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A PEDAGOGIZAÇÃO DO CINEMA. Carlos Eduardo Lira Silva 1 Universidade Federal Do Pará I - Eu tenho uma pequena história para contar... Era uma manhã nublada, dessas que mal o sol dá as caras, quando Manoel, que se encontrava ligeiramente atrasado para escola, entrou na sala de aula carregando seus livros e cadernos repletos de palavras e textos que muitas vezes não suscitavam interesse nos alunos. Ao observar a professora de ciências agachada próximo a tomada Manoel perguntou: - O que vamos ter de bom na aula hoje, Teacher!? - Primeiramente, bom dia! - Bom dia! O que vamos ter hoje? - Insistiu. - Vamos ver um filme. A turma se animou diante da resposta da professora de ciências. Uma estudante, que estava distraída lendo um romance juvenil do Isaac Asimov, despertada pela resposta da professora questionou subitamente: - Que tipo de filme a professora vai passar? - Um que faça vocês pensarem sobre os impactos ambientais provocados pela ação do homem na natureza. Então um estudante, sentado ao fundo da sala, perguntou fazendo caras e bocas: - Professora, é filme normal ou é outro daqueles documentários sonolentos sobre natureza? - Ficção, meu filho. Ficção! 1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemáticas, cursado no Instituto de Educação Matemática e Científica (IEMCI) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor de biologia da Secretaria Executiva de Educação do Estado do Pará (SEDUC).

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A PEDAGOGIZAÇÃO DO CINEMA.

Carlos Eduardo Lira Silva1

Universidade Federal Do Pará

I - Eu tenho uma pequena história para contar...

Era uma manhã nublada, dessas que mal o sol dá as caras, quando Manoel, que se

encontrava ligeiramente atrasado para escola, entrou na sala de aula carregando seus livros e

cadernos repletos de palavras e textos que muitas vezes não suscitavam interesse nos alunos.

Ao observar a professora de ciências agachada próximo a tomada Manoel perguntou:

- O que vamos ter de bom na aula hoje, Teacher!?

- Primeiramente, bom dia!

- Bom dia! O que vamos ter hoje? - Insistiu.

- Vamos ver um filme.

A turma se animou diante da resposta da professora de ciências. Uma estudante, que

estava distraída lendo um romance juvenil do Isaac Asimov, despertada pela resposta da

professora questionou subitamente:

- Que tipo de filme a professora vai passar?

- Um que faça vocês pensarem sobre os impactos ambientais provocados pela ação do homem

na natureza.

Então um estudante, sentado ao fundo da sala, perguntou fazendo caras e bocas:

- Professora, é filme normal ou é outro daqueles documentários sonolentos sobre natureza?

- Ficção, meu filho. Ficção!

1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemáticas, cursado no Instituto de

Educação Matemática e Científica (IEMCI) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor de biologia da

Secretaria Executiva de Educação do Estado do Pará (SEDUC).

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Diante da resposta da professora, uma parte da turma animada começou a gritar

repetidamente:

- CINEMA! CINEMA! CINEMA! CINEMA!

Enquanto isso, outro grupo de estudantes gritavam:

- PIPOCA! PIPOCA! PIPOCA! PIPOCA!

A professora de ciências, diante da reação calorosa dos estudantes, esboçou um sorriso

de contentamento como quem pensasse com seus botões:

“A aula promete ser produtiva hoje! ”

II - Eu sou o cinema...

Muitas pessoas tomam a pequena história que contei como algo natural dentro de um

ambiente escolar, afinal, faz muitas décadas que sou utilizado com frequência nas escolas de

todo mundo.

O que muitos desses seres humanos esquecem?

Eles esquecem que minha vida nem sempre foi este conto de fadas, onde sou incensado

como importante recurso educacional por instituições, professores, corpo técnico, estudantes e

acadêmicos.

Eles parecem deslembrar que um dia meu artífice Lois Lumière afirmou que eu era uma

invenção sem futuro, fadada ao fracasso, ao esquecimento, a morte.

Confesso, amigos, que esse apagamento me chateia.

