a pobreza no terceiro espaço

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  • 8/16/2019 A Pobreza No Terceiro Espaço

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    A POBREZA NO TERCEIRO ESPAÇO: EMERGÊNCIASLITERÁRIAS

    GINDRI, Ewerton Rezer.1

    [email protected]

    Patrimônio, Arte e Literatra na Am!ri"a Latina

    Re#mo

     Nos países latino-americanos, a pobreza assume diversas formas e é constantementedebatida em diferentes meios. Na literatura a presena desse tema n!o é recente, e suaabordagem vai desde a descri!o do espao, como nas lin"as de #anuel $nt%nio de$lmeida, ao lugar de desta&ue &ue os autores da gera!o modernista de 1'() l"e deram.*ontudo, nas +ltimas décadas do século passado o conto brasileiro toma o tema de umaforma distinta e entre os principais autores desse gnero temos uma abordagem &uediscutir a constitui!o da identidade e da cultura nessedesse conte/to. 0ortanto, tendo

     por base os estudos de literatura e sociedade e o conceito de erceiro Espao, toma-sea&ui o conto 2Relato de 3corrncia4, de Rubem 5onseca, para discutir como essegnero literrio, significa a pobreza no final do século passado através da emergncia de

    um terceiro espao, lugar de dupla deriva, da identidade e dos sentidos.

    Pa$a%ra#&"'a%e: *onto. Emergncia. 6eriva. 0obreza.

    () INTROD*Ç+O

    3 crescimento desordenado das cidades brasileiras transformou a vida demil"7es de pessoas. 5amílias inteiras migraram para os aglomerados "umanos,encantadas com suas grandes constru7es. Em poucas décadas, essas mesmas famíliasformaram uma nova paisagem. Nesse espao a vida se reveste de outros sentidos. $scertezas comeam a ruir e a "ist8ria de vida a se fragmentar 9untamente com a estrutura

    social imaginada.

    $ pobreza, &ue antes se tentava evitar através de migra7es ou plane9amentossazonais, agora é onipresente. 3 sert!o ficou no passado e na selva de pedras &ue serve-l"es de moradia "o9e, a fome é uma ameaa ainda mais cruel, pois é a base da pr8priari&ueza, inacessível : grande massa disforme &ue ainda perambula, numa v! tentativa deascender socialmente.

    1 0rofessor de ;íngua 0ortuguesa e ;iteratura, da Rede Estadual do Estado de #ato erra. #estre em ;inguística, pela =niversidade do Estado de #ato

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     Nesse conte/to, muitos autores do século AA abordam o tema da pobreza emsuas obras, numa franca demonstra!o de &ue o social relaciona-se de maneira dual com

    a fic!oB servindo-l"e de inspira!o e sendo impactado por ela. Csso reala o fato de ote/to sempre apontar para fora de si, mas n!o ser transparente a esta matéria e/terna?;ima, DD, p. FFG. Ent!o, :s diversas mudanas pelas &uais o >éculo AA passou,relaciona-se, diretamente, a produ!o de in+meras obras &ue tocam em temas sociais,destruindo as formas clssicas e trazendo para dentro da literatura uma linguagem t!odiferente &uanto as rela7es sociais e/pressas por ela.

    #as é importante lembrar &ue

    a cria!o literria corresponde a certas necessidades de representa!odo mundo, :s vezes como preHmbulo a uma  praxis  socialmente

    condicionada. #as isto s8 se torna possível graas a uma redu!o aogratuito, ao teoricamente incondicionado, &ue d ingresso ao mundoda ilusão  e se transforma dialeticamente em algo empen"ado, namedida em &ue suscita uma vis!o do mundo. ?*andido, D, p. ('

    0ortanto, n!o se deve encarar a literatura produzida em torno de temas sociaiscomo a ol"ar para um relat8rio. =ma das mais incríveis características da linguagem, eda linguagem literria em especial, é o poder criativo, a capacidade de criar mundos, oda 2ilus!o4, e isso nunca poder ser negligenciado, pois 2o parado/o do romance é o detoda a obra de arteB ela é irredutível a uma realidade &ue entretanto traduz4 ?Iéraffa,1'J1, p. 1G apud ;ima, DD.

    $ forma como a literatura traduz essa realidade é, com certeza, mais importante, para seu estudioso, do &ue o &ue ela traduz. $ literatura criar formas, meios de orientar o mundo ficcional de maneira a 2neutralizar nosso modo "abitual de tematizar arealidade4 ?;ima, DD, p. FFF, fora-se a percep!o do &ue est a frente diariamente,mas teima em n!o se dar a con"ecer pelos meios institucionais, certamente por pertencer ao mesmo tabuleiro.

    *om essa proposta, a de levar o leitor a confrontar-se com uma realidade &ue,embora este9a no dia a dia da sociedade, n!o é vista pelasatravés das institui7es, efiliando-se a um movimento iniciado no Romantismo e amadurecido no #odernismoliterrio, Rubem 5onseca pinta o espao urbano com cores fortes, numa linguagem

    escatol8gica &ue traz ao leitor a parte mais sombria da cidade grande. >uas personagensn!o podem ser classificadas dentro de moldes consensuais, pois carregam aincompletude como estigma, oscilando entre o bem e o mal, com o permanente intuitode sobreviver.

