a precariedade está hoje por toda parte (bourdieu)

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que, silenciosos ou indiferentes hoje, virao daqui a trinta anos expressar 0 seu "arrependimento",l num tempo em que os jovens franceses de origem argelina se chamarao Kelkal. 2 A precariedade estd hoje por toda a parte* " I. "Arrependimemo": os bispos franceses exprimiram coletivamente seu arrependimento" a proposito da atitude do episcopado durante a ocupa~ao alema. (N.E.) 2. Kelkal e 0 nome do jovem argelino, membro de urn rede terrorista, que fOI moto pela policia. (N.E.) o trabalho coletivo de reflexao que se fez aqui durante dois dias e bastante original, porque reuniu pessoas que nao tern oportunidade de se encontrar e se confrontar, responsiveis administrativos e polfticos, sindicalistas, pesquisadores em economia e em sociologia, trabalhadores, muitas vezes tem- poririos, e desempregados. Gostaria de citar alguns dos problemas que foram discutidos. 0 primeiro, que e exclufdo tacitamente das reuni6es etuditas: 0 que resulta afinal de todos esses debates, ou, mais cruamente, de que servem todas essas discuss6es intelectuais? Paradoxalmente, san os pesquisadores que se preocupam mais com essa questao, ou aqueles a quem essa questao mais preocupa (penso sobretu- do nos economistas aqui presentes, logo, pouco repre- sentativos de uma profisssao na qual sao muito raros os que se preocupam com a realidade social, ou mesmo com reali- dade propriamente dita), e que se fazem diretamente essa * Interven~ao nos Encontros Europeus contra a Precariedade, Grenoble, 12-13 de dezembro de 1997.

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Page 1: A precariedade está hoje por toda parte (bourdieu)

que, silenciosos ou indiferentes hoje, virao daqui a trintaanos expressar 0 seu "arrependimento",l num tempo em

que os jovens franceses de origem argelina se chamaraoKelkal.2

A precariedade estd hojepor toda a parte*

" I. "Arrependimemo": os bispos franceses exprimiram coletivamente seuarrependimento" a proposito da atitude do episcopado durante a ocupa~ao

alema. (N.E.)

2. Kelkal e 0 nome do jovem argelino, membro de urn rede terrorista,que fOI moto pela policia. (N.E.)

o trabalho coletivo de reflexao que se fez aqui durante dois

dias e bastante original, porque reuniu pessoas que nao tern

oportunidade de se encontrar e se confrontar, responsiveis

administrativos e polfticos, sindicalistas, pesquisadores em

economia e em sociologia, trabalhadores, muitas vezes tem-

poririos, e desempregados. Gostaria de citar alguns dos

problemas que foram discutidos. 0 primeiro, que e exclufdo

tacitamente das reuni6es etuditas: 0 que resulta afinal de

todos esses debates, ou, mais cruamente, de que servem

todas essas discuss6es intelectuais? Paradoxalmente, san os

pesquisadores que se preocupam mais com essa questao, ou

aqueles a quem essa questao mais preocupa (penso sobretu-

do nos economistas aqui presentes, logo, pouco repre-

sentativos de uma profisssao na qual sao muito raros os que

se preocupam com a realidade social, ou mesmo com reali-

dade propriamente dita), e que se fazem diretamente essa

* Interven~ao nos Encontros Europeus contra a Precariedade, Grenoble,

12-13 de dezembro de 1997.

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pergunta (e sem duvida e muito born que seja assim). Ao

mesmo tempo brutal e ingenua, ela lembra aos pesquisado-

res suas responsabilidades, que podem ser muito grandes,

ao men os quando, por seu silencio ou cumplicidade ativa,

eles contribuem para a manutenc;:ao da ordem simb6lica que

e a condic;:ao do funcionamento da ordem economica.

Constata-se claramente que a precariedade esti hoje por

toda a parte. No setor privado, mas tambem no setor pu-

blico, onde se multiplicaram as po'sic;:6es temporarias e in-

terinas, nas empresas industriais e tambem nas instituic;:6es

de produc;:ao e difusao cultural, educac;:ao, jornalismo, meios

de comunicac;:ao etc., onde ela produz efeitos sempre mais

ou menos identicos, que se tornam particularmente visiveis

no caso extremo dos desempregados: a desestruturac;:ao da ~

existencia, privada, entre outras coisas, de suas estruturas

temporais, e a degradac;:ao de toda a relac;:ao com 0 mundo

e, como consequencia, com 0 tempo e 0 espac;:o. A preca-riedade afeta profundamente qualquer homem ou mulher

expos to a seus efeitos; tornando 0 futuro incerto, ela impede

qualquer antecipac;:ao racional e, especialmente, esse mini-

mo de crenc;:a e de esperanc;:a no futuro que e preciso ter

para se revoltar, sobretudo coletivamente, contra 0 presente,mesmo 0 mais intoleravel.

A esses efeitos da precariedade sobre aqueles por elaafetados diretamente se acrescentam os efeitos sobre todosos outros que, apare~temente, ela poupa. Ela nunca se deixaesquecer; esta presente, em todos as momentos, em todosos cerebros (exceto certamente nos dos economistas liberais ,

talvez porque, como observava urn de seus adversarios te6-ricas, eles se beneficiam dessa especie de protecionismorepresentado pela estabilidade, pela posic;:ao de titular, queos livra da inseguranc;:a ... ). Ela atormenta as consciencias eos inconscientes. A existencia de urn importante exercito dereserva, que nao se acha mais apenas, devido a superprodu-c;:aode diplomas, nos nfveis mais baixos de campetencia ede qualificac;:ao tecnica, contribui para dar a cada trabalha-dor a impressao de que ele nao e insubstitufvel e que 0 seutrabalho, seu emprego, e de certa forma urn privilegio, e urnprivilegio frigil e ameac;:ado (e alias 0 que lembram a ele, aoprimeiro deslize, seus empregadores, e, a primeira greve, osjornalistas e comentaristas de todo genero). A inseguranc;:aobjetiva funda uma inseguranc;:a subjetiva generalizada, queafeta hoje, no cerne de uma economia altamente desenvol-vida, 0 conjunto dos trabalhadores e ate aqueles que naoesrao ou ainda nao foram diretamente atingidos. Essa espe-cie de "mentalidade coletiva" (emprego essa expressao, em-bora nao goste muito dela, para me fazer compreender),comum a toda a epoca, esta no princlpio da desmoralizac;:aoe da desmobilizac;:ao que se podem observar (como fiz nosanos 60, na Argelia) em pafses subdesenvolvidos, afligidospor taxas de desemprego ou de subemprego muito elevadase habitados permanentemente pela obsessao do desemprego.

