprende gestos, movimentos e falas a ele

disseminados pela cultura.

Segundo Werneck (1996), as instituições educacionais utilizam-se de

diferentes mecanismos, ora disseminando conteúdos e metodologias diferenciados

para mulheres e homens, ora caracterizando sexualmente os gestos ou impondo

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papéis que reforcem e/ou produzam os sentidos de corpo frágil e emotivo feminino e

de corpo forte e racional masculino, colaborando, assim, na inculcação de valores

sexistas.

Nessa perspectiva, admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais

são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes destes (LOURO, 1997).

O corpo, como uma construção social e cultural, aparece fortemente

modelado por práticas sociais de diferentes tipos, entre elas as práticas corporais

e/ou esportivas. Conforme Scharagrodsky (2007, p.24), nas aulas de Educação

Física, “o corpo se converte em um terreno de disputa no qual múltiplos significados

se inscrevem sobre ele, configurando uma determinada cultura somática. Tal cultura

somática nunca é fixa e acabada, mas é instável, dinâmica e se atualiza

permanentemente”.

De acordo com o autor supracitado, aceitar que as feminilidades e as

masculinidades são heterogêneas, produto de construções sociais complexas e

contraditórias, resulta em especial estímulo, já que isso implica que muitas práticas e

discursos, fortemente arraigados no campo da Educação e da Educação Física,

podem modificar-se e ser dotados de novos sentidos e significados.

No entanto, tratar de feminilidades e masculinidades na Educação e na

Educação Física requer que antes se ressalte que os gestos corporais estão

presentes não só nessas áreas, como também na vida cotidiana. Sousa & Altmann

(1999) esclarecem ainda que os fatores sociais determinam as expectativas de uma

pessoa em relação a um ou mais indivíduos e que, dentro de diversas culturas, a

forma de educar homens e mulheres presume uma construção social e corporal,

implicando diretamente no processo de ensino/aprendizagem de valores como

conhecimentos, costumes e gestos corporais tidos como femininos ou masculinos.

Portanto, o processo de educação do ser humano implica a construção social

e corporal dos sujeitos, no ensino-aprendizagem de valores e posturas distintas para

os dois sexos, que se estendem a todos os espaços sociais implicados na produção

e no intercâmbio de significados (STUART apud SOUSA & ALTMANN, 1999). Nesse

sentido, praticamente, todo gesto, todo movimento corporal foi – e ainda perdura –

distinto para mulheres e homens, entre os quais se pode mencionar o uso das mãos,

o modo de sentar e posicionar as pernas, o jeito de andar, enfim, muitas posturas

são marcadas para um ou para outro sexo.

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Ainda que a preocupação com as identidades de gênero esteja presente em

todas as situações escolares, afirmamos que talvez ela se torne particularmente

explícita numa área que está, constantemente, voltada para o domínio do corpo,

pois, conforme relata Louro (1997), muitos/as estudiosos/as do gênero, em especial

aqueles/as que se dedicam ao estudo das masculinidades, destacam o papel dos

esportes e da ginástica no processo de formação dos sujeitos.

1.3 Lá vem com a história...

Território tanto biológico quanto simbólico, processador de virtualidades infindáveis, campo de forças que não cessa de inquietar e confortar, o corpo talvez seja o mais belo traço da memória da vida. Verdadeiro arquivo vivo, inesgotável fonte de desassossego e de prazeres, o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua subjetividade e de sua fisiologia, mas ao mesmo tempo, escondê-los. Pesquisar seus segredos é perceber o quanto é vão separar a obra da natureza daquela realizada pelos homens: na verdade, um corpo é sempre “biocultural”, tanto em seu nível genético, quanto em sua expressão oral e gestual. (SOARES, 2006, p.3)

Não pretendemos realizar nesta parte do trabalho uma discussão mais

aprofundada a respeito das causas da biologização da Educação Física brasileira.

Alguns trabalhos históricos deram conta dessa tarefa (Castellani Filho, 1988; Betti,

1991). Entretanto, algumas considerações se fazem pertinentes.

O exercício físico, denominado ginástica desde o século XVIII, foi, de acordo

com Soares (2001), o conteúdo curricular que introduziu na escola um tom de

laicidade, uma vez que passava a tratar o corpo, território até então proibido pelo

obscurantismo religioso. Entretanto, analisando o olhar que foi dirigido ao corpo,

depara-se com seu caráter conservador e utilitário. Segundo a autora, o estudo do

corpo dos indivíduos, compreendido como importante instrumento da produção,

passou a ser rigorosamente organizado sob a luz de uma ciência – a ciência

biológica.

Esse conhecimento do corpo biológico dos indivíduos trouxe algumas

conseqüências segundo Soares (2001). Se, de um lado, teve um significado de

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libertação, uma vez que evidenciou as causas das doenças2, como também

sistematizou alguns cuidados em relação ao corpo, entre os quais o exercício físico,

de outro, limitou profundamente o entendimento do ser humano como um ser de

natureza social.

A Educação Física, filha do positivismo, absorveu a sua concepção de ser

humano como um ser puramente biológico e orgânico, que precisa ser disciplinado.

Evidenciar os aspectos da biologização e naturalização do homem e da sociedade se faz necessário, uma vez que a Educação Física, no século XIX, constitui-se basicamente, a partir de um conceito anatomofisiológico do corpo e dos movimentos que este realiza. O seu referencial estará carregado de intenções como: regenerar a raça, fortalecer a vontade, desenvolver a moralidade e defender a pátria. As ciências biológicas e a moral burguesa estão na base de suas formulações práticas. (SOARES, 2001, p.49)

Dessa forma, a autora destaca que, se o espaço dado à Educação Física, por

um lado, representa avanço para a Educação ao compor mais um elemento laico na

sua estruturação, por outro, representa atraso ao significar a disciplinarização de

movimentos, pois se configura como mais um meio, absolutamente dominado pela

burguesia, para veicular o seu modelo de corpo, de atividade física, enfim, a sua

visão de mundo.

Conforme a obra de Soares (2001), a partir do ano de 1800 surgem em

diferentes regiões da Europa formas distintas de conceber os exercícios físicos, que

receberão o nome de métodos ginásticos e são divulgadas para outros países fora

do continente europeu.

A partir de conhecimentos e de teorias gestadas no mundo europeu, destaca

Soares (2001), os médicos desenham um outro modelo para a sociedade brasileira e

contribuem para a construção de uma nova ordem econômica, política e social.

Nessa nova ordem, o pensamento médico higienista constrói um discurso normativo,

disciplinador e moral sobre um novo sujeito, sem o qual a nova sociedade idealizada

não se tornaria realidade.

Por volta da segunda década do século XIX, a autora citada explicita que é

desencadeado um vigoroso projeto de eugenização da população brasileira e,

“conforme as afirmações dos médicos higienistas, a disciplina do físico seria apenas

2 Acreditava-se, até então, que as doenças eram castigos de Deus.

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um instrumento, e a Educação Física passaria então a constituir-se em elemento de

extrema validade para colocar em prática o processo disciplinar dos corpos” (p.79).

Um aspecto considerado pelos médicos como básico para o desenvolvimento

dessa Educação Física, relata Soares (2001), é que toda e qualquer prescrição de

exercícios físicos dar-se-ia sempre em função das características sexuais e da faixa

etária das crianças. O único modo comum a todas, de exercitar o corpo, seria a

ginástica3, observando-se apenas as variações de intensidade e complexidade em

relação às características citadas. A universalidade da ginástica deve-se à sua

definição genérica e utilitária – como um trabalho de base. Contudo, ela não se fazia

completa no que se refere ao trabalho de educação do corpo, sendo necessários

exercícios específicos que pudessem desenvolver os órgãos dos sentidos, assim

como atender aos preceitos da elegância, o que também leva à variação destes

entre os sexos.

O exercício físico era, objetivamente, mais um valioso canal para a medicalização da sociedade. Era necessário adequá-lo, discriminá-lo por idade e por sexo, atendendo, assim, exclusivamente ao reconhecimento da existência das diferenças biológicas das crianças. Quem detinha o conhecimento sobre estas diferentes capacidades biológicas das crianças, senão os médicos? Ora, se eram os médicos que detinham aquele saber, somente eles poderiam prescrever mais este remédio: o exercício físico, com todas as suas particularidades e para todos os corpos particulares. (SOARES, 2001, p.81)

Ao trazer a discussão dos exercícios físicos, Soares (2001) expõe que nem

sempre os argumentos médicos foram suficientes para romper com os preconceitos

que ainda cercavam a Educação Física, pois havia aqueles que a consideravam

imoral, especialmente no que diz respeito à sua aplicação às mulheres. Por sua vez,

aqueles que a defendiam acreditavam que “o corpo feminino devia ser fortalecido

pela ginástica adequada ao seu sexo e às peculiaridades femininas”, uma vez que

era “a mulher que geraria os filhos da pátria, o bom soldado e o elegante e civilizado

cidadão” (SOARES, 2001, p.83).

Dessa maneira, Goellner (2003) explana que o corpo feminino passa a ser

observado, manipulado, construído e vigiado, sofrendo diversas intervenções. Uma

dessas intervenções se refere às práticas corporais e esportivas, que são

identificadas como possibilidades de controle e também como experiências que

3 Aqui, a autora se refere à ginástica – uma série de movimentos simples e combinados, dispostos em uma certa

ordem – engendrada pelos franceses, particularmente o trabalho desenvolvido por Amoros.

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movimentam e libertam os instintos. Apesar de serem incentivadas, essas práticas

estão sujeitas a diversas regras, com a intenção de evitar transgressões além

daquelas admitidas como normais ao organismo e ao comportamento femininos.

Alguns autores4 mantiveram uma preocupação com os exercícios físicos

destinados à mulher, levando a estudos e discursos sobre a ginástica feminina. Essa

preocupação com a saúde da mulher, particularmente no que diz respeito à sua

função de reprodutora, está, como afirma Soares (2001), marcadamente presente

nos discursos e nas propostas de intelectuais brasileiros, como Rui Barbosa e

Fernando de Azevedo, que não pouparam páginas em seus trabalhos para enaltecer

os efeitos higiênicos dos exercícios físicos sobre as formas feminis.

Em suas primeiras tentativas para compor o universo escolar brasileiro, a

Educação Física surge como promotora da saúde física, da higiene física e mental,

da educação moral e da regeneração ou reconstituição das raças. Dessa maneira,

higiene, raça e moral pontuam as propostas pedagógicas e legais que contemplam a

Educação Física.

Em seu trabalho, Soares (2001) traz o conjunto de medidas5 que Rui Barbosa

sintetiza como necessárias para que a ginástica se integre aos currículos escolares.

Entre elas, citamos:

1º - Instituição de uma secção especial de ginástica em cada escola normal. 2º - Extensão obrigatória da ginástica a ambos os sexos na formação do professorado e nas escolas primárias de todos os graus, tendo em vista, em relação à mulher, a harmonia das formas feminis e as exigências da maternidade futura (p.92-93).

Essa síntese, além de evidenciar o caráter obrigatório do ensino da ginástica,

também a estende a ambos os sexos, preservando, porém, para a mulher, as

funções a serem por ela desempenhadas na sociedade – as de “mulher/mãe”. A

ginástica destinada à mulher deveria, então, acentuar as suas formas feminis e,

desse modo, compor o ideário burguês sobre as diferenças da mulher em relação ao

homem, expõe a autora mencionada.

Essas medidas declaradas por Rui Barbosa expressam preocupações com a

procriação e com a saúde física de homens e mulheres; no âmbito dessas

4 Em seu livro, Soares (2001) menciona os trabalhos de George Demeny e de Philipe Tissié, que foram bastante

utilizados no Brasil por Rui Barbosa (1942, 1946, 1947) e Fernando de Azevedo (1960). 5 Tais medidas constituem o “parecer de n. 224 sobre a Reforma Leôncio de Carvalho, sob o título Reforma do

Ensino Primário e várias Instituições Complementares da Instrução Pública” (SOARES, 2001, p.92).

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preocupações, Soares (2001) explica que a Educação Física surge como

instrumento ideal para forjar indivíduos saudáveis e úteis para ocupar funções

específicas na produção. Para preservar a força de trabalho, a elite brasileira se

apóia em discursos e práticas que definem papéis e funções a serem

desempenhados por homens e mulheres.

Nesse quadro, a mulher passa a merecer uma atenção especial devido à sua

grande tarefa de gerar e criar filhos robustos e saudáveis para a pátria. Como nos

conta Goellner (2003, p.69), “ao corpo feminino, que se quer forte e saudável porque

útil à sociedade ao presenteá-la com corpos igualmente fortes e saudáveis, são

atribuídas diversas privações que objetivam proteger as características de sua

feminilidade e preservar-lhe a fertilidade”.

O trabalho de Fernando de Azevedo, comentado por Soares (2001),

apresenta a temática da mulher sempre voltada para as questões da maternidade e

evidencia a importância de uma cultura física que convenha ao organismo feminino e

a sua função. Assim, cita como parte da formação ou educação física da mulher os

trabalhos manuais, os jogos infantis, a ginástica educativa e, como exemplos de

exercícios físicos e esportes mais adequados à delicadeza do organismo das mães,

menciona a natação e a dança, sendo a última responsável também pelo

desenvolvimento da graça, tida como um dos maiores encantos da mulher.

Em seu trabalho, Goellner (2003, p.132) também relata que:

Além da natação, a dança é amplamente recomendada às mulheres, sendo considerada como a atividade corporal que melhor reúne predicados que celebram a sua feminilidade. Associada à beleza, à sensibilidade e a uma imaginada e idealizada pureza da alma feminina, a Revista diz que é na dança e pela dança que a mulher vivencia, pela leveza de gestos e movimentos, o exercício de diferentes sensações corpóreas.

Desse modo, a Revista de Educação Physica, segundo Goellner (2003),

preconizava que, se fosse necessária a exercitação do corpo da mulher, ela deveria

ser realizada de maneira a garantir as características que assegurassem seu jeito

feminino de ser, mantendo os preceitos de beleza, saúde, graça, harmonia de

movimentos, leveza e delicadeza. Assim, ao tematizar o corpo feminino, a autora

expõe que a revista6 produzia e reproduzia movimentos, gestos, posturas, olhares,

expressões que traduziam e delimitavam representações de feminilidade 6 Goellner (2003) deixa claro que são principalmente os homens que falam através do periódico. Logo, é a voz

‘autorizada’ deles que diz sobre os modos e sobre as formas que os corpos femininos devem assumir.

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padronizadas por regras sexuais e sociais, fixando no corpo da mulher

possibilidades e restrições e remetendo o leitor/leitora a uma naturalização dos

papéis sexuais culturalmente instituídos para um e outro sexo.

Feminizar a mulher é, sobretudo, feminizar a aparência e o uso do seu corpo. A postura, a voz, o rosto, os músculos, o modo de vestir, de gesticular e exercitar sua sexualidade são sujeitos a vigilâncias e inibições que são internalizadas a partir de uma submissão ao “outro”, sendo este “outro” abstrato, coletivo e socialmente imposto. (PENNA, 1989 apud GOELLNER, 2003, p.107)

Outra recomendação feita por essa revista refere-se ao fato de o futebol

pertencer ao universo masculino. A argumentação contrária à participação da mulher

nessa prática feita pela revista deve-se ao fato de ela ser considerada rude e

requerer um nível de preparação física e técnica, cuja prática poderia ferir o corpo

feminino, prejudicando a sua saúde reprodutiva e o seu aspecto estético. Entretanto,

Goellner (2003) salienta que o adjetivo ‘reprodutiva’, que aparece colado ao

substantivo saúde, jamais é relacionado com o mundo masculino quando são

divulgadas recomendações para as práticas corporais e esportivas. “Como se os

esportes não pudessem, também, ocasionar danos à genitália do homem,

dificultando que os espermatozóides sejam produzidos e façam o correto caminho

da concepção, prejudicando a sua .... paternidade” (p.77).

Em sua obra datada de 1988, Castellani Filho também fez menção aos

trabalhos tanto de Fernando de Azevedo como de Rui Barbosa. Ele pontuou que em

nenhum instante, para esses intelectuais, a figura da mulher surgiu dissociada da

figura de mãe e que esta correlação mulher-mãe, vista como algo natural, está

relacionada com o fato de vincular-se à construção da concepção de mulher, à

imagem de seu corpo, o que já foi delineado por intermédio de Soares (2001).

Completando, Castellani Filho (1988, p.59) traz uma denúncia da psicóloga Daisy

Wainberg: “Se a mulher está definitivamente ancorada a um corpo natural, nada

mais normal que ela seja passiva, doce, franca, maternal, bela, sedutora, burra

talvez, tudo por natureza”.

Segundo Castellani Filho (1988), a compreensão de que as atitudes femininas

são determinadas e justificadas quase exclusivamente por parâmetros biológicos

serviu de sustentáculo para a idéia da superioridade do sexo masculino sobre o

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feminino, afastando-se qualquer alusão de tal superioridade estar alicerçada em

determinações socioculturais.

Contrariando, porém, esse entendimento, que acabava por conduzir ao equívoco da naturalização do fato social; a psicóloga educacional Odete Lourenção, em artigo publicado no ano de 1953, na revista da Associação de Professores de Educação Física de São Paulo, escreveu começando por dizer que, “... em geral, admite-se a fragilidade da filha perante o filho e cuida-se mais de resguardá-la de experiências e contatos (...) Dão-se brinquedos e jogos diferentes para meninos. São diferentes as leituras e até o enxoval do bebê (...) Esses fatores ambientais, minuciosos até os pormenores, mas operando continuamente através das idades, vão, pouco a pouco, determinando capacidades diferentes entre homens e mulheres...”. E continuava, dizendo que “... a Educação Física deve se adaptar às diferenças que se apresentam entre os sexos, embora o professor deva lembrar-se que tais diferenças, em sua grande maioria, são frutos, mais das influências culturais de nossa sociedade ocidental, que de fatores fisiológicos realmente diferenciadores...” (CASTELLANI FILHO, 1988, p.59)

Destarte, ao propor atividades ginásticas distintas aos homens e às mulheres,

justificando tal medida pela necessidade que viam em restringir essas atividades às

peculiaridades biofisiológicas das mulheres, Castellani Filho (1988) elucida que Rui

Barbosa, Fernando de Azevedo e todos os demais que se viram influenciados por

aquele ideário burguês e positivista, além de oportunizarem aos homens maiores

possibilidades de se desenvolverem em destrezas físicas, acabaram por reforçar o

pensamento dominante acerca do papel da mulher na sociedade brasileira.

