a polÍtica do reconhecimento dos “remanescentes

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 182 - 198, junho de 1998

    209Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 7, n. 15, p. 209-235, julho de 2001

    A poltica do reconhecimento...

    A POLTICA DO RECONHECIMENTO DOS REMANESCENTES

    DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS1

    Miriam de Ftima Chagas2

    Procuradoria da Repblica, Ministrio Pblico Federal Brasil

    Resumo: O texto enfoca os limites e as possibilidades de reconhecimento das

    especificidades culturais e socio-histricas dos denominados remanescentes das

    comunidades dos quilombos, a partir de um direito constitucional que asseguraa regularizao de suas terras. O dimensionamento desse problema realiza-se

    atravs de uma reflexo sobre a produo de laudos antropolgicos, que so

    requeridos nesses processos de reivindicao de terras fundamentados na aplica-

    o do artigo 68 da Constituio Brasileira de 1988. Partindo de alguns exem-

    plos etnogrficos, trazidos nos laudos, trata-se de levantar indicativos que

    problematizem um certo esteretipo de Quilombo, a constituio de sujeitos po-

    lticos e a implementao de projetos. Por ltimo, se discute os paradoxos impli-

    cados nas reivindicaes dessas comunidades quando procura-se reconhecer a

    pertinncia de uma poltica de direito diferena.

    Palavras-chave: comunidades remanecentes de quilombos, direitos constituci-

    onais, diversidade cultural, laudos antropolgicos.

    Abstract: The paper discusses the limitations and possibilities of a constitutional

    law that guarantees the regularization of the ownership of land belonging to the

    communities denominated remainders of the communities of the quilombos,

    1 Esse texto um desdobramento das questes levantadas nos indicativos fornecidos pela Procura-doria da Repblica elaborao de Laudo Antropolgico da Comunidade de Casca - RS, realizadopelo Ncleo de Estudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas da Universidade Federal de SantaCatarina, de autoria da Prof. Dr. Ilka Boaventura Leite, com vistas a instruo de Inqurito CivilPblico instaurado em 1996. Tambm produto das preocupaes inicialmente apresentadas noLaudo Antropolgico das Comunidades Negras de Ivaporunduva, So Pedro, Pedro Cubas, Sapatu,Nhunguara, Andr Lopes, Maria Rosa e Piles, no Estado de So Paulo, de autoria de antroplogosdo Ministrio Pblico Federal: Adolfo Neves de Oliveira Jnior, Deborah Stucchi, Miriam de FtimaChagas e Sheila dos Santos Brasileiro.2 Doutoranda pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal doRio Grande do Sul e Analista Pericial em Antropologia na Procuradoria da Repblica MinistrioPblico Federal.

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    Foto da autora

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    211Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

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    coming to represent the aknowledgement of cultural and socio-historical

    specificities. This issue is examined through a discussion about the

    anthropological reports required in legal procedures involving claims ofownership of property based on the application of article 68 of the 1988

    Brazilian Constitution. Starting with some ethnographic examples present in the

    reports, the aim is to find indications which can bring under discussion the

    stereotypes of the Quilombo, the constitution of political subjects and the

    implementation of projects. Lastly, the paradoxes implied in these communities

    claims are discussed, as a policy aknowledging the right to difference is

    established.

    Keywords: antropological reports, constitucional law, cultural diversity,remainder communities of the quilombos.

    Com este artigo objetivo apresentar questes relacionadas ao acessoa direitos constitucionais pelos remanescentes das comunidades dos qui-lombos, que foram emergindo e sendo discutidas no contexto da produode laudos antropolgicos e que ajudaram a problematizar um cenrio dereconhecimento de especificidades socioculturais e histricas.

    A poltica de reconhecimento dos remanescentes das comunidades

    dos quilombos, expressa na Constituio Brasileira de 1988, introduz umrelevante debate para aqueles que se interessam por uma reflexo crticasobre os limites e as possibilidades de interlocuo entre o conhecimento

    jurdico e o conhecimento antropolgico no contexto em que ambos estovoltados defesa dos grupos sociais que contam com garantias constituci-onais. Nesse contexto, o desafio que se apresenta prtica antropolgicafundamenta-se em produzir uma problematizao das prprias categorias

    jurdicas que foram concebidas com um carter genrico.Esse o caso da categoria jurdica remanescentes das comunidades

    dos quilombos, que no texto constitucional referida atravs da seguinteredao:

    Art 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos que es-tejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva,devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

    O exerccio de pensar a aplicao desta categoria a casos concretos

    produziu um campo de debates que colocou lado a lado diferentes reas de

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    saber, movimentos, atores sociais na tarefa de tentar participar da definiodo contedo semntico que estaria sendo atribudo a essa categoria. As

    discusses tm envolvido tanto o meio jurdico e antropolgico quanto osprprios grupos, que seriam o pblico beneficirio da aplicao desse dis-positivo.

    Uma das anlises que tem pautado algumas dessas discusses, promo-vidas pelos juristas, aquela centrada na ascenso crescente que os direitosculturais ou mesmo tnicos vem assumindo nos textos legais, especifica-mente os constitucionais.

    Nesta direo, o contexto de introduo deste artigo na ConstituioBrasileira remontado por Dimas Salustiano, mostrando que ao longo dosdebates a questo que envolveu os direitos das comunidades negras esteveligada ao captulo da cultura, mas o regimento original foi modificado notranscurso do processo, e por no ter recebido aprovao no captulo dacultura, as matrias atinentes passaram a ter a configurao de dispositivotransitrio atpico (1996).

    Salustiano, ao entender o direito enquanto uma cincia historicamenteconstituda, procura apresentar o que est sendo introduzido atravs destedispositivo e ao que ele responde, considerando que os direitos dos rema-

    nescentes das comunidades dos quilombos referem: i) direitos culturais namedida que constituem um tipo de patrimnio cultural brasileiro (art. 216da CF de 1988); ii) direitos econmicos-sociais de democratizaofundiria, porque concessivo de propriedade; iii) direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado (1996b, p. IX)

    Neste caso, o pano de fundo da discusso analisar, luz do textoconstitucional, o tratamento que o Estado d ao reconhecimento jurdicodas diferenas tnicas. Para Salustiano, a Constituio de 1988, de fato,confirma a existncia no Brasil de um Estado pluritnico reconhecendo egarantindo as diferenas tnicas (1996, p. 52).

    nesta direo que Frazo, levando em conta estas discusses queestiveram na gnese das propostas do artigo 68, prope uma leitura conjun-ta deste dispositivo com os art. 215 e 216 do corpo permanente da Cons-tituio Brasileira:

    Art. 215. O Estado garantir a todos o pleno exerccio dos direitosculturais e acesso s fontes da cultura nacional, e apoiar e incenti-