Os desempregados e os trabalhadores destitufdos de es-

tabilidade nao sac passfveis de mobilizac;:ao, pelo fato de

terem sido atingidos em sua capacidade de se projetar nofuturo, a condic;:ao indispensavel de todas as condutas ditas

racionais, a comec;:ar Pelo dlculo economico, ou, em uma

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ordem completamente diferente, pela organiza<;ao poHtica.Paradoxalmente, como mostrei em Travail et travailleurs enAlgerie, 1 meu livro mais antigo e talvez 0 mais atual, para

conceber urn projeto revolucionario, isto e, uma ambi<;ao

raciocinada de transformar 0 presente por referencia a urn

futur~ projetado, e preciso rer urn minimo de dominio sobreo presente. 0 prolerario, ao contrario do subprolerario, tern

esse minimo de garantias presente, de seguran<;a, que e

necessario para conceber a ambi<;ao de mudar 0 presente

em fun<;ao do futuro esperado. Mas, diga-se de passagem,

ele e tambem alguem que ainda tern algo a defender, algo

a perder, 0 seu emprego, mesmo sendo exaustivo e mal pago,

e muitas de suas condutas, as vezes descritas como excessi-

vamente prudentes ou mesmo conservadoras, se explicam

em fun<;ao do temor de cair ainda mais, de recair no sub-

proletariado.

Quando 0 desemprego, como hoje em muitos paises

europeus, atinge taxas muito elevadas e a precariedade afeta

uma parte muito importante da popula<;ao, operarios, em-

pregados no comercio e na indutria, mas tambem jomalis-tas, professores, esrudantes, 0 trabalho se toma uma coisa

rara, desejavel a qualquer pre<;o, submetendo os trabalha-

dores aos empregadores e estes, como se pode ver todos os

dias, usam e abusam do poder que assim Ihes e dado. A

concorrencia pelo trabalho e.i;lcompanhada de uma concor-

rencia no trabalho, que e ainda uma forma de concorrencia

pelo trabalho, que e preciso conservar, custe 0 que custar,

contra a chantagem da demissao. Essa concorrencia, as vezes

tao selvagem quanto a praticada pelas empresas, esra na raiz

de uma verdadeira luta de todos contra todos, destruidora

de todos os valores de solidariedade e de humanidade, e, asvezes, de uma violencia sem rodeios. Aqueles que deploram

o cinismo que caracteriza, segundo eles, os homens e as

mulheres do nosso tempo, nao deveriam deixar de atribui-lo

as condi<;oes economicas e sociais que 0 favorecem ou mes-

mo exigem, e que ainda 0 recompensam.

Assim, a precariedade atua diretamente sobre aqueles queela afeta (e que ela impede, efetivamente, de serem mobili-

zados) e indiretamente sobre todos os outros, pelo temor

que ela suscita e que e metodicamente explorado pelas

estrategias de precarizarao, como a introdu<;ao da famosa

"flexibilidade" - que, como vimos, e inspirada tanto por

razoes economicas quanto poHticas. Come<;a-se assim a sus-

peitar de que a precariedade e 0 produto de uma vontadepolitica, e nao de uma fatalidade economica, identificadacom a famosa "mundializa<;ao". A empresa "flexivel" explo-

ra, de certa forma deliberadamente, uma situa<;ao de inse-

guran<;a que ela contribui para refor<;ar: ela procura baixar

os custos, mas tambem tomar possivel essa baixa, pondo 0

trabalhador em risco permanente de perder 0 seu trabalho.

Todo 0 universo da produ<;ao, material e cultural, publica

e privada, e assim arrebatado num vasto processo de preca-

riza<;ao, inclusive com a desterritorializarao da empresa: liga-

da ate entao a urn Estado-na<;ao ou a urn lugar (Detroit ou

Turim, para a industria automobiHstica), esta ten de cadavez mais a dissociar-se dele, com 0 que se chama de "em-

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presa-rede", que se articula na escala de urn continente ou

do planeta inteiro, conectando segmentos de produ<;:ao,

conhecimentos tecnologicos, redes de comunica<;:ao, percur-

sos de forma<;:ao dispersos entre lugares muito afastados.

Facilitando ou organizando a mobilidade do capital, e 0

"deslocamento" para os paises com salirios mais baixos,

onde 0 custo do trabalho e reduzido, favoreceu-se a extensao

da concorrencia entre os trabalhadores em escala mundial.

A empresa nacional (ou ate nacionalizada), cujo territorio

de concorrencia estava ligado, mais ou menos estritamente,

ao territorio nacional, e que saia para conquistar mercados

no estrangeiro, cedeu lugar a empresa multinacional, que

poe os trabalhadores em concorrencia, nao mais apenas com

os seus compatriotas, ou mesmo, como que rem nos fazer

crer os demagogos, com os estrangeiros implantados no

territorio nacional, que, evidentemente, sao de faro as pri-

meiras vitimas da precariza<;:ao, mas com trabalhadores do

outro lado do mundo, que sao obrigados a aceitar salirios

de miseria.

A precariedade se inscreve num modo de dominafao de

tipo novo, fundado na institui<;:ao de uma situa<;:ao genera-

lizada e permanente de inseguran<;:a, visando obrigar os

trabalhadores a submissao, a aceita<;:aoda expWra<;:ao.Apesar____ t:"

de seus efeitos se assemelharem fnuito poucoiao capitalismo

selvagem das origens, esse modo 4e dom:iila'<;:aoe absoluta-

mente sem precedentes, motivando alguem a propor aqui

o conceito ao mesmo tempo muito pertinente e muiro

expressivo de flexplorafao. Essa palavra evoca bem essa gestao

racional da inseguran<;:a, que, instaurando, sobretudo atr;~~s

damanlp~I~~i~ orquestrada do espa<;:oda produ<;:ao, a con-

correncia entre os trabalhadores dos paises com conquistas

sociais mais importantes, com resistencias sindicais mais

bem organizadas - caracteristicas ligadas a urn territorio e

a uma historia nacionais - e os trabalhadores dos paises

menos avan<;:ados socialmente, acaba por quebrar as resis-

tencias e obtem a obediencia e a submissao, por mecanismos

aparentemente naturais, que sao por si mesmos sua propria

justifica<;:ao. Essas disposi<;:oes submetidas produzidas pela

precariedade sao a condi<;:ao de uma explora<;:ao cada vez

mais "bem-sucedida", fundada na divisao entre aqueles que,

cada vez mais numerosos, nao trabalham e aqueles que, cada

vez menos numerosos, trabalham, mas trabalham cada vez

mais. Parece-me, portanto, que 0 que e apresentado como

urn regime economico regido pelas leis inflexiveis de uma

especie de natureza social e, na realidade, urn regime politico

que so po de se instaurar com a cumplicidade ativa ou passiva

dos poderes propriamente politicos.