    Em Relato de Ocorrência, percebe-se como a pobreza é representada na obra de5onseca, num momento de movncias sociais em &ue o su9eito cartesiano é posto a

     prova e sede seu espao a uma "eterogeneidade discursiva, nada &ual emergemambiguidades e contradi7es.

    ) RE-IS+O TE.RICA3 pe&ueno conto Relado de Ocorrência traz os fatos catalisados por um acidente

    de trHnsito. Neste, um %nibus atropela uma vaca, em uma ponte, caindo logo ap8s no

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     precipício. 3s "abitantes das pro/imidades apressam-se em cortar a vaca e levar om/imo de carne &ue podem para suas casas, pouco se importando com o acidente ou

    com suas vítimas.

    3 título do conto remete automaticamente a percep!o de sua parfrase, o boletim de ocorrncia. Entre essas duas formas, a escol"ida por 5onseca carrega umsentido &ue l"e reveste de um carter literrio, pois abre espao para a oralidade.En&uanto o boletim é um documento oficial, um gnero institucionalizado, o relatoabre-se para a polissemia, para a sub9etividade do narrar. $&uilo &ue é visto podeassumir diversas vers7es ao ser relatado, escapando : verdade 9urídica, apro/imando-seda transgress!o.

    =m relato é, ent!o, uma verdade possível. 0ara instituir essa verdade, cria-se um

    narrador e/tradiegético. Esse narrador, em terceira pessoa, n!o participa dos fatos, n!ov as a7es de um ponto de vista sub9etivo, pelo contrrio, constr8i a sensa!o no leitor de ob9etividade, imparcialidade e verdade. Esse efeito é corroborado pela forma como anarrativa se inicia. Nos primeiros cinco pargrafos o narrador assume o mesmo tom deum boletim, procurando ob9etivar os fatos e se afastar da cena.

     Na madrugada do dia trs de maio, uma vaca marrom camin"a na ponte do Rio *oroado, no &uil%metro )G, em dire!o ao Rio deKaneiro. =m Lnibus de passageiros da Empresa Mnica $uto Lnibus,c"apa 0-O1-1D-DJ trafega na ponte do Rio *oroadoem dire!o a >!o 0aulo. ?5onseca, D(, p. GF

    $ presena de informa7es como data, c"apa, &uil%metro e dire!o serve paraconstruir a ob9etividade, lembrando mais um documento policial do &ue um contoliterrio. *ontudo pe&uenas marcas, dei/adas pelo narrador, nos conduzem lentamente auma posi!o de observa!o da vida "umana, de sua fragilidade, n!o e/pressa pela mortedas pessoas &ue 9azem no fundo do barranco, mas pelos vivos.

     Nesse ponto é interessante lembrar &ue 2basicamente, a voz do narrador constitui a +nica realidade do relato4 ?$**$, 1'OG, pg. F) conduzindo o ol"ar :&uilo&ue interessa : narra!o. 0or isso seria errado dizer &ue o conto versa sobre umacidente, o &ue o narrador oferece é realidade dura das classes menos favorecidas,da&ueles 2residentes nas cercanias4 do camin"o &ue leva aao >!o 0auloprogresso.

    >e se considerar como Eco &ue 2todo o planeta est se tornando territ8rio dedeslocamentos cruzados4 ?Eco, 1''O, p. 1', apud 0orto P orres, D1D ent!o ésignificativo ter o espao do enunciado em um lugar de liga!o, um entre-lugares, a

     ponte. $ ponte é uma liga!o entre posi7es, uma forma de mudar de lado, de transpor anatureza &ue se op7e ao progresso. =m dos maiores símbolos da marc"a do capital é aautoestrada. Em seu clssico "e

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    $ partir do se/to pargrafo tem-se a introdu!o de alguns poucos personagens,&ue buscam a sobrevivncia, buscam aproveitar o &ue n!o pertence mais a ninguém e

     por isso mesmo é de todos, a vaca morta. 5isicamente, essas personagens s!o poucodescritas, limitando-se o narrador a informar &ue ;ucília 2est grvida de oito meses,SeTsofre de verminose4 e &ue Cvonildo, um dos "omens &ue busca conseguir um pedao davaca, é mulato. Essa omiss!o de informa7es generaliza as personagens, apro/imando-as de &ual&uer um da grande multid!o de famintos &ue diariamente buscam na&uilo &uen!o serve mais ao capital uma forma de viver.

    >uas falas s!o limitadas a pe&uenos enunciados, através dos &uais tentamdissimular suas inten7es, de forma &ue n!o ten"am concorrncia, e a insultos,

     proferidos a partir do discurso indireto livre. Nesse tipo de discurso o narrador interpreta o pensamento da personagem, negando-l"e a voz, dando ao leitor a sua vers!odos fatos e de seus sentimentos. Essa técnica, no conto em anlise, reala osilenciamento social vivido pelas personagens e pela fra!o da popula!o &ue elasrepresentam. *omo lembra 6U3n8frio ?DD, esse é um caso interessante, pois 2&uemdiz n!o é &uem pensa, e o narrador funciona apenas como transmissor e intérprete davis!o de mundo da personagem4 ?6U3n8frio, DD, p. F1.