Contudo, vamos deixar isso de lado, uma vez que, você não está aqui para ler desabafo

e ver lagrimas de cinema né!? Bem que, são histórias como essa que me fizeram elaborar os

dois questionamentos simples e cruciais para o nascimento deste escrito.

Aqui estão as perguntas:

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1) O que aconteceu para que eu, o cinema, saísse do limbo quase completo para tornar-me quase

uma unanimidade entre os humanos?

2) Como eu, historicamente, fui de fracassado incondicional para importante recurso

pedagógico dentro do espaço escolar?

É, de modo especial, sobre o segundo questionamento que pretendo me deter na

produção deste texto, isto pois, meu propósito com estas tortas linhas é gerar discussões e

dúvidas sobre a invenção do cinema como artefato pedagógico escolar hoje, sem esquecer de

discorrer sobre as descontinuidades e rupturas presentes na minha história.

Bem, imagino que você deva estar pensando:

“O que diabos o Sr. Cinema pretende com esta discussão? ”.

Caro leitor, eu desejo fazer você suspeitar das coisas naturalizadas. Eu desejo

desnaturalizar minha utilização dentro das escolas. Eu desejo que você seja movimentado em

direção a outros oceanos e que estes oceanos te tragam apenas dúvidas.

Sim! Você leu bem. Eu quero que provocar dúvidas.

Vem comigo!

Eu quero te contar algumas histórias! Devo dizer que me lembro dessas histórias com

frequência e, num de meu vasto sortimento de bolsos, guardei-as para contar para você.

Aqui está a primeira delas...

III - Por toda a minha vida...

Incialmente eu via apenas branco. Penso que esta visão seja parecida com uma cegueira

branca, contudo não tenho certeza. Depois, as primeiras imagens começaram a se formar dentro

de mim como nuvens que ganham formas no céu acinzentado de um dia qualquer. Foi assim

que as primeiras imagens brotaram. Foi assim que eu nasci.

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As minhas primeiras lembranças datam do final do século XIX e início do século XX

quando comecei a ganhar destaque dentro da sociedade humana, mesmo diante do aumento

significativo da circulação da palavra impressa. Por sinal, devo confessar que me fanfarreio

pelo fato da palavra impressa ter perdido terreno justamente para mim. Tal acontecimento

ocorreu, pois, ao contrário da palavra impressa, que na maioria das partes do mundo interessava

apenas a uma pequena elite letrada, eu tinha a massa popular, que muitas vezes não sabia ler e

escrever, como local de endereçamento das minhas imagens em movimento (HOBSBAWM,

1994).

Foi este destaque popular que fez com que os acadêmicos começassem a utilizar-me

experimentalmente, ainda no início do século XX, em atividades educacionais que eram

desenvolvidas principalmente em museus de ciências. No Brasil, por exemplo, minha utilização

como ferramenta de educação ocorreu por volta do ano de 1910, quando um senhor chamado

Roquette-Pinto organizou a filmoteca do Museu Nacional do Rio de Janeiro com objetivo de

realizar registros científicos e, ao mesmo tempo, divulgar a ciência para o público visitante

(GALVÃO, 2004).

A consequência dessas primeiras experimentações foram que, após alguns anos,

determinados intelectuais, políticos, educadores e cineastas começaram a produzir os primeiros

escritos que analisavam as minhas potencialidades como instrumento de difusão de informação

dentro da sociedade. Venerando Graça, por exemplo, escreveu sobre cinema e educação entre

os anos de 1916 e 1918 na revista A escola primária. Já Lourenço Filho foi outro estudioso que

minutou para Revista Paulistana Educação uma série de artigos sobre as reações das crianças

e adolescentes quando viam a um filme (CATELLI, 2005).

Apesar dessas publicações iniciais, eu não me encontrava de fato dentro do ambiente

escolar e, goste ou não, ainda estava muito longe de ser assumido como recurso pedagógico

escolar em potencial.