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    var a valorizao e a difuso das manifestaes culturais. 1. OEstado proteger as manifestaes das culturas populares, indgenas

    e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processocivilizatrio nacional. 2. A lei dispor sobre a fixao de datascomemorativas de alta significao para os diferentes segmentostnicos nacionais.Art. 216. Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natu-reza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferen-tes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:I - as formas de expresso; II - os modos de criar, fazer e viver; III- as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas; IV - as obras,objetos, documentos, edificaes e demais espaos destinados smanifestaes artstico-culturais; V - os conjuntos urbanos e stiosde valor histrico, paisagstico, artstico, arqueolgico, paleontol-gico, ecolgico e cientfico. (1996)

    A partir da leitura desses artigos, uma indagao pode ser feita. Te-riam os remanescentes das comunidades dos quilombos conquistado um

    reconhecimento propriamente tnico, no sentido de assegurar, via artigo68, um espao poltico da diferena?O lugar de transitoriedade destinado ao art. 68 no interior do texto

    constitucional e a referncia explcita a participantes do processocivilizatrio nacional nos oferecem elementos para analisarmos em quesentido este tipo de artigo estaria mesmo rompendo com uma visointegracionista e assimilacionista que balizou as Constituies anteriores.

    Neste sentido, os antroplogos Siglia Zambrotti Doria e Adolfo Nevesde Oliveira Jnior consideram que o art. 68 no pode ser considerado como

    um direito tnico, pois este, por exemplo, seria muito diferente dos direitosoriginrios reconhecidos s sociedades indgenas na Constituio Brasilei-ra de 1988. Os autores consideram que:

    A Constituio Brasileira de 1988 sinaliza para os direitos de terceiragerao, que j contemplam os chamados titulares difusos, como odireito a um meio ambiente equilibrado e os direitos do consumidor,entre outros, mesmo que ainda no haja reconhecimento explcito de

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    ordenamento infraconstitucional, salvo por algumas de suas manifes-taes. Todavia, mantm suas linhas basilares, e a diferena que

    reconhece no se estrutura sob a tica de alteridades tnicas, aindaque os chamados direitos difusos sejam os que mais lhe aproximam,na nosssa legislao, tendendo a noo de direitos de coletividade(1996, p. 3).

    Evidentemente o debate no se encerra nessas questes que estosendo levantadas. Essas consideraes visam apenas ilustrar que a dificul-dade de interpretao da redao do artigo em questo revela no somentea necessidade de um dilogo entre saberes jurdico e antropolgico, mas detodos os saberes envolvidos.

    Laudos antropolgicos: rompendo esteretipos e explicitando diferenas

    Com o envolvimento na produo de laudos antropolgicos para finsde utilizao judiciria, enquanto antroploga na Procuradoria da Repbli-ca, instituio essa que tem como atribuio constitucional a defesa dasdenominadas minorias tnicas, observei que muitas questes, relacionadas

    a aplicao do art. 68, surgem de tal modo que o saber jurdico passa arequerer o saber antropolgico. Este o caso quando o jurdico-institucio-nal pe concretamente em discusso a pergunta sobre quem so os titularesdesse direito, assegurado no dispositivo constitucional; quais seriam assituaes fundirias que corresponderiam ao direito; qual o seu escopo eabrangncia.

    Na arena dessas perguntas em torno do conceito de quilombo, osestudos antropolgicos comearam a produzir um conhecimento crtico,

    apontando para os imensos problemas contidos em uma imediata e literaltraduo da categoria remanescentes das comunidades dos quilombos eda tentativa de aplic-la a qualquer pleito originado das comunidadesnegras3. A noo de territorialidade negra foi um dos conceitos antropo-lgicos que fez frente ao carter redutor de algumas interpretaes que

    3 Sabendo das inmeras crticas quanto a utilizao do conceito de comunidade enquanto unidadesfechadas, isoladas ou homogneas, neste texto refiro-me a comunidades ou comunidades negrasapenas como uma expresso que possa dar conta de uma referncia emprica dos grupos.

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    tomavam a realidade fundiria das diferentes comunidades negras comosendo unvoca. O prprio conceito de territorialidade negra (Leite, 1996)

    problematiza certas imagens do senso comum ou dos prprios movimentossociais como aquelas que vem de ver estas comunidades enquanto repre-sentantes de uma africanidade (Vogt, 1996) intocada ou de um povo que seconsidera em dispora.

    De fato, um dos desafios que se apresenta ao dilogo fundamenta-seem constituir uma via de acesso antropolgica a essa categoria. Os limitesde se produzir um interlocuo com o que prope o dispositivo constitu-cional decorre da prpria interpretao do art. 68, em funo de uma ima-gem esperada dos assim chamados remanescentes de Quilombos.

    Mesmo se tratando de um novo cenrio de reconhecimento, certasdemandas de caracterizao dessas comunidades so feitas ou traduzidascom base em esteretipos ou enquadramentos que pouco ou nadacorrespondem a suas realidades. Nessa direo, faz sentido supor que,muito embora a expresso remanescentes das comunidades dos quilom-bos tenha sido cunhada como categoria jurdica geradora de direitos, essereconhecimento no suprime a possibilidade de problematiz-la no quadrodas dificuldades decorrentes do prprio processo de sua interpretao.

    importante refletir sobre o espao que vem ocupando os laudosantropolgicos neste contexto de reconhecimento, particularmente no casoem que esses esto sendo solicitados em certos procedimentos administra-tivos4, que buscam promover a identificao e reconhecimento dos re-manescentes das comunidades dos quilombos5. Nesses casos, muito em-bora sob a gide do reconhecimento, o universo administrativo-legal tendea reiterar a dominncia de uma matriz explicativa construda com base emcontedos cristalizados, que impedem os vrios ngulos de leitura da his-tria dos quilombos e a sua relao com a sociedade envolvente. Nessescasos, os referidos esteretipos homogeneizadores perpetuam-se claramen-te, em prejuzo daqueles beneficirios de um direito que veio a ser assegu-rado com base em processos culturais e socio-histricos diversos.

    Levando em conta a influncia desse contexto na produo do traba-lho antropolgico, alguns alertas metodolgicos j tm sido levantados

    4 Cf. Portaria N. 40, de 13 de julho de 2000 da Fundao Cultural Palmares.5 Essas demandas tambm partem de uma formulao jurdico-institucional que precisa identificarquem so os titulares do direito assegurado aos remanescentes das comunidades dos quilombos.

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    para os antroplogos que confeccionam os chamados relatrios tcnicos.Este o caso do documento de trabalho produzido na oficina sobre laudos

    antropolgicos6, que indicou que os mesmos no tm carter de atestadoe, em sendo elaborados, devem ser como diagnoses das situaes sociaisinvestigadas, que orientem e balizem as intervenes governamentais naaplicao dos direitos constitucionais (ABA, 2001, p. 12).