     No momento em &ue 2Elias segura o fac!o na m!o, como se fosse um pun"alVol"a com 8dio para #arcílio e Cvonildo. *ospe no c"!o. *orre para cima da vaca4,

     percebe-se a a!o instintiva da luta pela sobrevivncia. 3 fac!o, " pouco trazido por ;ucília, assume nas m!os do "omem o contorno de garras a dilacerar sua presa, poisessa é sua fun!o, como lembra art"es ?DJ, nesse gesto verdadeiramente carniceiro.

     N!o " solidariedade ou a9uda, cada um procura o seu pr8prio bem.

    $ ob9etividade das ora7es 2Elias corta a vaca4 e 2;ucília corta a vaca4, bemcomo a repeti!o da constru!o em personagens de uma mesma família, reala aindividualidade em &ue vivem. N!o " espao para afetividade no pragmatismo dasobrevivncia. Elias s8 ir sorrir ao pedir um 2bif!o4 para ;ucília e esta l"e faz também2umas batatas fritas4, pois uma vez supridas as necessidades primrias, 9 podemesboar algum contentamento, mas nunca amor.

    >egundo rener ?D'

    $ cidade p8s-moderna retratada por Rubem 5onseca traz em si aantítese da comun"!o. >eus "abitantes n!o cooperam entre si pelasobrevivncia, ao contrrio, disputam freneticamente cada palmo dec"!o e o direito de permanncia no lugar escol"ido. $ solidariedade"umana é somente uma utopia e a forma de dilogo mais praticada é oda violncia. ?rener, D', p. GFO 

    Embora em Relato de 3corrncia n!o "a9a o espao urbano, propriamente dito,seus personagens possuem as mesmas características, pois vivem sob a mesma lei, a docapital. W&ueles &ue n!o est!o em posi!o privilegiada no sistema, resta primeiramente,

    uma tentativa de emergncia, de sair do anonimato, é como entende-se a&ui as diversasmanifesta7es sociais da contemporaneidade, cu9as lideranas, se "ouver, n!o s!o

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    facilmente identificadas pelo Estado, como ficou evidenciado em acontecimentosrecentes, como as manifesta7es de D1G ou nos c"amados 2rolézin"os4. 3u ainda, em

    uma segunda alternativa, buscar e/istir fora dos limites do Estado, num terceiro espao.

    Esse terceiro espao n!o é a 2marginalidade4, pois esta tem seu papel nam&uina Estatal contemporHnea, e/iste um 2mercado da violncia4. N!o, os

     personagens do terceiro espao vivem outro lugar, com regras pr8prias. Nesse espao, oaougueiro, &uem cotidianamente trabal"a com carne, ouve reiteradamente &ue 2n!o

     pode4 pegar carne, n!o ali, na ponte, n!o a carne da vaca marrom, dessa 2n!o pode,gritam todos, com e/ce!o do motorista da polícia4. Esse também tin"a se atirado sobrea vaca, com uma faca conseguida sob ameaa de apreens!o.

    $s identidades devem ser repensadas. N!o " um 2cadastro de pessoas físicas4

    no entre-lugar, o &ue e/iste s!o posi7es. 6eve-se lembrar &ue 2os modos de vidacolocados em a!o pela modernidade nos livraram, de uma forma bastante inédita, detodos os tipos tradicionais de ordem social4 ?e conseguir &ue as popula7es &ue "o9e moram nas cercanias do

     progresso consigam um lugar seu, com uma intera!o efetiva e afetiva, talvez na ponten!o fi&ue mais 2apenas a poa de sangue4.

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    2) RE1ERÊNCIAS$RXE>, Roland. O im3!rio 4o# #i5no#  Roland art"esV tradu!o ;eYla 0errone-#oisés. Z >!o 0auloB Q#5 #artins 5ontes, DJ. Z ?*ole!o Roland art"es

    RENER, 5ernanda #ac"ado. $ representa!o da cidade nos contos de Rubem5onseca. CnB *E;;C Z *3;[\=C3 6E E>=63> ;CNC*3> E ;CER^RC3>.G, DJ, #aring. Anai#))) #aring, D', p. GF(-GJ1.

    6_3N35RC3, >alvatore. Teoria 4o te6to (: Pro$e5ômeno# e teoria narrati%a. >!o0auloB ^tica, DD.

    53N>E*$, Rubem. Conto# Reni4o#  Rubem 5onsecaV organiza!o oris>c"naiderman Z >!o 0auloB *ompan"ia das ;etras, 1''(.

    X$;;, >tuart. A i4enti4a4e "$tra$ na P7#&Mo4erni4a4e. Rio de Kaneiro, 60P$Editora, 1''J.

    #E;;3 E >3=I$, $ntonio *andido. Literatra e So"ie4a4e Z O` ed. Z >!o 0aulo Z 0ublifol"a, D. ?