a perspectiva sócio-cultural do desenvolvimento...

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A. Sedas Nunes A Perspectiva Sócio-Cultural do Desenvolvimento Económico O desenvolvimento económico é o resul- tado do esforço que cada sociedade faz para se desenvolver. A natureza e a intensidade desse esforço dependem, porém, das condi- ções de estrutura, de cultura e de organiza- ção da sociedade. Uma «estratégia sócio-cul- tural de desenvolvimentos pode, pois, ser definida, a partir da análise dessas condi- ções. 1, Sociedade, Cultura e Desenvolvimento O estudo da história económica, social e cultural dos países industrializados, a observação das sociedades contemporâneas de economia retardada ou estagnada, certos problemas «extra-econó- micos» levantados na elaboração e execução das políticas de desenvolvimento, o próprio alargamento de quadros 1 e aprofunda- mento de métodos na análise económica e sociológica tudo isso tem vindo a sugerir nas últimas décadas e acabou por impor uma concepção do desenvolvimento económico que estreitamente o associa a todo um processo, muito amplo e diversificado, de trans- formações socio-culturais. N. do A.— A finalidade do presente artigo é a iniciação, em termos quanto possível claros e correntes, a um aspecto, pouco salientado entre nós, da problemática do desenvolvimento económico. Tendo em vista objec- tivos pedagógicos, e não propósitos de investigação, deliberadamente se evi- taram nele conceptualizações e teorizações 1 difíceis para os não-iniciados. Por maioria de razão se pôs de parte todo intuito inovador. Com pequenas diferenças, este texto foi, aliás, utilizado, como documento de trabalho, na fase preparatória do Encontro sobre «Perspectivas Cristãs do Desenvol- vimento Económico», efectuado em Lisboa, no mês de Maio. 315

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A. SedasNunes

A Perspectiva

Sócio-Culturaldo DesenvolvimentoEconómico

O desenvolvimento económico é o resul-tado do esforço que cada sociedade faz parase desenvolver. A natureza e a intensidadedesse esforço dependem, porém, das condi-ções de estrutura, de cultura e de organiza-ção da sociedade. Uma «estratégia sócio-cul-tural de desenvolvimentos pode, pois, serdefinida, a partir da análise dessas condi-ções.

1, Sociedade, Cultura e Desenvolvimento

O estudo da história económica, social e cultural dos paísesindustrializados, a observação das sociedades contemporâneas deeconomia retardada ou estagnada, certos problemas «extra-econó-micos» levantados na elaboração e execução das políticas dedesenvolvimento, o próprio alargamento de quadros1 e aprofunda-mento de métodos na análise económica e sociológica — tudo issotem vindo a sugerir nas últimas décadas e acabou por impor umaconcepção do desenvolvimento económico que estreitamente oassocia a todo um processo, muito amplo e diversificado, de trans-formações socio-culturais.

N. do A.— A finalidade do presente artigo é a iniciação, em termosquanto possível claros e correntes, a um aspecto, pouco salientado entrenós, da problemática do desenvolvimento económico. Tendo em vista objec-tivos pedagógicos, e não propósitos de investigação, deliberadamente se evi-taram nele conceptualizações e teorizações1 difíceis para os não-iniciados.Por maioria de razão se pôs de parte todo intuito inovador. Com pequenasdiferenças, este texto foi, aliás, utilizado, como documento de trabalho,na fase preparatória do Encontro sobre «Perspectivas Cristãs do Desenvol-vimento Económico», efectuado em Lisboa, no mês de Maio.

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Em síntese, trata-se do seguinte.Por um lado, o desenvolvimento é o resultado de um esforço

colectivo — isto é: <ft> esforço que uma sociedade faz para se de-senvólver —. o que desde logo levanta o problema da «aptidão» decada sociedade para esse esforço. Ora, nem todas as sociedadesse têm revelado igualmente «aptas» para se desenvolver. Enquantopovos materialmente mal dotados souberam superar o desfavorda sua condição original, outros que dispunham, em termos favo-ráveis, de largos recurso® físico® e humanos mostraram-se inca-pazes de proficuamente os aproveitar. Porém, se cada sociedadeé um agregado de indivíduos integrados numa estrutura de gru-pos, movendo-se dentro de uma cultura e sujeitos a uma organi-zação— então, parece ser aí, ou seja: na estrutura, na culturae na organização, que devem buscar-se as raízes de diferençasde aptidão, às quais as diversidades somáticas e geográficas nãodão resposta bastante. Parece também que aí devem incidir acçõestendentes a corrigir ou minorar tais diferenças.

Por outro lado, o desenvolvimento, processando-se, cria nasociedade uma situação nova, ou, mais exactamente, um conjuntode situações novas, simultâneas e sucessivas. Situações novas paraos indivíduos, para os grupos, para a organização social, paraa própria cultura. Diferindo das anteriores, estas novas situaçõesexercem estímulos diferentes e provocam, portanto, diferentesreacções individuais e colectivas. Surgem, pois, novas motivaçõese aspirações, novas atitudes, novos tipos de comportamento. So-lidariedades, anteriormente sólidas, enfraquecem ou dissipam-se,enquanto outras se tecem ou robustecem e procuram formas pró-prias de aglutinação e expressão. Deste modo, a estrutura básicada comunidade é alterada e o equilíbrio de interesses ou de pode-res, em que assentava a organização social, modifica-se, obrigandoa adaptações mais ou menos extensas ou profundas nos própriosesquemas ou princípios da organização. Finalmente, também o con-dicionalismo, dentro do qual, e a problemática, perante a qual,os sistemas de ideias se elaboram, os valores e ideais sie explicitame as obras do pensamento, da técnica e da arte se concebem e pro-duzem, são transformados. Daí resulta a criação e propagaçãode formas e conteúdos de cultura inteiramente novos ou ampla-mente renovados. Em suma: sob o impacto do desenvolvimentoeconómico, é todo um movimento induzido de reconversão sociale cultural que se desencadeia. A sociedade e a cultura transfor-mam-se, à medida que o desenvolvimento se processa.

Poderemos condensar todo o exposto num esquema muitosimples de interacção ou, melhor talvez, de «causalidade circular»:sob certo aspecto, a relação entre desenvolvimento económicoe condições de estrutura, de cultura e de organização social apa-rece como uma relação de dependência do primeiro ante as segun-

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das; sob outro aspecto, porém, são estas que dependem daquele,porque o desenvolvimento, uma vez em processo, opera como in-dutor de toda uma cadeia de alterações na estrutura, na culturae na organização da sociedade.

Deste eisquema, apenas reteremos, no texto presente, o pri-meiro aspecto—aquele em que o desenvolvimento surge depen-dente de condições socio-culturais. O esquema terá, então, servidopara frizar a imttateraMdade, e por conseguinte a limitação, daperspectiva em que nos situaremos doravante.

2. Um exemplo histórico

Começaremos por uma exemplificação de conteúdo histórico.Exemplificação clássica, aliás, que resultará da resposta a umapergunta há muito formulada: porque foi na Grã-Bretanha quese verificou o primeiro «arranco» (ou take-off) de desenvolvi-mento económico modeimo?

Uma resposta fácil — e de resto vulgar — seria a seguinte:foi na Grã-Bretanha que surgiram os «grandes inventos técnicos»,a partir dos quais o surto da indústria moderna se desencadeou;é, portanto, lógico que, autora e detentora de tais inventos,a Grã-Bretanha haja sido o país onde mais cedo se verificouaquele «arranco». Porém, uma resposta deste teor não responde—ou pelo menos não basta. Com efeito, deixa-nos na necessidadede perguntar agora: porque foi na Grã-Bretanha que surgiramos «grandes inventos técnicos» ? e porque é que, tendo surgido aí,tão rápida e extensamente foram utilizados, tão amplo movimentode criação e propagação de inovações Suscitaram e tão vastareconversão, ampliação e multiplicação de actividades induziram?Duma resposta que se socorre de um só facto, isolando-o do con-texto e tomando-o como uma espécie de fruto do acaso, há quepassar a uma resposta de outra índole, integradora, que precisa-mente atenda ao contexto donde o facto emergiu e onde os seusefeitos se projectaram.