    Assim, se pensarmos a partir de uma perspectiva que propicie oenfrentamento dessas questes, vale lembrar a necessidade de abordar asdiferentes situaes que cobriram a existncia de Terras de Quilombos noBrasil. Para isso imprescindvel que sejam afastados os inmeros enten-dimentos associados ao termo Quilombo, que foram cunhados eminente-mente por leituras inadequadas, que tomaram o fenmeno a partir de con-tedos atribudos pela prpria poltica de represso oficial, isto , semcontextualiz-lo7. A definio clssica de Quilombo aquela definioformal que remonta ao sculo XVIII8. Na poca, esse entendimento jurdi-co estava impregnado de uma viso intervencionista, calcada na idia defuga ou negros fugitivos. Essa viso distorcida figuraria, at hoje, comoimagem do Quilombo.

    Contrapondo o esteretipo do isolacionismo geogrfico, os estudos

    mostram as diferentes formas com que as comunidades sempre estabelece-ram uma intensa rede de interao com a sociedade local (Almeida, 1988,1998; Gomes, 1996). Essa qualidade e intensidade de interao foi o que,

    justamente, possibilitou a construo de uma tal configurao social cujaautonomia tambm tinha suporte nessa dinmica de relaes sociais e, porsua vez, nas correspondentes formas de usar e ocupar a terra. Seriamesses modos, enquanto padro de ocupao, que possuem certas qualidadese conexes com a vida das atuais comunidades, que mereceriam serexplicitadas nos laudos antropolgicos. a nfase na etnografia do modode viver dessas comunidades que fornece uma chave de leitura continui-dade cultural e socio-histrica, que faz com que hoje estes grupos se apro-

    6 Esta oficina sobre laudos antropolgicos aconteceu entre os dias 15 e 18 de novembro de 2000 emPonta das Canas, Florianpolis, sendo realizada pela Associao Brasileira de Antropologia ABA,e organizada pelo Ncleo de Estudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas da UFSC.7 Segundo Almeida necessrio que nos libertemos da definio arqueolgica (1998, p. 14).8 Em resposta ao Rei de Portugal o Conselho Ultramarino assim definiu Quilombo : Todahabitao de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que no tenhamranchos levantados nem se achem piles nele (Cons. Ultramarino, 1740).

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    priem e continuem a construir a histria quilombola, sendo vistos e reconhe-cidos enquanto parte constitutiva da mesma.9

    Nesta direo, outras proposies apontam que a presena da dimen-so histrica deve ser valorizada na sua inter-relao com a condio socialocupada pelos prprios quilombolas (Andrade; Tuccani, 1999, p. 47). Arestituio do aspecto quilombola residiria na transio da condio deescravo para a de campons livre, independentemente das estratgias uti-lizadas para alcanar esta condio: fuga, negociao com os senhores,herana, entre outras. Com essa definio, o elemento da fuga mais umentre outros a ser considerado. Ainda de se notar que, neste caso, aligao com a histria quilombola restituda enquanto vnculo socioculturale histrico com um tipo e qualidade de organizao social, mais do que umestrito traado datado de ligaes lineares com o passado10.

    Tambm os espaos de anlise se ampliam quando consideramos, porexemplo, os elementos trazidos pelo laudo antropolgico da Comunidadede Casca, localizada no Rio Grande do Sul11. Nesse caso, o legado co-munidade foi fruto de um testamento ditado em 1824, o qual foi concebidopelo grupo enquanto a lei poltica da localidade. A explicitao da exis-tncia dessas diversas formas de produo de distintividades fornece outros

    contedos aos conceitos de resistncia e autonomia. De fato, seria incon-cebvel, do ponto de vista da criatividade social, supor que os diferentesgrupos tenham oferecido uma nica resposta, um nico modelo de resistn-cia frente sociedade escravocrata.

    9 Tambm no campo das definies jurdicas h um tendncia interpretativa de restituir a dimensocultural e socio-histrica do vnculo que as comunidades remanescentes guardariam com os anti-gos quilombos. No seria o caso de estabelecer infindveis genealogias como exigncia ao reconhe-cimento deste direito. Assim escreve o Procurador da Repblica, Aurlio Veiga Rios, em relao

    ao art. 68: A vontade constitucional se expressa no sentido de garantir e fazer respeitar os direitosde comunidades que forjaram sua prpria histria, atravs, apesar e contra a legislao escravista.No qualquer comunidade composta predominantemente de negros, mas aquelas que, apesar daperseguio institucional do Estado Escravocrata, permaneceram livres ao longo desse processoescravista, com seus modos peculiares de vida e costumes (1996, p. 74).10 Assim, para a caracterizao de uma comunidade enquanto remanescente do universoquilombola interessaria muito mais restituir esta espcie de tipo organizacional que conferepertencimento, a que a Associao Brasileira de Antropologia ABA faz referncia. Da deriva aimportncia de respeitar os elementos que fornecem s comunidades a organizao capaz de garantir-lhes um modo de vida (ODwyer, 1995, p. 2).11 Esse laudo foi entregue em dezembro de 2000 para instruir o Inqurito Civil Pblico n. 13, abertoem 1996, pela Procuradoria da Repblica no Rio Grande do Sul (Leite, 2000).

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    Outros estudos tambm consideram entre os chamados remanescen-tes das comunidades dos quilombos aqueles que lograram permanecer

    livres no interior da sociedade escravocrata (Doria, 1996, p. 101). Nestadireo, o atributo de resistncia, que at ento tem deixado as comunida-des excessivamente refns do Modelo Palmarino, pode ser acessado poroutros canais como a religiosidade, o parentesco e o trabalho familiar naterra, considerados igualmente formas contundentes de lutar por um lugarsocial no horizonte da liberdade.

    No laudo do Rio das Rs, as experincias histricas so apresentadasem uma perspectiva comparativa, onde as situaes particulares de ocupa-o territorial dessas sociedades tradicionais negras so uma refernciapara o real entrelaamento das historicidades do continente americano, queenvolveu os vrios pases da ordem escravocrata colonial (Carvalho, 1996,p. 13-69). Para Carvalho, importante conhecer os textos tradicionais quelevam construo da subjetividade, por exemplo, das comunidades deOriximin, no Rio Trombetas do Par, e de Frechal, no Maranho12. Ambasseriam continuao de quilombos assentados nestes locais desde o sculoXVII, enfrentando adversidades de natureza muito distintas daquelas quederam um horizonte de referncia para a comunidade do Rio das Rs.

    Para o autor, a ausncia de um reconhecimento oficial da autonomiaquilombola no Brasil assumiu um aspecto idiossincrtico, que aponta paraum contraste com as demais naes afro-americanas. Contrastando com ospases que claramente obtiveram conquistas polticas e territoriais, o Brasilseria o nico pas que no resolveu formalmente a questo dos direitosterritoriais das suas comunidades negras tradicionais13.

