a percepção das emoções musicais na hierarquia modal e g u i r : a escala diatônica é assim...

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A percepção das emoções musicais na Hierarquia Modal Danilo Ramos [email protected] D A –U F P José Eduardo Fornari [email protected] N I C S – UNICAMP Resumo Alguns teóricos e professores de música sugerem a existência de uma Hierarquia Modal linear que organiza os sete modos da escala diatônica maior, do mais “claro” (Lídio) para o mais “escuro” (Lócrio), passando pelos modos Jônio, Mixolídio, Dórico, Eólio e Frígio, respectivamente. Estes profissionais aplicam esta hierarquia baseados no senso comum e no uso intuitivo durante suas práticas musicais. O presente traba- lho procura investigar a ausência ou a existência desta Hierarquia Modal. Para tal, este estudo foi realizado em duas etapas: análise computacional de arquivos digitais e um experimento, envolvendo tarefas de escuta musical. O material empregado con- sistiu de 7 peças musicais instrumentais, para piano solo, com melodia e acompa- nhamento. Cada peça foi transposta e executada nos 7 modos da escala diatônica, perfazendo assim 49 gravações de aproximadamente 20 segundos de duração cada uma. A primeira análise do estudo consistiu do uso de oito algoritmos de descritores acústicos para a análise das peças. Cada descritor realizou a predição de um aspecto cognitivo da percepção musical humana, tal como: pulsação rítmica, complexidade harmônica, etc. A segunda análise consistiu da realização de um experimento envol- vendo 36 ouvintes, que realizam tarefas de escuta musical e preenchimento de es- calas de diferencial semântico (alcance 0-10) após cada escuta, com as locuções Alegria, Tristeza, Serenidade e Raiva. Em ambas as análises, o teste ANOVA foi em- pregado para comparar os valores obtidos para cada modo em relação à cada medida utilizada. Os resultados apontam para a existência da Hierarquia Modal linear, que parece estar relacionada aos níveis de Complexidade Harmônica e de Valência Afetiva encontrados para cada modo. A existência dessa hierarquia parece ser governada por processos psicológicos perceptuais relacionados a modificações presentes na estrutura intervalar de cada modo. Introdução As escalas musicais são baseadas na percepção de freqüência da componente funda- mental de sons aproximadamente periódicos (sons melódicos). Esta percepção é cha- mada de altura musical, ou pitch. Sons que não despertam tal percepção são algumas vezes chamados de sons percussivos (sem altura denida), existentes na produção sonora de certos tambores e chocalhos. As escalas musicais foram constituídas para representar sons melódicos, em distintos intervalos de freqüências, chamados de notas musicais. Existe uma grande similaridade de altura entre notas distanciadas 35

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A percepção das emoções musicais na Hierarquia ModalDanilo Ramos

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José Eduardo [email protected]

N/0-!( I'%!$)+*0+"-+'#$ )! C(&1'+0#23( S('($# – UNICAMP

ResumoAlguns teóricos e professores de música sugerem a existência de uma HierarquiaModal linear que organiza os sete modos da escala diatônica maior, do mais “claro”(Lídio) para o mais “escuro” (Lócrio), passando pelos modos Jônio, Mixolídio, Dórico,Eólio e Frígio, respectivamente. Estes profissionais aplicam esta hierarquia baseadosno senso comum e no uso intuitivo durante suas práticas musicais. O presente traba-lho procura investigar a ausência ou a existência desta Hierarquia Modal. Para tal,este estudo foi realizado em duas etapas: análise computacional de arquivos digitaise um experimento, envolvendo tarefas de escuta musical. O material empregado con-sistiu de 7 peças musicais instrumentais, para piano solo, com melodia e acompa-nhamento. Cada peça foi transposta e executada nos 7 modos da escala diatônica,perfazendo assim 49 gravações de aproximadamente 20 segundos de duração cadauma. A primeira análise do estudo consistiu do uso de oito algoritmos de descritoresacústicos para a análise das peças. Cada descritor realizou a predição de um aspectocognitivo da percepção musical humana, tal como: pulsação rítmica, complexidadeharmônica, etc. A segunda análise consistiu da realização de um experimento envol-vendo 36 ouvintes, que realizam tarefas de escuta musical e preenchimento de es-calas de diferencial semântico (alcance 0-10) após cada escuta, com as locuçõesAlegria, Tristeza, Serenidade e Raiva. Em ambas as análises, o teste ANOVA foi em-pregado para comparar os valores obtidos para cada modo em relação à cada medidautilizada. Os resultados apontam para a existência da Hierarquia Modal linear, queparece estar relacionada aos níveis de Complexidade Harmônica e de Valência Afetivaencontrados para cada modo. A existência dessa hierarquia parece ser governada porprocessos psicológicos perceptuais relacionados a modificações presentes na estruturaintervalar de cada modo.

