a preservação do patrimônio e o tecido urbano

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http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.003/992 Page 1 of 4 May 15, 2015 07:47:05PM MDT vitruvius | arquitextos 003.05 vitruvius.com.br como citar MENEGUELLO, Cristina. A preservação do patrimônio e o tecido urbano. Parte 1: A reinterpretação do passado histórico. , São Paulo, ano 01, n. 003.05, Vitruvius, ago. 2000 Arquitextos <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.003/992>. A preservação dos antigos centros ou de partes da cidade, seja no Brasil ou no exterior, exige a revisão de conceitos fundamentais como a preservação do patrimônio, o novo uso conferido às áreas preservadas e, especialmente, as diferentes interpretações do passado histórico urbano. Seja pelo fato de estas áreas terem admitido diferentes utilizações em função do crescimento das cidades, seja pelos usos que edifícios tombados assumem dentro da trama urbana hoje, é difícil tratar a questão em toda sua complexidade se optarmos por um olhar nostálgico que valorize apenas a preservação . per se O uso dado aos imóveis tombados pelo patrimônio histórico muitas vezes leva a uma elitização de sua fruição; e por vezes é difícil negar sua incompatibilidade com o crescimento voraz da cidade. Por este motivo a questão da reinterpretação do passado se impõe. Somente uma conceituação complexa de um passado histórico descontínuo e reconstruído pode ultrapassar as materialidades mais imediatas e alinhar a preservação do patrimônio às questões prementes trazidas pela globalização, como o uso turístico dado a edificações e regiões da cidade e a necessidade de redefinir os centros urbanos em função das exigências do capitalismo financeiro. Finalmente, cabe questionar para quem se preservam áreas e imóveis, por que e em nome de que passado. Afinal, embora a preservação urbana tenha sido realizada em nome da manutenção de uma linha de continuidade com o passado, "a preservação deve ser pensada como trabalho transformador e seletivo de reconstrução e destruição do passado, que é realizado no presente e nos termos do presente" (2). As estratégias de preservação do patrimônio e de tombamento de edifícios ou regiões afetam não apenas o traçado urbano das cidades mas os usos dos mesmo locais. O fato de as práticas de preservação terem sido transformadas em "tema favorito" dos meios de comunicação e do discurso político é um dado alarmante exigindo que essas sejam questionadas para além de sua faceta "positiva" e no que concerne o estabelecimento da identidade e pertencimento conferido pelo patrimônio. A apropriação da história deve vir não apenas como "citação material" (e necessariamente visual) do passado, mas como trazendo em si a possibilidade de transformação. O patrimônio, noção que em Roma definia apenas o direito de herança, adquire seu caráter público a partir do Renascimento, valorizador da herança artística legada pela Antigüidade; e seu caráter de direito de memória quando o Estado, a partir do século dezenove, registra a materialidade do passado e estabelece a identidade nacional. Já a noção de patrimônio urbano, preconizada em países como a Itália apenas a partir da década de 60 de nosso século, atinge o de bem de significação cultural e humana a ser conservado e restaurado (Carta de status Veneza, 1964), embora práticas difusas de preservação já existissem, também no Brasil, desde a década de 1910, incrementadas com a rápida urbanização do início do século. A preservação do patrimônio surge como uma necessidade exatamente no momento de desaparecimento dos traços urbanos do passado. Os países europeus, ao enfrentarem o processo de industrialização acelerada que descaracterizava, demolia e alterava as conformações das antigas cidades, foram os primeiros a proclamarem a necessidade de "proteger" edifícios e regiões do desmedido crescimento da cidade que demandava mais e mais espaços. Segundo Françoise Choay, a Inglaterra preconizou ainda no

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    vitruvius | arquitextos 003.05 vitruvius.com.br

    como citar

    MENEGUELLO, Cristina. A preservao do patrimnio e o tecido urbano. Parte 1: A reinterpretao dopassado histrico. , So Paulo, ano 01, n. 003.05, Vitruvius, ago. 2000Arquitextos.

    A preservao dos antigos centros ou de partes da cidade, seja no Brasil ou no exterior, exige a reviso deconceitos fundamentais como a preservao do patrimnio, o novo uso conferido s reas preservadas e,especialmente, as diferentes interpretaes do passado histrico urbano. Seja pelo fato de estas reasterem admitido diferentes utilizaes em funo do crescimento das cidades, seja pelos usos que edifciostombados assumem dentro da trama urbana hoje, difcil tratar a questo em toda sua complexidade seoptarmos por um olhar nostlgico que valorize apenas a preservao .per se

    O uso dado aos imveis tombados pelo patrimnio histrico muitas vezes leva a uma elitizao de suafruio; e por vezes difcil negar sua incompatibilidade com o crescimento voraz da cidade. Por estemotivo a questo da reinterpretao do passado se impe. Somente uma conceituao complexa de umpassado histrico descontnuo e reconstrudo pode ultrapassar as materialidades mais imediatas e alinhara preservao do patrimnio s questes prementes trazidas pela globalizao, como o uso turstico dadoa edificaes e regies da cidade e a necessidade de redefinir os centros urbanos em funo dasexigncias do capitalismo financeiro. Finalmente, cabe questionar para quem se preservam reas eimveis, por que e em nome de que passado. Afinal, embora a preservao urbana tenha sido realizadaem nome da manuteno de uma linha de continuidade com o passado, "a preservao deve ser pensadacomo trabalho transformador e seletivo de reconstruo e destruio do passado, que realizado nopresente e nos termos do presente" (2).