    Essa postura terica o leva a analisar a experincia histrica do Rio dasRs luz de um discurso maior, o texto cultural afro-brasileiro, do qual elaseria tributria: E mesmo esse texto cultural afro-brasileiro , apenas, par-cialmente autnomo, ou exclusivamente brasileiro; no devemos perder devista que nossas tradies (sob as quais ainda sabemos pouco) fazem partede um discurso mtico-simblico ainda maior, que o grande texto afro-americano (Carvalho, 1996, p. 45). Com essa preocupao de descrever a

    12 Idem, p. 67.13 Nesta perspectiva a experincia histrica dos Quilombos nas Amricas e no Brasil, podem sercontrastadas. O autor lembra que a Colnia portuguesa jamais assinou tratados de Paz com escravoslibertos. J a ocorrncia dos quilombos, enquanto projeto de libertao negra, em pases como o

    Suriname, Haiti, Jamaica, Colmbia, Cuba, Venezuela, logrou ser um projeto nacional.

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    alta densidade histrica e cultural da experincia quilombola nas Amricas,prope a construo de um mapa etno-histrico da ocupao negra no Brasil,

    haja vista as inmeras comunidades negras de ex-escravos e descendentes dequilombolas que esto espalhadas por todos os estados do Brasil14.

    A partir dessas proposies vimos que nos prprios laudos antropol-gicos j tem sido possvel estabelecer, entre casos concretos, os vnculosculturais e socio-histricos em um quadro de maior abrangncia. A siste-matizao e socializao de uma dinmica de constituio de cada comu-nidade igualmente pode restabelecer um panorama de conjunto capaz defazer frente quelas idias que legitimaram e impediram o no-reconheci-mento delas, tais como os mencionados esteretipos do isolacionismo.Deste modo, abre-se caminho para conhecer e respeitar na sua inteireza oselementos mltiplos que compem o fenmeno Quilombo, atravs de umaampla viso que permite outros entendimentos que apontem menos paraum quadro estereotipado e mais para um particular modo de vida.

    Neste sentido, o conhecimento produzido nos laudos antropolgicos arespeito dessas comunidades pode fornecer referncias importantes paraque as comunidades, que se encorajaram em dar suporte a seu pleito combase neste direito, tenham a possibilidade de pensar o seu futuro dando

    nfase ao aspecto presencial de sua existncia, sem que seja necessriotornarem-se refns, seja de uma categoria jurdica ou de atributos de umolhar classificador externo, informado num passado colonial.

    Um campo de pesquisa: O Vale da Ribeira

    Em termos do pleito quilombola a mobilizao das comunidades doVale do Rio Ribeira, localizadas no sul do Estado de So Paulo, pode seranalisada historicamente a partir dessa correlao de foras que as relacio-na com o campo institucional-legal15. Durante o acompanhamento desse

    14 Com isso ele objetiva ressaltar a profundidade das conexes histricas entre comunidades negrasdo Novo Mundo, as quais conformam um enorme texto cultural (mtico, lingustico potico e mu-sical) que correu paralelamente e em diagonal aos assim chamados movimentos civilizatrios oriun-dos da Europa, os quais so celebrados, diariamente nas escolas como se fossem parcela majoritriae praticamente exclusiva da formao de nossas populaes (Carvalho, 1996, p. 34).15 Ver tambm o interessante percurso de mobilizao, dos remanescentes do Rio das Rs, apresen-tado no artigo de Carlos Alberto Steil: Poltica, etnia e ritual (o Rio das Rs como remanescente deQuilombos) (1998). Ivaporunduva, So Pedro, Sapatu, Pedro Cubas, Maria Rosa, Piles, Nhunghara eAndr Lopes.

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 7, n. 15, p. 209-235, julho de 2001

    Miriam de Ftima Chagas

    processo de reconhecimento foi possvel observar que atravs das disputaspelo uso e apropriao de suas terras entram em cena uma mirade de

    situaes e agentes interessados. Este complexo cenrio compe a prpriamagnitude de tentarmos produzir um entendimento de conjunto que leve acomposio das diferentes foras e quais seriam os lugares e o papel quecada um a vem desempenhando.

    Nesta direo, historiando as inmeras aes institucionais que ame-aavam os antigos habitantes do Vale do Rio Ribeira e seus afluentes, desurpreender a persistncia das lgicas administrativos-legais em coloc-losno universo da ilegalidade. Tal dinmica depreendeu-se do fato de estaroperando no incio do sc. XVIII. Consultando documentos antigos, quetrazem parte da histria oficial dessas comunidades, somos informadossob quais condies essas pessoas figuravam institucionalmente: ora emdocumentos que visavam o recrutamento de desertores, ora em ofcios decobrana de taxas e multas feitas pela Villa de Xiririca16. Neste sentido,no so muitas as pessoas dessas comunidades que encontramos figurandono Livro de Terras da Igreja, que foi escrito por ocasio da Lei de Terrasde 1850. Muito embora vale referir que aquelas encontradas no Livro deTerras so das mesmas famlias entre as quais Furquim, Marinho, Pupo

    que hoje tm muitos dos seus descendentes no Vale da Ribeira.Ainda, neste contexto, ser conhecido, quer dizer, tornar-se ou no

    gente, dependia de qual eram os critrios definidores de uma condiosocial que estaria constando nos registros fornecidos pela Igreja. Assim,quando no se estava no livro destinado ao registro dos escravos - o querepresentava estar fora do estatuto do humano as classificaes impostasexternamente apontam que a condio social que lhes cabia variava deacordo com a combinao de um gradiente de cor, estado civil ou serconsiderado escravo ou livre17. A ttulo ilustrativo, nos livros de batis-

    16 de destacar que esta comunidade tm uma memria dos seus antepassados Pupo, Vieira,Marinho e Furquim que remonta a primeira metade do sc. XVIII, praticamente duzentos anos. Nosrelatos orais colhidos em campo foram citadas as pessoas que posteriormente encontramos figurandonesses documentos livros de bitos, batismo, de terras.17 Nestes registros originalmente, no perodo que compreende os anos de 1817 a 1865, constavacomo entrada classificatria a origem dos escravos. Eram elas: do Gentio, do Gentio do Guin, doGentio Mangange, da Nao Congo, da Nao Cambinda, da Naco do Guin, da Nao Mondongo,da Nao Jomb, da Nao Beriguela, da Nao Canange, da Nao Marabia, da Nao de Angola,Cabinda, Congo, Monjolo, Angola. Posteriormente nos livros de registros dos filhos dos escravos estainformao no aparece mais.

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    A poltica do reconhecimento...

    mo e bito da Parquia de Xiririca e da Capela de Ivaporunduva constamento certas entradas classificatrias, onde a condio do pai e da me de

    uma criana batizada era definida como: fula solteira, preto liberto, pardoliberto, benedito livre, pardo claro liberto, mulato claro liberto, pai incg-nito, pai de nao, pai escravo, pardos claros libertos, me creoula, pretasolteira, parda solteira.