IntroduçãoAs escalas musicais são baseadas na percepção de freqüência da componente funda-mental de sons aproximadamente periódicos (sons melódicos). Esta percepção é cha-mada de altura musical, ou pitch. Sons que não despertam tal percepção são algumasvezes chamados de sons percussivos (sem altura de!nida), existentes na produçãosonora de certos tambores e chocalhos. As escalas musicais foram constituídas pararepresentar sons melódicos, em distintos intervalos de freqüências, chamados denotas musicais. Existe uma grande similaridade de altura entre notas distanciadas

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por intervalos múltiplos da original: Altura (f ) ~Altura (2.i.f) (1)

onde i é um número inteiro.Este intervalo é chamado de oitava. Exempli!cando, sendo n a Altura da nota geradapor uma corda retesada (como as cordas de um violão), a sua primeira oitava superior2.n pode ser gerada reduzindo a extensão dessa corda à metade. Do mesmo modo,se dobrarmos a extensão dessa corda, teremos a sua primeira oitava inferior 2-1.n .Isto é facilmente exempli!cado num instrumento de cordas, como o violão. Pressio-nando-se o intervalo entre os trastes localizados na metade da extensão de qualquercorda, produz-se uma nova nota, cuja altura é uma oitava acima da nota original-mente gerada pela corda solta. Uma vez que notas espaçadas por intervalos de oitavaapresentam similaridade da percepção de altura, as escalas tendem a se organizar emintervalos que são subdivisões da oitava. Assim, se dividirmos a Extensão E dessacorda hipotética pela metade 2-1.E, tem-se a geração da primeira oitava da nota ori-ginal.

E → Altura (f) (2) 2-1.E → Altura (2.f)

Se a extensão E da corda for reduzida em um terço, (⅔).E, tem-se a geração do inter-valo conhecido por quinta. Em termos da percepção de altura musical, a quinta equi-vale à metade da oitava.

E → Altura (f) (3)E.(⅔) → Altura( (⅔).f )

Por extensão, é possível criar uma escala cujos intervalos entre as notas sejam cons-tituídos por sucessivas quintas (conhecido em música, como o Ciclo das Quintas), atéque se aproximar de uma oitava superior:

Altura ((3⁄2)n.f ) ~ Altura (2m.f) (4)onde: n e m são números inteiros.

Para n = 12, tem-se:(3⁄2)12 ~ 129,746 27 = 128 (5)129,746 / 128 = 1,0136 ~ 23 cents

Esta é a base da escala Pitagórica, ou justaposta. Após "# notas, a escala se aproximada sétima oitava superior. Se esta progressão coincidisse com uma oitava, o ciclo seriafechado, formando, assim uma escala de "# notas, numa altura múltipla da altura ini-cial. No entanto, o Ciclo da Quintas nunca coincide com uma oitava superior da alturainicial. Visando compensar essa aproximação, foi criada a Escala Cromática Tempe-rada, com "# notas igualmente espaçadas em intervalos de freqüência c = 2(1⁄12). Ointervalo de altura entre duas notas n e c.n é chamado de semitom (S). O intervaloentre n e c2.n é equivalente ao dobro de S, e é chamado de tom (T). Os outros inter-valos superiores são compostos pela agregação de Ss e Ts, conforme é mostrado a

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seguir:

A Escala Diatônica é assim constituída, por ! notas da escala cromática, com inter-valos que estão descritos acima, em negrito, e fechando o ciclo na primeira oitava superior.