Contra esse regime politico, a luta polftica e possivel. Ela

pode ter como fim, primeiramente, assim como a a<;:ao

caritativa ou caritativo-militante, encorajar as vitimas da

explora<;:ao, rodos os possuidores atuais e potenciais de em-

pregos precirios, a trabalhar em comum contra os efeitos

destruidores da precariedade (ajudando-os a viver, a "aguen-

tar" e a comportar-se, a salvar sua dignidade, a resistir a

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desestrutura<;:ao, a degrada<;:ao da auto-imagem, a aliena<;:ao),

e principalmente a mobilizar-se, em escala internacional, isto

e, no mesmo nivd em que se exercem os efeitos da politica

de precariza<;:ao, para combater essa mesma politica e neu-

tralizar a concorrencia que da visa instaurar entre os traba-

lhadores dos diferentes paises. Mas da tambem pode ten tar

desvencilh~r os trabalhadores da l6gica das antigas luras que,

fundadas na reivindica<;:ao do trabalho ou de uma mdhor

remunera<;:ao do trabalho, os restringem ao trabalho e aexplora<;:ao (ou a flexplorariio) que de autoriza. Tal ocorre

por uma redistribui<;:ao do trabalho (atraves de uma forte

redu<;:ao da carga semanal de trabalho em escala europeia),

redistribui<;:ao inseparavd de uma redefini<;:ao da distribui-

<;:aoentre 0 tempo da produ<;:ao e 0 tempo da reprodu<;:ao,

o repouso e 0 lazer.

Revolu<;:ao que deveria come<;:ar pdo abandono da visao

estreitamente calculista e individualista que reduz os agentes

a calculadores ocupados em resolver problemas, problemas

estritamente economicos, no sentido mais limitado do ter-

mo. Para que 0 sistema economico funcione, e preciso que

os trabalhadores the forne<;:am suas pr6prias condi<;:6es de

produ<;:ao e de reprodu<;:ao, mas tambem as condi<;:6es de

funcionamento do pr6prio sistema economico, a come<;:ar

por sua cren<;:ana empresa, no trabalho, na necessidade do

trabalho ete. Sao coisas que os economistas ortodoxos ex-

cluem a priori da sua contabilidade abstrata e murilada,

atribuindo tacitamente a responsabilidade da produ<;:ao e da

reprodu<;:ao de todas as condi<;:6es economicas e sociais ocul-

tas do funcionamento da economia, tal como des a conhe-

cern, aos individuos, ou - paradoxo - ao Estado, cuja

destrui<;:ao des pregam, alias.

1. P.Bourdieu, Travail et travailleurs en Algerie, Paris-Haia, Mouton, 1963(com A. Darbel, J.-P. Rivet, C. Seibel); Algerie 60. Structures economiques etstructures temporelles, Paris, Minuit, 1977.

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o intelectual negativo *

par alguns, descobriram subitamente que todos as seus

esfonros podiam ser destrufdos, aniquilados em dois tempose com tres movimentos.

Dais anigos escritos ao fim de uma viagem sob escolta,

programada, balizada, vigiada pelas autoridades ou pelo

exercira argelino, que serao publicados no maior diario

frances, I embora recheados de lugares-comuns e erros, e

inteiramente orientados para uma conclusao simplista, feita

para dar satisfa<;:ao a como<;:ao superficial e ao 6dio racista,disfar<;:ado de indigna<;:ao humanista. Urn comfcio unani-

mista reunindo a nata da intelligentsia da mfdia e dos

politicos, indo do liberal integrista ao ecologista oponunis-ta, passando pela passionaria dos "erradicadores". Urn pro-

grama de televisao tatalmente unilateral, sob a aparencia deneutralidade. E a resultado est<l af. Voltou-se a estaca zero.

o intelectual negativo cumpriu sua missao: quem did que

e solidario dos estripadores, dos estupradores e dos assassi-

nos - principalmente quando se trata de gente que e

chamada, sem outra considera<;:ao hist6rica, de "loucos do

isla", envolvidos sob a r6tulo infame de islamismo, resumo

de rados as fanatismos orientais, feita para dar ao desprezo

racista a alibi indiscutfvel da legitimidade etica e leiga?

Para situar a problema em termos tao caricaturais, nao e

preciso ser urn grande intelectual. Mas e a que faz 0 res-

ponsavel por essa opera<;:ao de baixa policia simb6lica -antftese absoluta de tudo a que define a intelectual, a liber-

dade em rela<;:aoaos poderes, a crftica das ideias prontas, a

demoli<;:ao das alternativas simplistas, a restaura<;:ao da com-

Todos aqueles que estiveram a postos, dia ap6s dia, durante

anos, para receber as refugiados argelinos, escuta-Ios, aju-

da-Ios a redigir curriculum vitae e enviar solicita<;:oes aosministerios, acompanha-Ios aos tribunais, escrever canas as

insrancias administrativas, juntar-se a eles em delega<;:oes

junto as autoridades responsaveis, solicitar vistas, autoriza-

<;:oes, carteiras de residencia, que se mobilizaram, des de

junho de 1993, desde os primeiros assassinatas, nao s6 para

levar 0 socorro e a prote<;:ao possfveis, mas tambem paraten tar informar-se e informar, compreender e fazer com-

preender uma realidade complexa, e que lutaram in cans a-

velmente por meio de interven<;:oes publicas, entrevistascoletivas, anigos nos jornais, para desvincular a crise arge-

lina das anaIises unilaterais, todos esses intelectuais de todos

os paises que se uniram para combater a indiferen<;:a au a

xenofobia, para lembrar a respeito pela complexidade do

mundo desfazendo as confusoes, deliberadamente mantidas

* Este texto, escrito em janeiro de 1998, permaneceu inedito.~

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plexidade dos problemas - ser consagrado pelos jornalistascomo intelecrual de pleno direito.