    Deste modo, ao restituirmos esta cena histrica, constatamos que antiga a presso sobre estas comunidades para o uso ou liberao de seusterritrios, que cobrem cerca de 25.000 hectares reivindicados, e tantasvezes acompanhou a prpria dinmica imprimida ao longo dos ciclos eco-nmicos, em que foi alvo a regio do Vale da Ribeira. No entanto, nasltimas dcadas, vrios acontecimentos marcaram uma transformao naocupao do Vale da Ribeira, a ponto de comprometer o modo de vidadestas comunidades.

    O panorama local vem se transfigurando desde a segunda metadedeste sculo, o que se visualiza na construo, no final da dcada de 60,de uma estrada que corre paralelamente ao curso do Ribeira. Outra ameaareiterada a ser considerada na vida dessas comunidades so as tentativas deimplementar projetos de construo de barragens. Primeiro pela Compa-

    nhia Eltrica de So Paulo, que j na dcada de 50 fez estudos para cons-truo, ao longo do leito do Rio Ribeira, das barragens Itaoca, Funil eBatatal, e mais recentemente aquela do Tijuco Alto, pretendida pela Com-panhia Brasileira de Alumnio (Grupo Votorantim).

    Por conta da poltica de criao de Unidades de Conservao na re-gio, corrobora-se uma grave interveno nas comunidades. Chegou aincidir, nas oito comunidades pesquisadas, uma rea de ProteoAmbiental (APA) da Serra do Mar (1984), o Parque Estadual Turstico doAlto Ribeira (PETAR) (1958), o Parque de Jacupiranga e o ParqueIntervales (1995), que mesmo tendo desprezado sistematicamente a ocupa-o dessas populaes tiveram os seus limites decretados em sobreposio esses territrios. Junto decretao das Unidades de Conservao, oplantio das roas de coivara tornaram-se ilegais. Deste modo, aquelas quepersistiram o fizeram clandestinamente, em regies de difcil visibilidadeou acesso para o controle da guarda florestal, repetindo o que j ocorriacom a atividade da extrao de palmito.

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    Referindo-se a esta realidade vivida pelos moradores dos chamadosbairros de Ivaporunduva, So Pedro, Sapatu, Pedro Cubas, Maria Rosa,

    Piles, Nhunghara e Andr Lopes, um morador de Ivaporunduva fala dosofrimento gerado pelas ameaas e punies das polticas de restrioambiental:

    Com os pequeno eles agem. O grande que faz aquela desmataono. Os pequeno o que eu te disse, mas os grande que fazem ascoisas exagerado livre. Isso que eu acho que uma coisa uma leique no misturada essa lei. Porque uma lei executiva ela tem queser para os grandes e pequenos em geral. Porque, por exemplo, umpequeno que nem a gente vai ali corta meio salaminho de cho, meiosalaminho de mato, porque a gente no agenta fazer uma roa gran-de mesmo. Corta meio salaminho de mato e o Florestal vai e cata agente e se ele no pagar multa at preso vai. Agora o grande quederruba 100 e 200 alqueires, quantidade grande de mato, tudo quederruba, no vai.

    As comunidades consideram que estar em relao com o universo

    legal est longe de ser uma tarefa fcil, principalmente enquanto um ins-trumento que lhes aplicado desfavoravelmente, alm de confront-loscom suas prprias prticas culturais18.

    A partir desta situao, constata-se que as pessoas da regio estosubmetidas a uma srie de restries da legislao ambiental, as quaisinviabilizam a reproduo de seu padro de ocupao tradicional. Alm doque, sem terem regularizados os registros das suas terras, no podem plei-tear um licenciamento para o uso da terra e nem mesmo teriam o direito indenizao, caso fossem deslocados de suas terras para serem

    construdas as referidas barragens.Esse amplo quadro estaria na base da atual mobilizao na regio.

    Nos estudos realizados na dcada de 80, o bairro de Ivaporunduva aindaera apontado como sendo ocupado por caipiras negros, sem ser referidodiretamente o seu vnculo com as Terras de Quilombos (Queiroz, 1983). A

    18 Alm do que os interessados bem sabem que a redefinio do prprio estigma, at ento ligado escravido no Brasil, pode encerrar problemas j que sempre correm o risco de que seu contudosemntico seja definido externamente comunidade.

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    partir de uma comunidade j mobilizada no final da dcada de 80, parti-cularmente, com o incio da atuao da Igreja Catlica, a ao veio se

    redirecionando para aquilo que um dos lderes da comunidade deIvaporunduva, Benedito Alves da Silva, chama de trabalho do Quilombo.

    Esses representantes da chamada Associao do Quilombo deIvaporunduva narram que a organizao das pessoas do bairro antecedeu aafirmao dos remanescentes de quilombos como eixo articulador dospleitos no Vale da Ribeira. Essa organizao no bairro, j na dcada deoitenta, foi se consolidando, a partir de uma associao para reivindicar oque era necessrio, como gua, luz, ponte. Outra liderana feminina, Mariada Guia, tambm afirma que a organizao da comunidade se iniciou coma vinda das irms da Igreja Catlica. Ela traz como referncia introduoda questo quilombola o trabalho de pesquisa realizado pelo representanteda Igreja Catlica. J no incio da dcada de 90 esta comunidade participada coordenao do Movimento dos Atingidos por Barragens MOAB19.Esta participao os leva a entrar em contato com outras comunidades e atrocarem informaes sobre problemas semelhantes ao seus.

    Na cena dos direitos insurgentes a prpria positividade histrica, quealou o sentido de resistncia, veio a potencializar uma interlocuo com

    o Estado em outros termos e talvez num patamar que os possibilitasse umlugar socialmente reconhecido (Chagas, 1994; Silva, 1996a, 1996b)20. Destemodo, especialmente necessrio considerar o contexto em que tais buscasde regularizao de terras so produzidas e tambm so produto.

    Observamos que a chamada organizao do movimento em Ivapo-runduva se rearranjou frente a estas transformaes sucessivas. As diferen-tes formas organizativas desses grupos, como as redes de solidariedade,que so acionadas, muitas vezes, sem a preocupao de estabelecer umainterlocuo com o Estado, neste contexto, foram chamadas a aparecer comum contedo de mobilizao com a preeminncia do cdigo da participa-o poltica.

    19 Tambm do Movimento dos ameaados por barragens.20 Observa-se que as comunidades tiveram um posicionamento e insero diferenciada face a din-mica que afetou um grupo maior de 7000 famlias por conta das ameaas de construo das barra-gens. Importante perceber que foi ao longo da luta de permanncia no Vale enquanto remanescenteque houve a reduo de envolvidos atravs do pleito quilombola para cerca de 500 famlias.