Além do conjunto de medidas proferidas por Rui Barbosa (SOARES, 2001),

Castellani Filho (1988) relata também a publicação de decretos e deliberações de

sua autoria acerca da não-permissão a certas práticas, como lutas e esportes

coletivos, por parte das mulheres, a fim de preservar a sua maternidade e

feminilidade.

A respeito da participação feminina no campo esportivo, Goellner (2003,

p.129-130) apresenta em seu livro um registro feito pela Revista de Educação

Physica:

Na tentativa de interditar algumas práticas corporais femininas ou a pretensão de que as mulheres venham delas participar, em 1914 oficializam-se algumas proibições. Registra a Revista Educação Physica:

CONDENADAS AS PROVAS DE MEIO FUNDO E FUNDO EM NATAÇÃO E ATLETISMO PARA AS MULHERES

O general Newton Cavalcanti apresentou ao Conselho Nacional de Desportos as razões para o estabelecimento das instruções que regularão a

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prática dos desportos femininos em nosso país. O trabalho, que mereceu aprovação unânime dos demais conselheiros, está assim constituído: - Só devem ser praticados: Marchas – com efeito exclusivamente higiênico. Corridas – as de velocidade até 200 metros, revezamento até 100 metros e as de barreiras com percurso diminuído e as barreiras em menor altura, sendo, no entanto, proibidas as de meio fundo e “cross country”. Saltos – permitir, unicamente, os saltos em largura até 4m,60 e em altura, até a metade dos atingidos pelos homens e os de corda. “Não consentir a prática de saltos de vara, em profundidade e os tríplices”. Lançamentos – deverão apenas ser executados os de “disco, dardo e peso”, sendo que o peso de todos eles deve ser inferior aos usados pelos homens. Interditar o lançamento do martelo. Pentatlon – Decatlon – Lutas e Box – são “desportos que não devem ser permitidos par uso de sexo feminino”. Esgrima – é um excelente exercício para regular o sistema nervoso, principalmente quando praticado por ambos os braços. Remo – Natação – (excluídas as de meio fundo e fundo). Saltos Hockey, golf, patinação, equitação e tiro de pistola são desportos individuais que devem ser praticados pelo sexo feminino. O remo, porém, não deve ser praticado em competições e utilizado somente como meio de corrigir certas deficiências orgânicas. Desportos coletivos – os desportos coletivos mais aconselhados para a prática do sexo feminino são os de peteca, tênis, voleibol e basquetebol, sendo que estes últimos devem ter os seus campos e tempos de duração reduzidos. Neste gênero deve ser terminantemente proibida a prática do futebol, rugby, pólo, water-polo, por constituírem desportos violentos e não adaptáveis ao sexo feminino. (Educação Physica, n.59, 1941, p.75)

A presença da mulher no mundo esportivo parece, conforme Goellner (2003),

representar uma ameaça, pois chama para si a atenção de homens e mulheres,

dentro de um universo construído e dominado por valores masculinos, e põem em

perigo algumas características tidas como constitutivas da sua feminilidade.

Assim, na visão de Goellner (2003), a construção de imagens de feminilidade

como possibilidade de vigilância sobre o corpo e os comportamentos femininos

aparecem em diferentes espaços e tempos, sob diferentes formas, estratégias e

discursos.

Fruto da biologização, a Educação Física, idealizada e realizada pelos

médicos higienistas, foi utilizada como instrumento de aprimoramento da saúde

física e moral e atuou na preparação do corpo feminino para o desempenho de sua

tarefa de reprodução, reforçando, assim, o ideário burguês sobre os espaços e

papéis sociais permitidos à mulher ocupar e desempenhar. Atuou, também, tanto na

preparação do corpo do soldado, fazendo-o útil à pátria, quanto no corpo do

trabalhador manual, tornando-o mais útil ao capital. Enfim, ela se fez protagonista de

um corpo saudável, robusto, disciplinado e de uma sociedade asséptica, limpa,

ordenada e moralizada (SOARES, 2001).

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É dessa forma que a história da Educação Física no Brasil nos dá bases para

entender como os/as atores/atrizes sociais aqui em cena reproduzem, no seu

cotidiano, ideais e valores passados, como a higiene e a eugenia do final do século

XIX ou o modelo esportivo característico do período militar. No entanto, ao

reproduzirem esses ideais passados, eles/as atualizam, na sua experiência

presente, esses valores, atribuindo-lhes novos sentidos e significados.

A história da Educação Física no Brasil, conforme Daolio (1997), para além de

um somatório de elementos responsáveis pela produção e reprodução de

determinados comportamentos, foi influenciando a construção de um imaginário

social referente ao corpo, que se expressa no conjunto das ações e representações

dos indivíduos até os dias de hoje.

Ao se pensar o corpo como algo puramente biológico, pode-se incorrer em

erro, já que seres humanos de diferentes nacionalidades apresentam semelhanças

biológicas. Entretanto, além das semelhanças biológicas, Daolio (1995, 1997)

menciona a existência de um conjunto de significados7 que cada sociedade escreve

nos corpos dos seus membros ao longo do tempo – significados estes que definem o

que é corpo de diversas maneiras.

Não podemos imaginar um ser humano inserido numa rede de relações

sociais que não seja fruto da cultura. Conseqüentemente, qualquer adjetivo que se

associe ao corpo é fruto de uma dinâmica cultural particular e só faz sentido num

grupo específico.

O homem só chegou ao seu estágio atual de desenvolvimento devido a um processo cultural, de apropriação de comportamentos e atitudes que, inclusive, foram transformando o seu componente biológico. Não é possível desvincular o homem da cultura. O que o diferencia de outros animais, principalmente, é a sua capacidade de produzir cultura. (DAOLIO, 1997, p.52)

Visto a partir desse olhar, o ser humano, por meio do seu corpo, vai

assimilando e se apropriando de valores, normas e costumes sociais, num processo

que Daolio (1997) denomina de “inCORPOração”. Assim, ele considera que há uma

7 O autor se refere às técnicas corporais, uma idéia sistematizada por Marcel Mauss, em 1935, e definida como

as maneiras de se comportar de cada sociedade, ou seja, como os indivíduos servem-se de seus corpos. Segundo Daolio (1995, 2005), este antropólogo discutiu de forma pioneira o corpo e as técnicas corporais a partir de um referencial cultural.

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construção cultural do corpo, definida e colocada em prática em função das

especificidades culturais de cada sociedade.

O conjunto de hábitos, costumes, crenças e tradições que caracteriza uma

cultura também se refere ao corpo e para esclarecer essa idéia, Daolio (1995, p.40)

utiliza um exemplo da vida diária que, por certo, todos já vivenciaram:

Podemos pensar no fato de os meninos brasileiros, como se diz correntemente, “nascerem sabendo jogar futebol”. De forma contrária, ainda segundo o senso comum, podemos dizer que as meninas brasileiras, além de não nascerem sabendo, nunca conseguem aprender a jogar futebol. Ora, o primeiro brinquedo que o menino ganha é uma bola. Como se já não bastasse o estímulo do material, há todo um reforço social incentivando-o aos primeiros chutes, ao contrário da menina, que, afora não ser estimulada, é proibida de brincar com bola utilizando os pés. As aptidões motoras também fazem parte do processo de transmissão cultural.

Em seu livro, Saraiva (1999) também faz menção à cultura. Para ela, a cultura

é que estrutura as formas de se brincar e os objetos com que se brinca, de maneira

que se pode afirmar que os brinquedos são estruturados, na nossa cultura, de

acordo com os sexos. E mais: é o adulto que impõe à criança de que se deve brincar

e com qual brinquedo se pode e deve fazer, acarretando o que presenciamos na

realidade cotidiana:

Bonecas e flores são utilizadas quase que exclusivamente pelas meninas; soldadinhos e automóveis são reservados para os meninos; o estilo lúdico do menino é caracterizado por maior movimentação, agressividade e esforço muscular; a menina é quase sempre mais quieta, mais comportada e menos agressiva nas brincadeiras; os brinquedos destinados às meninas incluem objetos relacionados com o governo da casa e o culto à beleza e à vaidade feminina (...); os brinquedos dos meninos são relacionados com a guerra (...) e tarefas típicas: meios de transporte, jogos de botão, bolas de futebol, etc,; os meninos são mais predispostos ao risco e ao enfrentamento com o outro nos jogos de movimento e no esporte; as meninas preferem situações de jogos mais comunicativos. (SARAIVA, 1999, p.100-101)

Esse rol de atitudes e hábitos corporais masculinos e femininos – que, como

exposto, podem ser direcionados e manipulados – vai hierarquizando homens e

mulheres, definindo papéis a serem desempenhados na sociedade e até mesmo

privando de práticas corporais ou o acesso a estas. Uma extensão do passado.

O mais interessante, entretanto, “é que as diferenças entre homens e

mulheres estão tão arraigadas na dinâmica cultural de nossa sociedade que não

basta uma conscientização do processo e um desejo de mudança para uma efetiva

transformação da realidade”, comenta Daolio (1997, p.83).

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Segundo Mauss (apud DAOLIO, 1995), o ser humano aprende certas

técnicas8 de movimentos, e é a sociedade específica em que ele vive, em seus

diferentes momentos históricos e com sua experiência acumulada, que lhe ensina.

1.4 O revelar de uma outra história: a dimensão cultural e simbólica na/da Educação Física

De fato, se a cultura influencia no comportamento humano, quem produz e transforma a cultura cotidianamente são os homens. (DAOLIO, 1997, p.84)

No caminhar, o corpo carrega sua história, seus signos e símbolos, que o

diferenciam dos outros corpos seja pelos ornamentos, seja pelas marcas que

delineiam sua forma, suas atitudes, hábitos ou linguagem (GUEDES & MOREIRA,

1996). No decorrer da existência, o corpo age e se apropria dos signos, símbolos e

escreve a sua história, marca as diferenças, cria e se adapta à cultura, organiza

grupos, estabelece e vive suas regras sociais. A existência, por ser culturalmente

edificada, pode ser representada, decodificada e significada.

De acordo com Daolio (2005, 1997), a Educação Física sempre buscou e

exigiu de seus alunos a eficiência, quer seja ela biomecânica, fisiológica ou em nível

de rendimento esportivo. Ao buscar essa eficiência, desconsiderou as maneiras

como os/as alunos/as lidam, culturalmente, com as formas de jogos, as danças, as

lutas, os esportes e as ginásticas, ou seja, desconsiderou a eficácia simbólica9.

Eficácia esta que pode, algumas vezes, conforme o autor, não funcionar em termos

biomecânicos, fisiológicos ou de rendimento esportivo, mas que é a forma cultural

como os alunos utilizam as técnicas corporais.

8 A partir da concepção de técnica corporal apresentada pela antropologia social, Daolio (1995) amplia o

conceito de técnica para a Educação Física, a qual deixa de ser o movimento correto, econômico e passa a ser qualquer movimento humano, constantemente reconstruído e sempre dotado de significados culturalmente construídos, o que leva a pensar a Educação Física Escolar marcada pela dimensão cultural simbólica.

9 Ao falar em eficácia simbólica, Daolio (2004) refere-se aos significados tradicionais que orientam e fornecem sentidos a certas ações coletivas.

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Ancorado na análise antropológica10, Daolio (2005, 2004, 1997, 1995) passa

a vislumbrar uma prática de Educação Física que considera o caráter cultural do

povo. Promove, assim, discussões que aprofundam questões relacionadas com a

cultura para uma área que, até há pouco tempo, apoiava-se, predominantemente,

nas ciências biológicas.

Dessa forma, Daolio (2005, 2004, 1997, 1995) concebe a cultura11 como o

principal conceito para a Educação Física, uma vez que todas as manifestações

corporais humanas são geradas na dinâmica cultural, com expressões diversas e

significados próprios no contexto de grupos culturais específicos.

Enfim, a proposição que elege a cultura como aspecto fundante permite

dimensionar a Educação Física, “tomando-a não mais como área que trata apenas

do corpo e do movimento para constituir-se em área que trata do ser humano nas

suas manifestações culturais relacionadas ao corpo” (DAOLIO, 2004, p.70).

As discussões sobre cultura procuram, conforme nos aponta Nogueira (2005),

compreender a Educação Física como uma produção cultural e aguçar as nossas

sensibilidades para o entendimento sobre como as práticas corporais fazem parte de

um contexto social. Além disso, o referido autor esclarece ainda que o paradigma

cultural representa uma tentativa de dar um novo enfoque à Educação Física

executando uma ressignificação e a inserção de novas práticas corporais que

constituem o universo dos conteúdos a serem trabalhados.

Daolio (2005, 2004) acredita que a utilização de um conceito mais simbólico

de cultura corporal de movimento implicará assumir como principal característica da

área o princípio da alteridade, o qual pressupõe a consideração do outro a partir de

suas diferenças e da intersubjetividade intrínseca às mediações que acontecem na

Educação Física.

Assim, há uma redefinição do objeto de intervenção da Educação Física na

escola como sendo o movimento humano na sua dimensão cultural, denominado de

cultura corporal de movimento, e não mais o movimento humano na sua dimensão

biológica.

10 A abordagem antropológica pauta-se pelo estudo do ser humano nas suas relações sociais, entendendo-o como

construtor de significados para as suas ações no mundo. Ao utilizar essa abordagem, Daolio recorre a dois autores – Marcel Mauss e Clifford Geertz (DAOLIO, 2005, 2004,1995).

11 A leitura que Daolio faz de cultura parte da contribuição de Clifford Geertz, para quem “a cultura é a própria condição de vida de todos os seres humanos. É produto das ações humanas, mas é também processo contínuo pelo qual as pessoas dão sentido às suas ações” (DAOLIO, 2004, p.7).

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O sentido de “cultura corporal” que utilizamos parte da definição ampla de cultura e diz respeito ao conjunto de movimentos e hábitos corporais de um grupo específico. É nessa concepção que se pode afirmar que não existe discurso puro do corpo. O corpo não fala sozinho, de forma natural. Toda prática ou técnica sobre o corpo será apenas mais um discurso sobre o corpo. Em uma dada época, num determinado contexto, um discurso prevalece sobre o outro. Em outros termos, não há corpo livre, mas discursos sobre corpo livre; não há corpo consciente, mas discursos sobre corpo consciente. (DAOLIO, 1997, p.55)

No olhar de Soares et al. (1992), por cultura corporal compreende-se todo um

acervo de práticas corporais que, ao longo do tempo, o humano vem criando e

modificando, conforme suas necessidades. O estudo desse conhecimento para

eles/as visa a apreender a expressão corporal como linguagem e, conforme

Nogueira (2005), cultura como prática de significação.

Segundo Soares (1996), as práticas corporais formam um interessante

acervo da história do homem e constituem-se em objeto de ensino, são

pedagogizadas. “As atividades físicas tematizadas pela Educação Física se

afirmaram como linguagens e comunicaram sempre sentidos e significados da

passagem do homem pelo mundo” (p.11).

Na cultura corporal de movimento, o movimentar-se é interpretado, na visão

de Nogueira (2005), como uma conduta significativa, um diálogo que abre

perspectivas para mudanças, pois permite que uma realidade seja compreendida

como mutável e sujeita a diversas interpretações.

O movimentar-se é também entendido “como uma forma de comunicação

com o mundo que é constituinte e construtor de cultura, mas também possibilitado

por ela. É uma linguagem, com especificidade, mas que enquanto cultura habita o

mundo do simbólico” (BRACHT, 1996, p.24). E é justamente a consideração do

aspecto simbólico permitido pela perspectiva cultural que Daolio (2004) aponta como

avanço na Educação Física. Portanto, o movimentar-se e mesmo o corpo humano

precisam ser entendidos e estudados como uma complexa estrutura social de

sentido e significado, em contextos e processos histórico-culturais específicos.

Nesse contexto, a cultura de movimento, ou melhor, as culturas de

movimentos possuem por referência como as diferentes práticas corporais são

executadas, de acordo com os sentidos e significados historicamente construídos

(NOGUEIRA, 2005).

Seguindo esse raciocínio, Daolio (2004) e Nogueira (2005) explicitam que a

história acumulada de uma determinada sociedade deixa a sua marca no corpo, e as

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maneiras pelas quais as pessoas utilizam e servem-se de seus corpos são

denominadas técnicas corporais. Estas devem ser consideradas pelos professores

como possuidoras de significados diferenciados por aqueles que as praticam, o que

leva a inferir que as técnicas esportivas devem ser compreendidas não somente

como adaptação biológica, mas “resultado dos valores e princípios de uma

sociedade que impregnam marcas nos gestos e movimentos humanos”

(NOGUEIRA, 2005, p.204-205).

No que tange às apropriações da dimensão cultural no âmbito pedagógico,

torna-se importante, conforme os dizeres de Nogueira (2005, p.208), “aceitar o

corpo, as práticas corporais e a própria disciplina Educação Física como carregados

de sentidos e significados da sociedade”, levando a um olhar que nos remete a

reiterar que as práticas e os conteúdos presentes na cultura corporal de movimento

são produções humanas carregadas de significação.

Desse modo, vivemos em cenários de cultura, os quais são incorporados nas

relações estabelecidas com outras pessoas para fazer com que a experiência

individual faça do ser humano um ser cultural. Entretanto, não nos basta apenas

incorporar, criar coisas, sendo preciso também significar tudo aquilo que criamos,

reproduzimos e produzimos. O mais importante é a nossa capacidade de atribuir

significados múltiplos e sentidos transformáveis ao que fazemos, aos modos sociais

pelos quais fazemos. E é exatamente isso que Nogueira (2005) chama de prática de

significação: uma ação sobre os materiais existentes, reinventando-os ou produzindo

outros. Portanto, a produção de significados não se dá num vazio, mas ocorre na

redefinição, reinterpretação e transformação do material cultural.

Ao trazer como referência a questão da produção de significados, Nogueira

(2005) salienta que a Educação Física passa a ser vista não como uma mera

atividade, o que se tinha antes, mas como uma produção cultural que busca

compreender como os significados historicamente constituídos por diversos grupos

(por exemplo, o exército e a medicina) para as práticas corporais encontram-se

permeados por relações de poder.

Segundo Soares (1996, p.10):

Hoje já é possível, no âmbito da Educação Física, pensar a ciência fora dos limites do positivismo e perceber que, para tratar das atividades físicas em suas determinações culturais específicas, o conhecimento do homem implica em saber que a sua subjetividade e razão cognoscitiva se instalam

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em seu corpo e as linguagens corporais constituem-se em respostas a esta compreensão.