Entretanto, conhes:o todo tipo de pessoas que, emborasaibam perfeitamente de rudo isso por terem se chocado milvezes com essas fors:as, recomes:arao, cada urn no seu am-biente e com seus meios, a executar as:oes sempre ameas:adasde serem destruidas por urn relatorio distraido, leviano oumaldoso, ou de serem apropriadas, em caso de sucesso, poroportunistas e convertidos de ultima hora, que teimarao emescrever explicas:oes, refuras:oes ou desmentidos, destinadosa serem encobertos pelo fluxo ininterrupto da tagarelice namidia, convencidos de que, como mostrou 0 movimentodos desempregados, culminancia de urn trabalho obscuro eas vezes tao desesperado que se assemelhava a uma especiede arte pela arte da politica, pode-se, com 0 tempo, fazeravans:ar urn pouco, e sem recuo, a pedra de Sisifo.

Porque, durante esse tempo, "responsaveis" politicos, ha-beis em neurralizar os movimentos sociais que contribuirampara leva-los ao poder, continuam a deixar mil hares de "sem-documentos" a espera ou a expulsa-los sem maio res cuidadospara 0 pais de onde fugiram, e que pode ser a Argelia.

Paris, Janeiro de 1998

o neoliberalismo, utopia(em vias de realizarao)

de uma explorarao sem limites

o mundo economico seria de fato, como quer 0 discursodominante, uma ordem pura e perfeita, desdobrando im-placavelmente a logica de suas conseqiiencias previsiveis epronto a reprimir todos os erros pelas sans:oes que ele infligeseja de maneira auromatica, seja, mais excepcionalmente,atraves de seu bras:o armado, 0 FMI ou a OCDE, e daspoliticas dristicas que eles impoem, redus:ao do custo damao-de-obra, corte das despesas publicas e flexibilizas:ao dotrabalho? E se ele Fosse apenas, na realidade, a pritica deuma uropia, 0 neoliberalismo, assim convertida em progra-ma politico, mas uma utopia que, com a ajuda da teoriaeconomica a que ela se filia, consegue se pensar como a

descris:ao ciendfica do real?Essa teoria tutelar e uma pura fics:ao matematica, funda-

da, des de a origem, numa formidavel abstras:ao (que nao sereduz, como que rem fazer crer os economistas que defen-dem 0 direito a abstras:ao inevitavel, ao efeito, constitutivode todo projeto ciendfico, da construs:ao de objeto comoapreensao deliberadamente seletiva do real): aquela que, em

1. Trata-se de dais artigos de Bernard-Henri Levy, publicados no IeMonde. (N.E.)

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nome de uma concep<;ao tao estreita quanto estrita da ra-cionalidade identificada com a racionalidade individual,consiste em par entre parenteses as condi<;6es economicase sociais das disposi<;6es racionais (e em particular da dis-posi<;ao calculadora aplicada as coisas economicas, que estina base da visao neoliberal) e das estruturas economicas esociais, que saD a condi<;ao de seu exerdcio, ou, mais pre-cisamente, da produ<;ao e da reprodu<;ao dessas disposi<;6ese dessas estruturas. Basta pensar apenas, para dar a medidada omissao, no sistema de ensinG, que nunca e levado emconta enquanto tal, numa epoca em que ele tern urn papeldeterminante tanto na produ<;ao dos bens e dos servi<;osquanto na produ<;ao dos produtores. Dessa especie de pe-cado original, inscrita no mito walrasiano da "teoria pura",

decorrem todos os erros e todas as falhas da disciplinaeconomica, e a obstina<;ao fatal com a qual ela se apega aoposi<;ao arbitraria que faz existir apenas com a sua propriaexistencia, entre a logica propriamente economica, fundadana concorrencia e portadora de eficiencia, e a logica social,submetida a regra da eqiiidade.

Dito isso, essa "teoria" originariamente dessocializada edes-historicizada tern, hoje mais do que nunca, os meios detornar-se verdadeira, empiricamente verificivel. Efetivamen-te, 0 discurso neoliberal nao e urn discurso como os outros.A maneira do discurso psiquiatrico no asilo, segundo ErvingGoffman, e urn "discurso forte", que s6 e tao forte e raodificil de combater porque tern a favor de si todas as for<;asde urn mundo de rela<;6es de for<;a, que ele contribui parafazer tal como e, sobretudo orientando as escolhas econo-

micas daqueles que dominam as rela<;6es economicas eacrescentando assim a sua for<;a propria, propriamente sim-b6lica, a essas rela<;6es de for<;a.1 Em nome desse programaciendfico de conhecimento convertido em programa polf-tico ~e a<;ao, cumpre-se urn imenso trabalho politico (rene-gado, pois aparentemente puramente negativo) que visacriar as condi<;6es de realiza<;ao e de funcionamento da"teoria"; urn programa de destruirao met6dica dos coletivos (aeconomia neoclassica querendo lidar apenas com indivi-duos, mesmo quando se trata de empresas, sindicatos oufamilias).

o movimento, que se tofllOU possive! pela polftica dedesregulamenta<;ao financeira, em dire<;ao a utopia neolibe-ral de urn mercado puro e perfeito se realiza at raves da a<;aotransformadora e, devemos dizer, destruidora de todas asmedidas polfticas (das quais a mais recente e 0 AMI, AcordoMultilateral sobre 0 Investimento, destin ado a proteger con-

tra os Estados nacionais as empresas estrangeiras e seusinvestimentos) colocando em risco todas as estruturas coletivascapazes de resistirem a logica do mercado puro: narao, cujoespa<;o de manobra nao para de diminuir; grupos de trabalho,com, por exemplo, a individualiza<;ao dos salarios e dascarreiras, em fun<;ao das competencias individuais e a resul-tante atomiza<;ao dos trabalhadores; coletivos de defesa dosdireitos dos trabalhadores, sindicatos, associa<;6es, coopera-tivas; ate a familia, que, atraves da constitui<;ao de mercadospor classes de idade, perde uma parte do seu controle sobreo consumo. 0 programa neoliberal extrai sua for<;a socialda for<;a polftico-economica daqueles cujos interesses ele

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exprime - acionistas, operadores financeiros, industriais,politicos conservadores ou social-democratas convertidos asdesistencias apaziguadoras do laisser-ftire, altos funcionariosdas finan<;:as, tanto mais obstinados em impor uma politicapregando sua pr6pria extin<;:ao porque, ao contrario dosexecutivos das empresas, eles nao correm nenhum risco depagar eventualmente por suas conseqiiencias. 0 programaneoliberal tende assim a favorecer globalmente a rupturaentre a economia e as realidades sociais, e a construir dessemundo, na realidade, urn sistema economico ajustado adescri<;:ao te6rica, isto e, uma especie de maquina 16gica, quese apresenta como uma cadeia de constrangimentos enre-dando os agentes economicos.