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    Este quadro apresentado nos leva a refletir sobre os diferentes modosde construo de identidades e sujeitos polticos sob a presena dessas novas

    frmulas jurdico-institucionais que aparecem nos textos constitucionais.De fato, a situao que confrontou as Comunidades Negras no Brasil

    aps a promulgao da Constituio Brasileira de 1988 introduziu-as nocentro das discusses travadas sobre a constituio de sujeitos polticos.Esta discusso de longa data j est presente na questo indgena (Arruti,1997). Segundo Arruti, a categoria remanescentes indgenas nos idos dosanos 30 escolhida, por pesquisadores inicialmente ligados ao folclorismo,para descrever sociedades indgenas do Nordeste consideradas em adianta-da interao com a sociedade envolvente. A partir da dcada de 70, ocampo indigenista, fomentado e fomentador de emergncias tnicas,mudou sua postura frente queles grupos. Neste cenrio, o autor afirma quena dcada de 90 comeam a aparecer os primeiros trabalhos que deixaramde tematizar o desaparecimento dos grupos indgenas do Nordeste ao uti-lizarem-se de outros referenciais analticos e cada vez mais repens-los sobo modelo da etnicidade. Nas situaes de emergncias tnicas de gruposindgenas do Nordeste, ele afirma que no processo de descoberta dosdireitos, as fronteiras, atravessadas pela mistura e pelo sincretismo,

    mudam de consistncia, produzindo profundas transformaes no arranjopoltico interno s comunidades, na sua relao com a memria e com astradies (Arruti, 1997, p. 27)

    Nas comunidades negras tambm tm sido operadas transformaesno modo como elas se relacionam com as suas tradies. Principalmenteporque os processos de construo de sujeitos polticos passam tambmpor uma educao cvica e pela constituio de lideranas que represen-tem o grupo numa base poltica comum (Duarte, 1993). No caso em ques-to, essa situao implica, ao mesmo tempo, uma desconsiderao dasdiferenas que compem o grupo e a possibilidade de que a apropriao deuma identidade legalizada remanescente de quilombo passe a redefinirfavoravelmente sua prpria condio face a um universo formal-legal. Aconseqente constituio de um ns coletivo, por parte de grupos inse-ridos nesses processos, por Novaes dimensionada nestes termos:

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 7, n. 15, p. 209-235, julho de 2001

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    A identidade, tal como nos exemplos que assinalamos atrs, permitea criao de um ns coletivo, que leva a uma ao poltica, embora

    momentnea... A identidade emerge quando sujeitos polticos seconstituem e, neste sentido, a possibilidade de criao de umsujeito coletivo feminino, um ns mulheres, ns ndios, nshomossexuais, implica, necessariamente, a desconsiderao das di-ferenas que marcam a distncia entre estes vrios grupos unidosnum nico sujeito poltico. (Novaes, 1993, p. 22).

    No bojo da institucionalizao de um ns remanescentes de quilom-bos ocorrem mudanas que vo depender da maneira com que as comuni-dades iro lidar com o estatuto do sujeito poltico, diante de seus prpriosmodos de interao21. Essas exigncias de participao, de converso po-ltica, encarnada na figura do sujeito poltico nico, muitas vezes entramem contradio com a prpria dinmica que pe em movimento as relaesinternas s comunidades. Esse o caso, por exemplo, do sentido e dasdificuldades de se concretizar a criao legal de uma Associao, princi-palmente num cenrio de pouca incidncia de alfabetizao. Diante de umatal demanda, alguns indivduos passam a adquirir novo status por um maior

    desempenho em apropriarem-se das regras da nova situao. A capacidadede um ou outro em saber lidar com o cdigo da escrita, papis, muitasvezes, pode estabelecer relaes de intermediao assimtricas e concen-tradoras de poder.

    Mesmo visualizando que o estatuto do sujeito poltico passa cada vezmais a pautar as prticas comunitrias dos grupos envolvidos a leitura e asarticulaes que as comunidades esto fazendo da figura jurdica do sujeitode direito remanescente de quilombo tambm est definindo os contor-nos que vem assumindo a poltica de reconhecimento calcada no disposi-

    tivo constitucional. Por ironia, ou no, direta ou indiretamente se recolocapara eles a necessidade de um enfrentamento com uma lgica igualitriaformal que sistematicamente, ao longo da histria, vinha-os submetendo aocampo da ilegalidade.

    21 Novaes (1993) ao estudar a Sociedade indgena Bororo, nos mostra que os prprios membros destasociedade ao encaminharem suas reivindicaes no se dirigem ao governo como parcialidadesespecficas bororo. Segundo ela, o movimento indgena apropria-se de uma categoria mais ampla ndios exterior a cada uma das sociedades envolvidas e atua procurando manipular certos sinaisdiacrticos presentes no imaginrio de nossa sociedade a respeito de quem so os ndios.

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    Diante dessa tenso, Arruti considera que o lugar a ser ocupado pelosemergentes ainda est para ser construdo e que:

    Por sua vez a definio mais favorvel daquilo que devam ser, nodepende apenas deles, ou de seus opositores, mas tambm do estadode relaes de foras em que aquelas comunidades e seus mediado-res e concorrentes a mediadores esto inseridos e na qual o papelinterpretativo do antroplogo e do historiador parece ter destaque.Reconhecer a sua construtividade, ligada plasticidade identitriaque marca boa parte destas comunidades, antes de vir a deslegitimaro lugar dos pretendentes, serve como um sinal de alerta para aquelesque operam na correlao de foras que definir qual este lugar equais as formas de acesso a ele. (1997, p. 30).

    De fato, durante o processo de reconhecimento oficial dessas comu-nidades entram em interao diversos rgos governamentais e no gover-namentais, especialistas, movimentos sociais que, muitas vezes, pouca ounenhuma atividade haviam realizado em conjunto com o grupo. Nesta si-tuao, de se prever um conflito de categorias de apreenso da realidade

    ou mesmo de exigncias legais-administrativas inexeqveis para o grupoque acabam impactando os grupos, face s mudanas que vm associadasa esse processo.

    Uma das lideranas, da recentemente reconhecida Comunidade doQuilombo de Ivaporunduva, refere-se ao dilema de como conseguir fazera leitura do que esto entendendo por sua tradio atravs da seguinteafirmao: o nosso plantio no sistema de rodzio tem trezentos anos e issono significa que estamos sentados em cima do ttulo de propriedade. Se,por um lado, em um modelo o dono da terra a lei, por outro, em

    Ivaporunduva22, foi possvel observar que o direito23 a acessar a terra, por

    22 O grupo de trabalho dos antroplogos do Ministrio Pblico fez o trabalho de campo no Vale daRibeira, estado de So Paulo, no incio de 1997 (fevereiro e maro).23 No sentido usado por Geertz, o direito enquanto expresso cultural une-se s outras grandesformaes culturais da vida humana a moral, a arte , a tecnologia, a cincia, a religio, a divisodo trabalho, a histria. Categorias que ele aponta como no sendo nem mais unitrias, nem maisuniversais que o direito. Deste modo ele concebe o direito como algo particular e histrico, parte deuma forma especfica de imaginar a realidade, base de toda cultura, processo de representao(Geertz, 1998, p. 330, 259).