Tal acontecimento só viria a ocorrer, no Brasil, em meados de agosto de 1929 com a

realização da Primeira Exposição de Cinematografia Educativa, ocorrida na Escola José de

Alencar na cidade do Rio de Janeiro. Este evento educativo foi considerado um sucesso e

reverberou fortemente no Boletim de Educação Pública do ano de 1930, que viu a exposição

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como um marco para minha introdução no ambiente educacional escolar, já que, supostamente,

a exposição conseguiu demonstrar na prática minhas potencialidades aplicadas ao ensino dos

estudantes (GALVÃO, 2005).

A reverberação do evento não parou por aí, pois, dois anos após a realização da

exposição, foram publicados os primeiros livros abordando especificamente as interfaces entre

educação e cinema. Em 1930, por exemplo, Serrano e Francisco Venâncio Filho publicaram o

livro chamado “Cinema e Educação” que procurava me ver sob uma perspectiva didática,

estando ambos os autores preocupados com minhas possíveis implicações pedagógicas dentro

do espaço escolar. Já no ano de 1931, Joaquim Canuto Mendes de Almeida publicou a obra

chamada de “Cinema contra Cinema”, que versava sobre o possível embate entre o cinema

comercial, já forte na época, e o cinema educativo.

De modo geral, eu posso dizer que estas publicações iniciais produziram as primeiras

problematizações, em nível de Brasil, sobre a interconexão cinema e educação. No entanto,

mais do que discutir a relação entre a educação e eu, ambas as obras tinham como foco principal

propagar e amparar enunciados e discursos que defendiam os filmes como recurso pedagógico

dentro da educação escolar (CATELLI, 2005).

Foi desta maneira que o sonho do cinema dentro da escola começou a ganhar forma e

força e resultou em um acontecimento marcante na minha história que foi a fundação do

Instituto Nacional do Cinema Educativo, conhecido pela sigla INCE.

Tal fundação aconteceu em meados do ano de1936, quando Roquette-Pinto, amparado

nas discussões dos movimentos dos educadores e no decreto 21.240/32, elaborou projeto de lei

que organizou o INCE, que tinha como objetivo ser um órgão sistematizador de função

educativa do cinema. A implantação do instituto foi vista como urgente na época, pois, não

seria adequado retardar o processo de minha implantação como recurso pedagógico escolar,

ainda mais que os educadores, acadêmicos e estudantes do país estavam convencidos das

vantagens de utilizar-me corretamente no ensino escolar (MASSARANI, 1998).

Apesar do forte interesse da comunidade educacional pela minha expansão para dentro

do ambiente escolar, as apresentações de filmes ainda se restringiam quase que exclusivamente

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as salas especializadas. Tal situação acontecia, pois, as escolas não estavam preparadas

estruturalmente para me utilizar, uma vez que, o custo para as exibições de filmes no ambiente

escolar era extremamente elevado. No entanto, isto não foi visto como razão para desistir de

minha utilização dentro das escolas, pelo contrário, este desafio fez com que membros do INCE

esquadrinhassem soluções que possibilitassem um processo econômico no processo de exibição

dos filmes. Tal estudo resultou na adaptação do sistema sonoro dos projetores. Esta adaptação

finalmente permitiu a expansão do cinema para dentro dos espaços escolares, porém, apenas

filmes mudos podiam ser exibidos no espaço.

Uma coisa interessante de destacar e que ocorreu nos anos 40 foi que, apesar da

existência de outras disciplinas escolares, minha utilização concentrava-se quase que

exclusivamente na de ciências. Isto acontecia, pois, os estudiosos viam em mim uma ferramenta

capaz de popularizar, estimular e manter o interesse das pessoas, de modo especial dos

estudantes, em/pela ciência. Não por acaso, os produtos cinematográficos do INCE, naqueles

anos, tinham como principais temas os assuntos científicos, técnicos, biografias e instituições

científicas. Tais escolhas temáticas não eram por acaso, uma vez que, elas tinham como função

primordial se constituir em eficiente instrumento educacional e de difusão da ciência. Não

apenas isso, os produtos cinematográficos do INCE foram desenvolvidos com a motivação de

fabricar uma nova imagem de Brasil, a partir do aprimoramento da educação e valorização da

ciência, estando, deste modo, diretamente relacionado à construção nacional de um homem

científico brasileiro (CATELLI, 2005).