A mundializa<;:ao dos mercados financeiros, junto com 0

progresso das tecnicas de informa<;:ao, garante uma mobili-dade sem precedentes dos capitais e oferece aos investidores(ou acionistas) zelosos de seus interesses imediatos, ou me-lhor, da rentabilidade a curto prazo de seus investimentos,a possibilidade de comparar a todo momento a rentabilida-de das maio res empresas e de sancionar, conseqiientemente,os fracassos pontuais. As pr6prias empresas, defrontando-secom tal amea<;:apermanente, devem se ajustar de modo cadavez mais rapido as exigencias dos mercados; e devem faze-Iosob pena de "perder, como se diz, a confian<;:a dos merca-dos", e com isso 0 apoio dos acionistas. Esses ultimos,preocupados em obter uma rentabilidade a curto prazo, saocada vez mais capazes de impor sua vontade aos managers,de fixar-Ihes normas, atraves das diretorias financeiras, e deorientar suas politicas em materia de contrata<;:ao, emprego

e salario. Assim se instaura 0 reino absoluto da flexibilidade,com os recrutamentos por intermedio de contratos de du-ra<;:aodeterminada ou as interinidades e os "pIanos sociais"de treinamento, e a instaura<;:ao, no pr6prio seio da empresa,da concorrencia entre filiais autonomas, entre equipes, obri-gadas a polivalencia, e, enfim, entre individuos, atraves daindividualiza[lio da rela<;:aosalarial: fixa<;:aode objetivos in-dividuais; pratica de entrevistas individuais de avalia<;:ao;altas individualizadas dos salarios ou atribui<;:ao de promo-<;:oesem fun<;:ao da competencia e do merito individuais;carreiras individualizadas; estrategias de "responsabiliza<;:ao"tendendo a garantir a auto-explora<;:ao de certos quadrosque, sendo simples assalariados sob forte dependencia hie-rarquica, sao ao mesmo tempo considerados responsaveispor suas vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja etc.,a maneira dos "por conta pr6pria"; exigencia do "auto-con-trole", que estende 0 "envolvimento" dos assalariados, se-gundo as tecnicas do "managementparticipativo", bem alemdas atribui<;:oes caracteristicas dos gerentes; eis algumas tec-nicas de submissao racional que, ao exigir 0 sobreinvesti-mento no trabalho, e nao apenas nos postos de responsabi-lidade, eo trabalho de urgencia, concorrem para enfraquecerou abolir as referencias e as solidariedades coletivas.2

A institui<;:ao pratica de urn mundo darwiniano que en-contra as molas da adesao na inseguran<;:a em rela<;:aoa tarefae a empresa, no sofrimento e no estresse,3 nao poderiacertamente ter sucesso completo, caso nao contasse com acumplicidade de trabalhadores a bra<;:oscom condi<;:oes pre-carias de vida produzidas pela inseguran<;:a bem como pela

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existencia - em todos os niveis da hierarquia, e ate nosmais elevados, sobretudo entre os executivos - de urn

exercito de reserva de miio-de-obra docilizada pela precarizariioe pela amea<;:apermanente do desemprego. 0 fundamento

ultimo de toda essa ordem economica sob a chancel a invo-

cada da liberdade dos individuos e efetivamente a violenciaestrutural do desemprego, da precariedade e do me do ins-

pirado pela amea<;:a da demissao: a condi<;:ao do funciona-mento "harmonioso" do modelo micro-economico indivi-

dualista e 0 principio da "motiva<;:ao" individual para 0

trabalho residem, em ultima analise, num fenomeno de

massa, qual seja, a existencia do exercido de reserva dos

desempregados. Nem se trata a rigor de urn exercito, pois

o desemprego isola, atomiza, individualiza, desmobiliza e

rompe com a solidariedade.Essa violencia estrutural tambem pesa sobre 0 que se

chama contrato de trabalho (habilmente racionalizado e des-

realizado pela "teoria dos contratos"). 0 discurso empresarial

nunca falou tanto de connan<;:a, de coopera<;:ao, de lealdade e

de cultura de empresa como nessa epoca em que se obtem a

adesao de cada instante fazendo desaparecer todas as garantias

temporais (tres quartos das contrata<;:6es sao de dura<;:ao de-

terminada; a parcela dos empregos temporarios nao para de

crescer, a demissao individual ten de a nao estar mais sub me-

tida a nenhuma restri<;:ao).Alias, tal adesao s6 pode ser incerta

e ambigua, porque a precariedade, 0 medo da demissao e 0

"enxugamento" podem, como 0 desemprego, gerar a angus-

tia, a desmoraliza<;:ao ou 0 conformismo (taras que a literatura

empresarial constata e deplora). Nesse mundo sem inercia,sem principio imanente de continuidade, os dominados estao

na posi<;:aodas criaturas num universo cartesiano: estao para-lisados pela decisao arbitraria de urn poder responsavel pela

"cria<;:ao continuada" de sua existencia - como prova e

lembra a ame<;:ado fechamento da fabrica, do desinvestimen-to e do deslocamento.