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    muitos anos, seguiu sendo fruto do prprio trabalhar a terra e no neces-sariamente de uma apropriao legalizada nos moldes patrimonialistas do

    direito de propriedade.Diante dessas diferentes sensibilidades jurdicas24, a explicitao des-

    te campo conflitivo, tendo como foco central a perspectiva das pessoas quelutam para permanecer em seus territrios, cultural e politicamente diferen-ciados, permite que um exerccio de diagnose implique em levantar ques-tes tais como: faz sentido para a comunidade o trabalho coletivo? Existeum sistema de uso comum da terra? Quais as dificuldades para a criaode uma associao tantas vezes reiterada, em resposta a necessidade deformalizar uma figura com personalidade jurdica? Como se d a transmis-so de saber? Quais as atividades que so prprias a cada membro dogrupo? Como se d a socializao das crianas? Quais so as redes deajudas mtua? De modo que fique descrito e problematizado quais so oselementos constitutivos da vida em grupo que devam ser respeitados, faces exigncias externas (Wagner, p. 42-48).

    Com esta preocupao, o laudo antropolgico produzido no Vale doRibeira evidencia, como constitutivo do conjunto de referncias identi-trias da vida em grupo, a ntima relao entre um determinado grupo

    parental e o uso de um espao fsico no qual se assenta o trabalho que afamlia logrou desenvolver ao longo dos anos em que a terra foi trabalhada(Stucchi, 2001). A presena desses espaos nominados em concomitnciacom quem dispe o direito sobre eles, vivamente remontado de geraoa gerao25. O padro de ocupao desses territrios continuou obedecendoao uso pelas antigas famlias fundadoras das referidas localidades, poispara os atuais moradores dessas comunidades foi mesmo com o trabalhodos antigos, que embocaram nestas matas virgens, que se deu incio constituio dos direitos sobre o uso do territrio.

    Tambm esse estudo de campo realizado no Vale da Ribeira mostraque os grupos se constituram identitariamente a partir de uma noo deque eles so dali mesmo, de uma mesma famlia. As famlias noremontam sua origem africana, ao contrrio, relatam um mito que reporta

    24 Ele prope o conceito de sensibilidade jurdica enquanto um sentimento de justia que permitefalar de uma forma comparativa sobre as bases culturais do direito (Geertz, 1998, p. 261).25 Em Ivaporunduva goza de referncia fundante para a comunidade as localidades dos Rodrigues,Posse, Vargens, Morro Grande, Curtezias, Reversa, Boc, entre outras.

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    a origem da sua assinatura a um neguinho que foi caado a lao na guado Rio Ribeira o neguinho dgua. A referncia constitutiva do grupo

    no seria uma africanidade, mas a prpria natividade.Com este entendimento, pode-se prever que considerveis prejuzos

    ocorreriam se porventura venha-se a suprimir da discusso sobre o direitoa acessar a terra o sentido vital que essas comunidades lhe conferem.Quer dizer, a concepo da terra enquanto territrio socialmente ocupado evidentemente chave para a vida desse grupo. O modo como essas fam-lias guardam sua memria nessas estruturas narrativas, inscritas sobre oterritrio, est intimamente relacionado com a sua capacidade de imaginaro futuro, a partir da sua prpria condio de existncia. Neste sentido, defato, importante considerar que dispor deste territrio representa apropri-ar-se da prpria histria do grupo, das relaes de lealdade e solidariedade,do parentesco, da religiosidade, da ritualidade festiva e das expectativasfuturas projetadas sobre ele.

    A aplicao do direito constitucional, atravs da titulao dessas re-as, para estar em consonncia com a viabilizao de um padro de existn-cia que seja compatvel e que assegure a vida nos seus prprios termos,significaria menos quantificar ou traar meramente um espao fsico esva-

    ziado de seu sentido social, e mais justamente recuperar a idia de queestes espaos sociais esto qualificados e atravessados por redes de rela-es que, postas em curso, garantem a prpria permanncia do grupo nesteterritrio.

    Indicaes como essas tambm devem valer, particularmente, paraprojetos de desenvolvimento econmico que vm sendo implementados nascomunidades. As aes implementadas a partir desses projetos so exces-sivamente centradas em uma concepo do uso econmico da terra emdetrimento do uso social do territrio. De modo geral, raramente os proje-tos e programas de apoio a essas comunidades partem do conhecimento deque as condies que do sentido e sustentam o modo de vida da comuni-dade so to fundamentais quanto os meios para garantir o seu equilbrio.

    Uma tal situao se concretiza quando, por exemplo, os projetosdesconsideram o modo como a comunidade percebe a histria doQuilombo e as maneiras como dela se apropria. As bases em que a comu-nidade usa a terra ou mesmo como este uso poderia estar ligado organi-zao familiar do trabalho. Na verdade, as comunidades podem estar se

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    equilibrando em base a um intenso sistema de trocas, baseado num usosocial dos recursos em detrimento da lgica monetria, freqentemente

    atrelada a financiamentos bancrios. A entrada significativa dessas outrasfontes de recursos, principalmente aquelas ligadas a lgica financeira, defato, em vez de favorecer uma perspectiva de superao das relaes dedependncia, seguidamente, j estabelecidas nas comunidades, ao contr-rio, podem vir a restabelec-las, agora com outros agentes. Assim, os en-volvidos, mesmo tomando cuidado para no acirrar ou fortalecerassimetricamente posies e papis podem estabelecer uma prtica quetambm introduz novos elementos de diferenciao na dinmica local. Masfica em aberto a possibilidade de contribuir na construo de relaessustentadas na comunidade que no impossibilitem a continuidade dosvnculos e relaes sociais que ali se produzem.

    Em sntese, a impossibilidade de que as comunidades se beneficiemde uma poltica de reconhecimento que seja base de efetivao de umdireito coletivo e no somente de algumas aes pontuais e isoladas, secolocar toda vez que projetos desenvolvimentistas, instituies pblicas,entidades, movimentos e saberes autorizados da sociedade, ignorarem re-alidades, prticas, papis sociais, princpios e valores que esto presentes

    em uma forma organizativa particular.

    Os paradoxos da igualdade e da diferena

    Os resultados das experincias concretas, que vm assegurando direi-tos aos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos mostram quea efetividade da prpria aplicao da legislao existente fica prejudicadaquanto mais se desconhea as bases de seu pleito. Vimos que os laudos

    antropolgicos requeridos problematizam essa situao na medida em queconseguem tornar visveis essas comunidades no seu aspecto presencial, nasua diversidade, em um quadro maior de continuidade sociocultural e his-trica e atravs da anlise dos efeitos e impactos derivados desse processode reconhecimento. Uma prtica antropolgica empenhada em produzir umexerccio interpretativo desses diferentes modos de vida e contextossocioculturais permite que a exigibilidade da aplicao desses direitos,assegurados constitucionalmente, se faa a partir de um dilogo com asprticas culturais de cada grupo envolvido.

