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14-04-2018 ÁLVARO GARRIDO, PROFESSOR, INVESTIGADOR E CONSULTOR DO MUSEU DE ILHAVO `A PESCA DO BACALHAU TORNOU-SE UM MITO ALÉM- -FRONTEIRAS POR CAUSA DESTE LIVRO' José Cabrita Saraiva jose.c.saraiva(a sol.pt Em 1950, um oficial de marinha aus- traliano embarcou a bordo de um ba- calhoeiro português a convite do Es- tado Novo. Dessa viagem nasceu A Campanha do Argus, livro mítico so- bre a odisseia do bacalhau, que aca- ba de ser reeditado entre nós. Con- versámos com o autor do prefácio, Al- varo Garrido, que explica corno era a vida a bordo e o que é feito desse na- vio conhecido no mundo inteiro. N ascido em Estarre- ja, Alvaro Garrido é um apaixonado e um estudioso do mar e das pescas. Entre 2003 e 2009 foi diretor do Museu Marítimo de fihavo, de que hoje é consultor. Já viajou a bordo do Crioula e dedi- cou a sua tese de doutoramento à Campanha do Bacalhau, um es- quema de economia dirigida de- senhado pelo Estado Novo para li- bertar Portugal da dependência face ao estrangeiro no que tocava ao consumo deste peixe. Licenciado em História e atual- mente professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Garrido assina o prefá- cio de A Campanha do Argus (ed. Cavalo de Ferro), um livro es- crito há cerca de 70 anos por Alan Villiers, um oficial de marinha australiano que foi convidado pelo regime sala7arista para tes- temunhar a perícia, a coragem e a entrega dos pescadores portu- gueses nas águas geladas do Atlântico Norte. Pelo nome, pensei inicialmente que Alan Villiers seria francês, mas afi- nal nasceu na Austrália. Quem era o autor de A Campanha do Argus? Alan Villiers era um marinheiro e um repórter muito afamado. Já antes deste livro ele tinha escri- to várias crónicas de viagem ma- rítimas e uma biografia do capi- tão Cook, e era muito procurado por editoras norte-americanas e britânicas. Para ter uma ideia, os artigos dele na National Geo- graphic normalmente aumenta- vam ainda mais a tiragem da re- vista. Era um homem talentoso, e que tinha uma grande experiên- cia de mar no Atlântico Sul, no encalce dos grandes explorado- res do Ártico e do Atlântico Sul. Como oficial da Royal Navy tinha urna experiência e uma cultura naval muito grandes e interes- sou-se pelas principais marinhas civis do mundo. Estudou, por exemplo, as viagens dos clippers britânicos do chá. Os clippers são aqueles veleiros com vários mastros? Exato. Ele chegou a fazer esse per- curso de navegação para o poder experimentar na pele. Depois de acabar a Segunda Guerra estes grandes marinheiros e cronistas tiveram muito mercado. Havia um certo encantamento com as crónicas da vida marítima. E ele interessou-se muito, a dada altu- ra, por experiências mais.ou me- nos anacrónicas e sobre-humanas de marinhas civis em atividade no seu tempo. E como veio parar a Portugal? O encontro do Alan Vfiliers com o Estado Novo resulta de uma enco- menda. Quem toma a decisão é o Pedro Teotónio Pereira, na altu- ra embaixador de Portugal em Washington. Teotónio Pereira era apaixonado por navios à vela e muito amigo de Henrique Tenrei- ro, o homem forte das pescas cor- porativas, porque tinham sido ambos colegas na Escola Naval. A família tinha interesses nos se- guros e o pai mandou-o para Zu- rique estudar Cálculo Actorial, Matemáticas Superiores, mas nunca se desligou dos navios, da vela e sobretudo da pesca do ba- calhau, que ele aliás ainda incen- tivou quando esteve no governo como ministro do comércio e da indústria, nos anos 30. Aliás foi ele que lançou, com o ministro que precedeu, Sebastião Ramirez,