Assim, atualmente a Educação Física é vista como uma prática pedagógica

que se apropria das práticas corporais humanas e destina a elas um determinado

trato pedagógico, participando do processo de produção de sentidos e significados:

Cientes do fato de que a cultura e a sociedade imprimem concepções de corpo e de mundo aos seus sujeitos, e de que a Educação Física é uma prática social, torna-se importante compreender o sentido/significado que o corpo assume dentro da mesma, considerando-se que este sentido/significado é de profundo interesse para a Educação Física, pois, a nosso ver, a partir da visão de corpo que as pessoas possuem é que elas vão se relacionar consigo mesmas, com os outros e com o mundo. (BARBOSA, 1996, p.487)

Nessa perspectiva, é imprescindível que o professor de Educação Física

acredite que o conjunto de posturas, valores e movimentos corporais é constituído

de valores representativos e princípios culturais de uma determinada sociedade e

que, portanto, atuar no corpo implica atuar na sociedade na qual este corpo está

inserido.

É nesse contexto que inserimos a temática da feminilidade e masculinidade,

pois o conjunto de símbolos, códigos, sentidos e significados que se produzem e

reproduzem dinamicamente nos esportes, jogos, danças, ginásticas e lutas

influenciam, delimitam, dinamizam e/ou constrangem múltiplas concepções de

feminilidade e masculinidade que marcam a constituição dos sujeitos em nossa

sociedade.

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CAPÍTULO 2 A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE PELA

ALTERIDADE

(...) a consciência de nossa própria individualidade organiza-se e desenvolve-se em nossas relações sociais. Tornamo-nos nós mesmos através dos outros. (FONTANA, 2003, p.61)

Os referenciais teóricos adotados na presente pesquisa para análise das falas

dos indivíduos estão ligados à perspectiva histórico-cultural e à concepção

enunciativo-discursiva. Esses referenciais se fazem necessários e pertinentes, uma

vez que o almejado nesta pesquisa é analisar os sentidos e significados de

feminilidade e masculinidade produzidos em relações sociais vividas em aulas de

Educação Física de duas escolas públicas estaduais.

No que tange à perspectiva histórico-cultural, apoiamo-nos em seu principal

representante – Vigotski, que busca a sustentação de teorias sobre os processos

humanos, possibilitando, assim, discussões acerca do desenvolvimento humano e

suas especificidades.

Quanto à concepção enunciativo-discursiva, é interessante e profícuo

apoiarmo-nos na perspectiva de Bakhtin (1990, 1993, 2003) acerca do psiquismo e

da ideologia, à medida que tentamos teórica e empiricamente analisar os

enunciados, a fala “como artefato cultural e como uma realidade histórica específica

que permeia as relações humanas e produz sentidos” (SMOLKA, 1992, p.330).

Assim, buscamos fundamentação teórica também em Bakhtin (1990, 1993,

2003) para analisar os discursos, as falas e os gestos captados durante as

interações sociais de professor/a e/ou alunas/os em aulas de Educação Física,

utilizando a sua concepção enunciativo-discursiva.

O que os une, de acordo com Lima (2005), é o interesse em compreender os

processos humanos e constituição da subjetividade, a qual tem sua gênese nas

relações com o outro e com a cultura. Essas relações geram efeitos singulares em

cada sujeito, pois sua história pessoal vai sendo forjada na sua relação com o

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mundo, com o(s) outro(s) e com ele próprio, mostrando assim horizontes de

possibilidades que se abrem.

Dessa forma, Vigotski (1993, 1995) e Bakhtin (1990, 1993, 2003)

compartilham de idéias como: a importância do outro e da cultura na constituição da

subjetividade; a linguagem e os discursos estão primeiramente orientados para o(s)

outro(s); a polissemia se produz no contexto interlocutivo, portanto os sentidos estão

em permanente construção e impregnados pelas formas culturais;e, principalmente,

a interdependência entre pensamento e linguagem, possuindo ambos um traço

social.

2.1 A constituição do funcionamento humano

O eu só se define em relação ao outro. (FONTANA, 2003, p.62)

Vigotski (1995) apresenta como tese fundamental que a gênese das funções

psicológicas está nas relações com o outro e com a cultura12, sendo a constituição

do funcionamento humano socialmente mediada, num curso de desenvolvimento

que abrange evoluções e, sobretudo, revoluções.

Segundo Góes (2000, p.12), ao ter em vista a crença no papel das relações

concretas da vida social, Vigotski “concebe o estudo do homem enquanto ser que se

constitui imerso na cultura – nas experiências coletivas e práticas sociais – e como

produtor-intérprete de sistemas semióticos”.

Na formação da consciência, Vigotski (1993, 1995) ressalta a implicação de

dois fatores: a internalização e a mediação.

O processo de internalização, no olhar de Martins (1997, p.120), “caracteriza-

se como uma aquisição social na qual, partindo do socialmente dado, processamos

opções que são feitas de acordo com nossas vivências e possibilidades de troca e

interação”. Todavia, essa apropriação da cultura pelo indivíduo não acontece de

forma passiva. Este, ao receber do meio social o significado convencional de um

12 Para Vigostski (1995), cultura é a totalidade das produções humanas, uma prática social resultante da dinâmica

das relações sociais que caracterizam uma determinada sociedade.

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determinado conceito, interioriza-o e promove, nele, uma síntese pessoal. Esta, por

sua vez, ocasiona transformações na própria forma de pensar.

Aprofundando essa questão, Smolka (2000, p.27) identifica “internalização

como um construto teórico central no âmbito da perspectiva histórico-cultural, que se

refere ao processo de desenvolvimento e aprendizagem humana como incorporação

da cultura, como domínio dos modos culturais de agir, pensar, de se relacionar com

outros, consigo mesmo (...)”. Nessa perspectiva, Smolka (2000) expõe que Vigotski

muda o foco da análise psicológica ao colocar que não é o que o indivíduo é, a

priori, que explica seus modos de se relacionar com os outros, mas são as relações

sociais nas quais ele está envolvido que podem explicar seus modos de ser, de agir,

de pensar, de relacionar-se.

Pode-se dizer assim que a internalização é a criação de um espaço interno

ainda não existente – consciência – e que continua a se formar através das relações

sociais. E nesse processo de desenvolvimento temos a existência de dois planos –

um externo e outro interno, o que faz com que toda função psíquica superior seja de

início uma função social.

A relação indivíduo-sociedade é dialética e, portanto, não se pode

compreender o processo de formação psíquica pelas relações sociais, a não ser que

se considere a produção simultânea de signos e sentidos, relacionada à constituição

de sujeitos (SMOLKA, 2000). Como tais, os sujeitos são afetados de diferentes

modos por signos e sentidos produzidos nas relações com os outros como também

na história dessas relações. Desse modo, a apropriação está relacionada a

diferentes modos de participação nas práticas sociais e possibilidades de produção

de sentido, o que nos leva a considerar que nem tudo que é transmitido torna-se

necessariamente internalizado. É nessas práticas, como relações significativas, que

o sujeito se constitui.

É necessário deixar claro que o processo de internalização não é um

processo de cópia da realidade externa; é um processo em cujo seio se desenvolve

um plano interno de consciência, que é de natureza quase-social, segundo Wertsch

(apud BAQUERO, 1998).

Toda internalização, apropriação das formas especificamente humanas, se dá

por meio da mediação, havendo assim uma relação dialética entre internalização e

mediação. O processo de mediação implica o uso de ferramentas culturais, como a

linguagem e outros meios, através dos quais o sujeito domina e se apropria dos

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conceitos, das idéias, das práticas, das competências e de todas as outras possíveis

aprendizagens.

2.2 Linguagem: um instrumento semiótico

O pensamento nasce através das palavras, [elas são] o microcosmo da consciência humana. (VYGOTSKY, 1993, p.132)

O ser humano, para Vigotski (1995), emerge como indivíduo conforme vai

imergindo na cultura e a sua singularidade vai sendo constituída nas/pelas relações

sociais. Conforme dito, a atividade mental do homem – seu psiquismo – constitui-se

na relação com o outro, apresentando essa relação social um caráter semiótico.

Para reforçar isso expomos que:

(...) Se signos e sentidos são sempre produzidos por sujeitos em relação, os muitos modos de ação e interpretação desenvolvidos (...) são parte de uma prática historicamente construída, de uma trama complexa de significações nas quais eles participam sem serem, contudo, capazes de controlar a produção, de reterem ou de se apropriarem dos múltiplos, possíveis e contraditórios sentidos (que vão sendo) produzidos. (SMOLKA, 2000, p.37-38)

Para Luria (1979), a linguagem é a segunda condição que leva à formação da

atividade consciente13. Ela é um meio de comunicação pelo qual o ser humano

conserva, transmite informações e assimila a experiência acumulada por gerações,

destacando assim a linguagem verbal.

O surgimento da linguagem imprime três mudanças essenciais à atividade

consciente do ser humano, de acordo com Luria (1979). A primeira consiste em que

a linguagem duplica o mundo perceptível, permite conservar a informação recebida

do mundo exterior e cria um mundo de imagens interiores. Outro papel da linguagem

na formação da consciência consiste em que as palavras de uma língua não apenas

indicam determinadas coisas, como relacionam as coisas perceptíveis a

13 A atividade consciente do ser humano, de acordo com Luria (1979), é o resultado de novas formas histórico-

sociais de atividade-trabalho. Assim, a primeira condição para a formação da atividade consciente surge no processo de preparação do instrumento de trabalho, no trabalho social.

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determinadas categorias (abstração). Essa possibilidade de assegurar o processo de

abstração e generalização representa a segunda contribuição da linguagem para a

formação da consciência.

Além de configurar um meio de comunicação, ela também é o veículo mais

importante do pensamento, o que leva a fundamentar a terceira função da

linguagem, segundo o autor mencionado. Para ele, a linguagem “é o veículo

fundamental de transmissão de informações, que se formou na história social da

humanidade” (1979, p.81).

Corroborando os dizeres de Luria, Baquero (1998) afirma que a linguagem

pode cumprir diferentes funções, porém ressalta apenas a função de ser inicialmente

comunicativa, um meio de expressão e comunicação social e de constituir-se no

instrumento central da mediação, ou seja, é por meio dela que o psiquismo humano

é socialmente formado e culturalmente transmitido. Assim, a linguagem ocupa o

estatuto central na teoria de Vigotski, como parte e mediadora da ação humana.

A linguagem é o meio mais importante de desenvolvimento da consciência

porque penetra em todos os campos da atividade consciente humana. Ela

reorganiza os processos de percepção do mundo externo e cria novas leis de

percepção, mudando essencialmente os processos de atenção do ser humano e

também da memória deste, ou seja, a linguagem permite desligar-se da experiência

imediata e assegura o surgimento da imaginação.

Na visão de Baquero (1998), a linguagem é um dos instrumentos semióticos

mais versáteis e desenvolvidos, pois aparece primeiramente orientada para o outro e

posteriormente passa a ser orientada para si, possuindo uma propriedade de poder

orientar-se, a qual abarca um poderoso efeito na formação da subjetividade e no

desenvolvimento cognitivo. Esta é denominada linguagem interna.

Assim como a formação das funções psíquicas superiores, a linguagem

interna só ocorre porque houve antes uma linguagem externa, com o outro. Tudo se

configura a partir do plano social, isto é, a comunicação com o outro afeta/interfere o

discurso interior do indivíduo, assim como o discurso do indivíduo afeta/interfere na

maneira do mesmo se comunicar com o outro.

Martins (1997) pontua que quando a linguagem se dirige aos outros, o

pensamento torna-se passível de partilha. Essa acessibilidade do pensamento

manifesta-se, pois, na e pela linguagem, expressando, ao mesmo tempo, muitos

outros aspectos da personalidade do sujeito.

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Vigotski (1993) exprime que linguagem e pensamento são processos de

origens diferentes, distintas, todavia, possuem um mesmo traço – o social, e que o

entrelaçamento deles alimenta as funções psíquicas superiores.

Ao fazer referência ao pensamento, Vigotski (1993) aponta uma

interdependência entre linguagem e pensamento, colocando na linguagem auto-

orientada um momento decisivo nessa relação, pois, a partir de um certo momento,

a linguagem voltada para si afeta radicalmente a inteligência prática, ou seja, o

pensamento, uma vez que esse instrumento semiótico é representado por vários

signos, sendo a palavra o signo privilegiado da comunicação.

Em seu livro “Pensamento e Linguagem”, Vigotski (1993) faz considerações

quanto à centralidade do signo na formação dos processos humanos, afirmando que

a palavra é o microcosmo da consciência humana. Ele também salienta a noção de

sentido da palavra, concebendo-a como fundamental para a compreensão dos

significados da linguagem verbal. Esse sentido da palavra é, de acordo com Góes e

Cruz (2006), tematizado por Vigotski para estabelecer distinções e relações entre a

linguagem interna e externa.

Assim, a significação das palavras não pode ser considerada fora de seu

contexto concreto, bem como das condições de interação social, uma vez que, a

variação desses fatores interfere na produção de sentidos, fazendo com que estes

sejam ilimitados e estejam em permanente construção. Isso é o que Vigotski

denomina de polissemia da palavra.

Fazendo menção a essa polissemia, Góes e Cruz (2006, p.43) explicitam que:

Vigotski reitera o fundamento da formação humana nas condições concretas de vida e na história da vida social, pois o signo não é uma entidade abstrata; sua materialidade é preservada e reafirmada, visto que o jogo de sentidos é um processo de produção e interpretação em que o indivíduo está imerso na cultura.

Vigotski (1993) faz do significado das palavras a unidade de análise de suas

pesquisas, e a palavra, sendo um “microcosmo da consciência”, contém em seu

significado a possibilidade de analisar as relações entre pensamento e linguagem,

as quais caracterizam-se pela interdependência entre eles. Assim, Góes e Cruz

(2006, p.36) apontam o significado como pertencente “às esferas tanto do

pensamento quanto da linguagem, pois, se o pensamento se vincula à palavra e

nela encarna-se, a palavra só existe se sustentada pelo pensamento”. Entretanto,

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43

não podemos esquecer que a significação não está na palavra, mas é o efeito da

interlocução, como apontam os estudos de Bakhtin.

Quanto ao significado e sentido, Martins (1997) afirma que Vigotski

estabelece uma importante distinção entre eles, apresentando que aquilo que é

convencionalmente estabelecido pelo social é o significado do signo lingüístico,

enquanto o sentido é o signo interpretado pelo sujeito histórico, dentro de seu

tempo, espaço e contexto concreto de vida social.

Portanto, a construção de significados e sentidos tem lugar num contexto de

comunicação interpessoal. Esses processos são fortemente impregnados e

orientados pelas formas culturais existentes nessa comunicação que sofrem

constantes modificações.

Tendo tudo isso em vista, a nossa escolha, abraçando os dizeres de Smolka

(2000, p.31), é “por enfocar não as ações mediadas como tais”, uma vez que

assumimos que todas as ações humanas são mediadas, “mas por enfocar as

significações da ação humana” no jogo das relações, “os sentidos das práticas,

considerando que todas as ações adquirem múltiplos significados, múltiplos

sentidos, e tornam-se práticas significativas, dependendo das posições e dos modos

de participação dos sujeitos nas relações”.

Em suma, as concepções de Vigotski que embasam e norteiam a presente

pesquisa podem ser descritas como a constituição da subjetividade em seu contexto

histórico-cultural; a relação entre pensamento e palavra – passando pelo significado;

e o fato de que a constituição do sujeito se dá nas/pelas relações concretas da vida

social.

Além de referenciar Vigotski (1993, 1995), também buscamos fundamentação

em Bakhtin (1990, 1993, 2003), que compartilha da idéia do autor supracitado, de

que a consciência humana organiza-se e desenvolve-se através das relações

sociais. Para ele, mesmo que a atividade mental não seja visível, ela é exprimível

para o outro e igualmente compreensível por signos, sendo a palavra um signo

ideológico por excelência.

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2.3 Os signos em Bakhtin

... o homem constitui-se imerso na cultura, isto é, nas experiências construídas histórica e coletivamente, bem como nas práticas sociais. Tratar de processos formativos e de constituição de sujeitos, em espaços coletivamente compartilhados implica, necessariamente, perguntar sobre as práticas sociais desses sujeitos, sobre os discursos que circulam entre eles e sobre as interações que se estabelecem no decurso desse movimento. (LIMA, 2005, p.27)

Na concepção de Vigotski e de Bakhtin, cada sujeito torna-se ele mesmo por

meio do outro, o que atribui à interação verbal um papel central. Como material

semiótico da vida interior, signo social, Bakhtin, assim como Vigotski, elege a palavra

– o signo ideológico por excelência, pois as palavras captam e indiciam os

processos de constituição sentidos e dos sujeitos.

Por ideologia, Bakhtin (1990) refere-se a toda produção de significação, tudo

que é um signo, possuindo, portanto, um valor semiótico e um significado. Ao se

referir ao signo, o autor citado afirma que esse é um fenômeno do mundo exterior,

tem uma encarnação material e só aparece em um terreno interindividual, emergindo

do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra, ou seja, é

materializado na comunicação social.

Essa comunicação social pode ser dividida em signos ideológicos verbais e

não-verbais; os verbais são representados pelas palavras – tidas como material

flexível e privilegiado da comunicação na vida cotidiana, e os não-verbais possuem

relação estreita com as palavras em todo o ato consciente.

Assim, para Bakhtin (1990, p.52), todo gesto, grito, movimento do corpo “pode

tornar-se material para a expressão da atividade psíquica, posto que tudo pode

adquirir um valor semiótico, tudo pode tornar-se expressivo”, o que em outras

palavras quer dizer que tudo pode adquirir um significado e um sentido quando

inserido em um contexto. Todavia, ele reforça que:

É verdade que nem todos estes elementos têm igual valor. Para um psiquismo relativamente desenvolvido, diferenciado, um material semiótico refinável e flexível é indispensável e, por sua vez, é preciso que esse material se preste a uma formalização e a uma diferenciação no meio social, no processo de expressão exterior. É por isso que a palavra (o

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discurso interior) se revela como o material semiótico privilegiado do psiquismo. É verdade que o discurso interior se entrecruza com uma massa de outras reações gestuais com valor semiótico. Mas a palavra se apresenta como o fundamento, a base da vida interior. A exclusão da palavra reduziria o psiquismo a quase nada (...). (BAKHTIN, 1990, p.52)

A palavra, segundo o autor supracitado, como material flexível e veiculável

pelo corpo, “acompanha e comenta todo ato ideológico”, inclusive os dos signos

não-verbais, que, embora não possam ser substituídos por palavras, “banham-se no

discurso”, “apóiam-se nas palavras” e são “acompanhados por elas”, tornando-se

“parte da unidade da consciência verbalmente constituída”, estando presente em

todos os atos de compreensão e de interpretação (BAKHTIN, 1990, p.37-38).