Em primeiro lugar, o contexto económico. Nas últimas déca-das do século XVIII, as disponibilidades financeiras eram, naGrã-Bretanha, comparativamente abundantes: lucros vultososacumulados num intenso comércio marítimo; médios capitais nasmãos de ex-proprietários que, tendo vendido as suas terras a lati-fundistas, procuravam novas formas de os aplicar; altas margensde poupança em austeras classes médias; o mais desenvolvido con-junto de instituições financeiras (bancos, bolsas e companhias deseguros) de toda a Europa—tudo isto vinha a traduzir-se» nãosó numa situação financeira desafogada, com baixa geral das ta-xas de juro, mas também numa busca de «oportunidades de inves-

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timento», que só parcialmente podiam ser encontradas no comér-cio e nas manufacturas tradicionais, entravados pela estagnaçãodas técnicas. Pode, pois, dizer-se que a Grã-Bretanha, antes dos«grandes inventos», estava dotada de um potencial de investimento*que era excedentário em relação à sua capacidade técnica.

Doutro lado, a oferta de trabalho era também abundante: —abundante em geral, ipor efeito de uma considerável aceleraçãodo ritmo de crescimento demográfico; mas abundante sobretudoem determinados pontos do espaço geo-económico, as cidades, emconsequência de um caudaloso afluxo de populações deslocadasdas actividades rurais.

Finalmente, havia as condições de mercado e concorrênciaque as manufacturas defrontavam. Dum modo geral, eram certa-mente favoráveis. A construção e reparação da rede de estradase a abertura de uma ampla teia de canais tinham vindo facilitara circulação dos produtos e a penetração em profundidade do mer-cado interno, a partir dos centros produtores urbanos; o domínioe exploração das rotas marítimas pelas poderosas frotas inglesastinha aberto à exportação britânica um vasto mercado exterior;e os territórios coloniais funcionavam, simultaneamente, comoabastecedores seguros de matérias-primas e como grandes com-pradores de artigos manufacturados; finalmente, a expansão de-mográfica amplificara a procura interna.

No entanto, um jovem ramo de produção — a têxtil algodoeira— lutava com dificuldades. Os tecidos que fabricava tinhamgrande procura na Metrópole e nas Colónias; mas a concorrênciados tecidos hindus de algodão, que o comércio das Índias atraíaem apreciáveis quantidades e que, precisamente» tinham desper-tado no comprador inglês um novo gosto e novos hábitos em ma-téria de vestuário, constituía um vigoroso obstáculo ao desenvol-vimento do sector, dado o baixo preço a que o produto indiano eraoferecido.

Também na metalurgia se deparava um «estrangulamento».Esgotadas por séculos de desbaste as reservas florestais, a ma-deira— até então matéria subsidiária fundamental na tecnologiado ferro — escasseava, eíncarecia e forçava as ferrarias a fre-quentes deslocações de umas zonas para outras, à procura dosbosques ainda existentes ou das regiões que poderiam ser reflo-restadas. Este «estrangulamento» tornava-se ainda mais agudo,por crescer concomitantemente a procura de produtos da forja>em consequência do desenvolvimento da construção civil (habi-tações para uma população em crescimento acelerado, estradase canais), da construção naval e dos transportes terrestres. O car-vão mineral abundava, mas desconheciam-se processos técnicoseficazes de o utilizar.

Deste modo, num condicionalismo económico geral em que

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importantes disponibilidades de capital buscavam oportunidade deinvestimento e em que amplas reservas de mão-de-obra procura-vam oportunidade de emprego, dois sectores, aos quais se abriamexcelentes perspectivas de mercado, sufocavam. Sufocavam, por-quê? Por causas ipuramente técnicas, ou seja: por impossibilidadede incrementar a produtividade e reduzir os custos e preços natêxtil algodoeira, e por impossibilidade de substituir a madeirapelo carvão mineral na metalurgia do ferro.

Pois bem: foi exactamente, nestes dois sectores que os«grandes inventos» surgiram. E agora compreende-se porquê.Surgiram aí para libertar esses sectores da sufocação que os opri-mia. Mais exactamente: surgiram aí, porque a situação contra-ditória em que a têxtil algodoeira e a metalurgia do ferro seencontravam (por um lado, amplas perspectivas comerciais e am-plas disponibilidades de factores; çor outro, impossibilidadetécnica de desenvolvimento) suscitaram uma forte incitaçãoa inovar, concretizada numa busca de processos técnicos revolurdonários.

Os «grandes inventos» não brotaram, pois, do acaso: foramo resultado de uma incitação provocada por uma determinadasituação. E também não foi por acaso que, tão rápida e extensa-mente, foram utilizados e tão amplo movimento industrial inaugu-raram : também isso resultou da mesma situação. Situação em quecapitais avultados, apetecendo investimento lucrativo, e mão-de--obra copiosa, ansiando por ocupação remunerada, por assim dizersó esperavam a oportunidade de aplicação que as novas técnicaslhes vieram abrir. Estando o êxito garantido e sendo depois espec-tacularmente demonstrado nos sectores donde o movimento par-tiu, o seui exemplo frutificou. De sector em sector, a busca denovos processos propagou-s% generalizando, aperfeiçoando, de-senvolvendo os princípios básicos que os «grandes inventos» ti-nham introduzido—e por toda a parte oferecendo ao capital asocasiões de investimento e de lucro procuradas; por toda a parte,também, utilizando as reservas de mão-de-obra existentes.

Na verdade, porém, esta explicação tó pelo contexto econó-mico ainda não basta.

Assim, por detrás do dinamismo que o capital inglês revelou,encontram-se os grupos em cujas mãos se concentrava. Encontra--se, em primeiro lugar, um importante grupo de «negociantes--f abricantes», no^ quais uma longa tradição formara sólidos há-bitos de investimento e de risco e que, em grande parte e a poucoe pouco, tinham conseguido apossar-se das próprias manufactu-ras, não sendo mais apenas comerciantes. Encontra-se, em segundolugar, um grupo de indivíduos socialmente «desclassificados» (ospuritanos e outros fiéis de confissões reformadas), para os quaiso êxito nos negócios e o enriquecimento eram as únicas vias, que

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podiam encarar, de promoção social ç de reafirmação perantea comunidade. Encontra-se, finalmente, um grupo de ex-proprie-tários rurais que, após o abandono das actividades agrícolas, ti-nham urgente necessidade de aplicar noutras produções o seu capi-tal. Para o primeiro destes grupos, o investimento reprodutivoestava na lógica e na continuidade <íe toda uma tradição; para osegundo, era a única possibilidade segura de acesso a posições ele-vadas ç de reabilitação social; para o terceiro, era uma questão depura sobrevivência económica e também uma espécie de desforraante os grandes proprietários que haviam absorvido as suas terras.O dinamismo do capital inglês era, afinal, o dinamismo ascensional,destas classes médkx&.

Por detrás da abundância de mão-de-obra, já vimos que es-teve um rápido crescimento da população. Mas este deveu-se so-bretudo a uma baixa considerável das taxas de mortalidade, oca-sionada por uma sensível alteração nas considerações sanitáriasgerais: melhorias na dieta alimentar, na qualidade das habita-ções, na higiene pública, na higiene pessoal, na medicina e cirurgiae na organização hospitalar.

