a política externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

Upload: brunafigueiredo

Post on 09-Jan-2016

8 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

A política externabrasileira emtempos denovos horizontese desafios, Monica Hirst / MariaRegina Soares de Lima /Leticia Pinheiro

TRANSCRIPT

  • Da mesma forma que em outros campos de poltica pblica do Brasil, o das relaes exteriores mostra relevantes transformaes nos anos recentes. Neste caso, constata-se uma combinao de contedos substantivos e dimen-ses institucionais j experimentados no passado com metas e articulaes inter-burocrticas e polticas inovadoras. Alm de refletir uma progressiva ampliao de interesses e ambies no cenrio mundial projetados desde Braslia, este processo tem sido beneficiado pelos ventos globais e regio-nais que sopram a favor. Esta combinao vem propiciando o desenho de polticas assertivas, que somam posturas individuais brasileiras com posies

    A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    Monica Hirst / Maria regina soares de LiMa / Leticia PinHeiro

    Como acontece com outras polticas

    pblicas, a poltica exterior

    brasileira tem experimentado uma

    srie de transformaes nos ltimos

    anos, que combina mudanas iniciadas

    h longo tempo com inovaes mais

    recentes. O artigo analisa a poltica

    exterior brasileira, em particular a ativa

    diplomacia presidencial desenvolvida

    por Lula desde sua chegada

    ao poder, assim como os principais

    temas da agenda exterior das

    novas coalizes multilaterais e a

    redescoberta da frica integrao

    regional na Amrica do Sul e

    os vnculos com os Estados Unidos.

    Monica Hirst: Professora de Poltica Internacional da Universidade Torcuato Di Tella (Buenos Aires).Maria Regina Soares de Lima: foi professora do Instituto de Relaes Internacionais da Pontif-cia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (iri/puc-Rio) e do Instituto Universitrio de Pesqui-sas do Rio de Janeiro iuperj; atualmente professora do Instituto de Estudo Sociais e Polticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (iesp/uerj) e coordenadora do Observatrio Poltico Sul-Americano (opsa).Leticia Pinheiro: professora do iri/puc-Rio, e coordenadora da Rede de Pesquisa Atores e Agenda de Poltica Externa, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (cnpq).Palavras-chave: relaes internacionais, poltica exterior, Luiz Incio Lula da Silva, Brasil.

    Este artigo cpia fiel do publicado na revista Nueva Sociedad especial em portugus, dezembro de 2010, ISSN: 0251-3552, .

  • 23 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    coordenadas com outros pases em desenvolvimento em temas de comr-cio, reforma financeira, mudana climtica, cooperao internacional, paz e segurana.

    O Brasil se beneficiou das transformaes na economia poltica global e da difuso de poder na direo dos pases emergentes. Mas para se entender a ampliao da agenda externa brasileira nos ltimos oito anos, necessrio levar em conta as caractersticas da poltica externa do pas neste perodo. Ao contrrio do passado recente, quando a poltica externa era acessria estabilidade macroeconmica e tinha funo de garantir a credibilidade in-ternacional, na atualidade, a poltica exterior, pr-ativa e pragmtica, um dos ps da estratgia de governo calcada em mais trs pilares: manuteno da estabilidade econmica; retomada do papel do Estado na coordenao de uma agenda neo-desenvolvimentista; e incluso social e formao de um ex-pressivo mercado de massas1. Por ter alargado a agenda de temas e atores (burocrticos e sociais), a poltica externa passou a ter uma base societal com a qual no contava anteriormente.

    Aps oito anos de continuidade e aprofundamento das diretrizes lana-das em 2003, a poltica externa se v exposta a avaliaes, de oposio ou de endosso, que revelam um indito interesse no debate pblico brasileiro. De um lado, a oposio denuncia sua partidarizao, prioridades contra-producentes e generosidades excessivas; de outro defende-se uma projeo regional e mundial com vistas a ampliar recursos de poder, oportunidades empresariais, prestgio e voz para o pas. De fato, mais que responder a ban-deiras partidrias, a poltica internacional do Brasil alargou como nunca sua ancoragem institucional com base na mobilizao de mltiplas agncias do Estado com agendas externa prprias ou complementares s linhas de ao do Itamaraty. Esta renovada estatalidade da ao internacional vem sendo acompanhada por um dinamismo empresarial marcado pela globalizao de seu mapa de investimentos externos com nfase nos pases em desenvolvi-mento, sejam estes na Amrica Latina especialmente Amrica do Sul , na frica ou na sia. A faceta de pas emergente que integra iniciativas de governo com ambio privada poder nos prximos anos permitir que o Brasil consolide sua condi-o de poder regional com reconhecimento e capacidade de certa influncia

    1. De acordo com os dados estatsticos no Brasil, estima-se que nos anos recentes cerca de 30 milhes de pessoas tenham acendido classe C.

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 24Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    num tabuleiro mundial que auspicia a chegada de novos jogadores. A atual fluidez das dinmicas polticas e econmicas globais constituem um requisito necessrio, embora insuficientes, para que esta trajetria prossiga; da mesma forma, no plano domstico necessrio, embora tambm insuficiente, que se assegure nas eleies de 2010 a confirmao das opes de poltica mantidas nos ltimos dois mandatos presidenciais.

    Atores e interesses Atualmente, a poltica externa brasileira formulada e conduzida num am-biente domstico e internacional complexo e fruto de coalizes de interesses de atores domsticos e internacionais com variada capacidade de influncia. Neste quadro, um dos traos que marcam este governo a consolidao de uma caracterstica que j se anunciava na administrao anterior, mas que

    adquiriu novas nuances com a proje-o externa de natureza econmica decorrente do crescimento da econo-mia do pas e poltica em funo da postulao do governo por maior participao nos assuntos de natureza internacional: a pluralizao de atores e a politizao da poltica externa.

    Nos fruns multilaterais internacio-nais, nas relaes bilaterais, na diver-sificao dos temas em discusso da

    sade pblica internacional proliferao nuclear , o governo Lula buscou posicionar-se. Esta maior projeo internacional, por um lado, criou expecta-tivas sobre a presena e participao do pas nos debates, aumentando ainda mais sua visibilidade. Por outro lado, implicou em maior diversidade e plu-ralidade de atores e de interesses relacionados aos temas internacionais, o que nem sempre ocorreu de forma convergente com os objetivos perseguidos pelo governo.