E mais:

(...) toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 1993, p.113)

Com base no dizer do autor, podemos estabelecer algumas propriedades da

palavra, como a neutralidade ideológica, a implicação na comunicação humana e a

possibilidade de interiorização, o que a faz prestar-se sempre a uma interação,

podendo definir as relações sociais entre o eu e o(s) outro(s). Posto isso, podemos

inferir que é dentro dessas relações que tornamo-nos, em relação ao(s) outro(s),

capazes de perceber nossas características, bem como de delinear nossas

expectativas quanto à feminilidade e à masculinidade e outras formas de identidade.

A linguagem torna-se, desse modo, constitutiva do pensamento, da

experiência humana e fundamental na construção da história.

2.4 Bakhtin e as práticas discursivas

(...) cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da

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interação viva das forças sociais. É assim que o psiquismo e a ideologia se impregnam mutuamente no processo único e objetivo das relações sociais. (BAKHTIN, 1990, p.66)

Ao eleger a palavra como signo ideológico, Bakhtin acaba por valorizar a fala,

a enunciação, como unidade de base da língua. A enunciação é um produto da

interação de dois indivíduos socialmente organizados, sendo também socialmente

dirigida e determinada pela situação social mais imediata e pelo meio social

(auditório).

Em virtude de a enunciação ser de natureza social, o seu centro organizador

é exterior, está situado no meio social, o que importa dizer que a significação não

está na palavra, ela é estabelecida de fora para dentro, na relação com o outro. A

esse respeito, Bakhtin (1993, p.122) nos fala:

A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a dinâmica da sua evolução.

A enunciação constitui uma fração na corrente da comunicação verbal, sendo

unidades reais da cadeia verbal, e o diálogo é o produto da interação social, é o

efeito da interação de um falante e um ouvinte, na qual este ocupa em relação

àquele uma posição ativamente responsiva ao longo de todo o processo de audição

e compreensão da fala. Essa compreensão significa orientar-se em relação à

enunciação de outrem, encontrando o lugar adequado desta no contexto

correspondente, ou seja, a enunciação não poderá ser compreendida e explicada

fora do vínculo com a situação concreta. Com isso, temos um traço essencial do

enunciado, que é o endereçamento, o direcionamento a alguém.

Ademais, Bakhtin (2003, p.272) afirma que “(...) todo falante é por si mesmo

um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o

primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo (...)”, pois, como já havia

afirmado:

O processo da fala, compreendida no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo nem fim. A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um

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oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório. A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação. (BAKHTIN, 1993, p.125)

Com tais afirmações bakhtinianas, podemos dizer que um determinado

indivíduo não é o primeiro a falar sobre um determinado assunto e nem será o

último, pois esse processo de fala não tem limites, é ininterrupto.

No entanto, o enunciado já apresenta limites precisos, mas no âmbito desses

limites ele reflete o processo do discurso, os enunciados dos outros e os elos

precedentes da cadeia discursiva. O enunciado não pode ser separado dos elos

precedentes que o determinam, porém ele não está ligado apenas aos elos

precedentes, mas também aos subseqüentes da cadeia discursiva, pois o papel dos

outros (ouvintes) é grande, já que estes são participantes ativos da cadeia

(BAKHTIN, 2003). Referidos elos geram nos enunciados, além das atitudes

responsivas, ressonâncias dialógicas, ou seja, os enunciados estão cheios de

palavras alheias, palavras estas que se apresentam como uma arena de luta, ponto

de encontro e confronto de múltiplas vozes: vozes dos outros, vozes da história, que

ecoam em nós, nos constituem e nos significam.

A multiplicidade de vozes, chamada por Bakhtin de polifonia, aliada à

multiplicidade de sentidos da palavra, chamada por Vigotski de polissemia,

constituem cada indivíduo de modo a configurar uma dispersão na unidade. Nas

palavras de Fontana (2003, p.64), “somos uma multiplicidade de papéis e de lugares

sociais internalizados que também se harmonizam e entram em choque. (...) Muitos

em um”.

Nessa perspectiva, os discursos não podem ser analisados sem conflitos e

tensões, pois os lugares de onde eles são produzidos não são necessariamente

harmônicos e de consensos, o que nos leva a corroborar que a nossa própria idéia

nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros.

Assim, a palavra ganha certa expressão correspondente à situação da

comunicação, mas vale lembrar que essa expressão não pertence à própria palavra,

ela nasce do contato da palavra com a realidade concreta e nas condições de uma

situação real (BAKHTIN, 2003).

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Toda palavra, como lugar de expressão, compreende sempre um tema, uma

significação, uma orientação apreciativa, e esses aspectos encontram-se

interligados durante o processo de comunicação discursiva. Por tema Bakhtin (1993)

denomina o sentido da enunciação completa, que deve ser único, individual e não-

reiterável; tendo em vista que significação são os elementos reiteráveis e idênticos

cada vez que são repetidos. Visto dessa forma, o tema “significa de maneira

determinada”, enquanto a significação “não quer dizer nada em si mesma, ela é

apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema

concreto” (p.131).

Além do tema e significação, a palavra usada na fala possui também um

acento apreciativo, uma entoação expressiva determinada pela situação social

imediata na qual se encontra o falante, o que nos possibilita pronunciar a mesma

palavra com uma infinidade de entoações, conforme as diferentes situações que

podem ocorrer na vida. Dessa forma, toda enunciação, segundo Bakhtin (1993),

compreende uma orientação apreciativa e um sentido e é à apreciação que se deve

o papel criativo nas mudanças de significação, o que implica um deslocamento de

uma palavra determinada de um contexto apreciativo para outro.

Partindo desse ponto de vista, Bakhtin (1993, p.136) afirma que:

A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade igualmente provisória.

Esse processo de contínua transformação implica uma noção de tempo que,

segundo Amorim (2006), é importante para a compreensão das idéias de Bakhtin:

O tempo integra o passado e o futuro mais longínquos, para ressignificá-los a cada vez. Tempo de transformações em que as gerações desempenham um papel fundamental de transmissão e de superação. Tempo que se define como grande temporalidade, pois projeta a humanidade e o mundo para um além do contexto conhecido e representado. (...) Renovação dos sentidos do passado e criação de sentidos futuros. Aqui, o sentido não morre, já que se inscreve em um espaço-tempo de permanente abertura às transformações. (AMORIM, 2006, p.103-104)

A diferença de tempo e de espaço, de acordo com a autora mencionada,

parece indicar dois aspectos fundamentais que se alternam no pensamento

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bakhtiniano e que constituem, na verdade, os pólos extremos entre os quais suas

idéias se movem: acabamento e inacabamento, totalização e abertura, pois “a

concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova

temporalidade, corresponde um novo homem. Parte, portanto, do tempo para

identificar o ponto em que este se articula com o espaço e forma com ele uma

unidade” (p.103). O tempo é indicado por Amorim (2006) como a dimensão do

movimento, da transformação. Transformação que, nesta pesquisa, está ligada a

valores, expectativas, indivíduos e práticas corporais.

Parafraseando Fontana (2003), o tempo marcou nossas histórias. Não

nascemos mulher e homem, nem nos fizemos mulher e homem de repente. O fazer-

se mulher e homem foi-se configurando em momentos e espaços diferentes de

nossas vidas.

Assim, as concepções de Vigotski e Bakhtin expostas anteriormente

encontram-se entrelaçadas na pesquisa, sendo abordadas ao longo das análises

realizadas, com o auxílio de outros/as autores/as que nos ajudam na compreensão

dos sentidos, dos significados e dos detalhes captados, contribuindo para o

enriquecimento teórico da pesquisa.

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CAPÍTULO 3 OS CAMINHOS DA PESQUISA

O mergulho na vida do grupo e em culturas às quais o pesquisador não pertence depende de que ele convença o outro da necessidade de sua presença e da importância de sua pesquisa. Para que a pesquisa se realize é necessário que o pesquisado aceite o pesquisador, disponha-se a falar (...) e dê-lhe liberdade de observação (MARTINS, 2004, p.294).

3.1 Trajetória e sujeitos da pesquisa

Para a aproximação ao campo de pesquisa foi feito um convite aos/às

professores/as de Educação Física de uma das escolas da rede estadual, localizada

no município de Sumaré – SP, e que apresenta em seu quadro de funcionários

quatro professores de Educação Física; desses quatro, três são professoras recém-

formadas e ingressantes no Estado no ano de 2006 e o outro é um professor

formado há mais de quatorze anos. A escolha por essa escola se deve ao fato de a

pesquisadora ministrar aulas nessa unidade escolar e, principalmente, pela

facilidade de acesso a esta.

Após o aceite do convite por parte das professoras, fez-se necessário

escolher uma entre duas professoras para participar da pesquisa, uma vez que a

terceira professora é a pesquisadora. Para seleção dessa professora, foi realizada

uma observação, com duração de duas semanas, das aulas de Educação Física das

duas professoras da escola, e o critério utilizado foi a combinação de alguns fatores,

entre eles o conteúdo programado para o segundo semestre, a dinâmica utilizada

pela professora durante as aulas, bem como a fase escolar na qual os/as alunos/as

se encontram.

Desse modo, um dos sujeitos desta pesquisa é uma professora de Educação

Física que ministra aulas para o ensino fundamental. Os/as alunos/as também

constituem o universo desta pesquisa, pois o jogo de relações sociais envolve

outros/as atores/atrizes além da professora, que, no caso, são os/as alunos/as. No

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entanto, participaram apenas os/as alunos/as da 5a série. Na escolha dessa série foi

levada em consideração tanto a programação a ser desenvolvida na disciplina

quanto a compatibilidade de horários entre a professora e a pesquisadora.

Como a escola apresenta apenas um professor, não era necessária a

escolha, contudo, o horário de trabalho deste era incompatível com o da

pesquisadora, o que nos levou a procurar um outro professor e a fazer contato com

a Diretoria de Ensino da Região de Sumaré, junto à ATP (Assistente Técnico-

Pedagógica) de Educação Física, para a qual foi explicitado o projeto de pesquisa.

Em seguida, esta fez um levantamento das escolas que apresentam em seu quadro

de funcionários professores de Educação Física do sexo masculino.

Feito isso, entramos em contato com a coordenação de cada uma das

escolas pré-selecionadas, para obter os horários dos professores que ministram

aulas para as 5as séries e a disponibilidade destes para a participação na pesquisa,

o que reduziu o número de professores levando-nos a um professor ingressante no

Estado no ano de 2006 e que leciona em uma escola também localizada na periferia

do município de Sumaré – SP.

As duas escolas selecionadas para realização da pesquisa estão situadas em

regiões periféricas da cidade de Sumaré, atendendo a vários bairros com

significativos índices de criminalidade, furtos e cuja população apresenta uma

estrutura familiar, em que muitas crianças e adolescentes são criados por avós/avôs

e demais parentes.

Assim, a pesquisa empírica foi realizada com dois professores, sendo uma do

sexo feminino e outro do sexo masculino, em duas escolas de médio porte situadas

em regiões periféricas da cidade de Sumaré. Lembramos que os/as alunos/as das

5as séries – uma sala de cada escola – também constituem o universo da pesquisa,

perfazendo um total de 69 alunos/as, sendo 30 meninas e 39 meninos, com a média

de idade de 13 anos.

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3.2 Construção de dados

Na visão de Martins (2004), se há uma característica que constitui a marca

dos métodos qualitativos, ela é a flexibilidade, principalmente quanto às técnicas de

construção de dados, incorporando aquelas mais adequadas à observação que está

sendo feita.

Dessa forma, para a construção de dados, utilizamos a observação direta das

aulas de Educação Física, durante as quais buscou-se focalizar a tríade professor/a,

aluno/a e atividade e as interações professor/a-alunos/as e alunos/as-alunos/as.

Como forma de registro foi utilizada a videogravação e o diário de campo, com

prévia autorização do/a diretor/a, professor/a de Educação Física e dos/as

responsáveis pelos/as alunos/as.

A etapa da observação foi desenvolvida em quatro semanas, totalizando nove

sessões de filmagens; cinco sessões, com duração média de 45 minutos cada,

foram realizadas junto à professora e nas outras quatro, com duração média de uma

hora e vinte minutos cada, houve o acompanhamento das aulas do professor. Outro

recurso utilizado foi o diário de campo, no qual foram feitos alguns registros sobre o

ambiente da sala de aula, o conteúdo desenvolvido, a metodologia utilizada pelo/a

professor/a, os diálogos entre os/as alunos/as e outras observações pertinentes à

pesquisa.

Durante as observações realizadas nas escolas, houve uma rápida e

inesperada conversa com o professor, a qual foi dirigida para aspectos relacionados

à sua prática pedagógica e às questões de feminilidade e masculinidade. O meio de

registro utilizado foi o diário de campo.

No que se refere ao grupo de alunos/as, tive a oportunidade de conversar

apenas com os/as alunos/as da professora, pois, na última sessão de filmagem, ela

pediu para que eles /as subissem ao pátio, enquanto terminava de preencher o

diário de classe. Aproveitando a situação, perguntei se poderia conversar com

eles/as, e ela não se opôs ao pedido. Configurando-se num momento não planejado,

a conversa com os/as alunos/as foi videogravada e estava voltada para questões

relativas às práticas corporais e atividades desenvolvidas por eles/as durante as

aulas de Educação Física e as relações sociais estabelecidas entre alunos/as-

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alunos/as, pois essas relações modulam o modo de apresentação do sujeito na

dinâmica interativa e a construção de feminilidade e masculinidade. Todavia, é

mister ressaltar que essa conversa não foi submetida ao mesmo tratamento dos

demais episódios, uma vez que há participação direta da pesquisadora.

A etapa seguinte consistiu na transcrição de todas as aulas de Educação

Física videogravadas, com posterior recorte de alguns episódios a serem analisados

à luz do referencial teórico. Na transcrição das fitas, as falas foram editadas com o

objetivo de fazer sentido para o leitor estranho ao grupo e, buscando resguardar o

anonimato dos sujeitos envolvidos, houve a atribuição de nomes fictícios a estes.

Realizada a transcrição das aulas e das conversas, partimos para os recortes

de episódios. A escolha dos episódios está imbricada na dinâmica da criação

ideológica e dialogização do dizer14, objetivando focar os aspectos julgados

relevantes ao processo de produção dos sentidos e significados de feminilidade e

masculinidade em aulas de Educação Física pelos/as atores/atrizes sociais em

destaque.

As diversas leituras das transcrições, aliadas à interlocução com a literatura e

o referencial teórico, possibilitaram a organização e apresentação dos episódios por

aproximações de eixos, a fim de analisá-los como sentidos possíveis –

compreendidos e captados por intermédio das enunciações dos sujeitos – nas

condições sociais em que foram produzidos, visando a uma possível contribuição

para a área de conhecimento em questão.

14 Segundo a teoria de Bakhtin (2003), todo enunciado apresenta dimensões. Aqui destaco três: 1) todo enunciado orienta-se pelo já dito; 2) todo enunciado é orientado para respostas, ou seja, é prenhe de respostas; e 3) todo enunciado é uma articulação de múltiplas vozes sociais, sendo internamente dialogizado.

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CAPÍTULO 4 À BUSCA DE SENTIDOS

(...) a história não só poderia ter sido diferente do que foi, mas também pode ainda ser diferente. Porque tal como as sementes mantidas durante vários séculos nas pirâmides, e que até hoje guardam sua força germinativa, a história passada está inacabada, se abrindo para inúmeras interpretações, para infinitas leituras, o que implica uma fusão dos tempos e o encontro efêmero do passado com o presente. (KRAMER, 1993, p.92)

Além da flexibilidade quanto às técnicas de coleta de dados, outra

característica importante da metodologia qualitativa consiste, segundo Martins

(2004), na heterodoxia no momento de análise dos dados. Segundo a autora citada,

a variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma

capacidade integrativa e analítica, que, por sua vez, depende do desenvolvimento

de uma capacidade criadora e intuitiva. Assim, a maior dificuldade não está na

pesquisa empírica, e sim na análise dos dados, na capacidade de atribuir-lhes

significados.

4.1 Examinando os achados: as condições de produção de sentidos e significados de feminilidade e masculinidade em aulas de Educação Física

A análise que propomos é sobre os indícios de sentidos e significados de

feminilidade e masculinidade que são produzidos em um espaço social específico:

aulas de Educação Física. Vale explicitar que, nos episódios, não são as situações

em si que nos interessam, mas as relações dialógicas, entendidas como relações de

sentidos que decorrem da responsividade inerente a todo e qualquer ato

enunciativo, como nos diz Bakhtin (1993).

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Tomando a feminilidade e a masculinidade como um construto social,

mediado pela história cultural em que cada ser humano está imerso, e que a

linguagem participa desse processo de construção, a apresentação de episódios

seguida de algumas perspectivas de análise busca compreender o que foi dito

(verbal e/ou corporalmente) pelos indivíduos quando vivenciam e relatam a vivência

de algumas práticas corporais e/ou esportivas, pois, reiterando os dizeres de Bakhtin

(1993, p.52), além da palavra, material privilegiado do psiquismo, todo gesto, grito,

movimento do corpo torna-se “material para a expressão da atividade psíquica,

posto que tudo pode adquirir um valor semiótico”.

Na análise dos discursos de alunos/as e professor/a, visando a compreender

os sentidos e significados de feminilidade e masculinidade produzidos em aulas de

Educação Física, procurou-se nos enunciados sua dimensão axiológica, visto que

todo enunciado é socialmente dirigido e determinado pela situação social imediata e

pelo meio social, o que faz com que ele emerja sempre num contexto cultural

impregnado de significados e sentidos.

As leituras dos episódios, aliadas à interlocução com a bibliografia sobre o

tema feminilidade e masculinidade, Educação Física e o referencial teórico adotado

para a análise dos episódios, possibilitaram, num primeiro momento, a construção

de quatro eixos temáticos, referentes à caracterização e distribuição das atividades,

às relações de poder e à utilização dos espaços de aula. Contudo, no percurso de

examinar e tentar organizar os episódios dentro desses eixos, percebemos que cada

um deles indicia a presença de mais de um eixo citado, demonstrando, assim, a

existência de articulações que dão formato a um emaranhado de concepções de

feminilidade e de masculinidade.

Dessa forma, passamos a organizar os episódios em quatro eixos: 1) aquele

que levanta a questão da feminilidade e da masculinidade; 2) aquele que condensa

a discussão da temática dentro da disciplina Educação Física, trazendo a dinâmica

das produções, interações e tensões existentes; 3) aquele que apresenta a

mediação do/a professor/a, ou seja, como ele/a gerencia a questão explicitada em

suas aulas, pois sua participação é fundamental na elaboração de sentidos; 4)

aquele em que a pesquisadora promove um diálogo com os/as alunos/as, tentando

levá-los/as a uma reflexão, e eles/as, através da linguagem, tornam passível de

partilha seus pensamentos.