Por detrás do movimento de aglomeração urbana, antes dos«grandes inventos», esteve principalmente uma profunda reestrur-turação da disciplina e distrilmição da propriedade rústica, donderesultaram uma forte concentração do domínio sobre a terra e umgrande êxodo rural. Por ordem do Parlamento, as propriedadesdispersas foram emparceladas e vedadas e as «terras comunais»,que eram livres e abundantes, foram repartidas, atribuídas a pro-prietários individuais e vedadas também. A aplicação local dasleis de vedação fez-se, iporém, em condições tais, que foi possívela espoliação de muitos pequenos e médios proprietários, em favordos grandes senhores do solo. Por outro lado, a reorganizaçãoimplicou encargos consideráveis com a vedação das terras:, a irri-gação, os trabalhos de drenagem e o pagamento de tornas moti-vadas pela permuta de iparcelas de terreno. Privou também oscamponeses do recurso, para pastagens e colheitas, hs «terrascomunais»; e forçou-os ao abandono dos métodos de cultivo tradi-cionais e comunitários ao nível da freguesia, tornados inviáveisou difíceis perante a nova divisão e vedação das propriedades.Oprimidos, endividados, desadaptados à situação criada pela re-forma, os pequenos e médios proprietários começaram a venderas suas terras e a emigrar para as cidades. Nos extensos domíniosconstituídos pela absorção progressiva dessas terras, os grandesproprietários intensificaram a criação de gado. E como a pecuáriacarecia de menos mão-de-obra que a agricultura, a irradiação deemigrantes para os núcleos urbanos foi ainda maior. Assim, poriniciativa do Parlamento — controlado pela aristocracia detentorados grandes domínios territoriais e pela alta-burguesia interessada

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na abundância de mão-de-obra nas cidades — uma profunda alte-ração se produmi na estrutura da sociedade inglesa* antes dos«grandes inventos»: a classe média camponesa foi drasticamenteceifada, o proletariado rural foi em grande parte liberto dos tra-balhos do campo e o poderio dos «senhores da terra» foi vigoro-samente reforçado. Por efeito secundário, deu-se a afluência àscidades.

Também por detrás das favoráveis condições de mercado sedeparam, como factores preponderantes, deliberadas acções doPoder. O desenvolvimento da rede interna de comunicações e trans-portes resultou, em parte relevante, de uma política de consolida-ção da unidade nacional conseguida após a revolução de 1688.E o domínio dos oceanos e de extensos territórios ultramarinosfoi directamente visado por uma política de engrandecimentoexterno, em larga medida ditada pela necessidade de reagir contrao ameaçador poderio dos grandes Estados continentais e contraa relação de dependência quiase-colonial perante os holandeses.

Ainda por detrás da busca de processos técnicos revolucioná-rios, que viriam romper com tradições milenárias, se encontra adifusão na Cu&tura inglesa de um espírito científico mais avanrçado, na época, que o dos restantes povos, e directamente orientadopara as aplicações industriais. Muitos professores e investigadoresingleses mantiveram contacto com fabricantes; outros, ao queparece, trabalharam simultaneamente em laboratórios e oficinas.Através de numerosas escolas médias e de algumas escolas supe-riores, uma nova mentalidade, valorizadora da Ciência e das suasaplicações, foi difundida. Muitas associações culturais, nacionaise locais, estabeleceram convívio entre cientistas e práticos e fo-mentaram a aquisição dos novos conhecimentos e métodos. Foiesta situação cultural que tornou possível a invenção da máquinaa vapor, resultante de um esforço de engenho poderoso, mas ondese verificou também aplicação da Ciência Física a um problemaprático. Mais amplamente, ela permitiu e motivou, porém, umaousadia, aliada a uma objectwidade e a uma segurança metódicana busca de novos processos técnicos, que noutras condições nãoseriam facilmente concebíveis. Os «grandes inventos» foram,assim, produzidos por homens cuja mentalidade tinha sido in^fluenciada pelo progresso das Ciências. Esta mentalidade, postaperante o êxito que 03 primeiros «grandes inventos» alcançaram,pôde reagir, positiva e prontamente, aceitando com entusiasmoa inovação, adoptando-a, propagando-a e lançando-se na buscade sucessivas inovações, precisamente porque já antes sofrera, emescala bastante apreciável, tal influência.

Finalmente, houve o Parlamento, que desde 1688 adquirira umpapel definitivamente preponderante no sistema político inglês.Detentor do poder legislativo, era constituído por membros das

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classes ricas: nobreza, grandes proprietários, alta burguesia, epôde assegurar uma notável estabilidade política interna, muitopropiciatória da acumulação de capital e do desenvolvimento dosnegócios. Foi ele que, não só determinou, como vimos» a redistri-buição e vedação das terras, mas também criou um regime depatentes estimuladoras da inovação, ordenou a abertura de estra-das e canais, eliminou as instituições e regulamentações corpora-tivas (contrárias à novidade técnica) e progressivamente foi der-rubando todos os obstáculos legais à livre iniciativa capitalista.Sob a acção do Parlamento, a organização económica da sociedadeinglesa antecipou-se muito, desta forma, em relação à dos outrospaíses, no sentido da libertação e estimulação do progresso técnicoe da empresa privada lucrativa.

Que podemos, pois, responder, à interrogação inicial: porquefoi na Grã-Bretanha que se verificou o primeiro «arranco» dedesenvolvimento económico moderno? Claro que só deveríamosresponder, depois de comparar, meticulosamente, o condicionalis-mo descrito, com os condicionalismos correspondentes e contem-porâneos dos outros países. Escusando-nos, porém, de o não fazer,diremos que a Grã-Bretanha desfrutou de tal privilégio porquenela se congregou, mais cedo do que em qualquer outro país, todoum conjunto de condições económicas, sociais, culturais e insti-tucionais aptas, no seu conjunto, a desencadear um «arranco» dedesenvolvimento. Digamos, por outras palavras, que, antes dequalquer outra, a sociedade inglesa realizou — na sua estrutura,cultura e orgcmização— condições globalmente determinantes deum «arranco» de desenvolvimento económico moderno. A nenhumadessas condições, em particular, é possível atribuir a causalidadedo «arranco», mas tão-só ao conjunto: porque umas decerto odesencadearam, mas as outras tornaram-no possível

3. O particularismo sócio-cultural «Se cada «caso» de desenvol-vimento

Com o exemplo anterior nada mais pretendemos do que mos-trar, num caso concreto, a dependência do desenvolvimento econó-mico em relação a todo um contexto de condiçõesi de estrutura, decultura e de organização social. Sem dúvida, como dissemos noprincípio, o desienvoMmento económico é o resultado de um esforçocolectivo — esforço dos indivíduos, dos grupos, das instituições,do Estado. Mas as possibilidades, os estímulos, a intensidade e aeficácia desse esforço dependem da composição e situação dosgrupos na sociedade, dos seus recursos culturais, das suas estru-turas mentais, da natureza e orientação da organização social

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que os enquadra,. Não dependem só dessas condições; mas depen-dem delas também.

O caso inglês não é, aliás, paradigmático; quer dizer, nãoé necessário que, num país qualquer, se verifique um condiciona-lismo análogo ao que examinámos, para aí se produzir um «arran-co» de desenvolvimento económico. Pelo contrário: se tivéssemosexaminado os casos da Alemanha, do® Estados Unidos, do Japão,da Rússia, da índia ou da China, para citar apenas alguns exem-plos, teríamos encontrado que foi de condições sempre específicase por vezes muito distintas, que o desenvolvimento «arrancou».Porém, em todos os casos, iríamos deparar, no ponto de partidado desenvolvimento, um condicionalismo estrutural, cultural e ins-titucional que, diferente embora do inglês, era como ele possi-bilitante e desencadeador de crescimento económico. Pense-seapenas no caso russo: uma minoria intelectual detentora doPoder e fortemente impregnada por uma ideologia de progressomaterial e de recurso à técnica e à ciência; um proletariado urbanoe rural, em que essa minoria se apoiou; uma organização políticae económica extremamente centralizada; um mundo exterior hos-til, incitando à edificação rápida de um poderio imbatível; umatradição de grandeza e de expansão nacional, assumida e justifi-cada por uma doutrina uni versalista; um povo austero e isoladodos centros ocidentais onde as ideias de liberdade e as aspiraçõesao bem-estar haviam irrompido e crescido — eis um condiciona-lismo radicalmente diferente do que presidiu ao «arranco» inglês,e no entanto muito obviamente, no aspecto sócio-cultural, um con-dicionalismo de «arranco» também.

Note-se, aliás, que a dependência entre desenvolvimento econdições de estrutura, de cultura e de organização não se refereapenas à fase do «arramo», a que por comodidade e limitação deespaço nos temos reportado. Abrange também o prosseguimentoe sustentação do crescimento económico. Um processo de desen-volvimento, desencadeado em certo período, pode, na verdade, vira ser ulteriormente «estrangulado» por condições impeditivas dacontinuação do processa Por exemplo: não é possível, a longoprazo, um crescimento sustentado, sem se verificar atenuaçãoprogressiva das desigualdades na repartição dos rendimentos;mas o excessivo poderio de certos grupos e as característicasdo regime político-social podem impossibilitar essa atenuação,agindo então como factores de estrangulamento do processo an-teriormente desencadeado.