T T S T T T S (7)

Os Modos da escala diatônica são ordenados nas seguintes seqüências de intervalos:

Pode-se notar que a ordenação de intervalos dos modos difere apenas em desloca-mento circular à esquerda, da seqüência original de tons e semitons da escala diatô-nica. Estes modos são divididos entre modos maiores e modos menores. Os primeirospossuem intervalos de terças maiores (T+T), enquanto que os últimos possuem in-

Intervalo Estrutura (6)Segunda Menor: S

Segunda Maior: T

Terça Menor: T+S

Terça Maior: T+T

Quarta (justa): T+T+S

Quarta AumentadaQuinta Diminuta (Trítono):

T+T+T

Quinta (justa): T+T+S+T

Sexta Menor: T+T+S+T+S

Sexta Maior: T+T+S+T+T

Sétima Menor: T+T+S+T+T+S

Sétima Maior: T+T+S+T+T+T

Oitava: T+T+S+T+T+T+S

Jônio T T S T T T S (8)Dórico T S T T T S T

Frígio S T T T S T T

Lídio T T T S T T S

Mixolídio T T S T T S T

Eólio T S T T S T T

Lócrio S T T S T T T

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tervalos de terça menores (T+S). São assim considerados os modos maiores: Jônio,Lídio e Mixolídio; e os modos menores: Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio. Uma parte sig-ni!cativa de toda a produção musical do ocidente foi construída sobre a escala dia-tônica e os seus sete modos (Grout & Palisca "##$). O modo é um dos principaisparâmetros de estrutura musical que tem sido utilizado no estudo das emoções de-sencadeadas pela música (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin %&&"). Diversosestudos sugerem que modos maiores (Jônio, Lídio e Mixolídio) estão associados aemoções positivas, como alegria ou serenidade, enquanto que os modos menores(Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio) associam-se a emoções negativas, como tristeza, medoou raiva (Ramos, Bueno & Bigand, no prelo). Alguns teóricos a!rmam que isto sedeve à estrutura intervalar da escala musical que, para cada modo, representa notascom intervalos de altura distintos em relação à primeira nota da escala. Isto desper-taria a percepção de um aspecto cognitivo musical, descrito metaforicamente por

“clareza”. Esta percepção representaria as escalas modais numa ordenação entre o Obs-curo e o Claro. Neste contexto, os modos maiores seriam mais claros e os modos me-nores, mais obscuros (Wisnik %&&$). Além disso, os modos teriam distintos graus de

“clareza”, o que resultaria numa “ordem de clareza dos modos”. Indo do mais claro(maior) ao mais obscuro (menor), seria possível obter a seguinte ordenação: Lídio(maior com quarto grau aumentado), Jônio (maior natural), Mixolídio (maior comsétimo grau menor), Dórico (menor com sexto grau maior), Eólio (menor natural),Frígio (menor com segundo grau menor) e Lócrio (menor com segundo grau menore quinto grau diminuído). A esta ordenação é atribuído o nome de Hierarquia Modal.Até onde sabemos, a Hierarquia Modal tem sido demonstrada apenas de modo in-tuitivo. Não se sabe ao certo quais são os aspectos musicais componentes para a per-cepção de “clareza musical”. No entanto, é possível supor que esta “clareza musical”esteja associada à percepção musical emotiva. As emoções associadas à música têmsido estudadas por diversos pesquisadores no campo da Cognição Musical, tais comoos descritos em Sloboda (%&&"). Existem três modelos principais de estudo das emo-ções musicais: Categórico, Processo Componente e Dimensional. O Modelo Categó-rico, originado dos estudos de Ekman ("##%), trata a emoção evocada ou constatadana música por meio da catalogação das emoções básicas em léxicos irredutíveis, comoAlegria, Tristeza, Melancolia, etc. (Juslin %&&'). O Modelo do Processo Componente(Scherer %&&") descreve a constatação da emoção musical como atrelada também àsituação de sua ocorrência, bem como ao estado emocional do ouvinte no momentoda escuta musical. O Modelo Dimensional (Russell %&&') postula que todas as emo-ções musicais podem ser descritas por um sistema de coordenadas cartesianas, cons-tituído por dimensões emocionais. Este modelo é chamado de Modelo Circumplexodo Afeto Musical (Laukka %&&(), sendo composto por duas dimensões emocionais:arousal (estado de excitação !siológica, que pode ser alto ou baixo) e valência (valorhedônico, que pode ser positiva ou negativa). Russel ("#)&) a!rma que por meio des-sas duas dimensões, um amplo espectro de emoções musicais pode ser determinadopor meio das combinações possíveis entre estas duas dimensões (estados de ânimo