    Acrescente-se a este quadro o adensamento, neste governo, da poltica de co-operao internacional Sul-Sul e triangular fruto do feliz encontro entre a melhoria das condies econmicas do pas que lhe permitiu tornar-se um importante doador, com a vontade poltica de trabalhar no plano internacional em direo promoo do desenvolvimento. Ao se tornar um vigoroso instru-mento da poltica externa brasileira para os pases em desenvolvimento, esta

    A poltica externa brasileira

    formulada e conduzida

    num ambiente domstico

    e internacional complexo e

    fruto de coalizes de interesses

    de atores domsticos

    e internacionais com variada

    capacidade de influncia

    mauroHighlight

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 25 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    poltica fez do pas alvo de demandas crescentes cujo atendimento vem re-querendo a participao de uma multiplicidade de agncias e atores, soman-do-se ao universo das iniciativas no mbito da integrao regional. Registre-se igualmente o fato de que, ao favorecer uma poltica de cooperao tcnica por demanda externa, seu impacto sobre a administrao pblica disperso, o que agravado pela diversidade temtica das reas contempladas agricul-tura, sade, educao, c&t, defesa, minas e energia, cultura e turismo2.

    Em particular, embora no exclusivamente, no universo da cooperao al-guns ministrios vm apresentando atuao especialmente destacada, como o Ministrio da Agricultura, atravs da presena da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (Embrapa) em pases africanos e sul-americanos. Sua atuao busca auxiliar, promover e fomentar o desenvolvimento social e o crescimento econmico atravs da transferncia de tecnologia e da troca de conhecimentos e de experincias no campo da pesquisa agropecuria. Embo-ra sem o requisito da condicionalidade, de todo antittico aos princpios da cooperao Sul-Sul (css), a atuao desta empresa no campo da capacitao para o desenvolvimento vem potencializando as oportunidades de negcios para empresas brasileiras na regio. Na mesma linha de atuao, o Ministrio da Sade, atravs da sua Assessoria Internacional e de rgos a ele vincula-dos, como a Fiocruz, desenvolve inmeros projetos de cooperao tcnica no exterior3. De fato, a presena marcante da sade na agenda internacional do Brasil e a atuao de agncias especficas neste campo com forte poder de iniciativa j responsvel pela adoo de uma nova qualificao no mbito da diplomacia, a chamada diplomacia da sade.

    Outra face da presena de destaque dos ministrios domsticos no ta-buleiro internacional ocorre com o setor empresarial, que vem adquirindo alcance global e aumentando mais seu envolvimento internacional. Embora atuem de forma paralela, expressivo o dilogo entre as aes empresariais

    2. A propsito, deve-se registrar a recente deciso de se levar a cabo o primeiro levantamento do volume de recursos destinados pelo governo brasileiro cooperao internacional para o desenvolvimento, a ser realizado pela Diretoria de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas Internacionais do Instituto de Pesquisa Aplicada (ipea). Ver Guilherme de Oliveira Schmitz, Joo Brigido Bezerra de Lima e Rodrigo Pires de Campos: Cooperao brasileira para o desenvolvi-mento internacional: primeiro levantamento de recursos investidos pelo governo federal em Boletim de Economia e Poltica Internacional N 3, 7-9/2010.3. Destaque deve ser dado a criao em 2008 do primeiro escritrio internacional da Fiocruz em Maputo, Moambique, responsvel por oferecer formao de recursos humanos na rea de sa-de. Juntamente com esta iniciativa, o Brasil apoiou a implantao da Fbrica de Medicamentos de Moambique por meio da assessoria de especialistas do Instituto de Tecnologia em Frmacos (Farmanguinhos), que produzir medicamentos anti-retrovirais, entre outros.

    mauroHighlight

    mauroHighlight

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 26Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    e governamentais brasileiras no cenrio externo. A poltica do Ministrio do Desenvolvimento (mdic) de estmulo a misses e empreendimentos do setor pblico e privado em todo o mundo em desenvolvimento gera uma convergncia de interesses que se reflete no discurso e na prtica dos fe-ncios brasileiros4. O entusiasmo pela frente Sul-Sul por parte do empre-sariado brasileiro vem relevando tambm um processo de aprendizagem

    e um sentido de oportunidade que revela um novo perfil de investimen-tos e transaes comerciais. Entre os grupos privados e estatais a comparti-lhar mercados, destacam-se Petrobras, Odebrecht, Banco do Brasil, Vale do Rio Doce, Votorantim, Companhia Si-derrgica Nacional, Camargo Corra, Gerdau, jbs.

    O ativismo da poltica externa brasilei-ra do governo Lula e sua atuao em reas temticas to diversas em debate no cenrio internacional so tambm responsveis por um papel renovado das organizaes no-governamentais na construo e implementao de pro-

    jetos. Mantida a rationale do Itamaraty de que a parceria com estas organizaes deve se pautar por sua comprovada competncia, e no por sua auto-proferida representatividade, deve-se acrescentar que o legado de um relacionamento estreito entre os quadros do Partido dos Trabalhadores (pt) com os sindicatos e movimentos sociais permitiu e impulsionou a formao e consolidao de parcerias entre este governo e diversas organizaes. Esta configurao vem exigindo que o governo desenvolva um novo padro de construo de consensos na formulao dos projetos externos que lhes im-prima maior representatividade, sem se descuidar da tarefa de coordenao da diversificada pauta de relaes externas do pas. Uma das respostas a este

    4. Empresas como Odebrecht, Camargo Corra, Andrade Gutierrez, Marcopolo, Etanol Trading, Acar Guarani, Petrobras e Vale do Rio Doce se estabeleceram na frica ou atuam por meio de joint-ventures e parcerias. Ver Equipe Pontes, Centro Internacional para o Comrcio e o Desen-volvimento Sustentvel (ictsd): frica na fronteira dos investimentos internacionais em Pontes Quinzenal vol. 4 N 9, 25/5/2009, disponvel em .