    As estratgias de preservao do patrimnio e de tombamento de edifcios ou regies afetam no apenaso traado urbano das cidades mas os usos dos mesmo locais. O fato de as prticas de preservao teremsido transformadas em "tema favorito" dos meios de comunicao e do discurso poltico um dadoalarmante exigindo que essas sejam questionadas para alm de sua faceta "positiva" e no que concerne oestabelecimento da identidade e pertencimento conferido pelo patrimnio.

    A apropriao da histria deve vir no apenas como "citao material" (e necessariamente visual) dopassado, mas como trazendo em si a possibilidade de transformao. O patrimnio, noo que em Romadefinia apenas o direito de herana, adquire seu carter pblico a partir do Renascimento, valorizador daherana artstica legada pela Antigidade; e seu carter de direito de memria quando o Estado, a partirdo sculo dezenove, registra a materialidade do passado e estabelece a identidade nacional. J a noode patrimnio urbano, preconizada em pases como a Itlia apenas a partir da dcada de 60 de nossosculo, atinge o de bem de significao cultural e humana a ser conservado e restaurado (Carta destatusVeneza, 1964), embora prticas difusas de preservao j existissem, tambm no Brasil, desde a dcadade 1910, incrementadas com a rpida urbanizao do incio do sculo.

    A preservao do patrimnio surge como uma necessidade exatamente no momento de desaparecimentodos traos urbanos do passado. Os pases europeus, ao enfrentarem o processo de industrializaoacelerada que descaracterizava, demolia e alterava as conformaes das antigas cidades, foram osprimeiros a proclamarem a necessidade de "proteger" edifcios e regies do desmedido crescimento da

    cidade que demandava mais e mais espaos. Segundo Franoise Choay, a Inglaterra preconizou ainda no

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    cidade que demandava mais e mais espaos. Segundo Franoise Choay, a Inglaterra preconizou ainda noincio do sculo dezenove o movimento pela preservao de edifcios, num processo que conquistaria aparticipao do grande pblico durante o fenmeno das demolies macias dos anos 1960 e 1970 (3).

    A primeira conferncia internacional para a conservao dos monumentos histricos aconteceu emAtenas em 1931, reunindo pases da Europa; a segunda, em Veneza em 1964, contou com a participaode Tunsia, Mxico e Peru; por fim, em 1979, 24 pases dos cinco continentes participaram doestabelecimento do conceito de um patrimnio mundial. Desde os primrdios estabelecia-se a tensoentre, de um lado, os arquitetos que criticam a conservao intransigente pois almejam marcar o espaocom novas construes; de outro lado, os defensores da proteo das caractersticas da cidade contra asmarcas trazidas pelo criticado "progresso urbano". Um terceiro grupo, os proprietrios dos imveistombados, passou a reivindicar o direito de dispor de seus bens para proveito prprio (4).

    A compreenso do patrimnio est atrelada compreenso da idia de monumento histrico. Omonumento uma interpelao da memria; no apresenta nem carrega em si uma informao neutra,mas traz uma memria viva. Choay trabalha com a distino entre monumento e monumento histrico. Osentido inicial do monumento o de rememorao, para uma comunidade de indivduos, de outrasgeraes de pessoas, eventos, ritos, crenas; faz o passado vibrar dentro da existncia do presente, umuniversal cultural cuja funo mobilizar a memria coletiva e afirmar a identidade do grupo. Entretanto,essa funo de memria vai sendo progressivamente apagada, e o monumento torna-se a partir do sculodezenove primordialmente uma experincia esttica. Quatremre de Quincy designa que o monumento construdo para estabelecer o que memorvel (o monumento deixa de ser evidncia da memria e passaa cri-la), ou seja, o monumento histrico um agente de embelezamento das cidades. Ele passa a sertambm a afirmao do pblico, dos estilos, de manifestao esttica. Como conceito esttico, eledesignexiste, assim, para o consumo imediato (5).

    Logo, o monumento histrico no um dado sempre existente, mas uma inveno ocidental datada queganha fora a partir da segunda metade do sculo dezenove (na Frana, por exemplo, a expressomonumento histrico vai entrar no dicionrio na segunda metade daquele sculo). No mesmo momentoem que Guizot cria o posto em 1830 de inspetor de Monumentos Histricos, na Inglaterra John Ruskinpublica um panfleto sobre a inaugurao do Crystal Palace, em que discute a importncia da preservaodos edifcios histricos. O Palcio de Cristal, edificao em ferro e vidro concebida para a ExposioUniversal de Londres, surgia como um marco da arquitetura industrial.