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com arousal alto e valência positiva, como Alegria, Animação, Energia, etc.; estadosde ânimo com arousal baixo e valência positiva, como Serenidade, Amor, Ternura,Religiosidade, etc.; estados de ânimo com arousal alto e valência negativa, como Medo,Raiva, Desespero, etc; e !nalmente estados de ânimo com arousal baixo e valêncianegativa, como Tristeza, Melancolia, Amargura, etc.).Diversos modelos computacionais têm sido desenvolvidos para a análise de aspectosmusicais que podem ser ilustrados pelas dimensões do Modelo Circumplexo. Estesmodelos são conhecidos pela sigla “"#$” (Music Information Retrieval). Chama-seaqui de Descritor Acústico um modelo computacional que adequadamente predizum aspecto musical. Descritores são catalogados entre baixo-nível – os descritorespsicoacústicos — e alto-nível — os descritores contextuais (Fornari %&&'). Existematualmente diversos estudos de "#$, tais como (Tzanetaki %&&%), que desenvolveuum modelo computacional para classi!cação de gêneros musicais. Em um estudo de-senvolvido por Leman (%&&(), descritores acústicos foram utilizados no estudo dosaspectos gestuais relacionados à emoção musical. Wu (%&&)) e Gomez (%&&() utili-zaram descritores acústicos como o aspecto musical “tonalidade”, para a catalogaçãoautomática de arquivos musicais de áudio digital. No estudo do desenvolvimento dinâmico das emoções musicais, Schubert (*''') uti-lizou o Modelo Circumplexo para medir continuamente as emoções constatadas aolongo do tempo por um grupo de ouvintes sobre algumas peças do repertório eruditoocidental. O autor desenvolveu dois modelos lineares para cada peça musical anali-sada. Cada modelo era composto por diversos descritores acústicos e deveriam pre-dizer as duas dimensões do Modelo Circumplexo — arousal e valência afetiva — paracada peça, em contraste à medição comportamental feita pelo grupo de ouvintes. Pos-teriormente, Korhonen (%&&)) utilizou estes mesmos dados comportamentais paradesenvolver e validar dois modelos gerais das dimensões arousal e valência. Ao con-trário de Schubert (*'''), Korhonen pretendia organizar um modelo para cada di-mensão emocional (arousal e valência) para todas as peças musicais analisadas.Os estudos de Schubert (*''') e Korhonen (%&&)) demonstraram que seus modeloscomputacionais foram capazes de prever a medida comportamental da dimensão dearousal com um alto grau de correlação aos dados comportamentais. Estes estudosmostram que o arousal está bastante correlacionado ao loudness do arquivo de áudiomusical, o que pode muitas vezes ser adequadamente representado por meio de umdescritor de baixo-nível, como $"+ (Root Mean Square). No entanto, a dimensão Va-lência não foi adequadamente prevista pelos modelos destes estudos. Uma hipótesepara esta não previsão pode ser devido ao fato de que tais modelos utilizaram apenasdescritores psicoacústicos, que costumam não ser su!cientes para descrever aspectosmais contextuais da música, tal como Valência.

ObjetivosO objetivo geral do presente trabalho é demonstrar a existência (até o presente mo-mento de caráter intuitivo) de uma Hierarquia Modal no processo de percepção das

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emoções musicais. Os objetivos especí!cos aqui propostos se resumem a veri!car aocorrência da Hierarquia Modal por meio do uso de descritores acústicos de alto-nível e por meio de respostas emocionais de ouvintes brasileiros não músicos a trechosmusicais de "# segundos de duração compostos nos sete modos da Hierarquia Modal(Lídio, Jônio, Mixolídio, Dórico, Eólio, Frígio e Lócrio).