Apesar dos esforços hercúleos pela minha implantação no espaço escolar, necessito

dizer, caro leitor, que os investimentos ficaram reduzidos às boas intenções, uma vez que, a

falta de estrutura nas escolas inviabilizou o uso contínuo dos filmes e, por conseguinte, afetou

a expressão cinema educativo que se tornou, a partir de então, sinônimo de filme entediante,

chato e monótono para maioria das pessoas (GALVÃO, 2005).

Felizmente, para mim, os fracassos das primeiras incursões dentro das escolas não foram

suficientes para que desistissem de minha utilização. Com o passar dos anos, os avanços

tecnológicos e principalmente a necessidade de explorar temas transversais, propostos pelo

Ministério da Educação (MEC) através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação do ano de

1996, criaram novas condições de possibilidades para que artistas, professores e pesquisadores

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desejassem novamente o cinema dentro do ensino escolar, pois, eles acreditavam que os longas-

metragens funcionavam como oportunidade de refletir e discutir sobre o mundo sob uma

perspectiva holística (VIANA, ROSA e OREY, 2014).

Na educação em ciências, por exemplo, muitos acadêmicos defendem que a utilização

de filmes pode contribuir para que os estudantes aprendam ciência de diferentes modos, visto

que, os princípios da ciência ilustrados ou transgredidos em uma película podem ser mais bem

entendidos pelos estudantes do que se fossem apresentados apenas através das abordagens

tradicionais da sala de aula.

Não somente isso, eles ressaltam que os filmes lidam com os temas científicos sob uma

perspectiva transdisciplinar, consequentemente, oportunizando ao estudante (que não é

cientista) vivenciar a ciência sob um contexto mais amplo, o que pode, na teoria, tornar a

experiência mais valiosa para o estudante, afinal, no “mundo real” as situações raramente são

restritas a uma unidade disciplinar (PIASSI, 2007).

Bem, em linhas gerais foi assim que fui assumido como recurso pedagógico dentro do

espaço escolar.

Era a pedagogização do cinema entrando para valer na escola.

Pelo menos aqui no Brasil foi assim.

IV - O cinema através do espelho.

Antes de dar prosseguimento, eu gostaria de confessar que procurei narrar minha

história de forma linear, no primeiro momento, propositalmente, pois, tenho a finalidade de, no

segundo momento deste texto, desmontá-la completamente.

No entanto, como poderia desconstruir a linearidade, que é elemento tão marcante na

história dita tradicional?

Bem, para fazer isto, pretendo discutir as descontinuidades e rupturas que circundam a

minha história, no que concerne a ser tomado como artefato pedagógico escolar, procurando

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identificar algumas das múltiplas rupturas e perturbações da continuidade presentes na história

(FOUCAULT, 2012).

Além disso, parto da ideia que os enunciados e “fabricam”, “fazem”, “produzem” as

coisas de que fala, ou seja, eles materializam as coisas que falam (CORAZZA, 2002).

Nesse sentido, tomo os textos acadêmicos, teses e dissertações sobre educação e cinema,

que foram utilizados para construir a versão linear da minha história de vida, como enunciados

e discursos que produzem o cinema como artefato pedagógico.

Tais textos, para mim, são assumidos como documentos que forjam monumento, mais

especificamente falando, o monumento “cinema como artefato pedagógico escolar”.

V – Encontros e desencontros de uma vida de imagens...

Inegavelmente eu sou recurso pedagógico consagrado por professores, estudantes e

acadêmicos nos dias de hoje.

Eu não posso negar isso!

Pelo menos não hoje.

Não agora!