    O ativismo da poltica

    externa brasileira do

    governo Lula e sua atuao

    em reas temticas to

    diversas em debate

    no cenrio internacional

    so tambm responsveis

    por um papel renovado

    das organizaes

    no-governamentais na

    construo e implementao

    de projetos

    mauroHighlight

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 27 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    desafio vem se dando na prpria organizao administrativa do Itamaraty. Em coerncia com sua prpria histria institucional, que envolve reformas, reorganizao interna para ajustar-se aos novos tempos e preservar algum grau de autonomia e poder de pilotagem, esta agncia procurou responder s demandas de fruns multilaterais, das organizaes internacionais e da atual multidimensionalidade das relaes exteriores. Mencionem-se ainda as demandas decorrentes da mudana de postura do pas nos regimes interna-cionais que estimularam a criao de divises e subdivises internas. Neste particular, nota-se a nova configurao da Subsecretaria-Geral Poltica que, a partir de 2006, somou departamentos e divises para lidar com temas de destaque na poltica externa como Meio Ambiente, Direitos Humanos, Temas Sociais5. Desta forma, por meio da especializao que alcana espaos, re-gies e temas mltiplos, o Itamaraty busca manter-se atuante e participativo nas esferas em que se desenrolam e se constituem as relaes internacionais contemporneas.

    Ainda no plano governamental, destaca-se a ao externa dos governos sub-nacionais. Embora desde os anos 80 j se desenvolva esta atividade no pas, nos dias atuais registra-se um notvel ativismo nos principais estados e ci-dades brasileiras, muitas delas possuindo algum tipo de estrutura de coor-denao ou assessoria para temas internacionais. Mesmo reconhecendo que a responsabilidade constitucional pela poltica externa brasileira prerroga-tiva do poder executivo federal, as competncias e obrigaes alocadas s unidades federadas com respeito ao desenvolvimento local concederam certa legitimidade aos governos subnacionais para procurar fundos no exterior, o que envolve acordos de cooperao com suas contrapartes estrangeiras6. Neste particular, tambm o campo da cooperao tcnica internacional expo-nenciou a atuao das unidades subnacionais, transformando-as em mais um ator da poltica externa brasileira contempornea. De fato, embora a atividade externa das entidades subnacionais j ocorresse desde o governo passado, ela foi de fato estimulada e integrada estratgia de poltica externa e desenvol-vimento nacional no atual governo.

    A presena expandida do Brasil no exterior por meio dos escritrios interna-cionais de ministrios voltados para polticas pblicas, da iniciativa privada

    5. Andrs Rivarola Puntigliano: Going Global: An Organizational Study of Brazilian Foreign Policy em Revista Brasileira de Poltica Internacional vol. 51 N 1, 2008, pp. 28-52.6. Monica Salomon: A dimenso subnacional da poltica externa brasileira: determinantes, con-tedos e perspectivas em Carlos Milani e Leticia Pinheiro (orgs.): Poltica externa brasileira: as prticas da poltica e a poltica das prticas, fgv, Rio de Janeiro, no prelo.

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 28Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    e das organizaes internacionais aumentou igualmente a presena de cida-dos nacionais vivendo fora do pas, a ponto de j se falar de uma dispora brasileira. Junto com ela, questes como imigraes legais e ilegais; remessa de dinheiro; formao educacional e cultural, desterritorializao de identi-dades sociais, etc, outorgaram visibilidade indita dimenso consular da diplomacia brasileira, uma dimenso antes relegada a questes de natureza mais administrativa e menos poltica.

    Com relao ao Congresso Nacional, embora sem o ativismo que carac-terizara os anos em que o pt, como partido de oposio, foi responsvel por incentivar os debates e o monitoramento da poltica externa, a nova legislatura mostrou que ainda vige a lgica de uma delegao transit-ria ao Executivo na formulao e conduo dos negcios exteriores. Esta retirada quando surgem divergncias que produzem polarizaes como se deu no caso da ratificao da adeso da Venezuela ao Mercosul e da aprovao das modificaes introduzidas no tratado de Itaipu negociadas com o Paraguai.

    Finalmente, ao mesmo tempo que ao longo dos dois mandatos do presidente Lula foi visvel a multiplicao de atores no campo da poltica externa, no

    pode ser menosprezado o protagonismo do mandatrio no cenrio internacional acompanhado por seu estilo afirmativo. A frmula adotada pelo governo Lula tem sido vincular um novo acervo de polticas sociais que atacam a pobreza e a desigualdade no plano domstico com uma ativa diplomacia presidencial. Ao mesmo tempo em que se transformou a questo social numa bandeira de poltica externa, buscou-se combinar um espao prprio da Presidncia com os recursos institucionais e profissionais do Estado

    brasileiro. Embora no sendo novidade no Brasil, a diplomacia presiden-cial presente durante o governo Lula ainda no foi suficientemente avaliada como promotora substantiva de poltica externa. Deve-se tambm destacar nesta gesto a presena de uma assessoria especial em relaes internacio-nais junto Presidncia da Repblica, desta forma balizando ainda que no necessariamente competindo com as funes da corporao diplomtica.

    A frmula adotada

    pelo governo Lula tem

    sido vincular um novo

    acervo de polticas sociais

    que atacam a pobreza

    e a desigualdade no

    plano domstico com

    uma ativa diplomacia

    presidencial

  • 29 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    Destaques da agenda

    A seguir, examinamos os temas substantivos da poltica externa que mere-ceram maior nfase nos anos recentes e que apresentaram certas inovaes com relao s orientaes pretritas. Duas direes podem caracterizar estas inovaes. Por um lado, a nfase na participao nos fruns de governana global com uma agenda demandante e o abandono de posies defensivas que caracterizaram a agenda terceiro-mundista no ps-Segunda Guerra. Por outro, a prioridade concedida s relaes Sul-Sul, com meno especial ao mbito sul-americano. Neste caso, o Brasil no apenas se tornou um ativo ofertante no sistema de cooperao internacional, como reforou sua presen-a econmica por via do comrcio e dos investimentos diretos.