MétodoForam realizadas diversas análises por meio de modelos computacionais de descri-tores acústicos de alto-nível: Os descritores utilizados são: $) Articulação, ") Brilho,%) Complexidade harmônica, &) Densidade de eventos musicais, ') Claridade tonal,() Caracterização do modo, )) Clareza do pulso rítmico e *) Repetição de eventos.(Fornari "##*).

!. Os Descritores Acú"icos!.! Articulação

Este descritor visa detectar a forma da articulação da melodia de uma dado trechomusical. Em música, a articulação da melodia costuma se estender entre staccato, oudestacada – onde cada nota é tocada destacadamente, com uma clara pausa temporalentre uma nota e outra – e legato, onde as notas da melodia são tocadas sem qualquerpausa entre elas, ou seja, ligadas seqüencialmente uma à outra. Sua escala estende-secontinuamente entre zero (staccato) a um (legato).

!." BrilhoO descritor de brilho prediz a percepção de brilho do material sonoro de um trechomusical. Apesar de fortemente in+uenciado pela presença de componentes parciaisde alta freqüência no espectro musical, outros fatores também podem contribuir paraintensi!car este aspecto, tal como a presença de ataques, articulação destacada oumesmo a ausência de parciais em outras regiões do espectro sonoro. A escala destedescritor varia continuamente entre zero (opaco) a um (brilhante).

!.# Complexidade harmônicaA noção de complexidade musical está relacionada — pela teoria da informação — àentropia, ou grau de desorganização da informação musical. No entanto, este descritormede a percepção desta entropia, e não a entropia em si. Por exemplo, se um dadotrecho musical é extremamente desorganizado ou complexo, a audição não é capazde identi!car tal complexidade e este será percebido como acusticamente simples(não complexo). Tem-se assim que encontrar o ponto máximo de complexidade mu-sical que a cognição musical humana é capaz de assimilar. Este descritor trata apenasda complexidade da harmonia musical, relevando outras complexidades, como a me-lódica ou rítmica. A escala deste descritor é contínua e varia entre zero (ausência decomplexidade harmônica) e um (presença de complexidade harmônica).

!.$ Densidade de Eventos MusicaisEste descritor procura medir a percepção de uma densidade de eventos musicais de

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qualquer natureza (melódica, harmônica e rítmica), desde que possíveis de serempercebidos como eventos distintos. Do mesmo modo que no caso da percepção decomplexidade harmônica, aqui é levada em consideração a capacidade máxima depercepção de eventos simultâneos, que a mente musical é capaz de assimilar; e a partirda qual, o aumento do número de eventos musicais pode signi!car a diminuição dapercepção de eventos simultâneos. A escala deste descritor varia continuamente entrezero (percepção da presença de um único evento musical) e um (percepção da pre-sença de uma grande quantidade de eventos simultâneos).

!." Claridade TonalEste descritor mede o grau de tonalidade de um dado trecho musical, não importandoqual a tonalidade do trecho musical, mas apenas quão clara é a percepção de um cen-tro tonal. A escala deste descritor varia continuamente entre zero (atonal) e um (tonal).As regiões intermediárias dessa escala (próximas de ",#) tendem a concentrar os tre-chos musicais com muitas mudanças tonais, acordes dúbios ou cromatismos.

!.# Caracterização de ModoEste descritor procura predizer o aspecto musical relacionado à percepção da distin-ção entre modos Maiores e Menores. Conforme explicado anteriormente, os modosdiatônicos dividem-se entre modos maiores e menores, e a hierarquia modal deter-minaria uma ordenação dos $ modos entre maior a menor. A escala deste descritorvaria continuamente entre zero (modo menor) a um (modo maior). Os valores in-termediários da medida deste descritor podem se referir à modos com menor graude polarização neste conceito, bem como à variações tonais encontradas no trechomusical analisado.