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Page 1: `A PESCA DO BACALHAU · pulação de um navio bacalhoeiro como o Argus? Normalmente estes navios leva-vam à volta de 50, 60 homens, de-pendendo da dimensão. Houve navios com cem

14-04-2018

ÁLVARO GARRIDO, PROFESSOR, INVESTIGADOR E CONSULTOR DO MUSEU DE ILHAVO

`A PESCA DO BACALHAU TORNOU-SE UM MITO ALÉM- -FRONTEIRAS POR CAUSA DESTE LIVRO' José Cabrita Saraiva jose.c.saraiva(a sol.pt

Em 1950, um oficial de marinha aus-traliano embarcou a bordo de um ba-calhoeiro português a convite do Es-tado Novo. Dessa viagem nasceu A Campanha do Argus, livro mítico so-bre a odisseia do bacalhau, que aca-ba de ser reeditado entre nós. Con-versámos com o autor do prefácio, Al-varo Garrido, que explica corno era a vida a bordo e o que é feito desse na-vio conhecido no mundo inteiro.

N ascido em Estarre- ja, Alvaro Garrido é um apaixonado e um estudioso do mar e das pescas. Entre 2003 e 2009 foi

diretor do Museu Marítimo de fihavo, de que hoje é consultor. Já viajou a bordo do Crioula e dedi-

cou a sua tese de doutoramento à Campanha do Bacalhau, um es-quema de economia dirigida de-senhado pelo Estado Novo para li-bertar Portugal da dependência face ao estrangeiro no que tocava ao consumo deste peixe.

Licenciado em História e atual-mente professor na Faculdade de

Economia da Universidade de Coimbra, Garrido assina o prefá-cio de A Campanha do Argus (ed. Cavalo de Ferro), um livro es-crito há cerca de 70 anos por Alan Villiers, um oficial de marinha australiano que foi convidado pelo regime sala7arista para tes-temunhar a perícia, a coragem e a entrega dos pescadores portu-gueses nas águas geladas do Atlântico Norte.

Pelo nome, pensei inicialmente que Alan Villiers seria francês, mas afi-nal nasceu na Austrália. Quem era o autor de A Campanha do Argus? Alan Villiers era um marinheiro e um repórter muito afamado. Já antes deste livro ele tinha escri-to várias crónicas de viagem ma-rítimas e uma biografia do capi-tão Cook, e era muito procurado por editoras norte-americanas e britânicas. Para ter uma ideia, os artigos dele na National Geo-graphic normalmente aumenta-

vam ainda mais a tiragem da re-vista. Era um homem talentoso, e que tinha uma grande experiên-cia de mar no Atlântico Sul, no encalce dos grandes explorado-res do Ártico e do Atlântico Sul. Como oficial da Royal Navy tinha urna experiência e uma cultura naval muito grandes e interes-sou-se pelas principais marinhas civis do mundo. Estudou, por exemplo, as viagens dos clippers britânicos do chá.

Os clippers são aqueles veleiros com vários mastros? Exato. Ele chegou a fazer esse per-curso de navegação para o poder experimentar na pele. Depois de acabar a Segunda Guerra estes grandes marinheiros e cronistas tiveram muito mercado. Havia um certo encantamento com as crónicas da vida marítima. E ele interessou-se muito, a dada altu-ra, por experiências mais.ou me-nos anacrónicas e sobre-humanas

de marinhas civis em atividade no seu tempo.

E como veio parar a Portugal? O encontro do Alan Vfiliers com o Estado Novo resulta de uma enco-menda. Quem toma a decisão é o Pedro Teotónio Pereira, na altu-ra embaixador de Portugal em Washington. Teotónio Pereira era apaixonado por navios à vela e muito amigo de Henrique Tenrei-ro, o homem forte das pescas cor-porativas, porque tinham sido ambos colegas na Escola Naval. A família tinha interesses nos se-guros e o pai mandou-o para Zu-rique estudar Cálculo Actorial, Matemáticas Superiores, mas nunca se desligou dos navios, da vela e sobretudo da pesca do ba-calhau, que ele aliás ainda incen-tivou quando esteve no governo como ministro do comércio e da indústria, nos anos 30. Aliás foi ele que lançou, com o ministro que precedeu, Sebastião Ramirez,

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O investigador Álvaro Garrido

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conserveiro algarvio, a campanha do bacalhau e o fomento da frota nacional. Mesmo depois de aban-donar essas funções, quando era embaixador em Espanha junto do franquismo, gostava de vir ver os navios de vela, os lugres, os baca-lhoeiros, a largada triunfal.