    Temas multilaterais e novas coalizes. A defesa do multilateralismo universal tem sido um dos temas mais perenes da agenda da poltica externa, refletin-do a clssica identidade internacional brasileira de mediador entre o Norte e o Sul. Mas no apenas a assim chamada crise do multilateralismo aponta para sua gradual transformao como mudou a postura negociadora do pas nos ltimos anos. A mudana brasileira resultado do uso de um revisio-nismo soft nos fruns em que a capacidade de influncia est predicada em posturas demandantes nas diversas questes globais. Desta forma, no re-gime comercial, ao contrrio do passado, quando o pas s tinha interesses defensivos, os interesses ofensivos pela liberalizao agrcola levaram co-ordenao com ndia, China e frica do Sul, entre outros, na criao do g-20 no mbito da rodada de Doha da Organizao Mundial do Comrcio (omc). Tambm significativa foi a mudana de posio no caso de meio ambiente e na discusso sobre mudana climtica. Na reunio de Copenhague em 2009, o Brasil abandonou a postura defensiva, no negociadora que adotara em Kyoto, com o anncio de metas voluntrias de reduo das emisses de carbono. A coalizo negociadora significativa neste caso incluiu, alm do Brasil, ndia, frica do Sul e China. Nestes dois casos, a mudana de postura decorreu tambm de mudanas domsticas, seja a importncia das exportaes agrcolas na pauta brasileira, seja o realinhamento domstico na questo do meio ambiente.

    No sistema de segurana coletiva, no mbito da Organizao das Naes Uni-das (onu), as mudanas de posicionamento j vinham desde 1988 e foram uma decorrncia, acima de tudo, de mudanas na poltica externa quando o pas voltou a ser um participante ativo no Conselho de Segurana, onde este-ve ausente por mais de vinte anos. Neste mesmo mbito, o Brasil abandonou

    mauroHighlight

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 30Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    certos comportamentos soberanistas prvios, como a participao em mis-ses da paz impositivas, realizadas com base no captulo vii da Carta da onu, sendo a instncia mais significativa a aceitao do comando da Misso das Naes Unidas para a Estabilizao no Haiti (minustah) em 2004. Esta nova disposio para participar de operaes de paz est relacionada ao interesse brasileiro de postular por um assento permanente no Conselho de Segurana no contexto de uma reforma institucional da onu7.

    No contexto global, uma novidade importante tem sido a participao do pas nas negociaes financeiras internacionais no mbito do g-20 financeiro, como consequncia da ampliao do g-7 por iniciativa norte-americana no contexto da crise financeira global iniciada em 2008. Neste mbito, o Brasil atua coordenado com os brics (Brasil, Rssia, ndia e China) no avano de uma agenda que inclui a questo da reforma institucional e reviso das cotas do Fundo Monetrio Internacional (fmi). Nesta arena o pas, assim como os demais brics, beneficiou-se por possuir um estoque elevado de reservas in-ternacionais. Apesar deste esforo de coordenao, existem diferenas a res-peito do encaminhamento dos desequilbrios cambiais, com ntida prefern-cia do Brasil para que o tema seja tratado no plano multilateral e a oposio tanto dos eua quanto da China.

    A participao do Brasil nos foros de governana global reflete no apenas uma poltica pr-ativa de constituio de coalizes de geometria varivel, envol-vendo algumas naes emergentes, como os limites derivados das carncias de recursos de poder que permitam ao pas uma carreira solo em instncias globais. Por outro lado, um novo tipo de multilateralismo ad hoc, exemplificado pelo g-20 financeiro, um mecanismo de coordenao informal que no tem por base um tratado internacional, pode ser prejudicial s aspiraes brasileiras. Ademais, este novo tipo de multilateralismo, que poderia estar substituindo o do passado, da natureza universal e constitucional, est sendo acompanhado por iniciativas, tanto dos eua quanto da Unio Europia, de constituio de parcerias estratgicas com pases emergentes, sugerindo uma tendncia em curso de cooptao pelas potncias destes mesmos emergentes.

    Oportunidades e desafios na Amrica do Sul. Durante todo o governo Lula, a Amrica do Sul constituiu uma prioridade da poltica internacional brasileira.

    7. Em 2000 o Brasil participou, junto com Japo, Alemanha e ndia, da criao do g-4 para ar-ticular posies conjuntas favorveis reforma do Conselho de Segurana das Naes Unidas (csnu).

    mauroHighlight

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 31 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    Alm do interesse por avanar na construo de um projeto comunitrio sul-americano, o governo Lula buscou desde seu incio projetar a presena brasileira como um fator de estabilidade democrtica em toda a regio. No obstante, ao assumir o papel de uma potncia regional, o Brasil passou a en-frentar novas expectativas polticas e econmicas de seus vizinhos, nem sem-pre compatveis com seus interesses de afirmar-se como ator global no ta-buleiro das negociaes mundiais.

    Assumir o lugar de uma potncia regional tem gerado demandas sem precedentes para o Brasil, que reque-rem novas capacidades diplomticas e habilidades polticas. A presena brasileira na Amrica Latina tem sido associada ao papel mediador em con-textos de crises locais, entre as quais se destacaram os casos da Venezuela (2003), Bolvia (2003 e 2006), Equador (2004), Honduras ( 2009) e Haiti (2003)8. Ao mesmo tempo, laos polticos mais intensos foram estabelecidos com governos de pases do Cone Sul, os de Nstor Kirchner e Cristina Fernndez de Kirchner na Argentina, de Tabar Vzquez e Jos Mujica no Uruguai, de Michelle Bache-let no Chile e de Fernando Lugo no Paraguai. Outrossim, se manteve um fluido dilogo poltico com Hugo Chvez na Venezuela e com o governo castrista em Cuba. Em diversos momentos, esses laos geraram reaes por parte de seg-mentos das elites brasileiras. A opinio domstica sobre a poltica brasileira na regio tende a se dividir: de um lado, observa-se uma opinio conservadora que se ope ao abandono da tradio de no-interveno e reclama a mxima defesa dos interesses nacionais; de outro, crculos progressistas intelectuais e polticos tm apoiado um envolvimento mais ousado e comprometido na Am-rica Latina com vistas a construo de uma estratgia regional-global.