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    Neste sentido, as prprias comunidades vm se utilizando dos laudosantropolgicos para enfrentar o desafio de fazer ressoar os seus pleitos nos

    espaos em que o dilogo entre os argumentos antropolgicos e jurdicosse fazem necessrios, no sentido de que as exigncias legais, que acom-panham a poltica de reconhecimento, possam minimamente correspondere entrar em adequao com o modo de vida dos grupos (Dallari, 1994;Oliveira Filho, 1995).

    No entanto, para que sejam ultrapassados criativamente os limites daesfera administrativo-legal de incluir, ou mesmo fazer reconhecer as dife-rentes culturas, fundamental que a prpria discusso sobre a imple-mentao de uma poltica da diferena encampe a discusso de fundo domulticulturalismo.

    A abordagem desta temtica vai depender de como podemos focalizar,dentro de uma perspectiva analtica e antropolgica, as questes que envol-vem a luta por reconhecimento de certas prticas culturais ou mesmo iden-tidades culturais baseadas na reivindicao da diferena. Acredito que ocaminho para a construo dessa problemtica terica envolve uma ampladiscusso sobre as questes relacionadas diversidade cultural e que, delonga data, vem animando os debates tericos na antropologia. Nessa linha

    crtica, Geertz advoga o no-obscurecimento das diferenas entre aquelesque pensam diferente de mim, pois justamente nessas assimetrias quereside a possibilidade de localizar quem somos: Temos que conhecer umao outro, e viver com este conhecimento, ou acabaremos como nufragosnum mundo beckettiano de solilquios em coliso. (1999, p. 30).

    A problemtica que envolve a poltica de reconhecimento da diferen-a, em realidade, nos conduz a discusso sobre qual o papel a ser desem-penhado pelo conhecimento antropolgico na defesa da diversidade cultu-ral e do potencial crtico desses outros modos de ser e viver. Em quemedida necessrio reivindicar a diferena para que os grupos sociaisconsigam justia social?

    Essa discusso particularmente importante para introduzir os ele-mentos irreconciliveis de uma luta por um reconhecimento centrado naafirmao da diferena com aquelas lutas pela igualdade de condies. Attulo ilustrativo, sobre as implicaes profundas dessa questo para aslutas contemporneas e, por sua vez, sobre a justificativa em tematiz-las,refiro-me s preocupaes apresentadas por Jess Souza que, ao discutir os

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    caminhos tericos que percorreu a idia de uma poltica de reconhecimento,lembra:

    Desde as lutas da contracultura da dcada de 1960, passando pelasnovas definies dos papis sexuais, pela influncia do movimentoecolgico, pela radicalizao da oposio entre privado e pblico,at as lutas das minorias contemporneas, pode-se observar a entradaem cena de um novo tipo de aspirao poltica existencial especfica,compreensvel a partir da crescente eficcia social do princpio daautenticidade na modernidade tardia, com genealogia, objetivos elgica prprios. Neste sentido, a luta pelo direito diferena dasminorias que se percebem oprimidas no mundo contemporneo podeser compreendida como uma luta pelo respeito a uma especificidadefundamentalmente no-generalizvel. (2000, p. 113).

    Este seria o ponto, para o autor, em que uma viso para ele aindaindividualista afirmada atravs da exaltao de uma especificidade no-generalizvel, uma luta por autenticidade choca-se com um individualis-mo instrumental generalizvel fundado na noo de dignidade e igualdade.

    Semelhante dilema nos apresentado por Dumont, quando afirma queexistem duas formas de reconhecer a diferena: a hierarquia e o conflito.A sociedade individualista seria incapaz de fazer uma imagem da vidasocial, da totalidade, da hierarquia. Nas suas palavras:

    Fala-se muito da diferena, da reabilitao daqueles que so di-ferentes, de uma maneira ou de outra, de reconhecimento do Outro.Isso pode significar duas coisas. Na medida em que uma questode libertao, de direitos e oportunidades iguais, da igualdade de

    tratamento das mulheres, dos homossexuais, etc. e esse parece sero alcance principal das reivindicaes apresentadas em nome de taiscategorias no existe qualquer problema terico. Cumpre somenteassinalar que, num tratamento igualitrio desse gnero, a diferena deixada de lado, negligenciada, subordinada, e no reconhecida.Como a transio fcil da igualdade para a identidade, o resultadoa longo prazo ser provavelmente uma supresso das caractersticasdistintas na acepo da perda de um sentido ou do valor atribudosprecedentemente s distines correspondentes (1985, p. 276).

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    Neste sentido, a sociedade moderna admitiria uma nica frmulaminimizada de reconhecimento das diferenas, ou seja, a mera converso

    da igualdade em identidade. Essa considerao aponta para uma questo dedifcil tratamento, pois o prprio conceito de identidade tambm cultural seria fruto da configurao ideonormativa do sistema de valores da so-ciedade moderna. Com essas palavras o autor alude a esse problema:Neste ponto, eu sustento: se os defensores da diferena reclamam para ela,ao mesmo tempo, igualdade e reconhecimento, eles esto reclamando oimpossvel (Dumont, 1985, p. 276).

    Nessa perspectiva, o lugar do reconhecimento do outro, e da pos-sibilidade de produzir um discurso relativizador, dentro das lutas por reco-nhecimento, indica o intricado problema sobre os paradoxos da igualdadee da diferena. Se a igualdade pode fazer certas coisas e no outras, entoo reconhecimento da diferena tambm pode fazer certas coisas e nooutras? (Dumont, 1985, p. 275).

    Tais questes, suscitadas como um alerta s armadilhas de ummulticulturalismo conservador, aparecem nas palavras do socilogo jurdi-co Boaventura de Souza Santos, sob o prisma da aceitao de um impera-tivo intercultural, deste modo enunciado:

    Uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e gruposde acordo com dois princpios de pertena hierrquica, e, portanto,com concepes concorrentes de igualdade e diferena, as pessoas egrupos sociais tm o direito a ser iguais quando a diferena osinferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade osdescaracteriza. (2000, p. 47).

    Essa postura analtica redimensiona o problema que se apresenta

    uma poltica do reconhecimento, pois para os remanescentes das comuni-dades dos quilombos no est em jogo somente uma diferena posta emuma condio econmica, mas evidentemente em uma representatividadesociocultural que no encontra lugar.

    De toda sorte, esse conjunto de questes apresentadas acabam nosindicando que a abrangncia do fenmeno das Terras de Quilombo e suaanunciada potencialidade, enquanto signo de incluso social (Leite, 1999),dificilmente ser levada a cabo sem que a compreenso das distintividades

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    socioculturais e histricas desses grupos sejam explicitados, qualificandoseus pleitos terra de tal modo que se possa conhecer de outro modo, ou

    seja, reconhecer as diferenas culturais sem substancializ-las ou autentic-las, mas na sua alteridade crtica que nos fazer pensar quem somos.

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