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Sabendo que a produção de significação implica múltiplos sentidos,

significados, direções e relações, salientamos que, como pesquisadoras, buscamos

traçar uns poucos sentidos, algumas possibilidades de sentidos produzidos nas

relações concretas estabelecidas em aulas de Educação Física.

4.1.1 As primeiras impressões: indícios de sentidos e significados de feminilidade e de masculinidade socialmente construídos e culturalmente transmitidos

Episódio 1: O professor chega à sala, fala o que eles/as irão fazer na aula e, após fazer a

chamada, pede aos/as alunos/as para abrirem os cadernos que ele vai vistar.

Enquanto o professor passa de carteira em carteira olhando os cadernos ...

Luana: De quem é esse apontador? (ninguém se manifesta). Eu vou jogar no lixo.

Wesley: É meu.

Luana: Não é! Ele é rosa.

Episódio 2: A professora chega à sala de aula, faz a chamada e pede aos/as alunos/as

que subam para a quadra. Na quadra, ela propõe um jogo chamado base quatro15 e

divide a classe em duas equipes mistas. Para a composição das equipes, a

professora chama por nome, de forma a tentar equilibrá-las. O jogo inicia-se e no

seu decorrer ouço uma menina – Débora – falar que não consegue chutar forte.

Aproximo-me dela e pergunto:

15 O jogo base quatro é composto por duas equipes (A e B), sendo que não há um limite máximo de integrantes

e é jogado com uma bola. Uma das equipes (A) deve ficar na área delimitada para o chute da bola e a outra equipe (B) deve colocar alguém para ser o lançador da bola para a equipe A, enquanto os seus demais participantes se espalham pelo espaço de jogo – previamente delimitado – para recuperar o mais rapidamente a bola chutada pela equipe A, pois esta equipe, ao chutar, terá que correr pelas bases; ao passar pela quarta base, marca um ponto para a sua equipe. Porém, se a bola for recuperada pela equipe B, sendo entregue ao lançador antes que o participante da equipe A esteja em uma das bases, este será considerado eliminado do jogo. Caso o participante esteja em uma das bases quando a bola for entregue ao lançador, ele estará salvo e poderá passar pelas outras bases quando o próximo participante de sua equipe chutar a bola. Assim que todos os participantes chutarem, as equipes trocam de lugar.

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Pesquisadora: Você não consegue chutar forte por quê?

Débora: Porque a gente é mais sensível.

Episódio 3: No pátio, a professora pede aos/às alunos/as para sentarem em círculo,

conversa sobre as aulas do bimestre e faz o encerramento do ano letivo.

[...]

Professora: Meninas, não querem falar nada, que não faziam nada; tinha que ficar

puxando, implorando para participar. Muito ruim fazer Educação Física? Muito

ruim, Ellen?

Ellen: Não.

Professora: Não? Só que tem que tomar cuidado, né?! Porque a bola machuca.

A presença de características socialmente construídas e associadas ao sexo

é uma constante nos episódios transcritos. No primeiro, a fala de Luana deixa

indícios de que há, para ela, uma relação entre a cor do objeto e o sexo do

indivíduo. Assim, ela presume que o fato de o apontador ser rosa é indicativo de que

não pertenceria a um menino, uma vez que, de acordo com algumas construções

sociais, essa cor seria de menina.

No segundo episódio, a fala da Débora – “a gente é mais sensível” nos leva a

algumas reflexões, como: quem seria essa gente? A quem ela está se referindo?

Pelo advérbio utilizado, Débora deixa explícita uma comparação, ao mesmo tempo

em que ficam implícitos, a partir do adjetivo, indícios de binarismos, mas com quem?

Homens e mulheres?

O enunciado da professora direcionado à Ellen no episódio 3 – “Só que tem

que tomar cuidado, né?! Porque a bola machuca.” – pode, de uma certa forma,

ratificar a opinião da Débora, uma vez que ela acaba por reproduzir um sentido de

sensibilidade e fragilidade da mulher perante as vivências/práticas corporais. Tal

enunciado ainda nos leva a indagar: e o homem, não se machuca também?

Nesses processos de interlocução, as falas deixam-nos indícios de que

atributos como sensibilidade e delicadeza estão atrelados à condição feminina,

construções estas que foram expostas no capítulo 1.

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58

Desse lugar marcado em seus enunciados, a Luana, a Débora e a professora

deixam ecoar, sem se darem conta de que o faziam, vozes alheias, apropriando-se

de um discurso que faz parte de uma prática socialmente construída e culturalmente

transmitida. Assim, temos presentes e explícitos sentidos e significados de

feminilidade, como a fragilidade, a sensibilidade e a delicadeza.

Episódio 4: O professor está trabalhando com o conteúdo lutas. Ele ensina alguns golpes

e os/as alunos/as vivenciam os movimentos. No final da aula sobra um tempo e o

professor deixa livre a atividade. Os meninos pedem a bola de futsal e vão jogar na

quadra, enquanto algumas meninas vão jogar vôlei no espaço lateral à quadra e

outras ficam conversando no pátio (este tipo de situação era recorrente nas aulas de

Educação Física).

Enquanto os/as alunos/as jogam, o professor se aproxima de mim (conversa

informal com o professor extraída do diário de campo):

Ele pergunta o que eu achei das aulas, da disciplina da turma. Falo que foram boas as aulas e aproveito para perguntar como os/as alunos/as se comportaram nas outras aulas – com outros conteúdos. O professor fala que na ginástica eles/as se ajudaram bastante, fizeram as atividades juntos, mas que quando pega o esporte para trabalhar, os/as alunos/as logo se separam em grupos de meninas e meninos. (“Não tem jeito! Eles logo se separam.”) Indago o que ele acha disso e ele relata que é difícil fazer os/as alunos/as jogarem juntos, e sua justificativa para tal ocorrência se apóia na questão cultural, a qual alega que é muito forte, mas que aos poucos está tentando quebrar, desfazer algumas distinções, separações no que se refere às aulas de atividade física e vivências corporais.

Quando o professor deixa os/as alunos/as escolherem a atividade, podemos

perceber que há uma diferenciação quanto ao tipo de prática e quanto à ocupação

dos espaços por eles/as.

No que se refere às atividades, essa diferenciação de práticas entre meninas

e meninos remete a uma história, na qual tal distinção era justificada pelas

características padronizadas por regras sexuais e sociais, assegurando sentidos de

feminilidade e de masculinidade, como graça, leveza, delicadeza, força e violência.

Quanto à utilização de espaços por meninos e meninas, temos que, ao

ocuparem a quadra inteira, presentifica-se uma idéia de liderança e poder por parte

dos meninos, assegurando também sentidos de masculinidade.

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Na visão de Scharagrodsky (2004), a maioria dos homens tende a ocupar os

espaços mais amplos e centrais, enquanto a maioria das mulheres – e também

alguns homens – utiliza espaços reduzidos e marginais. Isso incide nas práticas

corporais e/ou esportivas, separando, hierarquizando e reforçando concepções

naturalizadas para cada sexo. E a utilização quase monopólica do espaço por parte

da maioria dos homens reafirma e reproduz as expectativas tradicionais para o

masculino, como ser forte, ser valente e, sobretudo, estar em controle da situação

lúdico-esportiva.

Sousa & Altmann (1999), citando o estudo realizado por Altmann em uma

escola de Belo Horizonte, afirmam que esta autora observou que os meninos

ocupam espaços mais amplos que as meninas por meio do esporte, o qual está

vinculado a imagens de uma masculinidade forte, violenta e vitoriosa. Elas também

ressaltam que tal ocorrência parece acontecer em outras partes do mundo.

Diante do dizer do professor sobre a participação dos/as alunos/as nas aulas,

temos que as interações estabelecidas entre eles/as se dão de diferentes formas.

Estas formas podem sofrer influências de alguns fatores, entre os quais podemos

citar o conteúdo trabalhado em aula. Assim, o professor destaca que, ao trabalhar a

ginástica em suas aulas, houve uma interação muito grande entre meninos e

meninas; todavia, o mesmo não acontece quando se trabalha com o esporte. Para

ele, isso se deve à questão cultural, que está muito presente nas práticas corporais e

dificulta a interação alunos-alunas.

Mas, qual é a questão cultural a que o professor se refere? O que estaria por

trás dos conteúdos mencionados pelo professor – a ginástica e o esporte, a ponto de

promover uma interação diferenciada? Quais os motivos que levam meninas e

meninos a separarem-se para a prática esportiva?

Apoiando-nos na história da Educação Física, verificamos que esses

conteúdos foram tratados de maneiras diferentes. A ginástica, de certa forma, esteve

sempre presente na educação dos meninos e das meninas, ao contrário dos

esportes, que deveriam variar conforme o sexo do praticante. Em sua obra,

Castellani Filho (1988) nos conta sobre os decretos e as deliberações acerca da

não-permissão à prática de lutas e esportes coletivos por parte das mulheres no

início do século XX. Uma outra autora – Goellner (2003) –, ao falar do corpo

feminino, tal como aparecia num periódico especializado das décadas de 1930 e

1940 – a Revista Educação Physica – traz registros desta em relação à oficialização

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de algumas proibições na tentativa de interditar algumas práticas corporais femininas

ou a pretensão de que as mulheres venham delas participar, por constituírem

desportos considerados violentos e não adaptáveis à feminilidade da mulher. Assim,

Souza & Altmann (1999) consideram o esporte genereficado e genereficador.

As atividades distribuídas quanto ao sexo e a utilização diferenciada de

espaços por meninas e meninos, homens e mulheres foram – e parece que

continuam sendo – uma ocorrência em nossa sociedade e, particularmente, no

espaço das aulas de Educação Física, evidenciando sentidos e significados de

feminilidade e masculinidade. Isso leva a momentos de integração praticamente

inexistentes entre meninas e meninos. Essa separação, que aos olhos de alguns

aparenta ser algo natural, é muito mais uma construção cultural – o que é explicitado

pelo professor e exposto no parágrafo anterior. De acordo com a teoria adotada, a

cultura está presente na constituição do indivíduo, e esta é socialmente mediada

através das inúmeras relações que estabelecemos, havendo a incorporação dos

modos culturais de agir, pensar, de se relacionar com os outros e consigo mesmo.

Episódio 5: A professora vai para a quadra com seus/suas alunos/as e propõe o jogo

base quatro. No entanto, como o número de participantes não é o mesmo nas duas

equipes, a professora fala que alguém poderá repetir o arremesso, de modo que

iguale o número de arremessos entre as duas equipes.

Professora: Conta quantos têm Bráulio, se não eu vou ter que aumentar esse time.

Bráulio: 13!

Professora: 13? Então um de vocês pode repetir.

Kaique: Deixa o Jessé.

Professora: Um pode repetir.

Jessé: Eu, Dona16!

Kaique: O Jessé.

Professora: Vocês é que vão escolher.

Jessé: Eu.

(Kaique e outros alunos falam juntos: “O Jessé.”)

16 “Dona” é uma palavra utilizada pelos/as alunos/as para se referirem à professora. Já o professor não tem o

mesmo tratamento, sendo chamado de professor mesmo.

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[...]

(A Martha arremessa a bola e sai correndo para a primeira base)

Jessé: Pára. Fica aí. Fica aí. Não sai. Não sai. Por nada. Só fica aí (pausa). Faz o

que eu estou mandando. Só fica aí, não sai.

(Martha mantém-se na base).

Episódio 6: Os/as alunos/as estão na quadra jogando base quatro. Enquanto a professora

dá um tempo para as equipes trocarem de lugar – arremessadores/as e lançador/a –

, o Vitor organiza seus/suas colegas para a ordem de chutes. Ele coloca as meninas

para irem primeiro e os meninos como os últimos a chutar.

No episódio 5, tem se configurado um processo de escolha de participante, o

qual a professora deixa livre e aberto à equipe. Contudo, a escolha e decisão sobre

quem repetirá o arremesso se dá somente entre os meninos que elegem outro

menino – o Jessé. Logo em seguida, o Jessé é quem dá ordem para uma colega de

equipe, sendo a ordem acatada. Tais acontecimentos levam-nos a pensar nas

relações de gênero, indicando que, além das construções sociais estabelecidas

entre mulheres e homens, ela implica também relações de poder. A esse respeito,

Scraton (apud FARIA, 1998) argumenta que os meninos tendem a dominar as

situações em que se tem um grupo misto. Ela destaca que tal dominação pode ser

observada tanto pelo controle físico em atividades específicas como pelo controle

verbal, em que os meninos, nas aulas mistas, tendem a dominar verbalmente e

mandar nas meninas.

As mesmas relações podem ser verificadas no episódio seguinte, no qual o

Vitor passa a organizar a sua equipe para a ordem dos arremessos. Mas, o que o

leva a separar as meninas dos meninos? Por que as meninas são colocadas como

as primeiras a arremessar? Essas indagações serão refletidas mais à frente pelos/as

próprios/as alunos/as durante situações dialógicas, sendo algumas delas mediadas

pela professora e por mim.

No momento, expomos apenas que, em um dos seus trabalhos,

Scharagrodsky (2007) salienta que ser forte e estar em controle da situação, tanto

em relação ao tempo como à tática da atividade, são os requisitos básicos da

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masculinidade que entram em jogo durante as práticas corporais e, sobretudo, as

esportivas. Essa masculinidade, segundo o autor, é um empreendimento que se

legaliza constantemente e, ainda que se apresente às mulheres, está histórica e

culturalmente dirigida aos homens.

4.1.2 Condensando a discussão: interações e tensões existentes em aulas de Educação Física

Episódio 1: Após fazer a chamada, a professora pede aos alunos para subirem para a

quadra. Ao chegarmos à quadra, encontro os/as alunos/as espalhados pelo espaço

e alguns grupos formados. Ouço uma menina – Laura – falar para seus colegas:

Laura: Os meninos são melhores no handebol do que as meninas – Aproximo-me,

então, de seu grupo e pergunto:

Pesquisadora: Por quê?

Laura: Porque eles vão mais rápido.

Flávia: Porque são mais fortes.

Pesquisadora: Por que você acha que eles vão mais rápido?

Laura: Ah, eu não sei. Eles são mais fortes e pegam a bola muito rápido.

Pesquisadora: O que você falou? Que eles são mais fortes?

Flávia: É. Eles são rápidos, Dona. Eles dão um empurrão numas meninas aqui,

coitada das meninas, já tão no chão (algumas meninas riem).

Pesquisadora: Por que coitada? Não tem menina que pode dar um empurrão no

menino e o menino também cair no chão?

Flávia: Dona, que nem no jogo de handebol. Alguns empurraram a gente, a gente

caiu.

Pesquisadora: Ah é?

Jenifer: Eu caí (as alunas riem).

Flávia: Ah lá!

Pesquisadora: Você caiu?

Jenifer: Eu caí.

Leila: Empurraram a gente.

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Jakson: Ai meu Deus do céu.

Flávia: Mas como a gente vai empurrar aqueles cavalão ali?

[...]

Assim como a Débora fez no episódio 2 do primeiro eixo de discussão, a fala

da Laura também tende a estabelecer uma comparação entre meninos e meninas, e

essa comparação acaba por explicitar a superioridade de um sexo perante o outro

numa prática esportiva – o handebol. Contudo, quando lhe é perguntado o porquê

desse pensamento, ela e sua colega Flávia se apóiam em premissas socialmente

construídas e culturalmente transmitidas, como força, velocidade e agressividade,

associadas ao homem. Ao fazer essa comparação, indícios de sentidos de

masculinidade e feminilidade acabam sendo produzidos, indicando um certo modo –

socialmente disseminado e apropriado (assumido por elas e por outros/as) – de

conceber e pensar homens e mulheres e, conseqüentemente, feminilidade e

masculinidade.

A fala da Laura nos faz invocar Bueno (1990), o qual salienta que, quando se

faz referência ao fato de os meninos serem melhores, têm-se as diferenças entre

homens e mulheres, como resultado de aprendizagens – apropriações, havendo

situações em que a própria mulher estabelece essa diferenciação.

Para Saraiva (1999), tais opiniões são expressões do modelo internalizado

em relação ao esporte; podem exemplificar a brutalidade e agressividade de

algumas modalidades, bem como as características mais típicas da masculinidade,

como tanto já se viu na literatura.

Todavia, ao mesmo tempo em que indícios de sentidos sobre diferenças entre

masculinidade e feminilidade são produzidos, há a relativização dessas diferenças.

Isso ocorre no momento em que a Flávia expõe: “Eles dão um empurrão numas

meninas aqui, coitada das meninas, já tão no chão” e “Alguns empurraram a gente, a

gente caiu”. Ao colocar numas e alguns, ela nos leva a pensar que a fragilidade não

pertence a toda menina e que a agressividade também não está diretamente

associada a todos os meninos, o que acaba introduzindo brechas e tensões nos

sentidos de feminilidade e masculinidade. Isso nos mostra que os sentidos estão em

permanente construção na dinâmica interlocutiva, o que configura, conforme Bakhtin

(1993), instabilidades e, conseqüentemente, múltiplos cenários.

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Episódio 2: A professora leva os/as alunos/as para a quadra e propõe um jogo

denominado base quatro17.

Professora: Nós vamos fazer o base quatro. Ao invés de chutar a bola vocês vão

(gesticula usando um dos braços).

Alunos/as: Arremessar!

Vitor: Arremessar com a mão.

Professora: Usar as mãos.

Vitor: Mas não pode dentro da escola?18

Professora: Pode (pausa). Oh, Elias! Não. Joel e Bráulio. Podem escolher time.

Vocês vão começar escolhendo as meninas. Acabaram as meninas, vocês

começam a escolher os meninos.

Os dois meninos se aproximam e tiram par ou ímpar. A professora ressalta

que é para começar escolhendo as meninas. Terminada a escolha:

Professora: Oh, André, junta o seu grupo aí e vocês têm que pensar numa estratégia

de como fazer mais pontos (pausa). O grupo do Bráulio a mesma coisa. Um

minuto, um minuto. Rápido meninos, rápido meninos.

Grupo 1: Jessé: Oh! Assim [...] amontoa, amontoa só em um. Aí um pega e joga e todo mundo

passa e aí nós (é interrompido).

Kaique: Cada um pega um. Cada um pega um. Olha aqui, as meninas tacam

primeiro que [?????]

Jessé: É. É.

Maicon: As meninas.

Kaique: Aí depois (ri) vocês não é queimada e nós tenta ficar só em um cone.