O que era isso? Era a bênção dos bacalhoeiros que se fazia na Junqueira e em Belém, em abril, maio. Quando os navios largavam para a Terra Nova havia uma cerimónia reli-giosa e profana, um ritual nacio-nalista até com alguma liturgia fascista nos primeiros anos.

Essa cerimónia tinha antecedentes ou foi inventada pelo Estado Novo?

Em Portugal não tinha, mas ha-via grandes rituais desse género nos portos bacalhoeiros da Breta-nha francesa, como Saint-Malo ou La Rochelle. O Estado Novo trans-forma isso num ritual nacionslis-

Pescador no dóri, com o navio-mãe

ta. Os navios de Aveiro, de Viana, da Figueira vinham todos a Lis-boa para carregar víveres e par-tiam depois de uma missa campal que durante os primeiros anos foi presidida pelo próprio Cardeal

ao fundo, ao largo da Gronelândia

Cerejeira. Pedro Teotónio Perei-ra foi o mentor de tudo isso.

E onde entra o Villiers? A maneira como os portugueses pescavam bacalhau era muito ar-

66 Villiers

estabeleceu uma relação de

cumplicidade com o capitão Adolfo Paião,

um antepassado do cantor

Carlos Palão

99

tesanal, arcaica - já nenhuma fro-ta internacional pescava assim -e havia que justificar um pouco esse anacronismo, a dureza do tra-balho, bem como a organização cooperativa que governava todo o subsetor da pesca do bacalhau. Então Pedro Teotónio Pereira, que era um grande leitor do Villiers, convida-o para embarcar num na-vio da frota portuguesa, e paga-lhe - é uma encomenda. Villiers em-barca no Argus na campanha de 1950, encanta-se por tudo aquilo -pela bravura dos pescadores, pela destreza técnica, pelos capitães -e escreve este livro, que se torna um bestseller internacional. É edi-tado em inglês em 1951 e em Portu-gal no mesmo ano. Depois disso conhece edições em 16 línguas, o que é extraordinário.

É um sucesso. E torna-se muito conhecido nas províncias atlânticas do Canadá, nos Estados Unidos, na Grã-Breta-nha e em Portugal. Era um livro de camarote muito comum nos navios da marinha de guerra de vários países, e fez uma propagan-da muito eficaz da pesca do baca-lhau como arte de marinharia, tal como o Estado Novo esperara que ele fizesse. Não por acaso em 1951 Salazar recebe Villiers, que é ob-jeto de uma série de mordomias em Portugal, e depois atribui-lhe o prémio Camões do SNI, em 1952, que distinguia obras estrangeiras sobre a realidade portuguesa. A obra é muito bem recebida pelos homens do mar porque oferece um retrato muito realista da pes-ca, embora recalque aspetos de conflito, tensões, dissensões, e exalte o enquadramento político que o Estado Novo ofereceu a esta atividade. Aliás, a pesca do baca-lhau como herança cultural por-tuguesa nos anos 50 e 60 tornou--se um mito além-fronteiras mui-to por causa deste livro. E ainda hoje esta crónica de viagem sus-cita muita adesão das pessoas do mar, mas mesmo para quem nun-ca andou ao mar é um livro mui-to agradável de ler.