Ora, situando-nos nesta perspectiva alargada (e não apenasna do «arranco»), importa dizer que, não obstante a especifi-cidade do contexto próprio de cada país, o lançamento e a prosse-cução do desenvolvimento económico, requerem, na actualidade,

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certas cowMçfàs b<m<m de estrutura, de cultura e de organizaçãosocial, que é possível enunciar em termos gerais.

4. Os obstáculos socio-culturais ao desenvolvimento

Para chegar ao enunciado dessas condições, convém começarpela anotação de um certo número de obstáculos «socio-culturais»ao desenvolvimento, que muito frequentemente se deparam nospaíses ou regiões de economia retardada ou estagnada.

1.° — Uma sociedade rurat estruiwrada sobre uma repartição d&-masHado a&simétrtfpa ãa propriedade rústica

Um pequeno número de proprietários domina uma fracçãomuito elevada das terras aproveitáveis, enquanto um grandenúmero de agricultores se acumula em superfícies muito escassas.Por exemplo: na América Latina, 1,4% dos proprietários domi-nam 65% das terras, ao passo que 72,6% dispõem de tão-só3,7 %. A exagerada extensão dos grandes1 domínios, garantindo,sem a contrapartida de muito esforço, elevados rendimentos, oca-siona a sua exploração em condições de baixa produtividade; noextremo oposto, a pulverização da propriedade e da exploração daterra torna inviável a utilização dos métodos agrícolas modernos1.Acresce que a existência de um vasto proletariado rural deter-mina, a longo prazo, o empolamento das rendas e a instabilidadedos contratos de arrendamento das terras. Empobrece, assim,o cultivador-rendeiro, priva-se a terra de benfeitorias e grandeparte do rendimento agrícola é canalizada para gastos improdu-tivos dos proprietário®.

2.° — O baixo nível médio de instrução e a «rigidez cultural» dagrande mmsa dos camponeses

Por um lado, as taxas de analfabetismo e de ausência deescolaridade são, por toda a parte, nitidamente mais elevadasnos meios rurais do que nos meios urbanos, atingindo corren-temente entre 50 a 90% da população maior de 10 anos. Poroutro lado, se, como já mais de uma vez notámos, o desenvolvi-mento resulta do esforço colectivo de uma sociedade para se de-senvolver, certa forma de «rigidez cultural», vulgar nas popula-ções rurais de tipo tradicional, torna-as pouco aptas para esseesforço. O conformismo a um nível primitivo ou rudimentar deexistência, a passividade ante as incertezas e contingências natu-rais, a resignação às privações físicas, o apego às formas de pen-sar, de viver e de trabalhar herdadas do passado, a tibieza da

aspiração ao progresso material, a resistência e mesmo a obsti-nada recusa às inovações, uma «racionalidade económica» rudi-mentar, eis algumas manifestações dessa rigidez, que, em grausdiversos, condiciona as atitudes e os comportamentos das popu-lações.

3.0 — xjma estratificação socieconómica caracterizada por fortesdesigualdades na repartição dos rendimentos

A divisão da população numa pequena minoria detentora derendimentos muito elevados, e de uma grande maioria detentorade rendimentos muito baixos (com 1/5 da população dispondo,por exemplo e como parece não ser raro, de cerca de 3/5 do ren-dimento nacional) tem diversos efeitos restritivos sobre as possi-bilidades de desenvolvimento económico. Por um lado, limita dras-ticamente a procura da grande massa, impedindo assim a mon-tagem daquelas actividades produtivas que necessitam, para fun-cionar economicamente, de uma dimensão mínima relativamentegrande. Por outro lado, canaliza para consumos supérfluos umgrande caudal de rendimentos do estrato superior. Além disso,como este estrato é quantitativamente pequeno, a produção demuitos dos artigos que ele procura e consome não encontra basedimensional suficiente para se instalar no próprio país; assim,uma parte muito considerável do alto rendimento da minoria pri-vilegiada é desviada para o exterior, através da compra de bensde consumo; e esta situação tende a perpetuar-se, por habituaçãoao artigo estrangeiro, mesmo quando surgem as correspondentesindústrias nacionais. Finalmente» como a minoria dispõe de rédi-tos que a situam ao nível das classes superiores dos países ricos,uma tendência espontânea, reforçada por contactos externos*,informações e meios publicitários, desenvòlve-se nela para adoptaro «Standard» de vida dessas classes, o que vem a traduzir-se numaagravação da tendência para os «consumos desnecessários» e numasevera restrição, à escala nacional, dos rendimentos poupados edisponíveis para o investimento. Já foi calculado, por exemplo,que no Chile, em 1953, a percentagem do produto nacional brutoinvestida em capital fixo poderia ter sido duplicada (passandode 9 para 18 %), mediante uma redução de 40 % no «consumo des-necessário» das classes proprietárias, redução que, portanto, aindadeixaria larga margem para consumos deste tipo.

4,o — Pequeno número de indivíduos aptos para a direcção de in-dústrias

Como se sabe, nos países desenvolvidos, as «classes médias»ocupam, em extensão e em funções, uma posição díe certo modo

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fundamental. Essa posição permite-lhes funcionar como «reserva-tório social», donde continuamente emergem indivíduos empreen-dedores que, movidos por incentivos económicos e sociais, seerguem a posições de direcção, através das actividades económicas.Nos países de economia retardada, pelo contrário, é vulgar en-contrar-se uma estrutura social fortemente dualista, onde osestratos intermédios constituem uma magra franja «entalada»entre a minoria superior e as grandes massas muito pobres. O re-crutamento de novos dirigentes para as actividades produtivasé, pois, aí mais difícil. Generalizando, pode dizer-se que a enormedistância económica, social e cultural entre as minorias dominan-tes e as camadas inferiores cria um «fosso» só raramente trans-ponível; daí resulta serem muito limitadas a mobilidade socialascensional e as possibilidades de ampliação do escol directivo.Acresce que, dum modo geral, as sociedades são tanto mais pre-dominantemente rurais, quanto mais caracterizadamente retarda-das ou estagnadas. Porém, nas sociedades rurais a riqueza e opoderio concentram-se, mais oui menos intensamente, na classedetentora da grande propriedade fundiária. Ora, esta classe, por-que desfruta já de uma posição de largueza económica e de in-fluência política, é pouco estimulada a lançarsse em iniciativasindustriais, apesar de dispor de recursos para isso; daí que poucosdirigentes industriais produza.

5#o — Persistência de «mentalidade económica» pré-wdmtrial

A «mentalidade económica» revela-se, abertamente, nos há-bitos que comandam a utilização do capital monetário. A persis-tência de hábitos pré-industriais transparece, quer na maior ten-dência das pequenas poupanças particulares para se manterementesouradas, e, portanto, imobilizadas, quer na maior propensãodo capital para as colocações «seguras» mas não raro improdu-tivas (aquisição de propriedades, compra de «papéis», etc), querainda na preferência da iniciativa capitalista pelas actividadescomerciais e especulativas, em detrimento das actividades indus-triais. Este último ponto explica-se, aliás, pela falta de uma «tra-dição industrial», pela escassez de formações técnicas, pela menorcomplexidade e maior facilidade de lucro nas actividades de co-mércio e de especulação.