Jessé: Só num cone. Vocês vão ficar só num cone. Depois fica o último e taca.

Davi: É.

17 Aqui a professora propõe uma variação do jogo base quatro: em vez de chutar, eles/as terão de arremessar a

bola. 18 No base quatro, o espaço de jogo deve ser sempre negociado.

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Grupo 2: Como eu estava videogravando a estratégia do grupo 1, não deu para

acompanhar o grupo 2, então tive que pedir a alguém que me relatasse o que eles

tinham planejado.

Gabriel: As meninas começam primeiro tacando. Aí a Olívia, porque ela tem mais

força, aí ela taca (Augusto fala: “E a Flávia?”).

Gabriel: Aí ela taca e todas as meninas passam e depois os meninos jogam (eles

fazem o grito de guerra e todos vão para a quadra).

Nessa passagem podemos delinear algumas possibilidades de sentidos

produzidos pelos enunciados de alunos/as e professora. O primeiro ponto a ser

analisado remete às relações de poder, diz respeito à indicação de dois meninos

pela professora para dividirem os times, o que tende a levantar uma idéia

socialmente construída de liderança masculina, também corroborada pelos estudos

de Scharagrodsky (2004, 2007).

Há também um aspecto que se refere ao processo de escolha de times.

Nesse episódio, a professora não promove, diretamente, uma separação de times

entre meninas e meninos para a realização do jogo, porém na sua fala: “Vocês vão

começar escolhendo as meninas. Acabaram as meninas vocês começam a escolher

os meninos” ela deixa implícita uma separação. Tal atitude da professora também

pode configurar-se numa tentativa de evitar que as meninas sejam marginalizadas

durante o processo de escolha, mas, apesar disso, ela pode acabar por

demarcar/reforçar uma possível distinção entre meninas e meninos. Estes (aqui me

refiro especificamente aos meninos) acabaram por fazer, concretizar a separação ao

elaborarem as estratégias para o jogo. Assim, mesmo que a professora não os tenha

separado em equipes ou jogos diferentes, os meninos, e talvez quem sabe as

meninas, o fizeram.

No enunciado da professora: “André, junta o seu grupo aí e vocês têm que

pensar numa estratégia de como fazer mais pontos (pausa). O grupo do Bráulio a

mesma coisa”, ao apontar dois meninos, ela tende a estabelecer mais relações de

poder, o que acaba por reforçar a liderança como um atributo da masculinidade.

Durante a elaboração de estratégias, percebe-se que os meninos tomam a

frente da tarefa e as meninas quase não falam nada, o que, também, traz implícito

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relações de poder atreladas às expectativas tradicionais relacionadas à

masculinidade. Dessa forma, o menino detém o controle da atividade tanto no que

se refere a seu tempo como à tática desta.

Ao partirmos para as estratégias elaboradas pelos grupos, ou, melhor

dizendo, pelos meninos, constata-se que ambos os grupos colocam as meninas para

iniciarem o jogo – “As meninas começam primeiro tacando” e “depois os meninos

jogam”, o que foi também colocado em prática pelo Vitor e apresentado no episódio

6 do eixo de discussão anterior. Mas, por que tal estratégia? Levando-se em

consideração as regras do jogo e a concepção da constituição do indivíduo em um

contexto histórico-cultural, o principal sentido produzido pela fala dos meninos está

associado a uma construção social de atributos de acordo com o sexo do indivíduo,

ou seja, pelo fato de serem consideradas lentas, as meninas iniciam o jogo e os

meninos o finalizam, por serem considerados mais ágeis, rápidos.

Contudo, o grupo 2 faz uma ressalva: “Aí a Olívia, porque ela tem mais força,

aí ela taca”. (Augusto fala: “E a Flávia?”). “Aí ela taca e todas as meninas passam...”.

Os dizeres de Gabriel, assim como de outros/as alunos/as já mencionados,

evidenciam uma comparação; entretanto, ela não é tida entre meninas e meninos e

sim entre meninas. Nessa passagem, o atributo força já é direcionado também à

menina, porém fica evidente que ele não é válido para todas as meninas, e sim para

algumas. Isso pode introduzir tensões nos sentidos de feminilidade e masculinidade,

mas não podemos esquecer que ainda se trata de atribuir a algumas meninas

características típicas da masculinidade.

Episódio 3: A professora aplica a prova prática para os alunos que não a fizeram na aula

anterior. Para isso, ela pede a um aluno – Milerson – para demonstrar o que os

demais colegas deveriam fazer. Terminada a prova, a professora fala aos/as

alunos/as que formem os times (os quais ela já havia separado por sexo desde o

início do bimestre) para jogar handebol.

Evelyn: Dona, por que não joga menino e menina?

Professora: Porque handebol é muito contato. Fica meia quadra para os meninos e

meia quadra para as meninas (Ela dá uma bola para as meninas e outra para os

meninos e eles se distribuem pela quadra).

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O fato de a professora apontar um menino para demonstrar uma atividade,

assim como escolher time (episódio anterior), indica, segundo alguns estudos

(BUENO, 1990; SCHARAGRODSKY, 2007), o reforço do masculino, implicando

relações de poder, o que, de certa forma, marca as práticas de ensino.

Também temos presente no episódio a separação entre os sexos para a

realização da atividade, a qual foi interpelada pela aluna – “Dona, por que não joga

menino e menina?”. Este enunciado pode indiciar tanto um questionamento como

uma proposição de integração entre meninos e meninas. A atitude da aluna pode

revelar, por parte dela, uma ruptura, mesmo que inicial, com algumas premissas

sobre a distribuição de atividades associadas às características atribuídas social e

culturalmente ao sexo.

A resposta dada a esse questionamento ou proposição está associada à

existência de contato corporal entre os/as jogadores/as durante a atividade, o que

parece não lhe ser conveniente. A fala da professora pode, de uma certa maneira,

produzir sentidos que reforcem a separação se tomarmos como referência o

acontecimento do episódio 1 deste eixo de discussão, no qual o nível de

agressividade física que se tem através dos contatos corporais é um dos motivos

que pode condicionar a interação entre meninos e meninas no que se refere ao

desenvolvimento de práticas corporais e/ou esportivas em aulas de Educação Física,

fato também relatado por Bueno (1990) em seus estudos. Tal forma de conceber as

práticas corporais e/ou esportivas – a existência ou não de contato – pode também

estar marcando as práticas de ensino.

Procurando refletir um pouco mais, busco alguns episódios19 nos quais a

professora trabalha com o jogo base quatro. Nesses episódios não há menção de

separação entre alunas e alunos para a realização da atividade, enquanto no

handebol sempre há separação. Isso pode ser analisado com apoio em Kunz (apud

SOUSA & ALTMANN, 1999), o qual delineia a existência de dois mundos esportivos

– o feminino e o masculino – e que na contraposição das possibilidades expressas

por esses dois mundos (fragilidade/força, delicadeza/agressividade, lento/veloz)

evidenciam-se pólos que o esporte, como praticado na escola, não deixa conciliar.

Daí a separação.

19 Episódios 5 e 6 do primeiro eixo de análise e o episódio 2 desse segundo eixo.

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Episódio 4: A professora propõe um jogo de handebol para que os/as alunos/as

vivenciem as suas regras. Para isso, ela separa em sala os times, dividindo meninas

e meninos. Seguindo um sistema de rodízio, as meninas começam jogando nessa

aula. Terminado o tempo das meninas, a professora chama os meninos, porém

ficam faltando dois jogadores, e a professora chama o Renan para completar um

time e a Olívia para completar o outro time. Alguns alunos, vendo aquilo, reclamam

com a professora:

Vitor: Ah, não! Coloca o Renan no outro (time).

Ele caminha em direção à professora.

Vitor: Oh, Dona! Oh, Dona! Manda a Olívia (pra cá) e deixa o Renan pra lá.

A professora gesticula, demonstrando que ficaria assim mesmo.

Vitor: Olha lá. O time tá muito forte, Dona.

Professora: Ah, tá bom, Vitor (pausa). Faz a barreira lá. Faz a barreira neste time.

O uso do espaço, que também pode ser observado no episódio anterior, e o

tempo de jogo são definidos pela professora. Ela adota a divisão igualitária do

espaço (episódio 3), o sistema de rodízio da quadra por aulas e estabelece um

mesmo tempo para cada equipe jogar, o que tende a diferir dos estudos de

Scharagrodsky (2004)20.

Contraditoriamente ao episódio 3, no qual a professora não permite a

participação conjunta de meninos e meninas na prática esportiva, aqui ela já chama

uma menina – a Olívia – para jogar entre os meninos. A atitude da professora nos

deixa indício de que a Olívia não é igual às demais meninas, pois há um tratamento

diferenciado em relação a ela. Esse tratamento pode ser verificado também no

episódio 2 deste eixo de discussão.

Apoiando-nos no dizer de Vitor – “Ah, não! Coloca o Renan no outro” (time).

“Manda a Olívia (pra cá) e deixa o Renan pra lá.” [...] “Olha lá. O time tá muito forte,

20 Em seu estudo sobre as relações e os processos que se estabelecem entre os coletivos masculinos e femininos

durante as aulas de Educação Física na Argentina, Scharagrodsky (2004) identifica certas situações reiteradas nas aulas mistas, como a distribuição não eqüitativa do espaço e uso do tempo desigual entre meninos e meninas, as meninas jogam com menos freqüência que os meninos, sendo que estes são os primeiros a iniciar o jogo e os últimos a terminá-lo. Essas relações acabam por configurarem-se assimétricas.

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Dona” –, o indício apontado na atitude da professora pode ser ratificado e, mais do

que isso, há uma comparação muito implícita entre Olívia e Renan quanto à força.

Assim, a Olívia é considerada, pelo Vitor, mais forte que o Renan. Essa

comparação vem desarticular, redimensionar algumas premissas historicamente

construídas – a idéia de força como um atributo da masculinidade e a de fraqueza

como um atributo da feminilidade –, tencionando seus sentidos.

Episódio 5: O professor leva os/as alunos/as para a quadra, orienta um alongamento e,

em seguida, pede que a turma se divida em grupos para criarem uma luta. Os/as

alunos/as pegam os colchonetes e se distribuem pelo espaço. Pode-se observar que

há grupos só de meninos, outros só de meninas e um grupo composto por duas

meninas (Keise e Luana) e três meninos (Flávio, Douglas e Wallace). Eles/as criam

uma luta a ser executada na posição ajoelhada. Primeiro enfrentam-se o Douglas e

o Wallace e depois a Keise e a Luana. Em seguida, o Wallace luta com a Luana e o

Douglas fala:

Douglas: A Luana é forte, meu Deus do céu, melhor que nós dois (e vai ajudar o

Wallace, mas a Luana acaba derrubando-o).

Luana: Vem, Douglas!

Wallace: Qual de vocês dois é que vai ganhar?

Luana: Pode vir vocês dois.

Flávio: Não, pode deixar. Vai eu e o Douglas.

Luana: Vem aqui, Flávio!

Flávio: Licença (fala ao Douglas e ajoelha para lutar com a Luana. Ela lhe agarra os

braços e um tenta derrubar o outro, até que a Luana é derrubada. Seus

colegas a zombam. [...]. A Luana se ajoelha e chama o Wallace para enfrentá-

la. Um segura o outro).

Luana: Empurra, vai empurra (O Wallace balança a cabeça, indicando que está

empurrando. O Douglas empurra as costas do Wallace a fim de ajudá-lo, mas

a Luana derruba-o).

Luana: Vamos de novo, Flávio.

Douglas: Ah, eu vou ajudar o Flávio.

Luana: Ah! Não pode!

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(Depois de lutar com o Douglas, a Luana luta com a Keise duas vezes seguidas).

Keise: Eu não tenho força para completar a tarefa.

Luana: Pronto. Venci você. Vem você (chama o Douglas).

Douglas: O quê?

Luana: Vem você.

A Luana luta com o Wallace e pede para ele empurrá-la, mas ele acaba

sendo derrubado e fala:

Wallace: Minhas costelas quebraram.

Luana: Vamos eu e você, Douglas. Vem.

Flávio: Vai eu e a Keise.

Luana: Então tá. Vai eu e o Douglas (Flávio derruba a Keise. A Luana, que está

lutando com o Douglas o larga e fala:)

Luana: Vamos eu e você. Vai, Flávio. Vamos, Flávio. Vem aqui, Flávio! (O Flávio luta

com a Luana e é derrubado).

Luana: Ah, ganhei! (Wallace vai para cima da Luana tentando derrubá-la).

Wallace: Ah, agora eu ganho de você (empurra de pé. A Luana, ajoelhada, parte

para cima dele e o empurra para trás).

Luana: Ah, já era. Ganhei!

No episódio anterior, o professor trabalha com o conteúdo lutas e o único

critério que estabelece é a formação de grupos de quatro a cinco pessoas e que

estes criem uma luta com regras. Tal atitude deixa indícios de que o professor

trabalha com a luta da escola e não com a luta na escola21, uma vez que instiga

os/as alunos/as a criarem suas próprias lutas, sendo possível enfrentar-se meninas

e meninos, o que não seria aceitável com a luta na escola, pois esta seria a

reprodução tal e qual se encontra no meio esportivo, em que as regras já são pré-

estabelecidas e não há lutas mistas. Assim, a interação entre alguns/as alunos e

alunas para a realização da atividade pode ser um indício da liberdade dada pelo

professor para que eles criassem suas próprias lutas.

Por outro lado, essa interação pode também ser um indício de apropriação

de práticas sociais, nas quais, segundo Vigotski (1993), os indivíduos fazem opções

de acordo com as suas vivências, experiências e possibilidades de troca,

21 Sobre essa discussão ver: Soares, Carmen Lúcia et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. São

Paulo: Cortez, 1992.

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ocasionando transformações na própria forma de pensar, agir, relacionar-se com os

outros e consigo mesmo, de modo a ressignificar o corpo, a lógica binária, a

separação de atividades, o uso do corpo no espaço e no tempo e os contatos

corporais.

Nessa dinâmica interativa, há a reiteração de uma comparação. As palavras

de Douglas – “A Luana é forte [...], melhor que nós dois” – se referindo à atuação da

menina durante a luta trazem consigo uma desarticulação de algumas premissas

socialmente construídas em relação a aspectos biológicos. Desse modo, parece

haver uma compreensão, por parte do Douglas, de que a força possa ser também

atribuída a uma menina. Contudo, quando ele ajuda o seu colega Wallace a derrubar

a Luana, temos indícios de que, apesar de considerar a Luana forte, ele não aceita a

derrota para uma menina. Essa situação pode ser verificada novamente mais à

frente na interlocução.

Recorrendo ao trabalho de Altmann, as autoras Sousa & Altmann (1999)

evidenciam que, durante as práticas esportivas, um bom desempenho contra

meninas não creditava aos meninos nenhum mérito especial, mas jogar pior do que

elas era um vexame, pois contrariaria a expectativa da superioridade masculina

nesse universo. Desse modo, jogar com meninas representava para eles não um

desafio, mas uma ameaça. Já para as meninas, superar as expectativas e ser

melhor que os meninos no esporte era uma honra, motivo de consagração que, em

algumas ocasiões e entre alguns meninos, garantia-lhes legitimidade, o que pode

ser indiciado no parágrafo a seguir.

Em uma outra luta – Luana e Flávio – a Luana acaba sendo derrubada pelo

Flávio. O Wallace e o Douglas zombam dela. Insatisfeita com o resultado, a Luana

convida o Flávio para uma outra luta, a qual denominaria de revanche, e o Douglas

propõe ajudar o Flávio. Dessa vez, a Luana não aceita essa interferência e o Flávio

chama a Keise para lutar. A Luana insiste até que consegue lutar com o Flávio, o

derruba e canta vitória. Esses acontecimentos revelam tensões e contradições

presentes na atribuição de sentidos historicamente construídos para feminilidade e

masculinidade.

Assim, os enunciados dos/as alunos/as apresentam vários indícios de

tensões nos sentidos de feminilidade e masculinidade no momento em que

evidenciam que características como força e liderança são atribuídas tanto a

meninos quanto a meninas. Entretanto, não podemos esquecer que, ao dizer que

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meninas podem ser fortes, por exemplo, ainda se trata de atribuir características

típicas da masculinidade a algumas delas, como já exposto. O contrário também é

válido.

Esses sentidos produzidos nos fazem remeter a Scharagrodsky (2007), que

afirma em seu trabalho que cada ser humano é resultado do entrecruzamento de

múltiplos atributos e funções disseminados pela sociedade, todos os quais têm uma

importância central na configuração da própria identidade.

Nesse processo de constituição da subjetividade, alunos e alunas interagem

com a professora e entre si, apresentando diferentes modos de participação durante

as práticas corporais e esportivas, de acordo com as relações estabelecidas nas

aulas de Educação Física. Nessas interações delineamos alguns dos muitos

sentidos produzidos, entre os quais podemos citar o reforço de atributos histórico-

culturalmente construídos para feminilidade e masculinidade, um modelo

genereficado de esporte e a existência de alguns conflitos e tensões acerca da

feminilidade e da masculinidade presentes no pensamento, pois o jogo de sentidos

demonstra como a constituição processa-se contraditoriamente.

4.1.3 A mediação do/a professor/a

Conforme os estudos de Vigotski (1993, 1995), a formação da consciência

está imbricada a dois fatores que apresentam uma relação também dialética: a

internalização, que denominei acima de apropriação, e a mediação. Dessa forma,

toda apropriação se dá por meio da mediação.

O eixo que passo a apresentar refere-se à mediação do professor e da

professora, ou seja, como ele e ela gerenciam o tema masculinidade e feminilidade

em suas aulas, uma vez que a participação dele e dela é fundamental na elaboração

e circulação de discursos e de sentidos em suas aulas, pois, conforme diz Bakhtin

(2003, p.295), todos os nossos enunciados estão cheios de palavras dos outros, “de

um grau vário de alteridade ou de assimibilidade. (...) essas palavras dos outros

trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos,

reelaboramos e reacentuamos”.

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Mas, será que a presença da pesquisadora influenciou na prática do professor

e da professora? Será que as conversas foram motivadas pela pesquisa?

É mister salientar que a minha presença, como pesquisadora, pode sim ter

motivado o diálogo do professor e da professora com seus/suas alunos/as a respeito

das questões de gênero, bem como pode ter interferido, de alguma forma, nas

práticas desenvolvidas pelo/a professor/a. Ou seja, a minha presença de

pesquisadora altera, como em toda pesquisa, o cenário pesquisado e marca os

sentidos que nele circulam, o que não significa, no entanto, artificialidade das

práticas e dos dizeres.

Vamos aos episódios.