Presumo que não fosse normal para os pescadores terem consigo al-guém de fora. Villiers deu-se bem com a tripulação? Nesta época tinham sido muito poucos os casos de embarque de pessoas estranhas às tripulações em navios de pesca do bacalhau da frota portuguesa. Nos anos da guerra houve alguns jornalistas

do regime para fazerem também crónicas de viagem com fins pro-pagandísticos, nomeadamente o Jorge Simões, que era jornalista e assessor de imprensa do Tenrei-ro, mas isso era muito incomum. Mas o Villiers fica amigo dos ofi-ciais náuticos e mesmo depois ainda volta a conviver com eles.

Foi bem aceite? O Villiers era um homem de mar. Tinha uma cultura náutica mui-to forte, tinha embarcado em con-textos muito diversos, e estabele-ceu uma relação de cumplicidade muito fácil com o comandante, o capitão Adolfo Paião, a quem ele tece uma homenagem rasgada no livro - que curiosamente era um antepassado do cantor Carlos Paião -, mas também com os ofi-ciais, com o piloto, com o imedia-to, e com a tripulação em geral. Admirou os seus gestos e cha-mou-lhes 'os melhores pescadores do mundo', e portanto entranhou--se naquele universo e tornou-se um deles também, porque era um homem de mar.

Quantos homens compunham a tri-pulação de um navio bacalhoeiro como o Argus? Normalmente estes navios leva-vam à volta de 50, 60 homens, de-pendendo da dimensão. Houve navios com cem homens, mas em regra andavam à volta dos 50 tri-pulantes.

E faziam todos a mesma coisa? Não. Grande parte eram pescado-res, pescadores-marinheiros, mais exatamente, porque quando eram largados no seu bote, o dóri, preci-savam de ter rudimentos de mari-nharia, de remar, de saber orien-tar-se e regressar ao navio-mãe, o que era um perigo. Muitos eram pescadores-salgadores, e tinham um salário fixo maior porque eram responsáveis também pela manipulação do bacalhau e do sal nos porões para conservar a car-ga. Outros eram redeiros, mestres de redes, havia normalmente um radiotelegrafista - estes navios já tinham TSF -, havia um ajudante de máquinas-eram navios com motor auxiliar - e havia depois o piloto, o imediato e o capitão.

Havia até o 'parte-cabeças', que ti-nha a função de separar as caras do bacalhau. Quando se fala de ca-ras, a que corresponde? Corresponde mesmo à cabeça. aos ossos, que têm nevroses e uma es- >

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> pécie de geleia, de gordura, que é muito agradável. Durante o Esta-do Novo, por razões de produtivi-dade, tudo era aproveitado, tudo era negócio: as caras, as espinhas, os samos...

O que são os samos? São as bexigas, um petisco tam-bém muito apreciado. Até o óleo dé fígado tinha procura - aliás houve um programa governa-mental de inclusão de vitaminas nas escolas e ainda há muita gen-te que tem essa memória - não muito agradável, parece. Portan-to tudo era aproveitado. O baca-lhau é um peixe do Atlântico, ga-dus morhua, com uma produtivi-dade fantástica, isso explica em parte o fenómeno. É um animal marinho muito rentável do pon-to de vista dos tecidos, é fácil de conservai; de textura agradável e muito abundante. Na história das pescarias oceânicas não há ne-nhum peixe que tenha desperta-do um negócio tão significativo até hoje, nem o arenque.

Como era a vida a bordo nos baca-lhoeiros?

O navio era um universo de tra-balho de noite e de dia, dormia-se muito pouco quando havia condi-ções de peixe e de man

Era preciso aproveitar a oportuni-dade? Exato. O grande objetivo da cam-panha era carregar o navio, dar lucro ao armador e trazer ao país o abastecimento, a provisão ali-mentar que se esperava. Nesta época ainda não havia nenhum si-nal de escassez de peixe, os navios vinham normalmente carrega-dos, amortizavam o investimento muito depressa. Nos anos de guer-ra, então, como os portugueses fo-ram praticamente os únicos a pes-car nos grandes bancos, houve muito peixe, os navios vinham atestados, embora fosse muito di-fícil navegar e pescar.