6.° — Pequleno número de técnicos e de operários especializadose qualificados; escassa difusão da «mentalidade técnica»

A reduzida dimensão da minoria superior, a já mencionadafraqueza das classes médias, a baixa condição económica e cul-tural das massas, o subdesenvolvimento do ensino, a rigidez da

estrutura social traduzida na raridade dos fenómenos de mobi-lidade ascendente — são factores bastantes para determinar umareduzida formação de técnicos. E, de facto, por toda a parte, nospaíses atrasados, a carência de técnicos se faz sentir agudamente.Mas não só de técnicos: também de operários especializados,qualificados e bem adaptados, psicológica e socialmente, às ta-<ref as e às disciplinas da indústria moderna. A mão-de-obra — depróxima ou directa origem rural, desordenadamente deslocada paraos meios urbanos, aqui alojada em condições frequentemente de-gradantes, desprovida de instrução básica e de formação especia-lizada, mal remunerada e sujeita muitas vezes a penosas condi-ções de trabalho — pode ser, e em muitos casos é, abundante;mas a sua qualidade profissional não pode deixar de ser profun-damente afectada. Comparando-a com a mão-de-obra dos paísesdesenvolvidos, o seu aproveitamento pela indústria aparece maisdifícil, a sua capacidade e a sua produtividade surgem menorese a sua instabilidade mostra-se mais acentuada. Mas, para alémdas limitações de técnicos e operários, há uma limitação psicoló-gica, É a própria «mentalidade técnica», a capacidade de pensarem termos técnicos e de utilizar a técnica moderna, que se encontraainda pouco difundida. E não se trata só da técnica material,mas também das técnicas económicas e administrativas — da orga-nização, da direcção, da gestão.

7.° — ImobiMsmo\, instabilidade ou impotência relativa na direcçãopolítica do Estádio

Os países de economia retardada ou estagnada apresentamregimes políticos muito diversos. Mas através dessa diversidade,certas situações do Poder são frequentes. Situações de imobilismo,sob anquilosados regimes feudais ou sob ditaduras estáveis, sus-tentadas por grandes interesses económicos internos ou externos.Situações de instabilidade, sob regimes ditatoriais alternantes,apoiados em precários equilíbrios de forças e temporárias coliga-ções, ou sob certas democracias parlamentares, internamente de-masiado divididas para poderem consentir a formação de gover-nos duráveis. Situações de impotência, mesmo sob regimes está-veis, quando os governos, dependentes ou não dos Parlamentos,são apoiados ou dominados apenas por certos sectores favore-cidos da sociedade, aos quais não podem, portanto, impor medidascontrárias aos seus interesses directos — como reorganizaçõesagrárias» reformas fiscais, redistribuições de rendimentos,, oucontroles antimonopolistas — mesmo quando estas medidas repre-sentam pré^condições indispensáveis ao desenvolvimento. O imo-bilismo, a instabilidade e a impotência na direcção política doEstado constituem obstáculos especialmente graves ao crescimento

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económico dos países atrasados, porque, no actual condiciona-lismo interno e internacional que caracteriza e influencia a situa-ção e a evolução económica destes países, é inconcebível umdesenvolvimento satisfatório que não seja impulsionado e progra-mado pelo Poder Político.

8.° — Inadaptação da estrutura e dos métodos da AdministraçãoPública às eocigências de um desenvolvimento acelerado

A Administração Pública — através da qual sobem até aoPoder Político estudos técnicos dos problemas da governaçãoe descem à execução as decisões tomadas ao nível da direcçãopolítica do Estado — sofre, na maioria dos países atrasados, deum subdesenvolvimento específico. Fraca densidade, diversificaçãoe especialização dos serviços; insuficiências acentuadas dos órgãostécnicos e económicos; deficiências profundas na comunicaçãoe coordenação entre os vários sectores; duplicações de serviçose de competências; favoritismos políticos e pessoais na atribuiçãode lugares; remunerações do funcionalismo muito inferiores àsdas actividades privadas; no® casos mais graves, desprestígio,incompetência e corrupção frequentes — eis alguns dos aspectosmais vulgares! que esse subdesenvolvimento administrativo paten-teia. Mas, mesmo quando a Administração Pública está carregadade elementos competentes, a sua estrutura é ampla e geralmenteracional e a sua honestidade é intocável — podem ocultar-se nelarazões profundas de sub-eficiência. Uma burocracia demasiadocomplexa, concebida para uma Administração com dimensõese responsabilidades muito menores, pode corroer-lhe grande partedas energias e privá-la de muito do seu dinamismo potencial. E asrivalidades e recíprocas independências entre departamentos, quelogicamente deveriam ser coordenados mas que de facto o nãosão, pode constantemente entravar ou limitar o alcance da acçãode cada um desses sectores. Vícios de método como estes não são,de resto, independentes dos vícios na própria direcção políticado Estado, a que acima nos referimos.

9.° — Incapacidade da ^organização socialj no seu conjunto, paraassegurar a eficiente integração de todos os grupos e estra-tos sociais num esforço comum de desenvolvimento

Todas as sociedades funcionam e evolucionam através de umintrincado mecanismo misto de cooperação e de oposição entreos indivíduos e os grupoa Uma das funções básicas da organi-zação social global — com todas as instituições políticas e não--políticas que, em conjunto, abrange — é a de conseguir instaurar,por sobre as competições, os conflitos e as lutas individuais e colec

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tivas, um sistema de cooperação prática, eficaz para o conse-guimento dos objectivos sociais. Mas no3 países de economiaretardada verifica-se» muito frequentemente, alguma das hipótesesseguintes: ou a organização social sião integra e não procuraa cooperação de certos grupos no esforço de desenvolvimento(caso frequente da «esquecida» classe camponesa); ou a orga-nização social impõe a determinadas categorias da população umacooperação «forçada» nesse esforço (caso, por exemplo, de certasditaduras em relação ao operariado); ou a cooperação é cons-tantemente perturbada, ao nível político ou ao nível das activi-dades económicas, por explosões conflituais, resultantes da inca-pacidade do sistema para obstar à frequente acumulação e àdeflagração de «tensões insuportáveis». No primeiro caso, ter-se-áum desenvolvimento inevitavelmente distorcido; no segundo, umdesenvolvimento ocultamente cerceado por subterrâneas insatis-fações; em ambos, após um prazo indeterminado, uma provável)irrupção de tensões longamente contidas; no último, todo o pro-cesso de desenvolvimento pode resultar entravado.

10.° — Resistência de ideologias 0 dputrmas influentes às exigên-cias do desenvótmmento ecmóndco

Neste último dos obstáculos «socio-culturais» ao desenvolvi-mento que nos pareceu vantajoso mencionar, destacam-se sobre-tudo dois elementos, não de todo independentes um do outroaliás: a hesitação espwiticalista ante o progresso material e aàbsolutização doutrinal de certos direitos adquiridos. Ambosexercem, em muitos países, influência relevante.

Chamamos «hesitação espiritualista» à perturbação intelec-tual e às atitudes refractárias ante o progresso técnico e econó-mico, manifestadas por uma parte da minoria intelectual. Atravésdo ensino, da literatura, da imprensa e de certos meios» de comu-nicação verbal, essa «hesitação» propaga-se a sectores mais amplosda população e das camadas cultas, inspirando aí comportamentosdesfavoráveis ou mesmo resistentes ao desenvolvimento. As suasraízes principais facilmente se detectam. O progresso materialé uma espécie de «aventura ambígua», para usar a expressão deum notável intelectual africano: por um lado, abre possibilidadesde promoção humana colectiva, em todos os campos, insuspeitáveisantes do advento da técnica e da indústria modernas; por outro,todavia, tem aparecido sempre associado a um conjunto de situa-ções humanamente «degradantes» e a uma teia de alterações desentido «materialista» nas mentalidades, nos costumes, nas rela-ções e nos comportamentos dos indivíduos. A contradição entreestas duas faces, historicamente iniludíveis, do progresso mate-rial, só por si já explicaria uma «hesitação espiritualista».

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porém, que, em certos países, os indivíduos portadoresou geradores dessa «hesitação» beneficiam, na sociedade tradi-cional, de posições prestigiosas ou confortáveis, que correriamo risco de decair ou perder-se, na hipótese de se verificarem mu-danças profundas no condicionalismo socio-económico geral. Nes-tes casos, o interesse pela conservação das posições ocupadas podeoperar, embora subconsicientemente, no sentido de um reforço dassuas reservas, desconfianças ou recusas ao progreso técnicoe económico.