!.$ Clareza do Pulso RítmicoO pulso musical é aqui entendido como a %utuação sonora aproximadamente perió-dica e perceptível numa freqüência sub-tona; abaixo de &"Hz. Tal pulso pode ser dequalquer natureza sonora, desde que seja interpretado pela mente musical como pulso.A escala deste descritor é continua, estendendo-se dentre zero (ausência de pulso) aum (clara presença de pulso).

!.% RepetiçãoEste descritor trata de expressar a similaridade de trechos temporais. Esta repetiçãopode ser de natureza melódica, harmônica ou rítmica, mesmo que transcenda de na-tureza, ou timbre, durante a repetição. O importante não é a quantidade ou freqüênciadas repetições, mas a claridade da percepção da repetição de eventos musicais. A es-cala deste descritor varia continuamente entre zero (ausência de repetição) a um(clara presença de repetição).

!. A Análise ComportamentalParticipantes: &' estudantes universitários de um curso de graduação em Filoso!a,sendo (# homens e () mulheres, com idades entre (* e &+ anos.

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Materiais: o estudo foi realizado numa sala silenciosa, com um computador conectadoa um fone de ouvido. A compilação dos dados foi feita por meio do programa e-prime.Os participantes realizaram tarefas de julgamento emocional de sete composiçõesmusicais, sendo cada uma originalmente construída em um dos sete modos da Hie-rarquia Modal e depois transpostas para os demais modos, totalizando !" trechos.Todas as músicas apresentadas tinham #$ segundos de duração e foram retiradas docancioneiro folclórico brasileiro. Procedimento: a tarefa dos participantes consistia em escutar cada composição mu-sical e preencher escalas de diferencial semântico (alcance $-%$), referentes às emo-ções Alegria, Serenidade, Tristeza e Raiva após cada escuta. Tanto os trechos musicaisquanto as escalas de diferencial semântico eram apresentados em ordem aleatóriaentre os participantes.Análise dos dados: o teste &'()& foi empregado para comparar os valores de percep-ção afetiva obtidos por meio das escalas de diferencial semântico empregadas (designexperimental: * (músicas) x * (modos). Após a compilação de todos os dados, umvalor de Valência Afetiva foi calculado em relação às respostas emocionais de cadaparticipante, para cada trecho musical apresentado. Este valor foi obtido pela fór-mula:

Valência afetiva = (ALE + SER) / (TRI + RAI) (9)onde: &+, = Respostas emocionais para Alegria

-,. = Respostas emocionais para Serenidade/.0 = Respostas emocionais para Tristeza.&0 = Respostas emocionais para Raiva

Este procedimento já foi bastante utilizado em estudos envolvendo a conversão dedados provenientes de escalas de diferencial semântico para valores de Valência Afe-tiva (Bigand, Madurel, Marozeau & Dacquet #$$1; Ramos, Bueno & Bigand, no prelo).Estes valores de Valência Afetiva foram contrastados e correlacionados com os valoresdos dados obtidos pelos descritores acústicos, no sentido a veri2car quais foram osaspectos musicais de maior relevância para a percepção da Hierarquia Modal.

ResultadosOs resultados computacionais revelaram diferenças estatísticas para dois

dos descritores utilizados: Complexidade Harmônica (F=#,"%#; p=$,$#"3) e Clarezade Modo (F=4,%*4; p=$,$%). A Tabela % ilustra as médias e os desvios-padrão (emparêntese) obtidos pelos resultados dos dois descritores acústicos acima mencionadose também pelas respostas emocionais dos participantes, para cada modo musical em-pregado. A ordem de apresentação dos modos segue a Hierarquia Modal:

Tabela 1 – Resultados obtidos pelos descritores acústicos “Complexidade Harmônica” e“Clareza do Modo” e pelas respostas emocionais dos ouvintes

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para cada modo musical analisado:

Os resultados indicam que, de um modo geral, os maiores índices de ComplexidadeHarmônica estiveram relacionados aos extremos da Hierarquia Modal (modos Lídioe Lócrio). Assim, o modo Lídio obteve níveis mais altos do que os modos Jônio(p=!,!"), Dórico (p=!,!#) e Eólio (p=!,!$) e o modo Lócrio obteve índices mais altosdo que os modos Jônio (p=!,!#), Dórico (p=!,!!%) e Eólio (p=!,!$). Para a Clareza do Modo, os modos maiores obtiveram índices mais altos do que osmodos menores (com exceção do modo Lócrio), sendo que o modo Jônio obteve ín-dices mais altos do que o modo Eólio (p=!,!#). O modo Lídio obteve índices maisaltos do que o modo Dórico (p=!,!&%), Eólio (p=!,!!') e Frígio (p=!,!"). O modoMixolídio obteve índices mais altos do que os modos Dórico (p=!,!$), Eólio(p=!,!!$) e Frígio (p=!,!$). Não foram encontradas diferenças estatísticas entre osmodos maiores e menores entre si.As respostas emocionais dos ouvintes mostraram que modos maiores (Lídio, Jônio eMixolídio) obtiveram índices de Valência Afetiva similares. Os modos maiores obti-veram índices de Valência Afetiva superiores aos modos menores (Dórico, Eólio, Frí-gio e Lócrio; F=$,()'; p=!,!#). Os modos menores obtiveram diferentes índices deValência Afetiva, sendo atribuído ao modo Dórico um índice maior do que os modosEólio (p=!,!#) e Frígio (p=!,!!#). O modo Lócrio obteve índice mais baixo que osmodos Dórico (p=!,!!#), Eólio (p=!,!#) e Frígio (p=!,!"), respectivamente.

DiscussãoOs dados obtidos no presente trabalho parecem dar conta de explicar a existência deuma Hierarquia Modal Linear, que parece governar os processos psicológicos envol-vidos na percepção emocional de trechos musicais no contexto ocidental, desmisti-*cando assim, o uso hipotético e intuitivo acerca dessa questão. A existência dessahierarquia pôde ser comprovada por meio dos dados computacionais e comporta-mentais.Com relação aos dados computacionais, o descritor “Complexidade Harmônica” pa-rece reconhecer a existência da Hierarquia Modal. As análises estatísticas feitas a par-

Complexidade Harmônica Clareza do Modo Valência AfetivaLídio !,&" (!,"") !,%# (#,#') ",+% (",$")

Jônio !,&$ (!,$)) !,%! (#,!&) &,'! (",%&)

Mixolídio !,&$ (!,$)) !,%" (#,$#) ",)' (",%))

Dórico !,&# (!,$%) !,&$ (#,&%) -!,"+ (",!")

Eólio !,&# (!,$') !,"( (#,#() -","' ($,%+)Frígio !,&" (!,"!) !,&# (#,!() -","& ($,'%)

Lócrio !,&% (!,&() !,+) (#,#+) -$,'' ($,%%)