Não era perigoso? Houve navios afundados, dois de-les atingidos por submarinos ale-mães. O trabalho a bordo era mui-to, muito árduo, eles largavam às quatro, cinco da manhã, e traba-lhavam durante oito, dez horas, regressavam ao convés do navio, e iam trabalhar na escala do ba-calhau - ou seja abrir o bacalhau e colocá-lo para os porões. Os sal-gadores trabalhavam no porão. dormia-se muito pouco, com pou-ca água potável, com condições

muito duras. Era um trabalho quase sobre-humano.

E era bem pago? Sim, por isso havia sempre mui-ta gente disposta a embarcar Comparando com as outras pes-carias, ganhava-se relativamente bem.

Villiers diz que se comia bem a bor-do, o que me surpreendeu. A alimentação a bordo dependia muito do armador, dependia mui-to do capitão e dependia muito do cozinheiro. Mas em regra não era tão boa como ele diz, é um aspeto que é ligeiramente dissimulado. porque era um dos fatores de ris-co de rebelião, de mal-estar a bor-do. Havia peixe, havia carne. Os pescadores hoje, quando os ouvi-mos, falam de uma alimentação monótona, difícil e por vezes de-ficiente.

Eles saíam para pescar nestes bar-quinhos, os dóris. As vezes perdiam o navio-mãe de vista, não era? O Alan Villiers imortalizou essa imagem do pescador isolado no seu dóri. Só os portugueses cria-ram esta tradição de uni pescador por bote. um modelo de pesca que incitava a competição entre os ho-mens, porque quanto mais se pes-cava mais se:ganhava. Os espa-nhóis - galegos e bascos - quando pescavam assim iam dois homens por bote. Até isto ajudou a mitifi-car a pesca portuguesa porque era o pescador-marinheiro entre-gue a si próprio.

Como faziam para se orientar no ne-voeiro, por exemplo? No grande banco da Terra Nova, e mesmo na Costa Oeste da Gro-nelándia, onde iam complemen-tar a carga, havia muitos nevoei-ros, e muitos homens, arriscando um pouco mais à procura de pei-xe, afastavam-se no navio, ou não conseguiam regressar com o bote carregado. Alguns andaram à de-riva durante dias e foram resga-tados por outros navios, outros morreram ali, há relatos de ho-mens que ficaram em cima de pe-daços de icebergues durante dias e foram apanhados por um car-gueiro da guarda-costeira cana-diana ou norte-americana, ou seja. há episódios absolutamente épicos e dramáticos- mais dra-máticos até do que épicos, relacio-nados com os perigos do nevoei-ro e com a fragilidade a que estes homens estavam expostos. Eles só tinham uma agulha de marear, a

66 Saíam às g

quatro, cinco da manhã e 'ÇA

trabalhavam durante oito, 3

dez horas, regressavam ao

convés e ainda iam escalar o

peixe. Era quase sobre-humano

Há relatos de homens

que ficaram em cima de

icebergues durante

dias e foram resgatados por

cargueiros

O Argus tem hoje o casco em

decomposição

99 experiência e a entreajuda, que era o mais importante.

Recorda-se de algum desses casos em particular? Há ode um pescador, não me recor-do em que ano, que ficou perdido, foi resgatado, andou pelas Améri-cas durante uns meses e quando re-gressou a mulher achava que tinha enviuvado e portanto já tinha casa-do com outro homem.

Este modelo de um navio maior, a partir do qual os homens saíam para a pesca em botes, era mais ou menos o da pesca da baleia, não era?

Sim, aliás esta técnica é trazida no século XIX pelos portugueses da Nova Inglaterra, na costa dos Es-tados Unidos, sobretudo pelos aço-rianos. Desde 1835, quando Portu-gal regressa aos bancos da Terra Nova, já se faz pesca à linha com

dóris com um só homem e isso é trazido da pesca polivalente da Nova Inglaterra, onde muitos na-vios tanto eram bacalhoeiros como baleeiros. Aliás nos primór-dios da pesca do bacalhau a par-tir dos portos portugueses pesca-va-se bacalhau e caçava-se baleias.