Episódio 1: Ao final da aula, o professor pede aos/às alunos/as para juntarem os

colchonetes e subirem ao pátio para conversarem.

Professor: Vocês aprenderam vários tipos de lutas, né?! E o que vocês acharam das

atividades de fazer menino com menina?

Alunos/as: Legal.

Professor: Vocês acharam que ia ser difícil? Foi mais fácil do que parecia?

Luana: Foi.

Professor: Por que foi mais fácil?

Dora: Porque a menina não tem muita força.

Professor: Mas as meninas várias vezes ganharam as lutas dos meninos. Então, não

quer dizer que elas são mais fracas.

(O Deivison fala algo sobre a luta de braço)

Professor: Isso, oh. [...] As meninas conseguiram praticar melhor algumas provas.

Algumas até ganharam nas lutas de força, como a queda-de-braço.

Keise: A Jéssica ganhou de todo mundo.

Luana: Menos de mim.

Professor: Psiu! (chama a atenção). Então nós podemos praticar juntos as

atividades, tá?! Então não quer dizer que você por praticar o judô vai ser

melhor do que o outro. Não. Às vezes você é melhor numa coisa, o outro é

melhor n’outra coisa. Isso é importante pra quê? (pausa) Pra que todo mundo

possa aprender um com o outro. Não é verdade?

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Alunos: É.

Algumas premissas e suposições culturais de professores/as sobre a

masculinidade e a feminilidade participam na institucionalização de certas normas,

certas práticas. Nessa conversa com seus/suas alunos/as, o professor procura

questionar diferenciações preestabelecidas quanto ao desenvolvimento das

atividades por parte de alunos/as. O mesmo sucede em relação às capacidades

físicas, os comportamentos corporais, as práticas corporais e as formas de

participação, sendo que nesta ele busca valorizar a interação entre alunos/as.

Contudo, ao dizer – “Algumas (referindo-se às meninas) até ganharam nas

lutas de força, como a queda-de-braço” – ele carrega de significação a preposição

até, de modo a manter, reforçar a idéia de força como atributo da masculinidade.

Episódio 2: A professora reúne todos/as os/as alunos/as no centro da quadra para fazer o

fechamento da aula que teve como atividade o jogo base quatro.

Professora: Deu, deu. Todo mundo aqui dentro (Os/as alunos/as se deslocam para o

centro da quadra, discutindo quem havia ganhado o jogo). Pára de reclamar

(pausa). Chamou todo mundo que estava lá dentro?

Evelyn: Deixa a professora falar.

Professora: Me diz como vocês fazem para tentar não serem queimados?

Alunos/as: Atenção.

Professora: Ahm, atenção, o que mais?

Gabriel: Correr.

Professora: Correr (pausa). O que mais?

Gabriel: Tem que ser esperto.

Professora: O que mais Jessé?

Elias: Tem que ter força no braço.

Professora: Todo mundo achou que o Jessé era o mais ... (pausa)

Alunos/as: Forte!

Professora: Ah!

Jessé: Eu errei!

Leila: E não é? (risos).

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Professora: E o que aconteceu na hora dele?

Alunos/as: Errou.

[...]

Professora: Não me interessa quem errou ou quem acertou. O que me interessa é

vocês entenderem a lógica do jogo. Não adianta só eu ser forte, adianta?

Wellington: Não.

Professora: Adianta, por exemplo, vocês falaram que a Joelma não tinha força. A

Joelma foi queimada alguma vez?

Alunos/as: Não.

Professora: Foi Joelma?

Flávia: A Joelma [...]

Professora: Então.

Jessé: Ela foi esperta, ‘fia’.

Professora: Exatamente.

Jenifer: Ela é rápida.

Professora: Mas ela é veloz?

Alunos/as: Não.

Professora: Cadê o Vilian?

Jakson: Cadê o ratão?

Professora: Vilian é veloz?

Alunos/as: Não.

Professora: Ele foi queimado na primeira rodada, não foi?

Alunos/as: Foi.

Professora: E na segunda?

Alunos/as: Não.

Professora: E por que o Michel foi queimado na primeira e na segunda?

André: Por falta de atenção.

Gabriel: Porque ele é lento.

Professora: Só porque ele é lento, você acha? (pausa). Eu não acho.

André: Falta de atenção.

Professora: É..., eu acho que foi por falta de atenção e não porque ele é lento.

Gabriel: Então, Dona, mas só que...

Professora: Não é nem por falta de atenção. O Michel fez o quê? Arriscou muito.

Achou que dava, né, Michel, e não dava. (pausa). Quem mais foi queimado?

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[...]

Na tentativa de levar os/as alunos/as a uma reflexão sobre a lógica do jogo, a

professora depara-se com falas, argumentos estreitamente ligados a construções

sociais e culturalmente marcadas.

Atenção, correr, ser esperto, ter força são requisitos básicos, apresentados

pelos/as alunos/as, para o bom desempenho da atividade. Se atentarmos para a

história da Educação Física, vemos que esses requisitos já estiveram atrelados ao

universo masculino, no qual apenas os homens deveriam apresentá-los e/ou

desenvolvê-los.

Pegando o Jessé como exemplo, a professora parece tentar romper,

desconstruir a idéia de que o desempenho durante a atividade estaria diretamente

relacionado à capacidade física – força. Para opor ao exemplo dado, ela busca a

Joelma para exemplificar, pois esta não é considerada forte pelos/as colegas e, no

entanto, não foi queimada, obtendo um bom desempenho. Uma das leituras que se

pode fazer é que na contra-argumentação à fala da professora – “Ela foi esperta, fia”

– Jessé relaciona o desempenho da menina a um outro atributo da masculinidade,

uma vez que ela não tem força. Já a Jenifer atribui ao sucesso da colega a questão

da velocidade – “Ela é rápida” –, o que é contestado pela professora e ratificado pela

turma.

Em seguida, a professora refere-se a dois meninos – Vilian e Michel – para

continuar a reflexão. Ela tenta levar os/as alunos/as a pensarem por que um foi

queimado apenas em uma rodada e o outro nas duas rodadas. Uma das

argumentações – “Porque ele é lento” – pode indicar a relação do fracasso a um

atributo socialmente marcado como feminino. A outra argumentação, apresentada

pelo André, refere-se à falta de atenção do aluno durante a atividade, o que é, por

um momento, confirmado pela professora e, num segundo momento,

redimensionado para outra esfera marcadamente masculina – risco, perigo, a qual

foi mencionada no trabalho de Saraiva (1999). Dessa forma, o dizer da professora

parece evidenciar a idéia de risco como mais um atributo da masculinidade.

Força, esperteza, rapidez – atributos da masculinidade – são atribuídos pela

professora tanto a meninos quanto a meninas no decorrer das explicações e

reflexões. Tentando encadear um raciocínio sobre o entendimento da lógica do jogo

base quatro, a fala da professora também indica que não é qualquer um desses

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atributos que é importante para se dar bem no jogo, ou seja, força e rapidez podem

não ser essenciais para obtenção do sucesso no jogo.

Os enunciados do professor (episódio 1) e da professora (episódio 2), que

inicialmente indiciam desconstruções de algumas idéias pré-concebidas a respeito

das relações de gênero, passam, no decorrer da dinâmica interlocutiva, a apresentar

uma incoerência entre o que foi dito e o que se diz. Esse fato nos remete a Fontana

(2003), a qual elucida que os discursos não podem ser analisados sem conflitos e

tensões, pois os lugares de onde eles são produzidos não são necessariamente

harmônicos e de consensos, o que nos leva a confirmar que a nossa própria idéia

nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros.

Ao colocar a compreensão da palavra na ordem da intersubjetividade,

Vigotski (1993) destaca o lugar das interações sociais como espaço privilegiado de

construção de sentidos e, portanto, da linguagem como criação do sujeito. Assim, a

enunciação é um lugar de expressão e de constituição da subjetividade, mas seu

sentido só se produz numa relação de alteridade (AMORIM, 2002).

Em relação à interação professora–aluno/a, percebe-se que há um destaque

do número de registros verbais realizados pelos meninos, o que pode indicar maior

interação dessa professora com os meninos.

Voltando à pergunta realizada anteriormente quanto à presença da

pesquisadora ter influenciado a prática do professor e da professora, acrescento

que, talvez, o professor nem a professora tenham atentado, antes, para as questões

de gênero em suas aulas. Mesmo que a minha presença como pesquisadora tivesse

modificado o modo de ele e ela lidarem com essas questões em aula, mudando as

condições desta, nada disso compromete a produção de sentidos e significados de

feminilidade e masculinidade em aula, uma vez que, coerente com o referencial

adotado, o que propomos analisar não foram as situações em si, mas as relações

dialógicas, entendidas como relações de sentidos que decorrem da responsividade

inerente a todo e qualquer ato enunciativo, como nos diz Bakhtin (1993).

Entre as muitas e diferentes possibilidades de análise dos episódios

apresentados nos três eixos temáticos citados, procurei apreender e identificar

aspectos ideológicos no fluxo do discurso durante as aulas de Educação Física,

pois, de acordo com Smolka (1992), as palavras proferidas estão carregadas de

significados sociais já constituídos e estabilizados, porém, no momento da

enunciação concreta, as frases feitas ganham nuanças, marcas e ênfases

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específicas. Dessa forma, os sujeitos, imersos em um contexto cultural, “não se

apropriam simplesmente de palavras de um sistema acessível e fixo, de expressões

já prontas” (1992, p.332), mas participam, efetivamente, no processo de construção

de conhecimento e de sentido.

4.1.4 Dialogando com os/as alunos/as

Uma simples e rápida conversa – apenas cinco minutos – e tantas questões

postas. Discursos que, como a extensão do pensamento, refletem uma imensidão de

aspectos históricos e sociais relacionados a construções de feminilidade e

masculinidade entranhados na realidade pela realidade. Esses aspectos cumprem

um papel decisivo na formação de cenários concretos para o desenvolvimento da

atividade consciente, o qual abrange evoluções e também revoluções, pois o

conhecimento do mundo é sempre mediado pelas práticas sociais, pela linguagem,

como também pelo(s) outro(s). E é nessa perspectiva que Vigotski e Bakhtin vêem o

indivíduo como um ser em constante processo de constituição.

No diálogo a seguir, conduzido pela pesquisadora, podemos perceber que

todo o processo de produção de discurso é marcado por construções histórico-

culturais, havendo a presença de múltiplos papéis sociais e ressonâncias de vozes

sociais que podem ser ouvidas nos movimentos enunciativos dos/as alunos/as.

Evidenciam-se, desse modo, várias contradições e tensões nos posicionamentos

dos/as mesmos/as, a multiplicidade e o conflito, que vivem nas relações sociais e

práticas corporais que os constitui, e que também se produzem dentro deles/as.

Na busca de aproximarmo-nos desse movimento em que o tecido vai sendo

feito, mergulhamos na multiplicidade dos fios em movimento, procurando

compreender a trama que vai sendo urdida (FONTANA, 2003).

Conversa: A professora faz uma auto-avaliação dentro de sala com seus/suas alunos/as

e ao final pede para eles/as subirem para o pátio. Enquanto ela fica na sala

fechando as médias, eu converso com a turma no palco.

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[...]

Pesquisadora: Então vocês acham que tem diferença de fazer atividades sendo

homem ou sendo mulher?

Kaique e Augusto: Não.

Milerson: Tem.

Pesquisadora: Não tem. Você falou que tem, por que tem diferença? De jeito homem

ou mulher nas aulas de Educação Física?

Laura: Porque ele se acha.

Augusto: Porque tem mulher que joga futebol, basquete...

Kaique: Oh, Dona, olha ...

Milerson: Eu não me acho. Ela está errada.

Kaique: Que tem o jeito de pegar na bola também, Dona. De mandar pra cá. Porque

se pegar forte no meio da bola, a bola vai vir rasteira e não vai passar por

cima, Dona.

Augusto: É.

Kaique: Tem que pegar certo na bola.

Milerson: Tem gente que não sabe onde é o lugar certo pra chutar, né?!

Pesquisadora: Tem gente. Tanto menino como menina. Tem menino também que ...

Milerson: A maioria dos meninos sabe, né?!

Pesquisadora: A maioria (pausa). Por que a maioria dos meninos sabe?

[...]

Milerson: É mais um esporte praticado por menino, né?!

Kaique: É.

Pesquisadora: Mas a Olívia?

Milerson, Kaique e Allan: Ah, a Olívia...

Kaique: Ah, Dona, porque ela não gosta das brincadeiras de menina.

Augusto: Ela gosta mais de futebol.

Pesquisadora: Ah! Ela não gosta das brincadeiras de menina? (Alguns meninos

respondem juntos: “É.”)

Pesquisadora: E o que você separa em ser brincadeira de menina e brincadeira de

menino?

Milerson: Boneca.

Kaique, Milerson e outros colegas: Boneca, casinha...

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Débora: Boneca nada ‘fio’. É vôlei, essas coisas.

[...]

Milerson: O menino é carrinho, a menina é boneca, casinha...

Pesquisadora: Por quê? Por que você acha que o menino não pode brincar de

casinha e ser o pai da família, não?

Laura e algumas colegas: Lógico que pode.

Milerson: Eu já brinquei, Dona.

Pesquisadora: Oi?

Milerson: Eu já brinquei.

Pesquisadora: Pois é. Como você está falando que é a menina que brinca de

casinha?

Flávia: Oh, Dona!

Pesquisadora: Oi.

Flávia: E também a brincadeira é para todos divertirem e não só cada (pausa) um

menino e outra é menina. É igual.

[...]

Vilian: Oh, Dona. Oh, Dona. O Tadeu aqui mesmo falou que brinca de boneca.

Pesquisadora: Fala alto aí, Tadeu.

Vilian: Ele falou que brinca de boneca. O Tadeu (alguns colegas riem).

Pesquisadora: Ué, pode brincar. Ele pode brincar; ser o pai ou a mãe da boneca.

Milerson: Você brinca, Tadeu?

Tadeu balança a cabeça positivamente.

Pesquisadora: O que tem ele brincar, gente?

Milerson: Ah, Dona. Mas que é estranho, Dona. Credo! Ave! Você brinca de boneca

Barbie?

Tadeu: Não.

Milerson: Não?

A professora chega ao pátio e eu conto a ela a indignação do colega pelo

outro brincar de boneca.

Milerson: Mas, Dona (pausa), isso não é brincadeira de menino, né?! (Alguns alunos

falam juntos: É estranho).

[...]

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A professora interrompe a discussão para fazer o encerramento do bimestre e

do ano letivo. Ela pergunta o que os/as alunos/as acharam do ano, se eles/as

sentiram diferença em relação à Educação Física, se foi muito diferente do que

faziam na outra escola. Os/as alunos/as respondem que sim e a professora pergunta

por quê.

Flávia: Porque a gente era livre lá. Eles davam... (é interrompida).

Milerson: Eles davam só futebol e qualquer coisa.

Flávia: Para os meninos eles sempre davam futebol. Para as meninas era vôlei.

Kaique: Não era bem assim não!

Professora: Espera aí. Fala um de cada vez para mim.

Kaique: Oh, Dona, se ele dava futebol lá, ele não organizava o time, era nós que

organizávamos (Michel concorda).

Vilian: As meninas também não jogavam muito. Elas pegavam o som e ficavam

escutando música lá e dançando.

Kaique: E dançando... (os dois riem).

Professora: Aqui o Michel. Fala.

Michel: Eu ia falar a mesma coisa que eles.

Professora: E as meninas, falam um pouquinho do que vocês acharam (o Michel

pede a palavra).

Michel: Mas quase toda sexta-feira nós jogava futebol. Era tipo marcado, não era

Kaique?

Kaique: É.

Michel: Toda sexta-feira.

Professora: E você achava isso bom?

Michel: Mas não ensinava nada, só jogava vôlei.

Professora: E as meninas? Fala um pouquinho.

Vilian: Só dava a bola pra gente lá e a gente ficava só brincando do que a gente

queria.

Pesquisadora: Eu posso interferir um momento? (professora e alunos/as permitem).

Pesquisadora: O que vocês me falaram antes que menino que sabe chutar a bola,

porque o menino sabe onde pegar na bola e as meninas não sabem. Está

explicado por quê? Quem teve a maior vivência no futsal?

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Vilian: Os homens.

Pesquisadora: Foram os meninos. Que nem vocês falaram – nas aulas de Educação

Física quem é que jogava sempre, independente dos esportes?

Milerson: Os meninos. Eles gostam.

Pesquisadora: E as meninas (pausa) faziam o quê?

Alunos: Vôlei.

Pesquisadora: Vôlei quando não ficavam o quê?

Alunos/as: Dançando.

Pesquisadora: Dançando no quê? (pausa) Cantinho ou ficava na quadra inteira?

Alunas: Cantinho.

[...]

Augusto: Ficava no pátio a maioria.

Pesquisadora: Então está explicado porque às vezes o menino tem mais

familiaridade com a bola, se dá melhor no chute? Porque ele tem uma maior

vivência, um maior contato com a bola. Coloca a Olívia. A Olívia não chuta

bem?

Alunos/as: Chuta.

Pesquisadora: Por quê?

Milerson: Ah, porque ela tem força (outros/as alunos/as falam o mesmo).

Pesquisadora: Ela tem uma vivência maior com a bola.

Flávia: É verdade.

O recorte transcrito da conversa coloca em evidência algumas brechas,

tensões e conflitos nos enunciados dos meninos. Quando a pesquisadora pergunta

se eles/as percebem alguma diferença em se fazer atividades sendo homem ou

mulher, dois meninos – Kaique e Augusto – afirmam que não tem e um outro menino

– Milerson – discorda deles. Para justificar a sua afirmação, Augusto fala: “Porque

tem mulher que joga futebol, basquete...”, o que indicia uma relativização quanto à

participação de mulheres nessas práticas esportivas, pois ele deixa a entender que

não são todas as mulheres que vivenciam as referidas práticas. E mais: ao

concordar com a fala do Kaique – “Que tem o jeito certo de pegar na bola também

Dona (...)” – ele acaba reforçando a idéia de que não são todas as mulheres também

que sabem chutar uma bola e deixa-nos uma impressão de contradição à sua

afirmação inicial quanto à não-existência de diferenças.

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Os dizeres do Milerson – “Tem gente que não sabe onde é o lugar certo pra

chutar, né?!” – também trazem os indícios expostos anteriormente, além de buscar

uma confirmação de algo que ele parece acreditar. Assim, as falas desses meninos

acabam promovendo uma expectativa em relação às práticas corporais entre

meninos e meninas.

Nos enunciados de Milerson a respeito das práticas esportivas e das

brincadeiras – “É mais um esporte praticado por menino” (se referindo ao futebol), “O

menino é carrinho, a menina é boneca, casinha”, “isso não é coisa de menino, né?!”