    Deve-se sublinhar que a expanso do envolvimento poltico brasileiro em crises locais, somada s atividades comerciais e de investimento crescentes com seus vizinhos sul-americanos, no significa aceitao fcil ou autom-tica na Amrica do Sul da liderana brasileira em assuntos mundiais. Um

    8. Desde o inicio da minustah em 2004, a presena brasileira oscilou entre uma atuao coor-denada com seus pares sul-americanos e a construo de um perfil prprio no desempenho de suas responsabilidades em solo haitiano. Alm do comando militar da misso, o Brasil contribui atualmente com um contingente de 1.900 soldados e 130 policiais.

    Ao assumir o papel de uma

    potncia regional, o Brasil

    passou a enfrentar novas

    expectativas polticas e

    econmicas de seus vizinhos,

    nem sempre compatveis com

    seus interesses de afirmar-se

    como ator global no tabuleiro

    das negociaes mundiais

    mauroHighlight

  • 32Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    exemplo foi a reao candidatura brasileira a um assento permanente no csnu, que no conta com o apoio da Argentina e da Colmbia. Em te-mas bilaterais, as dificuldades maiores surgiram com os pases menores na regio, mencionando-se os problemas com o Equador vinculados atua-o da empresa Odebrecht; com a Bolvia devido deciso do governo de Morales de nacionalizar as instalaes da Petrobras em seu pas; e com o Paraguai frente s reivindicaes do governo Lugo de renegociar os termos do Tratado de Itaipu. Nos trs casos, o governo Lula flexibilizou suas pos-turas iniciais buscando solues polticas que superassem desentendimen-to econmicos e atenuassem os condicionantes impostos por assimetrias estruturais.

    Outro ponto a mencionar diz respeito visibilidade da diplomacia brasileira no plano multilateral latino e sul-americano. Os avanos obtidos nos terrenos polticos e de defesa tm sido mais relevantes do que aqueles na rea econ-mica9. Enquanto no Mercosul persiste um conjunto de entraves na agenda de negociaes comerciais do bloco, a diplomacia brasileira mostrou seu pr-ativismo na Comunidades Sul-Americana, agora re-nomeada como Unio de Naes Sul-Americanas (Unasul), e na posterior criao do Conselho de Defesa Sul-Americano. Tambm foi relevante a atuao do pas na incluso de Cuba

    como membro do Grupo do Rio e na proposta de criao do Comunidade de Estados de Amrica Latina e Caribe (cealc) a ser formalizada em 201110.

    A redescoberta da frica. Na histria contempornea da poltica externa brasileira, o perodo atual pode ser identificado como o da terceira onda de interesse do Brasil pela frica. O relacionamento com o continente africano se converteu num referente simblico da estratgia Sul-Sul, refor-ado pelo discurso da convergncia

    identitria que envolve aspectos histricos, tnicos e socioculturais do pas em sua condio de pas em desenvolvimento.

    9. Mencione-se como exceo o empenho do Brasil pela criao do Fundo para a Convergncia Estrutural do Mercosul (focem) para lidar com as assimetrias intra-bloco. 10. Em fevereiro de 2010, realizou-se uma reunio com 25 chefes de Estados latino-americanos e caribenhos quando foi anunciada a criao da cealc.

    Na histria contempornea

    da poltica externa brasileira,

    o perodo atual pode ser

    identificado como o da terceira

    onda de interesse do Brasil

    pela frica. O relacionamento

    com o continente africano se

    converteu num referente

    simblico da estratgia Sul-Sul

  • 33 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    A gradual recuperao de dinamismo nas transaes comerciais Brasil-frica a partir de 2000 se deveu a diversos fatores, em que se destacam as iniciati-vas inter-empresarias especialmente com Nigria, Angola, Arglia e frica do Sul11. No plano diplomtico, desde 2003 foram inauguradas 16 novas em-baixadas no continente ao qual o presidente Lula viajou dez vezes, visitou 20 pases e criou a Cpula frica-America do Sul (2008). O interesse pela comunidade africana esteve tambm associado a motivaes propriamente polticas em vista dos interesses do Brasil no tabuleiro mundial, em especial o de promover uma reformulao da estrutura decisria das Naes Unidas. De fato, a aspirao por um lugar permanente no Conselho de Segurana reforou o dilogo com as naes africanas e levou a diplomacia brasileira a buscar explicitamente o apoio candidatura do pas.

    Atualmente, a frica corresponde ao principal destino da assistncia tcnica concedida pela Agncia Brasileira de Cooperao (abc), em resposta a de-mandas provenientes das representaes diplomticas, ou a ofertas configu-radas no contexto de visitas presidenciais12. A oferta de cooperao do Brasil no continente africano ganhou novo impulso a partir da ao conjunta da diplomacia profissional e presidencial na frica, a ao da abc acompanhada por uma rede de projetos ministeriais (destacam-se o Ministrio de Cincia e Tecnologia, as iniciativas do Ministrio de Desenvolvimento, Industria e Co-mercio Exterior, da Agricultura e da Sade). A atuao no continente africano vem sendo instrumentalizada pelas agncias especializadas do Estado, espe-cialmente a Embrapa na rea de produo de alimentos, Fiocruz no campo da sade (concentrado no combate a hiv/aids e Malria) e Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (senai) para projetos de formao profissional (em reas tais como construo civil, conhecimento eltrico, hidrulico, compu-tao e gastronomia). Os projetos de cooperao tcnica ofertada pelo Brasil, mesmo quando implementados por organizaes no-governamentais por demanda do governo brasileiro, tambm tm sido importantes promotores de vnculos com os pases africanos.