Finalmente, chamamos «absolutização doutrinal» de direitosadquiridos às justificações ideológicas com que, por exemplo,ignorando a função social do direito de propriedade privada, seprotegem viciadas estruturas de repartição da propriedade, prin-cipalmente da propriedade dos solos, ou se condenam necessáriasintervenções económicas do Estado, mediante hábeis identifica-ções da liberdade com o não-intervencionismo. Tal como a «hesi-tação espiritualista», também essas justificações se propagammuito para além dos círculos onde são elaboradas, indo levantarembaraços intelectuais ao justo e claro deslinde dos problemase situações em causa.

5. A estratégia sócio-cultural do desenvolvimento

O enunciado de obstáculos que aí fica não pretende, comoé óbvio, caracterizar a situação de nenhum país de economiaretardada ou estagnada, em especial.

No entanto, dele se extraem sugestões, que se afiguramesclarecedoras, para o correcto entendimento e a racional defi-nição de uma estratégia sócio-cultural de desenvolivmento. De-certo, essa estratégia terá de formular-se, para cada caso, em fun-ção de um contexto específico, onde certos obstáculos não exis-tirão ou já terão sido ultrapassados, outros terão entrado numprocesso de espontânea eliminação e outros ainda exigirão umesforço deliberadamente orientado para os remover. Mais: docontexto dependerá, não só a relativa premência, mas tambéma mmbilidadG das remoções idealmente desejáveis. De viabilidades,porém, não cuidaremos aqui.

Quais são, por conseguinte, as sugestões a reter? Agrupá--las-emos, não tanto por ordens de problemas, como por camposde aplicação. Mas a disposição sequencial dos pontos que toca-remos nada pretende sugerir acerca da sua importância relativa,

a) Sistema Educacional

A primeira sugestão é a da fundamental relevância do sis-

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tema educacional numa estratégia de desenvolvimento económico.Essa importância projecta-se em quatro domínios distintos:

— o da elevação geral do nível de instrução básica dapopulação;

— o do desenvolvimento e aperfeiçoamento das compe-tências directivas, técnicas e manuais, que requeiramespecialização adequada;

— o da formação e difusão de estruturas mentais acolhe-doras e propulsoras do progresso;

— o da abertura de canais de acesso, entre os estratossócio-económicos inferiores e os estratos sócio-econó-micos superiores.

No primeiro campo, depende do sistema educacional a criaçãodas infra-estruturas culturais mais elementares de uma sociedadeprogressiva, No segundo, dependem dele a atracção, a selecçãoe a preparação — a partir da massa dotada daquela inf ra-estrutura— do escol tecnicamente qualificado da sociedade, nos vários ní-veis de qualificação exigidos pelas tarefas concretas do desenvol-vimento. No terceiro, cabe-lhe grande parte do esforço correctore conversor das estruturas mentais desadaptadas ao progresso.No quarto, finalmente, poderá possibilitar e estimular um movi-mento de mobilidade social ascendente, que atenue a rigidez daestratificação social e amplie a base de recrutamento do escol.

Porém, para que esta quádrupla função possa ser exercidacom elevada eficácia^ certas condições serão necessárias. Designa-damente,

— o desenvolvimento global e sectorial do sistema deveser coordenado é programado, em função de priorida-des económicas e sociais claramente definidas;

—o ensino formal deve ser maleabUizadOj quer pelaabertura de otcessos fáceis de uns para outros níveise tipos de ensino, quer por uma diferenciação de es-colas, de cursos e de programas, que permita acom-panhar toda a variedade dos problemas reais susci-tados numa sociedade em desenvolvimento e transfor-mação;

— adequados sistemas de subsídios ou de remuneraçõesdevem alargar a entrada de indivíduos provenientesdos estratos inferiores nos1 quadros discentes;

— toda uma rede de meios de formação ei treino extra--escolares deve completar e prolongar o sistema deeducação formal, em coordenação com este;

— a cultura geral de nível intermédio deve formar hábi-

tos <te rmoánto objectivo e metódwQ e abranger acompreensão da sociedade, dos seus mecanismos e es-truturas económico-sociais e culturais elementarese dos problemas do homem no mundo contemporâneo;

—. a função docente, em todos os graus, deve ser econó-mica e socialmente prestigiada.

Algumas destas condições do incremento de eficácia no sis-tema educacional são, evidentemente, de realização difícil. Outras,pelo contrário, não oferecerão dificuldade excessiva, quando o sis-tema se encontrar sob a direcção ou o controle do Estado.

b) Sociedade Rv/ral

A segunda sugestão é a da importância basilar de uma rec<M-versão da sociedade rural. Sempre que a propriedade da terra seencontre demasiado concentrada ou demasiado dividida, essareconversão terá de abranger uma remodelação das estruturasfundiárias, donde estas resultam socialmente mais equilibradase economicamente mais eficazes.

Confinando-nos aos aspectos socio-culturais, diremos quea reconversão da sociedade rural interfere em três problemasprincipais:

— o da intensificação dos estímulos à elevação da produ-tividade e da produção agrícolas;

— o da formação, a partir de uma acentuada melhoriada situação económica dos agricultores, de uma classecamponesa susceptível de amplo progresso cultural etécnico;

— o do alargamento das classes secundárias e terciárias,mediante libertação de excedentes agrícolas.

Importa, aliás, sublinhar que a visada reconversão da so-ciedade rural não compreende apenas medidas de parcelamentoou emparcelamento de propriedades. Mesmo sem penetrar nodomínio dos problemas técnico® e económicos, que os especialistasdas questões da terra têm apontado e analisado, deve salientar-seque o que está em causa é provocar uma animação generalizadada sociedade rural, orientando-a para os fins do desenvolvimento.Que essa animação é difícil, ou praticamente inviável à escalanecessária, quando as estruturas fundiárias se acham demasiadoconcentradas ou demasiado dispersas — é o facto donde se temde partir. Mas para que, sobre uma estrutura fundiária já refor-mada e corrigida, as classes rurais saibam organizar o eficaz

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aproveitamento dos recursos territoriais que se pretende e a altaprodutividade que se deseja, é indispensável que outros factoresintervenham.

Deixando de lado os problemas de assistência técnica, de apoiofinanceiro, de comercialização, de infra-estrutura material, depolítica de preços e de legislação agrícola, e limitando-nos, uma vezainda, aos aspectos socio-culturais, únicos aqui em foco, diremosque pelo menos quatro questões básicas se levantam:

— a d o cooperativismo e associativismo agrícola;— a do desenvolvimento da instrução geral e profissio-

nal dos camponeses;— a da mobilização das forças criadoras latentes, para

o desenvolvimento das comunidades locais;— e a d a protecção social da mão-de-obra dos campos.

O fomento das cooperativas, das associações de agricultorese do ensino agrícola; programas metódicos de desenvolvimentocomunitário; a extensão aos campos da política e da acção sociaj—> tudo são medidas de uma política de reconversão da sociedaderural, que vêm enxertar-se sobre a básica reforma das estruturasfundiárias (onde esta é necessária) e integrar-se num esforçoglobal de animação da ruralidade.

c) Organização do Estado

A terceira sugestão é a do interesse que devem merecer, paraalém dos problemas da intervenção do Estado no processo de de-senvolvimento económico, as estrutvms políticas e administrativasque hão-de programar, decidir ou executar essa intervenção.

No atinente às estruturas políticas, parece que o essencialse reduzirá ao seguinte: —a eficácia do Estado como propulsordo desenvolvimento económico será tanto maior,

— quanto mais aberta for a direcção política do Estado,ideológica e institucionalmente, ao acolhimento dassolicitações de desenvolvimento,

— quanto menos perturbada for essa direcção por muta-ções cuja frequência dificulte ou impeça uma eficientesequência temporal na programação e execução dapolítica de desenvolvimento

— e quanto menos dependente ela se encontrar de apoiose reacções unilaterais, cujos interesses se oponhama medidas fundamentais para o desenvolvimento desectores estratégicos.

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Problema fulcral do desenvolvimento, em países de economiaretardada, é pois este da invenção e adopção de instituições1 polí-ticas, nas quais se realize a difícil conciliação dessas três condi-ções primordiais (abertura, estabilidade e independência), entresi e com a fundamental exigência de legitimidade do Poder.