A profunda sensa<;:aode inseguran<;:a e de incerteza sobre 0

futuro e sobre si pr6prio que atinge todos os trabalhadores

assim precarizados deve sua colora<;:ao particular ao fato de

que 0 principio da divisao entre os que sao relegados ao

exercito de reserva e aqueles que possuem trabalho parece

residir na competencia escolarmente garantida, que tambem

explica 0 principio das divis6es, no seio da empresa "tecnici-

zada", entre os executivos ou os "tecnicos" e os simples

operarios ou os operarios especializados, os novos parias daordem industrial. A generaliza<;:ao da eletronica, da informa-

tica e das exigencias de qualidade, que obriga todos os assala-

riados a novas aprendizagens e perpetua na empresa 0 equi-

valente das provas escolares, tende a redobrar a sensa<;:aode

inseguran<;:a por meio de uma sensa<;:ao,habilmente mantida

pela hierarquia, de indignidade. A ordem pronssional e, su-

cessivamente, toda a ordem social, parece fundada numa

ordem das "competencias", ou, pior, das "inteligencias". Mais

talvez do que as manipula<;:6es tecnocraticas das rela<;:6esde

trabalho e as estrategias especial mente armadas a nm de obter

a submissao e a obediencia, objeto de uma aten<;:aoincessante

e de uma reinven<;:ao permanente, mais do que 0 enorme

Page 11: A precariedade está hoje por toda parte (bourdieu)

investimento em pessoal, em tempo, em pesquisa e em traba-lho, pressuposto pela inven<;:ao continua de novas formas de

gestao de mao-de-obra e de novas tecnicas de comando, e a

cren<;:ana hierarquia das competencias escolarmente garanti-

das que funda a ordem e a disciplina na empresa privada e

tambem, cada vez mais, na fun<;:ao publica: obrigados a

pensar-se em rela<;:aoa elite detentora dos titulos escolares

mais cobi<;:ados, destinada as tarefas de comando, e a pequena

classe dos empregados e dos tecnicos restritos as tarefas de

execu<;:ao e sempre em situa<;:ao de risco, quer dizer, sempre

obrigados a provar que sao bons, os trabalhadores condenados

a precariedade e a inseguran<;:a de urn emprego instavel e

amea<;:ados de relega<;:ao na indignidade do desemprego s6

podem conceber uma imagem desencantada tanto de si mes-

mos, como individuos, quanto de seu grupo; outrora objeto

de orgulho, enraizado em tradi<;:6es e em toda uma heran<;:a

tecnica e politica, 0 grupo operario, se e que existe aindaenquanto tal, esta fadado a desmoraliza<;:ao, a desvaloriza<;:ao

e a desilusao politica, que se exprime na crise da militincia

ou, pior ainda, na adesao desesperada as teses do extremismofascist6ide.

Ve-se assim como a utopia neoliberal tende a se encarnar

na realidade de uma especie de maquina infernal, cuja neces-

sidade se imp6e aos pr6prios dominantes - as vezes ator-

mentados, como George Soros, e este ou aquele presidente

de fundos de pensao, pela preocupa<;:ao com os efeitos des-

truidores do dominio que eles exercem, e levados a a<;:6es

compensat6rias inspiradas na pr6pria l6gica que que rem

'"

neutralizar, como as generosidades a maneira de Bill Gates.

Como 0 marxismo em outros tempos, com 0 qual, sob esseaspecto, ela tern muitos pontos comuns, essa utopia suscita

uma cren<;:aformidavel, a Free tradepith, nao s6 entre aqueles

que vivem materialmente dela, como os financistas, os patr6es

de gran des empresas etc., mas tambem entre os que tiram dela

sua razao de viver, como os altos funcionarios e os politicos

que sacralizam 0 poder dos mercados em nome da eficiencia

economica, que exigem a suspensao das barreiras administra-

tivas ou politicas capazes de incomodar os detentores de

capitais na busca puramente individual da maximiza<;:ao dolucro individual instituido como modelo de racionalidade,

que querem bancos centrais independentes, que pregam a

subordina<;:ao dos Estados nacionais as exigencias da liberdade

economica para os donos da economia, com a supressao de

radas as regulamenta<;:6es sobre rados os mercados, a come<;:ar

pelo mercado de trabalho, a proibi<;:ao dos deficits e da

infla<;:ao, a privatiza<;:ao generalizada dos servi<;:ospublicos, a

redu<;:aodas despesas publicas e sociais.

Sem compartilhar necessariamente os interesses econo-

micos e sociais dos verdadeiros crentes, os economistas tern

suficientes interesses espedficos no campo da ciencia eco-

nomica para dar uma contribui<;:ao decisiva, quaisquer que

sejam seus sentimentos a prop6sito dos efeitos economicos

e sociais da utopia que eles revestem com a razao mate-

matica, a ptodu<;:ao e a reprodu<;:ao da cren<;:ana utopia neo-

liberal. Separados do mundo economico e social por toda

a sua existencia e sobretudo por sua forma<;:ao intelecrual,

Page 12: A precariedade está hoje por toda parte (bourdieu)

em geral puramente abstrata, livresca e teoricista, eles sao,

como outros em outros tempos no campo da filosofia,

particularmente inclinados a confundir as coisas da logica

com a logica das coisas. Confiantes em modelos que prati-

camente nunca tiveram ocasiao de submeter a prova da

verificac;:ao experimental, levados a olhar de cima as con-

quistas das outras ciencias historicas, nas quais nao reconhe-

cem a pureza e a transparencia cristalina de seus jogos

matematicos, sendo em geral incapazes de compreender sua

verdadeira necessidade e profunda complexidade, eles par-

ticipam e colaboram para uma formidavel mudanc;:a econo-

mica e social. Mesmo que algumas das consequencias dessa

mudanc;:a lhes causem horror (eles podem contribuir para 0

partido socialista e dar conselhos prudente a seus repre-

sentantes nas insrancias de poder), decerto nao lhes desa-

gradam completamente pois, com 0 risco de alguns fracas-

sos, imputiveis principalmente ao que eles chamam de "bo-

lhas especulativas", tal mudanc;:a tende a dar realidade autopia ultraconsequente (como certas formas de loucura) aqual eles consagram a sua vida.