    Entre as naes africanas, uma ateno especial tem sido outorgado ao relacio-namento com a frica do Sul, motorizada em grande medida pelo Frum de

    11. No perodo 2000-08 o comrcio do Brasil com o continente retoma seu dinamismo saltando de us$ 4 bilhes a us$ 26 bilhes. 12. Em 2007, 53% do total desta assistncia foi destinada a 21 pases africanos, observando-se uma concentrao notvel da mesma em pases da Comunidade dos Pases de Lngua Portu-guesa (cplp) (77,45%). Em 2009, o peso da assistncia para frica oferecida pela abc alcanou 35 pases do continente e representou us$ 6.835.406,91. abc, apresentao realizada no Seminrio Brasil-China, Cooperao para o Desenvolvimento na frica, Braslia, junho de 2010.

    mauroHighlight

    mauroHighlight

  • 34Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    Dilogo ndia-Brasil-frica do Sul (ibas)13. O Brasil, junto frica do Sul, tem sido explcito em sua inteno de assumir novas responsabilidades em ques-tes de segurana regional, promoo da paz, defesa da democracia e conso-lidao de esquemas de integrao regional. Sublinha-se ainda a coordenao de posies em questes de economia e poltica internacional com crescente visibilidade em foros e instituies multilaterais como o g-20, a Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (fao) e as conferncias temticas das Naes Unidas14.

    A expanso da Cooperao Sul-Sul (css). Para o Brasil, a css combina moti-vaes de poltica externa com a capacidade de atender demandas de assis-tncia tcnica especfica e ao mesmo tempo pretende evitar a reproduo das lgicas de assistncia Norte-Sul. A css oferecida pelo Brasil corresponde a um meio e a um fim. Atravs da abc, o pas vem procurando configurar seu prprio estilo de cooperao horizontal com aes que visam construir pontes de transmisso e intercambio de conhecimento, lealdades polticas e sociais com outros pases em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o Itamaraty defen-

    de a articulao entre assistncia ao desenvolvimento, apoio a gover-nana e a promoo da paz.

    Nos ltimos anos, o Brasil busca projetar-se como um ator com in-fluncia na configurao da agenda Sul-Sul de apoio ao desenvolvimen-to junto a outros pases de renda mdia latino-americanos asiticos e africanos. Este esforo coincide com relevantes mudanas de sua inser-

    o externa, motivadas por novas ambies internacionais que pretendem expandir a presena do pas em negociaes econmicas globais, nos mbitos dos regimes e das organizaes multilaterais e nos assuntos regionais15. O

    13. Iniciativa trilateral constituda por ndia, frica do Sul e Brasil em 2003 que envolve coope-rao bilateral, e trilateral e em terceiros pases. Atualmente de 96% o nvel de convergncia intra-ibas nas votaes nas onu. 14. A valorizao do vnculo Braslia-Pretria vem sendo alimentado por um conjunto diversifi-cado de empreendimentos e iniciativas bilaterais nas reas de cooperao agrcola, em cincia e tecnologia, polticas sociais, defesa e estudos socioculturais. 15. Monica Hirst e Maria Regina S. de Lima: Brazil as an Intermediate State and Regional Po-wer en International Affairs vol. 82 N 1, 2006; M.R.S. de Lima: Liderazgo regional en Amrica del Sur: tiene Brasil un rol a jugar? [2007] en Ricardo Lagos (comp.): Amrica Latina: Integracin o fragmentacin?, Edhasa, Buenos Aires, 2008.

    Para o Brasil, a css combina

    motivaes de poltica externa

    com a capacidade de atender

    demandas de assistncia

    tcnica especfica e ao mesmo

    tempo pretende evitar a

    reproduo das lgicas de

    assistncia Norte-Sul

    mauroHighlight

  • 35 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    Brasil, como outros Pases de Renda Mdia (prm) que se destacam na configu-rao de uma nova agenda de css, pretende ser parte influente no processo de reviso e construo de consensos mnimos da comunidade mundial no que diz respeito cooperao tcnica prestada a pases em desenvolvi-mento (ctpd). O rtulo comumente atribudo de doador emergente ga-nha especificidade por se tratar de um ator comprometido com os ideais do desenvolvimento, um ativo participante da terceira onda democrtica, um produtor destacado de bens agrcolas e industriais que dever se juntar aos esforos to necessrios para evitar uma crise de alimentos nos pases de menor desenvolvimento relativo, e uma pea indispensvel do processo de construo de um espao regional de integrao e cooperao na Amrica do Sul.

    Os vnculos do Brasil com a Amrica do Sul e a frica so os pilares que sustentam a ascenso do Brasil a condio de doador emergente. Um para-lelismo entre a presena do pas nas regies africana e latino-americana in-dica algumas lgicas e/ou estratgias semelhantes. Quatro coincidncias podem ser apontadas: a) a seletividade baseada em critrios histricos, culturais e/ou geopolticos o interesse concentrado nos Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa (palop), de um lado, e na Amrica do Sul, de outro; b) a combinao de vinculaes bilaterais com aes que preten-dem fortalecer simultaneamente o arcabouo institucional de instncias coletivas como a cplp e o Mercosul; c) a presena multidimensional que somam os campos de segurana, diplomacia, cooperao para o desenvol-vimento em pases marcados por situaes de fragilidade institucional e instabilidade poltica, como a participao em misses da onu Guin Bissau e Haiti; d) a vinculao entre coalizes inter-estatais e a css no caso do Mercosul com o Focem e do ibas com o Fundo ibas. Ambos fundos permitem ao governo brasileiro dar um novo passo no comprometimento de recursos financeiros para a cooperao ao desenvolvimento, superan-do os entraves impostos pela legislao brasileira que apenas contempla a possibilidade de oferta de assistncia tcnica.

    As alteraes de peso nas relaes com os eua. Durante o governo Lula, observou-se um processo de mudana no relacionamento Brasil-eua em di-versos terrenos de interao. Tanto durante a administrao Bush como na de Obama, colocou-se de manifesto uma crise de liderana de Washington na regio acompanhado pela falta de interesse e energia poltica para lidar com situaes de instabilidade localizadas, o que tem contribudo para que o Brasil consolide sua condio de poder regional.