    Portanto, a consagrao do monumento histrico surge na Inglaterra e na Frana ligada ao evento da eraindustrial, justamente como testemunha do varrer de reas inteiras das cidades em funo do crescimentourbano, seja ele em forma de celebrao grandes edifcio pblicos que atestam a riqueza seja nocrescimento desordenado proporcionado pela construo de habitaes operrias (os cortios, os )slumsfeita por empreiteiros (6).

    De modo geral, a noo de patrimnio urbano se constitui contra o processo de urbanizao dominante,numa relao de contnua reinterpretao do que seria a cidade antiga inclusive com as idias de umaesfera pblica ideal. No entender de Ruskin e William Morris, a cidade em si possua o papel demonumento, cujos habitantes estariam alheios ao espao e tempo da transformao industrial. Foram osprimeiros a defender a sobrevivncia ou o retorno da vida pr-industrial a nostalgia inglesa quealimentou, em parte, os planos de comunidades ideais que culminaram, um sculo mais tarde, no ideal dacidade jardim. A cidade antiga e suas runas, visitadas e revistadas pelos arquitetos e artistas do sculodezenove, comeam neste momento a ter um carter de museu "ao ar livre".

    Vrios autores j reconheceram em nosso sculo a transformao de todos os objetos do passado em

    testemunho histrico, mesmo que em seu princpio no fossem destinados memria histrica. Isso deu

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    testemunho histrico, mesmo que em seu princpio no fossem destinados memria histrica. Isso deuorigem em pases da Europa a concepo de que todo artefato humano pode ser investido de uma funode rememorao, de uma vontade de escapar ao do tempo. Na sndrome do patrimnio vivida a partirdos anos 1970-80, e denominada por Pierre Nora como "fria preservacionista" (7) ou por Choay como"complexo de No", a preservao fez-se em nome desse "passadismo". Os edifcios autnticos e seussimulacros, justificados por um vago conceito de democratizao cultural, funcionam mais como umasatisfao dada ao intelecto (uma vontade de arte) do que uma experincia artstica em si, ou seja, afruio dominada pelo afetivo e pelo crivo do nostlgico.

    Em suma, o "fato patrimonial" dotado de trs caractersticas: o destino das obras e objetos, arepresentao da coletividade e a interpretao do passado (8). A essncia do monumento estexatamente nesta relao entre o tempo vivido e a memria, onde o restante contingente enquanto ele um valor universal.

    A "necessidade por passado" pode ser entendida ento como do reino da nostalgia, a "memria subtradada dor" como o definiu David Lowenthal (9). Os traos do passado da cidade - suas runas - so,simultaneamente, sinais de um passado imaginado que tem o poder de nos reconfortar, como sinnimo deuma proximidade; sinais de um passado artstico; marca de uma continuidade e de um finalismo (comoobra terminada, acabada, nos do a segurana e o apaziguamento do momento em que o passado sedeixa captar como modo esttico). Os monumentos histricos funcionam ento como representaes oucones de um passado atemporal, uma criao artstica do passado e simblica do presente, dentro de umsentido de eternidade.

    notas

    1A segunda parte deste artigo pode ser lido em: MENEGUELLO, Cristina. "A preservao do patrimnio e otecido urbano. Parte 2. Manchester, Dublin e So Paulo: reflexes a partir de trs estratgias para arecuperao do passado urbano". , Texto Especial n 008. So Paulo, , ago.Arquitextos Portal Vitruvius2000 < >.www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp008.asp

    2ARANTES, Antonio Augusto (org). . So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9.Produzindo o Passado

    3CHOAY, Franoise. . Paris, ditions du Seuil, 1992.LAllgorie du Patrimoine

    4No Brasil a legislao dificilmente privilegia o interesse privado e a mera iseno de impostos no temsido suficiente para a manuteno da construo, que finda por sofrer a ao do descaso.

    5Cf Quatremre de Quincy.

    6POULOT, Dominique. "Le sens du patrimoine: hier et aujourdhui" in , Armand Colin,Annales ESCnov-dec, n 6, 1993. Poulot contesta a datao fornecida por Choay considerando que o trabalho dosantiqurios no sculo dezessete j anuncia a preocupao com o patrimnio, alm de considerar que acronologia cultural autnoma em relaao ao evento da revoluo industrial.

    7NORA, Pierre (org.) Paris: Gallimard, 1984.Les lieux de mmoire.

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    7NORA, Pierre (org.) Paris: Gallimard, 1984.Les lieux de mmoire.

    8POULOT, Dominique. Op cit.

    9LOWENTHAL, David. . Cambridge, Cambridge University Press, 1993.The past is a foreign country

    sobre o autor

    Cristina Meneguello doutora em Histria, e professora do IFCH Unicamp (cursos de histria earquitetura).

    A preservao do patrimnio e o tecido urbano

    Parte 2: Manchester, Dublin e So Paulo: reflexes a partir de trs estratgias para arecuperao do passado urbano (1)

    Cristina Meneguello