Entretanto, 0 mundo e 0 que e, com os efeitos imedia-

tamente visiveis do funcionamento da grande utopia neo-

liberal: nao so a miseria e 0 sofrimento de uma frac;:aocada

vez maior das sociedades mais avanc;:adas economicamente,

o agravamento extraordinario das diferenc;:as entre as rendas,

o desaparecimento progressivo dos universos autonomos de

produc;:ao cultural, cinema, edic;:ao etc., e portanto, a longo

prazo, dos proprios produtos culturais, em virtude da in-

trusao crescente das considerac;:6es comerciais, mas tambeme sobretudo pela destruic;:ao de todas as instincias coletivas

capazes de resistir aos efeitos da maquina infernal, entre as

quais 0 Estado esti em primeiro lugar, depositirio de todos

os valores universais associados a ideia de publico, e a im-

posic;:ao, por toda a parte, nas altas esferas da economia e

do Estado, ou no seio das empresas, dessa especie de dar-

winismo moral que, com 0 culto do vencedor ("winner'),

formado em matematicas superiores e nos "chutes" sem

rigor, instaura a luta de todos contra todos eo cinismo como

norma de todas as praticas. E a nova ordem moral, fundada

na inversao de todas as tibuas de valores, se afirma no

espetacu.lo, prazerosamente difundido pela midia, de todos

esses importantes representantes do Estado, que rebaixam

a sua dignidade estatutaria ao multiplicar as reverencias

diante dos patr6es de multinacionais, Daewoo ou Toyota,

ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante deum Bill Gates.

Pode-se esperar que a massa extraordinaria de sofrimento

produzida por um tal regime politico-economico possa um

dia lastrear um movimento capaz de deter a marcha para 0

abismo? De fato, estamos aqui diante de um extraordinario

paradoxo: enquanto os obsticulos encontrados no caminho

da realizac;:ao da ordem nova, a do individuo sozinho mas

livre, san hoje considerados efeitos da rigidez do arcaismo,

enquanto toda intervenc;:ao direta e consciente, pelo menos

quando de iniciativa do Estado, e por quaisquer meios que

sejam, e antecipadamente desacreditada a pretexto de estar

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orientada por funcionarios movidos por seus pr6prios inte-resses e que conhecem mal os interesses dos agentes econo-

micos, portanto intimada a suprimir em proveito desse

mercado enquanto urn mecanismo puro e anonimo (esque-

ce-se que ele e tambem 0 lugar do exerdcio de interesses),

e na realidade a permanencia ou a sobrevivencia das insti-

tuiy6es e dos agentes da ordem antiga em vias de desman-

telamento, e 0 trabalho inteiro de todas as categorias de

trabalhadores sociais, bem como todas as solidariedades

sociais, familiares ou ourras, que fazem com que a ordem

social nao desmorone no caos apesar do contingente cres-

cente de populayao precarizada. A transiyao para 0 "libera-

lismo" se faz de maneira insensivel, logo imperceptivel,

como a deriva dos continentes, ocultando assim seus efeitos,

mais terriveis a longo prazo. Tais efeiros tambem se encon-

tram dissimulados, paradoxalmente, pelas resistencias que

suscita desde agora por parte daqueles que defend em aordem antiga, nutrindo-se dos recursos nelas contidos, dos

modelos juridicos ou pdticos de assistencia e de solidarie-

dade nela vigentes, dos habitos ai estimulados (entre as

enfermeiras, os serviyos sociais etc.), ern suma das reservas

de capital social que protegem toda uma parte da presente

ordem social de uma queda na anomia. (Capital que, se nao

e renovado, reproduzido, esra destinado a extinyao, mas cujo

esgotamento nao ocorred de urn dia para 0 ourro.)

Mas essas mesmas foryas de "conservayao", freqiiente-mente tratadas CQnlO foryas conservadoras, sac tambem, sobourro aspecto, foryas de resistencia a instaurayao da ordem

nova, podendo se tamar foryas subversivas nas seguintescondiy6es: sob a condiyao previa de que se saiba conduzira Iura propriamente simb6lica contra 0 trabalho incessantedos "pensadores" neoliberais, para desacreditar e desqualifi-car a heranya de palavras, tradiy6es e representay6es asso-ciadas as conquistas hist6ricas dos movimentos sociais dopassado e do presente; sob a condiyao tambem de que sesaiba defender as instituiy6es correspondentes, direito dotrabalho, assistencia social, previdencia social etc. contra 0

projeto de condena-Ias ao arcaismo de urn passado ultrapas-sado ou, pior ainda, de constitui-Ios, desafiando toda veros-similhanya, em privilegios inuteis ou inaceitaveis. Esse com-bate nao e facil, sendo muitas vezes necessario trava-Io emfrentes inesperadas. Inspirando-se numa intenyao paradoxalde subversao orientada para a conservarao ou a restaurarao,os revolucionarios conservadores sac espertos em transfor-mar em resistencias reacionarias as reay6es de defesa susci-tadas por ay6es conservadoras que descrevem como revolu-cionarias; e ao mesmo tempo condenam como defesa arcaicae retr6grada de "privilegios" reivindicay6es ou revoltas quese enraizam na invocayao dos direitos adquiridos, isto e,num passado ameayado de degradayao ou de destruiyao porsuas medidas regressivas - entre as quais as mais exemplaressac a demissao dos sindicalistas ou, mais radicalmente, dostrabalhadores veteranos que sac tambem os conservadoresdas tradiy6es do grupo.

E se podemos ter alguma esperanya razoavel, e porqueainda existem, nas instituiy6es estatais e tambem nas dispo-siy6es dos agentes (ern especial os mais ligados a essas ins-

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titUl<;:oes, como a elite do medio funcionalismo publico),for<;:asque, sob a aparencia de defender simplesmente, comologo serao acusadas, uma ordem desaparecida, e os "privi-legios" correspondentes, devem de fato, para resistir a prova,trabalhar para inventar e construir uma ordem social quenao teria como unica lei a busca do interesse egoista e apaixao individual do lucro, e que daria lugar a coletivosorientados para a busca racional de fins coletivamente elabo-rados e aprovados. Entre esses coletivos, associa<;:6es, sindica-tos, partidos, como nao dar urn lugar especial ao Estado,Estado nacional, ou, melhor ainda, supranacional, isto e,europeu (etapa para urn Estado mundial), capaz de controlare impor e£1cazmente os lucros realizados nos mercados £1-nanceiros; capaz tambem e principalmente de enfrentar aa<;:aodestruidora que estes exercem sobre 0 mercado detrabalho, organizando, com a ajuda dos sindicatos, a elabo-ra<;:aoe a defesa do interesse publico que, queira-se ou nao,nunca said, mesmo ao pre<;:o de algum eno em escritamatematica, da visao de contador (em outros tempos, dir-se-ia de "quitandeiro") que a nova cren<;:aapresenta como aforma suprema da realiza<;:ao humana.