  • 36Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    Um primeiro aspecto a ser considerado tem sido a reduo do peso norte-americano na agenda econmica externa brasileira nos ltimos anos. Embora seja certo que a ampliao do acesso ao mercado dos eua constitui um inte-resse permanente da poltica comercial brasileira, a importncia desta meta reduziu-se de forma considervel, principalmente aps o esgotamento do pro-cesso negociador da rea de Livre Comrcio das Amricas (alca) em 2005. A contra-cara desta inflexo tm sido os esforos para aumentar o comrcio com outras grandes economias como Rssia, China e ndia e aprofundar os vn-culos com a Amrica Latina. Os eua ainda representavam um destino cobiado para as exportaes brasileiras, mas seu peso no total das vendas externas do pais j no o mesmo. Em 2002, alm de absorver 25% das vendas externas do Brasil das quais 75% correspondem a produtos industrializados de maior valor agregado e contedo tecnolgico os eua eram responsveis por 42% do supervit comercial do pas. Em 2007, o mercado norte-americano absorvia aproximadamente 15% das exportaes brasileiras, o que de fato revela uma forte tendncia decrescente. No universo dos investimentos norte-americanos no Brasil, de um posto que oscilava entre 9 e 10 em 1990-2000 como destino de investimentos diretos, o Brasil caiu para o 18 nos anos 2005-2007.

    Contra as expectativas iniciais, as relaes entre o Brasil de Lula e os eua de George W. Bush ganharam mais substncia com implicaes positivas, para ambos lados, do que jamais fora esperado. De acordo com a viso oficial no Brasil, alcana uma etapa de amadurecimento, cujo resultado principal foi o estabelecimento um dilogo estratgico (Dilogo de Parceria Global) entre Braslia e Washington. Desta forma, o relacionamento Lula-Bush, depois de um perodo de distncia, testemunhou uma sucesso de contatos positivos em nveis inter-ministeriais e inter-presidencias. A etapa inicial de marca-dos desencontros foi substituda por relativa distenso; os principais pontos de discordncia, embora no tenham desaparecido, deixaram de representar um empecilho para a identificao de reas de entendimento. Washington, de seu lado, passou a reconhecer a necessidade de manter aberto um canal de comunicao com Braslia para lidar com a agenda poltica regional, particu-larmente em situaes nas quais as instituies democrticas enfrentassem maiores riscos de continuidade, como se deu na Bolvia e na Venezuela. Um reconhecimento especial passou a ser reiterado nos encontros bilaterais de alto nvel com respeito interveno brasileira no Haiti, valorizando-se a deciso do governo Lula de assumir o comando militar da minustah em 200316.

    16. Ver M. Hirst: La intervencin sudamericana en Hait em M. Hirst (comp.): Crisis de estado e intervencin internacional, Edhasa, Buenos Aires, 2009, pp. 29-72.

  • 37 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    O dilogo Braslia-Washington no impediu diferenas frente a realidades turbulentas na regio, especialmente quando estas envolvem interesses estra-tgicos norte-americanos, como ocorre nos casos da Colmbia a Cuba. Se com a administrao republicana a apro-ximao bilateral foi selada por con-vergncias no campo da interveno multilateral, destacando-se a deciso do Brasil de assumir o comando mili-tar da minustah no Haiti, e em temas energticos, com meno a cooperao em biocombustveis; com o governo de Obama, o principal ponto de encon-tro se deu no contexto da grave crise financeira internacional deflagrada em 2008. Mas logo desencontros polticos, tanto na esfera regional como global se fizeram sentir; no primeiro caso, mencionem-se divergncias suscitadas a partir do golpe de estado em Hon-duras e com respeito a reincorporao de Cuba Organizao dos Estados Americanos (oea)17, no segundo as que se deram quando o Brasil como membro no-permanente do csnu negou seu apoio a imposio de san-es ao Ir.

    Reflexes finais

    A frmula adotada pelo governo Lula desde 2003 foi a de vincular um novo acervo de polticas sociais que atacam a pobreza e a desigualdade no plano domstico com uma ativa diplomacia presidencial. Ao mesmo tempo em que se transformou a conquista social num atributo da poltica externa, buscou-se combinar um espao prprio da presidncia com os recursos institucionais e profissionais do Estado brasileiro. Enquanto foi reforada a marca estatista da poltica externa conduzida pelo Itamaraty, ampliou-se a dimenso inter-burocrtica da diplomacia por via de novas redes de interconexo inter-minis-teriais, bem como a base societal da insero internacional brasileira.

    Mas os novos tempos da atuao internacional do pas tambm implicam assumir riscos a serem medidos passo a passo nos prximos anos. A ttulo

    17. Na Assemblia Geral da oea (maio de 2009), o Brasil foi um dos pases que promoveram a resoluo 2.438, que prev o inicio de um processo de revogao da excluso de Cuba deste organismo.

    O dilogo Braslia-Washington

    no impediu diferenas frente

    a realidades turbulentas na

    regio, especialmente quando

    estas envolvem interesses

    estratgicos norte-americanos,

    como ocorre nos casos

    da Colmbia a Cuba

  • 38Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    especulativo, elencamos a seguir um pequeno conjunto de desafios quando se contemplam temas concretos da agenda externa brasileira.

    O robustecido quadro de participao de agncias diversas na poltica externa gerou efeitos de natureza distinta sobre a conduo dos negcios do pas: por um lado, aumentou o grau de credibilidade dos compromissos internacio-nais; alargou-se a possibilidade de articulaes horizontais e diagonais entre os atores do plano do Estado e da sociedade brasileira com seus equivalentes estrangeiros; e tornou-se mais complexa a construo de consensos na cons-truo e implementao de projetos externos. Por outro lado, no que tange constituio de uma agenda de poltica externa nos ministrios domsticos e nas empresas estatais, devemos atentar para o risco de ativao de disputas inter-burocrticas; enquanto a crescente pluralizao de divises dentro da burocracia diplomtica, numa tentativa de resposta diversidade da agenda e a pluralizao de atores com objetivos de coordenao, pode igualmente ativar disputas intra-burocrticas e um inchamento da burocracia sem, ne-cessariamente, uma contrapartida em eficcia.

    Em que pesem estes riscos, a ampliao da base societal da insero interna-cional do pas gerou uma nova configurao da arena de formulao e imple-mentao da poltica externa brasileira com maior transparncia e ativou o debate pblico sobre as escolhas no projeto de insero internacional do pas com efeitos positivos para o fortalecimento da democracia brasileira.