– podemos captar indícios de uma diferenciação de práticas e brincadeiras próprias

de meninas e de meninos, remetendo, assim, à internalização de uma construção

cultural. Essa diferenciação de brincadeiras próprias de meninas e de meninos foi

comentada por Saraiva (1999).

Presentifica-se em tais enunciados a existência de múltiplas vozes, vozes da

história que se atualizam nos dizeres do menino e que o significam, pois, segundo

Fontana (2003, p.64), “o outro, próximo ou distante, fala em nós, do mesmo modo

que também falamos nos/pelos outros”.

Utilizando exemplos da vida diária que, por certo, todos nós já vivenciamos,

Daolio (1997, p.82-83) esclarece que:

Sobre um menino, mesmo antes de nascer, já recai toda uma expectativa de segurança e altivez de um macho que vai dar seqüência à linhagem. Na porta do quarto da maternidade, os pais penduram uma chuteirinha e uma camisa da equipe de futebol para a qual torcem. Pouco tempo depois, dão-lhe uma bola e o estimulam aos primeiros chutes. Um pouco mais tarde, esse menino começa a brincar na rua (futebol, pipa, subir em árvores, carrinho de rolimã, skate, bolinha de gude, bicicleta, taco etc.), porque, segundo as mães, se ficar em casa vai atrapalhar. Em torno de uma menina, quando nasce, paira toda uma névoa de delicadeza e cuidados. Basta observar as formas diferenciais de se carregar meninos e meninas, e as maneiras de os pais vestirem uns e outros. As meninas ganham de presente, ao invés de bola, bonecas e utensílios de casa em miniatura. Além disso, são estimuladas o tempo todo a agir com delicadeza e bons modos, a não se sujarem, não suarem. Portanto, devem ficar em casa, a fim de serem preservadas das brincadeiras “de menino” e ajudarem as mães nos trabalhos domésticos, que lhes serão úteis futuramente quando se tornarem esposas e mães.

O estudo das expressões corporais características de cada cultura, como já

dizia Daolio (1995), não pode se reduzir a uma simples classificação de movimentos,

pois, mais do que saber que os corpos se expressam diferentemente porque

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representam culturas diversas, é mister compreender os símbolos culturais que

estão representados no corpo.

Em um trabalho sobre os estereótipos de gênero realizado na Argentina,

Miranda & Antunez (2006), ao analisarem o jogo infantil, considerando-o como uma

forma de aprendizagem por excelência, relatam que, enquanto as meninas brincam

de bonecas (futuro papel de mãe), os meninos brincam de carrinhos; elas têm uma

oferta maior de atividades expressivas e individuais, eles, de atividades desportivas

e grupais; elas, dentro de casa ou em espaços fechados; eles, nas ruas ou em

espaços abertos. De acordo com as autoras, todas essas aprendizagens infantis

direcionam o futuro atuar do adulto e vão forjando as representações de

feminilidades e de masculinidades.

Assim, tais estudos permitem-nos observar o quanto os comportamentos e

hábitos corporais são construídos a partir das concepções presentes numa dada

sociedade, podendo determinar, assim, efeitos de verdade, que vão constituir os

indivíduos.

Apesar de algumas mudanças no âmbito das práticas sociais, Miranda &

Antunez (2006) afirmam que muitas idéias permanecem intactas, como as

atribuições de características tidas como inerentes a um sexo ou outro e a contínua

vinculação à mulher de determinados tipos de atividades que recebem valor de

tipicamente femininas. Essas e outras atividades, como as vinculadas à expressão,

dança, ritmo, têm delimitado um campo notoriamente feminino da prática corporal,

levando à escuta de frases como ‘isto é coisa de menina!’

Num outro momento do diálogo, uma contradição é evidenciada no enunciado

do Milerson – “Eu já brinquei” –, indiciando a vivência da brincadeira de boneca por

parte do menino, o que leva a uma desarticulação, tensão no pensamento. Essa

tensão, para Bakhtin (1993), não é algo negativo nem algo a ser superado. Ao

contrário, ela é constitutiva da criação humana, porque ela é o que atesta a

presença do outro, daquele que não se identifica comigo, daquele que me escapa e

a que minha palavra se dirige.

Esse jogo de sentidos demonstra como a constituição processa-se

contraditoriamente, fazendo com que o espaço da subjetividade seja tenso, pois,

Por sermos uma multiplicidade (de papéis e de vozes) na unidade, nossa consciência e identidade se constituem como contradição, e não como coerência; como multideterminação, e não como indeterminação; como

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confronto, e não como harmonia. (...) Nossa singularidade é “lugar de passagem”, é uma contradição produzida historicamente na dispersão das interações, no desafio de compreender o vivido (“nem sempre percebido”) nas suas incoerências e contradições. (FONTANA, 2003, p.67)

Nesse percurso de multiplicação de sentidos, o diálogo vai tomando

proporções não planejadas. Quando a professora retoma a aula e pergunta sobre as

experiências tidas em relação às aulas de Educação Física naquela escola e na

escola anterior, uma menina e, novamente, a maioria dos meninos trazem

informações que podemos considerar valiosas, pois vêm, de certa forma, reforçar

muitos dos comportamentos e pensamentos anteriormente apresentados e

analisados. Assim, há um resgate da vida escolar, o qual pode ser considerado um

elemento para a compreensão de muitas falas, atitudes de meninos e meninas, uma

vez que a vida escolar e as experiências anteriores podem influenciar a constituição

desses indivíduos.

Milerson, Kaique e outros meninos expõem que tinham sempre como

atividade o jogo de futebol, enquanto a Flávia diz que as meninas jogavam o

voleibol. Todavia, um colega seu – Vilian – elucida que as meninas também não

jogavam muito, pois elas pegavam o som para escutar música e dançar. Essas

experiências de práticas segregadas em relação ao sexo podem acentuar as

diferenças socialmente construídas em torno dos sujeitos. Essas diferenças que se

estabelecem entre algumas atividades próprias de meninas e de meninos tem mais

outra conseqüência: a diferenciação de espaços que são para umas e outros, que

está diretamente ligada aos atributos sociais e simbólicos já mencionados.

No curso do diálogo com a pesquisadora é notória a freqüência discursiva

entre pesquisadora-alunos. As meninas praticamente não se manifestam,

permanecendo em silêncio. O mesmo acontece com a professora quando tenta

direcionar os questionamentos a elas por duas vezes, porém são os meninos que

tomam a voz. Esse fato nos faz lembrar uma indagação de Fontana (2003, p.93): “O

que significa, o que pode significar o nosso silenciamento diante da relação de poder

de que está carregado o lugar social que ocupamos como sujeitos?”

O silenciamento de aspectos das relações vividas, segundo Dejours (apud

FONTANA, 2003), tem sempre um valor expressivo; conforme as considerações de

Orlandi, também citada por Fontana, temos que a partir do silêncio sempre se diz

algo, porém o discurso está relacionado com a ideologia e a determinação histórica

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como o lugar de onde se podem apreender as possibilidades de significação do

silenciamento. Assim:

Eni Orlandi nos coloca diante da dimensão política do silêncio: “fazer dizer ‘uma coisa’ para não deixar dizer ‘outras’ (...) o silêncio recorta o dizer”. Na perspectiva da análise do discurso, a consciência individual não nos explica. “O silenciamento [é] um fato discursivo que se passa nos limites das diferentes formações discursivas que estão em relação... diz respeito às relações do sujeito com o dizível.” (FONTANA, 2003, p.94)

Esse silêncio incômodo e inquietante também é um signo, que pode ser

revestido de um sentido ideológico, pois possui um significado. Tal silêncio, quiçá,

seja conseqüência, resquícios de uma história passada, mas ainda inacabada.

Contudo, a sua compreensão não pode se manifestar senão através de um material

semiótico, ou seja, a consciência só pode surgir e se afirmar como realidade

mediante a encarnação material em signos, que se dá somente no processo de

interação social. Por isso que, para Bakhtin (1990), a consciência individual não nos

explica.

Assim, no lugar de análise encontra-se o silêncio. Este, “como marca da

alteridade radical e como signo de presença de um regime discursivo22 dominante

constitui-se, ao mesmo tempo, limite e abertura para o pensamento bakhtiniano”

(AMORIM, 2002, p.17).

“As interações, elas próprias determinadas, configuram o sujeito singular”, diz

Fontana (2003, p.51).

Os estudos que abordam as interações como constitutivas, como os de

Kramer (1993), Kramer & Souza (1996) e Fontana (2003), consideram que é nas

relações com o outro que os modos de compreensão e de elaboração do mundo e

de si mesmo são produzidos, re-produzidos e transformados num movimento

contínuo, que articula dialeticamente os sujeitos e a exterioridade das condições de

produção dessa relação.

Nessa perspectiva, os/as alunos/as internalizam as informações transmitidas

pelo meio social, reelaboram e criam idéias sobre a maneira de ser e agir das

pessoas com quem dialogam e convivem, iniciando um ciclo em que surgem as

construções sociais mais sofisticadas sobre masculinidades e feminilidades, dotadas

de alta eficácia simbólica.

22 Em seu artigo, Amorim (2002) propõe a utilização do termo regime, e não gênero, para distingui-lo do

conceito bakhtiniano de gênero.

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Durante o diálogo, pode-se perceber que são os meninos que falam, tentam

explicar e argumentar algumas indagações proferidas pela pesquisadora, deixando

aflorar as representações dos componentes sígnicos que, de acordo com o contexto,

indiciam uma visão de mundo marcada por gênero.

4.2 Pra onde caminha essa história...

Afastando-nos de uma visão de corpo apenas como algo biológico,

enveredamos por uma perspectiva que contaria pensar o corpo, também, como algo

produzido na e pela cultura, em um processo de construção social no qual lhe são

conferidas diferentes marcas, em diferentes tempos, espaços, grupos sociais,

conjunturas econômicas e políticas.

O corpo, assim visto e tido, é provisório, mutável e mutante e, na visão de

Goellner (2003), suscetível a inúmeras intervenções consoante o desenvolvimento

de cada cultura, bem como suas leis, seus códigos morais, os discursos que sobre

ele produz e reproduz. Nesse sentido, os estudos de gênero – essencialmente

feminilidade e masculinidade – são fundamentais para compreender os modos como

a identidade é (des)construída nos percursos de escolarização, contribuindo para a

(re)definição de concepções de feminilidade e masculinidade pelo sistema cultural.

A reflexão sobre as relações entre sujeitos e grupos impõe que analisemos

conflitos, disputas e jogos de poder historicamente implicados nessas relações.

Supõe, também, reconhecer que vários embates culturais são levados a efeito em

diversas situações cotidianas.

Certos comportamentos e usos corporais, movimentos, entre outros aspectos

explicitados durante as análises, vão sendo (re)construídos por alunos/as, fazendo

do campo da Educação Física Escolar um espaço de constituição de subjetividades

através das produções e reproduções de sentidos de feminilidade e de

masculinidade. E a administração desses sentidos determina, como já apontado,

modos distintos de participação nas aulas de Educação Física, principalmente no

que se refere ao universo das práticas corporais e esportivas.

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Em alguns processos de interlocução, as falas nos deixam fortes indícios de

que atributos como sensibilidade e delicadeza estão atrelados à feminilidade,

enquanto força, violência, contato corporal e liderança estão associados à

masculinidade. Durante alguns momentos, como a elaboração de estratégias para o

jogo base quatro, também ficaram explícitas as relações de poder atreladas às

expectativas tradicionais relacionadas à masculinidade.

Mesmo que haja certa aproximação de sentidos produzidos em torno de

atributos de masculinidade e de feminilidade em alguns enunciados, há diferentes

posturas assumidas por meninas e meninos no cotidiano das relações sociais.

Dessa forma, podemos perceber que meninas também exercem poder sobre os

meninos e as demais meninas, podendo liderar e assumir disputas com os meninos,

como exposto no episódio 5 do segundo eixo de discussão.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que indícios de sentidos e significados

sobre diferenças entre masculinidade e feminilidade são produzidos, há a

relativização dessas diferenças, o que acaba introduzindo brechas e tensões nos

sentidos de feminilidade e masculinidade. Isso nos mostra que os sentidos estão em

permanente construção na dinâmica interlocutiva e configurando múltiplos cenários.

Na perspectiva de análise proposta, feminilidade e masculinidade carregam

marcas de diferentes práticas sociais e culturais que são construídas através de

discursos produzidos na sociedade e em meio às relações de poder estabelecidas

por um sistema de significados dominante, que impõe formas de comportamento e

naturaliza relações que são construídas.

Nas interações sociais, os significados e sentidos de dizeres, práticas e

relações vão-se tecendo no movimento de articulação/negação/negociação

(FONTANA, 2003) das possibilidades colocadas em jogo na dinâmica interativa,

ocorrendo trocas simbólicas em um espaço marcado pela intersubjetividade. Desse

modo, a linguagem, que atravessa e constitui a maioria das práticas, não apenas

expressa relações, poderes, ela os institui. Ela não apenas veicula, mas produz e

tenta fixar diferenças entre os sujeitos.

“Todos e todas nós participamos desses processos de produção, de forma

mais ativa ou mais passiva, sofrendo-os ou impondo-os, a nós mesmos e aos outros

com quem convivemos profissional e afetivamente” (MEYER, 2003, p.25).

Discursos ligados a práticas corporais e esportivas, proferidos por alunos/as,

professor e professora, tentam (re)produzir uma verdade sobre os sujeitos e sobre

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seus corpos, resultando num saber que, traduzidos, revelam hierarquias entre

indivíduos, concepções de feminilidade e masculinidade atribuídas e, às vezes,

assumidas pelos/as próprios/as atores/atrizes sociais.

Assim, os enunciados dos/as alunos/as apresentam vários indícios de

tensões nos sentidos de feminilidade e masculinidade no momento em que

evidenciam que características como força e liderança são atribuídas tanto a

meninos quanto a meninas. Entretanto, não podemos esquecer que, ao dizer que

meninas podem ser fortes, por exemplo, ainda se trata de atribuir características

típicas da masculinidade a algumas delas, e o contrário também acontece.

No curso do diálogo com a pesquisadora e a professora, também é notório o

silêncio das meninas. Esse silêncio incômodo, talvez, seja conseqüência de uma

história passada, mas ainda inacabada. Assim, no lugar de análise, encontra-se o

silêncio constituindo-se limite e abertura para o pensamento bakhtiniano.

Ainda temos que os momentos das brincadeiras, dos jogos e dos esportes

são expressivos para a presença de sentidos e significados de feminilidade e

masculinidade, em especial naquelas práticas corporais que se encontram

permeadas por construções simbólico-culturais, evidenciando distintas maneiras de

conceber referidas concepções.

Assim, as experiências de práticas segregadas em relação ao sexo podem

acentuar as diferenças socialmente construídas em torno dos sujeitos e estabelecer

mais outra conseqüência: a diferenciação de espaços que são para umas e outros e

que está diretamente ligada aos atributos sociais e simbólicos já mencionados.

Esses dois aspectos – as práticas segregadas e a utilização diferenciada de

espaços – parecem continuar sendo uma ocorrência em nossa sociedade e,

particularmente, no espaço das aulas de Educação Física, evidenciando sentidos de

feminilidade e masculinidade. Essa separação não é algo natural, e sim uma

questão cultural. De acordo com a teoria adotada, a cultura está presente na

constituição do indivíduo, e esta é socialmente mediada através das inúmeras

relações que estabelecemos, havendo a incorporação dos modos culturais de agir,

pensar, de se relacionar com os outros e consigo mesmo.

Como área de conhecimento, a Educação Física deve tratar das práticas

corporais construídas ao longo dos tempos. Entretanto, como afirmam Soares et al.

(1992), não se trata de qualquer prática ou movimento, e sim daqueles que se

apresentam na forma de ginástica, jogos, danças, esportes, lutas, pois as vivências

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dessas formas, seus sentidos e significados são aspectos a serem problematizados

em todos os níveis da educação básica.

Não obstante, a significação não está pronta, como um prato a ser servido,

pois, apesar de os significados das palavras conterem elementos reiteráveis e

idênticos cada vez que são repetidos, transformando-se ao longo do processo

histórico da humanidade, os sentidos são dinâmicos e permanentemente

construídos na interação, significando nas condições específicas de produção, como

nos diz Bakhtin (1990).

Dessa forma,

os dizeres estão marcados pelo lugar que os sujeitos ocupam, pelas relações de poder configuradas entre eles, pelas expectativas recíprocas produzidas entre os interlocutores quanto ao que se deve/pode dizer (...). O dizer tem história e os sentidos estão tanto aquém como além das palavras (LIMA, 2005, p.38),

pois esse não existe em si, mas é determinado pelas posições colocadas em jogo

durante o processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. E:

Não se trata tão somente – dizem – de saber a respeito da anatomia do corpo humano. Nem tampouco prender-se unicamente ao estudo de sua biomecânica. Mas sim e essencialmente, de entendermos que aquilo que define a Consciência Corporal do Homem é a sua compreensão a respeito dos signos tatuados em seu corpo pelos aspectos sócio-culturais de momentos históricos determinados. É fazê-lo sabedor de que seu corpo sempre estará expressando o discurso hegemônico de uma época e que a compreensão do significado desse “discurso”, bem como de seus determinantes, é condição para que ele possa vir a participar do processo de construção de seu tempo e, por conseguinte, da elaboração dos signos a serem gravados em seu corpo. (CASTELLANI FILHO, 1988, p.221)

Assim, muitos dos enunciados de alunas, alunos, professor e professora

trazem fortes indícios da internalização de certos valores e discursos atrelados a

construções histórico-culturais de feminilidade e masculinidade que ainda participam

da institucionalização de práticas e normas, como a diferenciação de brincadeiras

entre meninos e meninas e a ocupação de espaços, sem, contudo, serem

necessariamente percebidos.

Maneiras de ser, de se comportar, de realizar práticas corporais, bem como

padrões estabelecidos para um ou para outro sexo, balizam sentidos e significados

de feminilidade e masculinidade, que articulam passado e presente através de novos

discursos e de novas maneiras de significar. Tais sentidos manifestam-se

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transitórios e, ao mesmo tempo, permanentes, porque já estão gravados em nossa

memória, assumindo, contudo, formas sempre reinventadas.

Essa é a questão que pretendíamos discutir, com a certeza de que o

problema aqui não se esgota, mas com a intenção de reacender os discursos nas

práticas da Educação Física na escola. Afinal, não existe um discurso e uma prática,

mas discursos e práticas que os indivíduos constroem nas instituições.

Enfim, sujeito e história (con)fundem-se.

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