Quanto às estruturas da Administração Pública* afigura-sequQ, partindo já da premissa de uma honestidade geral de pro-cessos, o que importa principalmente reter são os pontos quese seguem:

—•racionalidade do sistema, traduzida em esquemas ló-gicos de organização, especialização de funções, órgãosde estudo e planeamento e ausência de competênciassobrepostas);

—. comunicação e coordenação eficientes entre os váriosramos e serviços;

—-competência técnica do funcionalismo, garantida pormétodos objectivos de recrutamento e satisfatórioestatuto económico e social dos funcionários;

— burocracia simplificada, que não consuma excessivasenergias e não prive a Administração do dinamismoessencial à execução das políticas de incitação e ace-leração do desenvolvimento.

Dentro de certos limites, uma Administração Pública rácio-nalmente adaptada, na sua própria orgânica, nos seus métodos enos seus esquemas de funcionamento, às exigências de objectivi-dade, dinamismo e coerência sincrónica e diacrónica na concepçãoe execução duma política de desenvolvimento, pode constituir umelemento compensador, de forma alguma despiciendo, de certasdeficiências na direcção política do Estado. Sobretudo das defi-ciências provocadas pela instabiMctmte do Poder; mas também, em-bora ao que parece em menor grau, das resultantes de imobilismoou impotência relativa. De facto, a Administração Pública não é,evidentemente, apenas uma máquina executiva, desprovida deiniciativa e influência próprias. Como máquina executiva, ela podeassegurar certa continuidade, através das descontinuidades tem-porais do Poder. Mas, como máquina de concepção que tambémé, e ao abrigo do seui estatuto legal privilegiado, pode representarcomo que um «poder compensador», dentro do próprio Estado,,de outros «poderes» representados nele, ou sobre ele influentes*.Tudo isto, porém, dentro de certos limites — limites mais ou menosestreitos, mais ou menos latos, em função do condicionalismo in-terno e cias circunstâncias exteriores à própria Administração.

39J;

d) Organização Social

A quarta sugestão aponta num sentido não menos funda-mental que o anterior e complementar dele: se importa que asestruturas políticas e administrativas do Estado permitam e de-terminem uma concepção e execução dinâmicas' no comamdo centraldo desenvolvimento, impõe-se também que a população se integre,tão intensa e extensamente quanto possível, no esforço colectivocomandado pelo Poder. Ora, aqui levanta-se um problema de orga-nização geral da sociedade e não só de organização do Estado.

Nas sociedades de tipo soviético, e particularmente naU.R.S.S., este problema foi enfrentado, recorrendo-se:

— à absorção das empresas pelo Estado;— à subordinação de toda a actividade produtiva a pla-

nos imperativos;—à integração dos sindicatos—concebidos como «cor-

reias de transmissão» das directivas estaduais e agen-tes de enquadramento das massas trabalhadoras — naprópria orgânica do Estado;

—à intensificação da participação operária no esforçoprodutivo, ao nível da empresa, mediante a adopçãode métodos de remuneração estimulantes e a colabo-ração dos trabalhadores na organização do trabalho,na gestão do pessoal e nas actividades sociais;

— à duplicação da organização administrativa e econó-mica do Estado por uma paralela máquina ipartidáriamuito poderosa, entre cujas principais funções se contaa de exercer constante vigilância e estimulação sobreos responsáveis pela execução dos planos governa-mentais;

— à aglutinação ideológica da sociedade, através da má-quina partidária, do sistema educacional e das co-municações de massa, monopolizado® pelo binómioEstado-Partidio.

Em sociedades economicamente não-colectivizadas, politica-mente não-totalitárias e ideologicamente não-homogéneas, a solu-ção tem de ser procurada por outras vias — e é mais difícil, To-davia o exemplo soviético tem, no plano teórico, a virtude deressaltar certos aspectos particulares de que o problema geral sereveste, e designadamente os seguintes:

— a relação entre as decisões ao nível da direcção esta-dual e as decisões ao nível da direcção empresarial;

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—« a relação entre o Estado e os Sindicato®, numa pers-pectiva de desenvolvimento e planeamento;

— a relação entre direcção e trabalhadores1, ao nível daempresa;

— a relação entre esforço produtivo e motivações ideo-lógicas.

Com o primeiro destes aspectos se iprende toda a problemá-tica dos métodos de planeamento indicativo, que não cabe nestetexto abordar. Do último, emerge um tema muito específico, queadiante terá de ser retomado. Pixemo-nos, então, nos outros dois.

Num processo de desenvolvimento económico, certas funçõesessenciais requerem a intervenção dos Sindicatos ou só atravésdestes podem ser integralmente preenchidas.

Destaquemos, em especial:

— a função distributiva dos acréscimos de rendimento,operante pelo mecanismo das remunerações directasou mediante ampliação dos recursos e dos esquemasda política redistributiva económica e social;

— a função integradora dos assalariados no esforço dedesenvolvimento, actuada, na base, pela formação pro-fissional e cultural dos trabalhadores e pela incitaçãocolectiva a um esforço aumentado ou mais produtivo,e no cume, pela representação de interesses e pelaparticipação no debate dos objectivos e dos meios dodesenvolvimento económico;

— a função de apoio às reformas de estrutura, exigidaspelo desenvolvimento, mas hostilizadas por grupospoderosos.

Nestas duas últimas funções, a acção sindical será verdadei-ramente participante. Na primeira, traduzir-se-á, mais propria-mente, numa pressão. Pressão irrecusável, no entanto, já porquea evitação de tensões internas insuportáveis implica, no condicio-nalismo característico de uma sociedade actual não-totalitáriae não-encerrada, uma progressiva melhoria na condição econó-mico-social das massas desde as primeiras fases do desenvolvi-mento, já porque o bloqueamento do poder-de-compra das maioriasnão pode deixar de ocasionar em economia de mercado, pelo menosa partir do momento em que as infra-estruturas básicas de umaeconomia moderna estão lançadas, bloqueamento relativo e dis-torsão do próprio processo de desenvolvimento..

Porém, no® contextos de atraso económico, social e cultural,a organização e a acção de sindicatos de trabalhadores aparecedificultada. De modo especial, a organização e a acção sindicais

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aí possíveis são frequentemente desadaptadas e pouco eficientes,no plano das relações — pacíficas ou conflituosas — com as enti-dades patronais. Os assalariados da indústria e dos serviços —ainda fortemente impregnados pela sua directa ou próxima tra-dição rural, portadores por isso de pouco ambiciosos «níveisde aspiração» generalizados e de baixos padrões de instrução,dispersos por estabelecimentos na sua maior parte de mo-destas dimensões, não podendo suportar senão muito mode-radas quotizações e desconhecendo ainda amplamente as vanta-gens da acção colectiva permanente e organizada — não só serevelam dificilmente enquadráveis em organizações disciplinadase englobantes, como além disso se mostram naturalmente inca-pazes de fornecer às organizações quie, apesar de tudo, surgem,um volume de recursos financeiros e um quadro de animadorese dirigentes que, em quantidade e qualidade, bastem para susten-tar, perante as direcções empresariais, um verdadeiro «poder denegociação». Resulta daqui que a acção sindical, em tais condi-ções, tende a orientar-se mais para o Estado do que para as em-presas, assumindo então um cunho mais político que propriamenteprofissional: os Sindicatos procuram obter do Estado o que, porfraqueza própria., não conseguem alcançar das empresas.

Nesta relação com o Estado, os Sindicatos podem, porém,agir, quer como organismos de contestação, quer como organismosde cooperação. Na primeira hiipótese, e indo aos casos-limites,a sua acção pode tornar-se seriamente perturbadora do desenvol-vimento; na segunda, pelo contrário, oferecer-lhe-á uma valiosaprestação. Simplesmente: o carácter predominantemente contes-tativo ou cooperador d>a relação Sindicatos-Estado depende, basi-camente, da relação entre as equipas directivas de um e outromembro do binómio. Se as equipas directivas do Estado inspira-rem confiança às equipas directivas* sindicais e se esforçarempor estabelecer com estas uma colaboração leal e efectiva, nãoé provável que deparem, pelo menos ao fim de certo prazo, umarecusa à cooperação. Além do mais, as minorias directivas sindircais têm a ganhar, na aproximação com o Estado, um reforçode posição ante as empresas—e esta interessa às maiorias sin-dicalizadas, de cuja aceitação as minorias dependem. O problemada organização sindical prende-se, desta forma, ao problema dasinstituições políticas, acima abordado.