Como é hoje feita a pesca do baca-lhau?

Hoje os navios portugueses pescam sobretudo no mar da Noruega, en-tre a Noruega e a Riíssia,em sítios como a Ilha do Urso, quase no Ár-tico e mesmo já no Ártico, a latitu-des cada vez mais setentrionais, por causa do degelo. São arrastões pela popa com congeladores, onde o peixe é conservado com grande eficácia, mas não se pode conside-rar que são bacalhoeiros, são na-vios polivalentes, porque pescam diversas espécies consoante as quo-tas autorizadas pela UE.

Quando passam por um cardume sabem de que peixe se trata? Sim, hoje as sondas eletrónicas e os equipamentos de deteção não deixam escapar qualquer peixe desde que seja permitido captu-rá-lo. O conhecimento da biomas-sa, os tamanhos médios, a nature-za dos fundos, tudo isso é acessí-vel . A empiria da pesca, através de processos de adivinhação e de segredo que eram típicos da fro-ta portuguesa e que o Villiers con-ta neste livro com mestria não existem mais, é uma pesca muito mais mecânica e sem a dimensão épica de outros tempos.

Ainda assim devem enfrentar tem-pestades.

O tempo é difícil, as tripulações são compostas por pessoas de vários países, ganha-se muito bem a bor-do dos navios mas é um trabalho difícil, não é para todas. Curiosa-

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'Retrato de família' dos pescadores-marinheiros do Argus, em 1950

`Em 1934 Portugal importava 89%; nos anos 50 chega a produzir 80% do bacalhau que consome'

mente, e apesar de haver hoje ou-tros cuidados de segurança, na pes-ca à linha do bacalhau morreu-se menos do que na pesca de arrasto.

Como foi isso possível? Havia o apoio do navio-hospital Gil Eannes, que era muito efeti-vo, havia a entreajuda dos navios entre si e a entreajuda dos ho-mens das mesmas campanhas. Eram grandes pescadores, gran-des marinheiros, com muita ex-periência e muito arrojo... Parece incrível. mas a mortalidade na pesca à linha acabou por ser ligei-ramente menor do que na pesca por arrasto. Sendo hoje uma pes-ca mais profissional, com muito mais cuidados de segurança, con-tinua a haver acidentes.

De que tipo? Acidentes naturais, pernas corta-das com cabos, acidentes violen-

tos relacionados com o guincho e com os cabos de rede.

Ainda temos frota pesqueira?

Hoje Portugal tem apenas dez na-vios em atividade. O contributo da pesca por navios armados por empresas portuguesas é residual, não chega a 2% do consumo. Mas temos uma indústria transforma-dora de bacalhau muito competi-tiva, muito moderna e muito in-teressante. Visitei algumas fábri-cas na Noruega e as condições não têm nada a ver - se fosse aqui, essas unidades fechavam.

O que aconteceu ao Argus?

Quando terminou a vida de mar como navio bacalhoeiro foi com-prado por uma empresa de cruzei-ros turísticos nas Caraíbas, foi adaptado, fez muitos anos ali e a determinada altura, há uns anos, foi comprado pela empresa de pes-

ca e de transformação Pascoal & Filhos, da Gafanha da Nazaré, e hoje está lá.

Pode ser visitado?

Não. É visível só a partir do cais. Foi uma iniciativa arrojada do ex--proprietário do Santa Maria Ma-nuela. Hoje o Argus é parte do pa-trimónio naval português, é um navio com uma história mítica e, graças ao Alan Villiers, é conhe-cido no mundo inteiro e muito procurado pelas pessoas que se in-teressam por estas coisas.

Em que estado se encontra? Está à espera de um projeto e de uma oportunidade de recupera-ção. Tem o casco em decomposi-ção mas penso que haverá uma congregação de esforços para fa-zer daquele navio um património naval flutuante e recuperá-lo. Se-ria muito importante para o país.