    No que se refere formao de alianas em espaos multilaterais, a poltica externa passou a operar por via de coalizes especficas dependendo da te-mtica em questo, como o caso dos brics; g-20 financeiro; g-20 comercial; basic, para citar os mais conhecidos arranjos cooperativos do tipo ibas que inclui cooperao bilateral, trilateral e em terceiros pases. Esta diversidade de formatos e tamanhos destas coalizes variveis responde s diferencia-es no conjunto dos pases em desenvolvimento e s mudanas em curso no multilateralismo tradicional. Alguns desafios podem ser mencionados a ttu-lo exemplificativo: a profuso deste tipo de aliana e a capacidade de imple-mentao de seus variados objetivos, em particular no caso daqueles arranjos formais que envolvem distintas temticas de cooperao; a manuteno da coeso poltica do grupo face a eventuais divergncias entre os membros; e o dilema entre a cooptao pelos mais fortes e representao dos mais fracos. medida que o Brasil assuma um papel cada vez mais relevante no aprofun-damento e nas inovaes da css, ganha mpeto um conjunto de possibilidades

    mauroHighlight

  • 39 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    Nueva Sociedad / Rafael Sica 2010

  • 40Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010 Monica Hirst / Maria Regina Soares de Lima / Leticia Pinheiro

    de horizontalidade que poderiam se transformar em processos de associao, aprendizagem e de oferta ampliada de assistncia a pases em desenvolvi-mento. Mas, ao mesmo tempo, a atuao do Brasil como doador Sul-Sul no est isenta de problemas. Muitas vezes esta cooperao responde a motiva-es pontuais atreladas a objetivos de poltica externa, atendendo a demandas especficas por parte de receptores, o que estimula a fragmentao do tecido assistencial. A incompatibilidade entre os princpios de um planejamento es-tratgico com uma poltica de atendimento de cooperao por demanda e o envolvimento de variadas instncias do governo nestas iniciativas (nos nveis federal, estadual e municipal) tem dificultado a coordenao destas iniciati-vas por parte do governo. Assim, a despeito da deciso implementada entre 2005/2006 de promover a reestruturao administrativa e o robustecimento da Agncia Brasileira de Cooperao, ainda preciso aperfeioar suas atividades, particularmente no que tange ao dimensionamento dos recursos direcionados cooperao tcnica.

    No plano regional, nunca antes os olhos da regio sul-americana estive-ram to postos no Brasil, no seu potencial econmico, poltico e militar. Relaes assimtricas, porm, so problemticas uma vez que a linha que separa a liderana cooperativa da preponderncia tnue na viso e ex-pectativa dos envolvidos. Para o desempenho da primeira, necessrio viso estratgica de longo prazo e capacidade de mobilizao de recursos e legitimidade da sociedade. Neste particular, no est claro o quanto a so-ciedade brasileira est disposta a aderir a um projeto cooperativo regional, nem o quanto o Estado brasileiro estaria disposto a abrir mo de algumas de suas prerrogativas soberanas na delegao de autoridades a instituies regionais.

    No caso das relaes com os eua, o Brasil poder simplesmente repetir a dinmica j conhecidas de oscilaes entre bons e maus momentos. As agendas econmica e poltica geram um movimento cclico de expectativas e frustraes. Uma viso panormica das relaes Brasil-eua nos ltimos anos mostra que, mais do que uma realidade fragmentada de interaes, esse relacionamento passou a traduzir um processo complexo e dinmi-co, envolvendo uma grande diversidade de temas, atores e interesses go-vernamentais e no-governamentais. Na realidade, irregular e incerto o alcance de iniciativas cooperativas entre os dois pases, particularmente a partir do esforo do Brasil de ampliar seu raio de ao e influncia no espa-o sul-americano e em temas nevrlgicos de poltica mundial como a crise

    mauroHighlight

  • 41 Nueva Sociedad eSpecial em portuguS 2010A poltica externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios

    do Oriente Mdio e a poltica nuclear do Ir. Funcionalidades no presente podero esbarrar em discordncias no momento em que a liderana norte-americana busque retomar a dianteira na regio ou insista em posies de alinhamento a suas polticas globais.

    Para concluir, tanto a agenda mundial e regional como as relaes com os eua espelham as transformaes operadas no ambiente domstico da poltica externa com mais atores, interesses, agncias burocrticas e governos sub-nacionais com agendas internacionais convergindo ou no com a agenda da poltica estatal.

    Referncias bibliogrficas

    Amorim, Celso: O Brasil e o renascimento africano em Folha de So Paulo, 25/5/2003.Aylln, Bruno e Iara Costa Leite: El eje sur-sur en la poltica exterior del gobierno Lula: coopera-

    cin e intereses em Infolatam, 22/12/2009, .

    Burges, Sean W.: Consensual Hegemony: Theorizing Brazilian Foreign Policy After the Cold War em International Relations vol. 22 No 1, 3/2008.

    Embrapa, Assessoria de Relaes Internacionais: Guia de Relaes Internacionais da Embrapa, Bra-slia, df, 2009.

    Grabendorff, Wolf: Brasil: de coloso regional a potencia global em Nueva Sociedad No 226, 3-4/2010, disponvel em

    Hirst, Monica: The ibsa Axis: Affirmative Multilateralism and South-South Coordination, ibsa-oecd, 2010, .

    Hirst, Monica: As relaes Brasil-frica em ritmo de cooperao Sul-Sul, Cebri, julho de 2010, mimeo.

    Lima, Maria Regina S. de: Brasil e polos emergentes do poder mundial: Rssia, ndia, China e frica do Sul em Renato Baumann (org.): O Brasil e os demais brics: comrcio e poltica, Cepal, Braslia, df, 2010.

    Patriota, Antonio de Aguiar: O Brasil e a poltica externa dos eua em Poltica Externa vol. 17 N 1, 6-7-8/2008.

    Pinheiro, Leticia: Autora y participacin en la poltica exterior brasilea em Foreign Affairs Latinoamrica, vol. 9 No 2, 2009, pp.14-24.

    Vaz, Alcides Costa e Cristina Yumie Aoki Inoue: Emerging Donors in International Development Assistance: The Brazil Case, relatrio de pesquisa, Partership & Business Development Divi-sion (pbdd), International Development Research Centre (idrc), 2007.