Prende-se-lhe, de resto, também por outra via não menosrelevante: a da regulamentação legal das organizações sindicaise das relações colectivas de trabalho. Em princípio, essa regula-mentação, não podendo embora consistir em mero decalque defórmulas inventadas nas sociedades desenvolvidas, pode apesardisso beneficiar amplamente da experiência nestas adquirida.Mas, de facto, o sistema de normas adoptado será uma resultante

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da constelação de influências, concepções, estratégias e solida-riedades actuantes no quadro político. Assim, sob distintos qua-dros ou distintas constelações1 desses factores, ter-se-ão regula-mentações die também distinto conteúdo e significado, que, noscasos extremos, cairão na indisciplina ou levarão, pelo contrário,à asfixia da organização e acção dos Sindicatos.

Quanto à relação entre direcção e trabalhadores, ao nívelda empresa —em certos aspectos reproduz-se aqui a problemáticafocada na relação Estado-Sindicatos, mas com as agravantes doatraso cultural das massas, mais sensível neste plano, da subordi-nação directa de uma das partes à outra e da iniludível concor-rência de interesses entre o Trabalho e o Capital. Aliás, a proble-mática sindical e a das relações na empresa não são independentesuma< da outra: —sobretudo no domínio das fórmulas de coopera-ção na empresa, mas também no dos métodos, de remuneraçãoestimulantes, o seu êxito, como incentivos, depende muito da ati-tude assumida pelos Sindicatos. Seja como for, o exemplo de cer-tos países socialistas e de certas experiências ocidentais obrigaa não menosprezar o alcance, numa estratégia social do desenvol-vimento, da criação de condições, adentro da própria unidade deprodução, que suscitem um interessamento económico e psicológicodo trabalhador no esforço produtiva.

e) Pensamento e Investigação

A quinta e última siugestão salienta a posição e a funçãocruciais, numa estratégia global de desenvolvimento, dos porta-dores e forjadores dos sistemas de ideiías e dos criadores e trans-missores do Conhecimento — numa palavra: daqueles que repre-sentam, em globo, a Reflexão e u Consciência superiores da socie-dade. Não é que o movimento das ideias1 e dos conhecimentos co-mande, só por si, como por vezes se afirma, a evolução da socie-dade. Mas, imbricado noutros movimentos e intimamente depen-dente deles, pode não obstante considerar-se uma verdadeira«força autónoma», operante num vasto campo de forças, ondecom outros dinamismos se defronta e conjuga.

Que contributo estratégico pode o movimento das ideias e dosconhecimentos ofertar ao desenvolvimento? Sem a intenção deo abordar em toda a multiplicidade de aspectos que envolve, des-tacaremos os pontos seguintes:

— a assimilação, selecção e adaptação das inovações téc-nicas e científicas;

— a análise objectiva, no contexto específico do país,das situações sociais, dos problemas de desenvolvia

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mento e das perspectivas, alternativas e condições doprogresso, tanto no domínio estritamente técnico eeconómico, como no campo social, cultural e institu-cional;

— a criação de um ambtente intelectual de objectividadee racionalização no debate dos problemas nacionais;

— o fomento de uma tomada de consciência pública, pelasociedade, da sua própria problemática, especialmentedaquela que afecta camadas sociais que, por si mes-mas, não podem provocar essa consciencialização;

—a difusão de conceitos reinterpretadores, para o con-dicionalismo contemporâneo, dos princípios e valorestradicionais que permanecem válidos, e também de no-vos ideaiâ colectivos;

— a crítica, propagada à escala social, das justificaçõesideológicas de situações criadas cuja reforma se im-ponha;

—. a elaboração e transmissão de um «projecto» de futurosocial, que possa apresentar-se como expressão, nosseus fins e nos seus meios, do interesse conwtm da so-ciedade no tempo presente.

Será necessário acrescentar que a eficácia deste contributopara o desenvolvimento dependerá muito dò circunstanciálismo?A intensidade do esforço intelectual realizado, a extensão do grupoque o realiza, os limitesi de propagação dos seus efeitos, os camposda sua incidência e difusão, evidentemente não dependem apenasdas motivações e vontade próprias daqueles a quem o esforço di-rectamente cabe. Globalmente, dependem mais, com certeza, docondicionalismo que na sociedade espontaneamente os rodeia oudeliberadamente lhes é criado—> condicionalismo que, nuns casosou em certos domínios será mais estimulante e acolhedor, e nou-tros, mais desalentador e refractário.

Decerto, no universo de interferências culturais internacio-nais, em que vivemos, o movimento das ideias e dos conhecimentos!encontra sempre vias e meios de progressão e vai gradualmentesuscitando alterações nos condicionalismos inibidoresu Em cadamomento, porém, é lícito distinguir entre sociedades relativamenteabertas e sociedades relativamente fechadas a esse; movimento, emgeral ou em determinados campos. O grau de abertura rea\ emcada sector do Pensamento e da Investigação, medir-se^á pelaamplitude dos meios de trabalho e de formação, pela intensidadedos estímulos materiais e intelectuais e ainda pela margem deiniciativa e liberdade consentidas.

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6. Conclusão: a eficácia e os valores

Vamos concluir por donde começámos. E também por aondeacabamos de chegar. Partimos de salientar uma dependênciarecíproca entre desenvolvimento e condições de estrutura, culturae organização social. E acabámos! por chegar a uma certa missãodo Pensamento. Convém ligar estes dois pontos, para evitar posi-ções que, unilaterais, se nos afiguram erradas,

O Pensamento projecta-se em efeitos autónomos sobre o de-senvolvimento. Isso faz dele um factor estratégico na propulsãodeste—. ideia iinportante que deve ser cultivada. Mas o Pensa-mento, sendo embora factor do desenvolvimento, não é, senão par-cialmente, em certas das suas aplicações, instrumento do desen-volvimento. Concebê-lo, na sua essência ou totalidade, como ins-trumento levaria a exigir-lhe, muito logicamente decerto, que emtudo e em todo o tempo, sempre fosse eficaz — eficaz para efeitosde aplicação imediata ao desenvolvimento. Contra esta concepção— que dispõe de certa força ou audiência em determinadosi cír-culos intelectuais—, convém reafirmar o valor do Pensamentoineficaz — ou inútil. Primeiro, db Pensamento que amda não éútil, mas um dia o será—ou seja: do Pensamento que aindabusca os seus temas, os seus métodos, as suas directrizes; poroutras palavras: do Pensamento que ainda está na fase de se gerara si mesmo, como novo campo, nova forma, nova estrutura deconhecimento ou de reflexão. Depois, do próprio Pensamento cujautilidade nem sequer se vislumbra—• daquele que parece de todoem todo inútil, aqui e agora, e também no futuro.

Acerca do primeiro, diremos que nenhuma significativa cria-ção útil do Pensamento veio à luz, senão como emergência finalnum processo de mais distante origem, ao longo do qual, muitasvezes, nada de útil era produzido para o momento que ia passando.Sem dúvida, no tempo actual, que tudo na sociedade acelera, tam-bém os prazos de gestação intelectual se abreviam. Não sejamos,efntão, impacientes até ao ponto de pretender suprimi-loa Umramo, uma forma, um tipo novo de Pensamento, só livre deurgências impostas do exterior pode organizar-se e expandir-se,até entrar na fase em que, seguro dos seus métodos e das saiasforças, pode arrojar-se às aventuras da prática.

Acerca do segundo, daquele Pensamento a que nem no futurose antevê utilidade, diremos que a utilidade nem sempre pode serprevista e que das investigações e meditações aparentemente maisinúteis resultaram, frequentemente, os conhecimentos e os siste-mas intelectuais mais eficazes. Uma longa progressão de esforçosjulgados inúteis, só válidos como curiosidades gratuitas, está naorigem de todas as úteis Ciências modernas. Uma longa cadeiade pensamentos ineficazes preparou o eficaz marxismo. E, afinal,