Além do lado propagandístico, o que

foi feito pelo Estado Novo para re-

vitalizar a pesca do bacalhau?

A pesca e o abastecimento do ba-calhau são setores cruciais na economia do Estado Novo, que tem uma política económica com alguns aspetos de economia de antigo regime, muito ligada à provisão de bens alimentares, à ordem social, à estabilidade... A política alimentar passa basica-mente pela Campanha do Trigo, que é um insucesso, e pela Cam-panha do Bacalhau, que é um su-cesso. porque perdura até prati-camente ao 25 de Abril.

Em que medidas concretas se tra-

duziu essa campanha? A Campanha do Bacalhau era um programa de substituição de im-portações baseado na técnica de cartelização das importações. Em primeiro lugar, procura limitar a concorrência do bacalhau estran-geiro, constituindo a Comissão Reguladora do Comércio do Baca-lhau, que ocupa o edifício onde hoje está o Museu do Oriente. Essa comissão estabelece o se-guinte mecanis: os importadores armazenistas, que era um negó-cio poderoso em Portugal e que representava mais de 80% do con-sumo, só obtinham licença de im-portação depois de comprarem uma parte do contingente de pro-dução nacional, uni esquema pro-tecionista clássico imitado da Itá-lia de Mussolini. O que acontecia até aí era os importadores e brokers ingleses que trabalhavam no Porto e em Lisboa, quando che-gavam os navios portugueses, ata-cavam o mercado com bacalhau estrangeiro mais barato, não per-mitindo que o português se ven-desse. Resolvida esta questão, es-tabelece-se uma tabela oficial de preços em todos os setores. O ba-calhau era tabelado, desde o ne-gócio importador até ao retalho. De seguida há um megaprograma de fomento da frota nacional para reduzir as importações. O progra-ma começa em 1936 e é um êxito completo: em 1934 Portugal im-portava 89% do bacalhau que con-sumia, e nos anos 50 chega a con-sumir 80% da produção nacional.

Inverte! Inverte. A média até 1974 é 61% de produção nacional - aliás Salazar manda travar a campanha em vá-rios anos para não haver a subs-tituição total de importações por-que isso prejudicaria a exporta-ção de vinhos para a Noruega, por exemplo. A Campanha do Baca-lhau tem êxito do ponto de vista político, embora tenha sido mui-to ineficiente do ponto de vista económico porque o setor, nos anos 60, implodiu ao ponto de obrigar o governo a liberalizar o comércio do bacalhau. O setor cai como uni castelo de cartas.

Nessa altura a pesca ainda era fei-

ta de acordo com esses métodos

rudimentares?

Só em 1961 é que a maioria dos na-vios da frota portuguesa começam a ser arrastões. Até aí, a maioria dos navios eram de pesca à linha, ou seja, assistimos a uma resistên-cia de uma tecnologia de pesca muito primitiva, muito arcaica, que é contra a corrente interna-cional, e que se explica basica-mente pela natureza da procura: o mercado interno do bacalhau salgado seco é um mercado de grandes dimensões, a tabela esta-va organizada para remunerar mais o peixe graúdo e de média qualidade, e só a pesca à linha per-mitia a captura desse peixe por-que era muito mais seletiva que a pesca de arrasto.

Antes da campanha o bacalhau já

era o prato nacional por excelên-

cia?

Era. O mito do fiel amigo vem do século XIX. Já nessa época o baca-lhau é objeto de um consumo de massas. Quando havia escassez e os preços subiam havia crises ali-mentares muito complicadas que eram glosadas pela imprensa satí-rica. O Estado Novo procura dar uma resposta autoritária a esse problema, concretizando aquilo que S alar defmiu em 1918, quan- do estava na Universidade de Coim-bra, num texto em que disse que era necessário criar em Portugal um Estado ditador de víveres. . Esse escrito é depois concretizado na Campanha do Bacalhau.

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ARGUS A história do bacalhoeiro mítico dos anos 50 que fez cruzeiros nas Caraíbas e hoje está a apodrecer na Gafanha da Nazaré

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