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tir dos valores encontrados por este descritor acústico apontam diferenças estatísticasobtidas entre os modos situados nos dois extremos da hierarquia (Lídio, o mais claroe Lócrio, o mais escuro) e todos os outros modos. Coincidentemente, estes dois modossão os únicos que têm um intervalo de trítono (três tons) formado em relação às suasnotas de referência (fundamentais). No decorrer da História da Música Tonal Oci-dental, este intervalo foi classi!cado como o intervalo do diabo, em música, catego-rizado por ouvintes, compositores e críticos musicais das diferentes épocas como umintervalo altamente dissonante, que deveria ser severamente evitado, para que a mú-sica não se tornasse menos bela (Grout & Palisca "##$). A ocorrência deste intervalomusical justamente nos dois extremos da Hierarquia Modal (início e !m) sugere aexistência de um “ciclo de dissonâncias” em relação às notas de referência de cadamodo presente na Hierarquia. Assim, ela se iniciaria com um modo dissonante (oLídio), tornando-se consonante no decorrer do movimento hierárquico (passandopara todos os outros modos), para tornar-se dissonante novamente no !nal da hie-rarquia (com o modo Lócrio). Este “ciclo de dissonâncias” pôde ser veri!cado pormeio do descritor “Complexidade Harmônica”, que categorizou os modos com inter-valos dissonantes como modos mais complexos do que os modos envolvendo inter-valos consonantes em relação à nota de referência de cada modo. Portanto, estedescritor con!rma a existência de uma Hierarquia Modal governada por processospsicológicos relacionados à percepção de “quão dissonante” é o modo.As respostas emocionais obtidas no presente estudo foram bastante consistentes comrespostas emocionais obtidas em outros estudos envolvendo a in%uência do modomusical sobre a percepção das emoções durante tarefas de escuta musical, no qualmodos menores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetiva negativos,enquanto modos maiores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetivapositivos (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin &''"; Webster & Weir &''(;Ramos, Bueno & Bigand, no prelo). Apesar dessa convergência, a principal contribuição deste estudo está do fato de quea cognição do modo musical não se resume simplesmente à distinção Maior / Menor.Mais do que isso, foram encontradas dados que comprovam que uma pequena dife-rença na estrutura escalar pode modular as respostas emocionais à música, especial-mente às estruturas escalares dos modos menores. Esta constatação pode sercomprovada por meio de uma análise da Tabela " do presente estudo, no qual dife-renças estatísticas foram obtidas na análise dos níveis de Valência Afetiva dos modosmenores entre si. No presente estudo, houve uma relação direta e gradual entre os níveis de ValênciaAfetiva encontrados para estes modos e a linearidade da Hierarquia Modal: o modoDórico (classi!cado intuitivamente como o modo menos “escuro”) foi àquele perce-bido com um grau de Valência Afetiva mais próximo dos modos maiores; os modosEólio e Frígio obtiveram níveis de Valência Afetiva parecidos, enquanto que o modoLócrio (considerado intuitivamente como o “mais escuro”) obteve os menores índicesde Valência Afetiva. Neste sentido, o intervalo de terças (maior nos modos maiores /

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menor nos modos menores) parece não ser o único intervalo que determina a ex-pressão emocional do modo musical. Por exemplo, os modos Dórico e Eólio se dife-rem pelo intervalo de sexta (maior no primeiro modo e menor no último). Estasimples diferença foi responsável pela percepção de níveis de Valência Afetiva dife-renciados entre um e outro modo. Estes resultados são consistentes com os resultadosobtidos por Ramos (!""!), no qual mudanças súbitas na estrutura escalar tambémforam responsáveis por diferenças na percepção emocional dos ouvintes. Estas constatações sugerem que o estabelecido conceito “Modo Maior Alegre / ModoMenor Triste” bastante consolidado na literatura pode ser considerado meramentecomo um caso especí#co de um processo mais geral que governa a percepção dasemoções musicais. Como mencionado acima, os modos musicais são organizadospor uma seqüência formada por tons e semitons. Uma das principais diferenças entrecada modo se resume à sua nota de referência, que servirá de base para a sua organi-zação intervalar. Assim, a percepção das emoções musicais esteve relacionada à per-cepção da nota de partida em relação a pontos de referência cognitivos especí#cos(intervalos tonais ou semitonais) que diferem entre os modos. A importância de pontos de referência cognitivos especí#cos para a música tonal oci-dental foi investigado sistematicamente por Krumhansl ($%%&), no qual a autora es-tabeleceu que mudanças em pontos de referência cognitivos causados por alteraçõesna tonalidade de diferentes músicas estão associadas a diferenças de efeitos expres-sivos na música tonal. O presente estudo con#rma esta constatação, mostrando quea modi#cação da nota de referência de um dado conjunto de notas (mudanças nomodo) é su#ciente para modular julgamentos emocionais.A conclusão deste estudo é que existe uma Hierarquia Modal linear, que vai do modoLídio (mais claro) ao modo Lócrio (mais escuro), passando pelos modos Jônio, Mi-xolídio, Dórico, Eólio e Frígio, que organiza a percepção emocional dos modos emrelação aos níveis de complexidade harmônica (obtidos por meio de um descritoracústico de alto-nível) e níveis de valência afetiva desencadeados em tarefas de escutamusical (obtidos por meio de dados comportamentais envolvendo respostas emocio-nais à música).

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