Paris, Janeiro de 1998

no trabalho" (l e 2), 114, setembro de 1996, e 115, dezembro de 1996 eespecial mente a introdu<,:ao de Gabtielle Balazs e Michel Pialoux, "Crise dutravail e crise du politique", 114, p.3-4.

3. C. Dejours, Souffiance en France. La banalisation de l'injustice sociale,Paris, Seuil, 1997.

1. E. Goffman, Asiles. Etudes sur la condition sociale des malades mentaux,Paris, Minuit, 1968.

2. Podem ser consultados, sOBre tudo isso, os dois numeros de Actes dela Recherche en Sciences Sociales dedicados as "Novas formas de domina~ao

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o movimento dos desempregados,um milagre social*

preitada me pareceu muitas vezes desesperada - a todosaque1es que, nos sindicatos e nas associa<;:6es reunidos noseio dos Estados gerais para 0 movimento social, tornarampossivel 0 que constitui realmente urn milagre social, cujas

virtudes e beneficios nao terminaremos tao cedo de desco-

brir.A primeira conquista desse movimento e 0 movimento

em si, a sua pr6pria existencia: ele arranca os desempregados,e com eles todos os trabalhadores predrios, cujo numerocresce dia a dia, da invisibilidade, do isolamento, do silen-cio, em suma da inexistencia. Reaparecendo em plena luz,os desempregados reconduzem a existencia e a urn cerroorgulho todos os homens e mulheres que, como eles, 0

nao-emprego candena habitualmente ao esquecimento e avergonha. Mas eles lembram sobretudo que urn dos funda-mentos da ordem economica e social e 0 desemprego emmassa e a amea<;:aque ele faz pesar sobre todos os que aindadisp6em de urn trabalho. Longe de se fecharem num mo-vimento egoista, eles dizem que, embora haja certamentevarios tipos de desempregado, as diferen<;:as entre os RMIstase os desempregados com seguro - desemprego perro donm ou dependentes de outros rendimentos previdenciarios- nao SaG radicalmente diferentes daquelas que separamos desempregados de todos os trabalhadores predrios. Rea-lidade fundamental, que nos arriscamos a esquecer ou a fazeresquecer, enfatizando exclusivamente as reivindica<;:6es "porcategoria" (se assim podemos dizerO dos desempregados,tendentes a separa-Ios dos trabalhadores, e em particular dosmais insraveis entre eles, que podem se sentir esquecidos.

o movimento dos desempregados e urn acontecimento uni-co, extraordinario. Ao contrario do que nos repetem sem

cessar os jornais escritos e falados, essa cxccfiio ftanccsa e algode que podemos nos orgulhar. Todos os estudos cientincosmostraram efetivamente que 0 desemprego destr6i aqueles

que atinge, suprime suas defesas e suas disposi<;:6es subver-sivas. Se essa especie de fatalidade pode ser frustada, foigra<;:as ao trabalho incansavel de individuos e associa<;:6esque estimularam, sustentaram, organizaram 0 movimento.E nao posso deixar de achar extraordinario que responsaveispoliticos de esquerda e sindicalistas denunciem a manipu-la<;:ao (evocando 0 discurso patronal das origens contra ossindicatos nascentes), quando deveriam reconhecer as vir-tudes do trabalho militante, sem 0 qual, como sabemos,nunca teria havido nada semelhante a urn movimento social.

Quanto a mim, quero expressar minha admira<;:ao e minha

gratidao - ainda mais intensas considerando que sua em-

* Intervenc,:ao, feita em 17 de janeiro de 1998, quando da ocupac,:ao daEcole Normale Superieure pel os desempregados.

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Alem disso, 0 desemprego e 0 desempregado obcecam 0

trabalho e 0 trabalhador. Temporarios, substituras, supleti-

vos, intermitentes, detentores de contraras de dura<;:ao de-

terminada, interinos na industria, no comercio, na educa-

<;:ao,no teatro ou no cinema, mesmo que imensas diferen<;:as

possam separa-Ios dos desempregados e tambem entre si,

rados eles vivem com medo do desemprego, e, muitas vezes,

sob a amea<;:ada chantagem exercida sobre eles pelo des em-

prego. A precariedade toma posslveis novas estrategias dedomina<;:ao e explora<;:ao, fundadas na chantagem da dispen-

sa, que se exerce hoje sobre toda a hierarquia, nas empresas

privadas e mesmo publicas, e que imp6e sobre 0 conjuntodo mundo do trabalho, e especialmente nas empresas de

produ<;:ao cultural, uma censura esmagadora, impedindo a

mobiliza<;:ao e a reivindica<;:ao. A degrada<;:ao generalizada

das condi<;:6es de trabalho se rarna posslvel ou ate mesmo

favorecida pelo desemprego, e e porque sabem confusamen-

te disso que tantos franceses se sentem e se dizem solidirios

a uma luta como ados desempregados. E par isso que se

pode dizer, sem jogar com as palavras, que a mobiliza<;:ao

daqueles cuja existencia constitui certamente 0 fatar prin-

cipal da desmobiliza<;:ao e 0 mais extraordinirio estfmulo amobiliza<;:ao, a ruptura com 0 fatalismo polftico.

o movimento dos desempregados franceses constitui

tambem urn apelo a todos os desempregados e trabalhadores

precirios de rada a Europa: surgiu uma ideia subversiva

nova, e ela pode se tamar urn instrumento de luta, do qual

cada movimento nacional pode se apoderar. Os desempre-

gados lembram a rados os trabalhadores que estes estao no

mesmo barco que os desempregados; que os desempregados,cuja existencia pesa tanto sobre eles e sobre suas condi<;:6es

de trabalho, saD 0 produto de uma polftica; que uma mo-

biliza<;:ao capaz de atravessar as fronteiras que separam, no

seio de cada pals, os trabalhadores e os nao-trabalhadores,

e por outro lado as que separam 0 conjunto dos trabalha-

dores e dos nao-trabalhadores, de urn mesmo pals, dos

trabalhadares e dos nao-trabalhadores dos outros paises,

poderia enfrentar a polftica que faz com que os nao-traba-lhadores possam condenar ao silencio e a resigna<;:ao aqueles

que tern 0 duvidoso "privilegio" de ter urn trabalho mais

ou menos precirio.