No entanto, tomar-me como recurso pedagógico de forma tão natural, ou seja, como se

eu já tivesse nascido com este propósito, é decorrência de enunciados e discursos sobre a relação

cinema e educação que foram legitimados dentro da sociedade. Foram estes discursos e

enunciados que acabaram por produzir-me como recurso pedagógico escolar, de modo que,

hoje as pessoas não questionem a existência deste produto/objeto. Dito de outro modo, os

humanos me normalizaram nesta posição de recurso educacional escolar que hoje são incapazes

de colocar-me em suspeição (FOUCAULT, 2012b).

Sobre isto, acrescento que é muito provável que eu não fosse tomado, pelas pessoas,

como recurso educacional se tais discursos e enunciados não tivessem ganhado legitimidade ao

longo das décadas. Não apenas isso, é possível que tal afirmação soasse deslocada da realidade,

pois, a declaração não faria o menor sentido quando proferida, já que, o objeto cinema como

artefato pedagógico escolar não existiria. Em outras palavras, caso não tivéssemos enunciados

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e discursos legitimados, qualquer pessoa que falasse do cinema como artefato pedagógico seria

instantaneamente desacreditada (FOUCAULT, 2006).

Bem, mas digamos, caro leitor, que você é uma dessas raras pessoas que assumem a

ideia de que eu fui produzido como artefato pedagógico escolar. Mesmo assumindo isto, dois

questionamentos ainda se tornariam pertinentes: eu, o cinema, como recurso pedagógico nos

dias de hoje, sou o mesmo cinema como recurso pedagógico nos tempos de Roquete-Pinto?

Quais as descontinuidades e rupturas presentes ao longo da minha história de vida?

VI – Os diferentes cinemas como artefatos pedagógicos...

Caro amigo leitor, antes de finalizar o texto, irei fazer uma pequena brincadeira com

você.

Espero sinceramente que não fiques chateado, já que, irei inventar outras histórias não

menos verdadeiras sobre mim, o cinema, como artefato pedagógico.

Venha comigo!

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- História I

Era um dia frio quando nasci.

Meus inventores me deram o nome de cinema.

No princípio fui utilizado basicamente para registrar cenas do cotidiano humano, uma

espécie de imagem em movimento da realidade.

No entanto, em pouco tempo alguns estudiosos perceberam que era possível utilizar-me

para realização de registros científicos, tais registros fizeram com que eu adentrasse os museus

de ciências, e, por conseguinte, tivesse um contato direto com o público que frequentava estes

espaços.

Ainda assim, eu não era artefato pedagógico escolar.

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Contudo, adentrar aos museus foram passos importante para que eu fosse visto como

recurso pedagógico em potencial. Isto por que, nos museus, eu, com minhas imagens em

movimento, chamava a atenção das pessoas que adentravam o espaço. Tal fascínio pelas

imagens em movimento está relacionado as condições de possibilidade da época, já que, neste

tempo, ainda que estivesse ocorrendo o aumento da palavra escrita, a maior parte da população

era analfabeta, logo, por não precisar ser lido, eu, com minhas imagens, acabava chamando a

atenção de muitas pessoas.

Foi este forte apelo com as massas fizeram emergir as primeiras práticas discursivas e

não discursivas que, em pouco tempo, legitimavam o cinema como recurso educativo.

Entre as práticas discursivas e não discursivas da época, mais especificamente falando

de Brasil, temos: a realização de experimentos com cinema em museus, as publicações de

decretos como 21.981 de 19 de outubro de 1932, a criação do INCE e a publicação de livros e

artigos sobre minha importância dentro da educação.

Foi desta forma que eu me configurei recurso pedagógico que deveria adentrar o espaço

escolar. Não apenas isso, foi desta forma que eu, cinema, tornei-me sinônimo de recurso

educacional que tinha como mote de funcionamento a formação do homem científico brasileiro

a partir de filmes educativos que procuravam descrever, através de imagens, a produção da

ciência da época.

No entanto, como nem tudo são flores, adentrar a escola não deu certo para ninguém,

pois o custo da exibição era alto e os filmes educativos eram desinteressantes para estudantes e

professores.

Assim, eu morri como recurso pedagógico sem dar vida ao homem científico nacional.

- História II

Eu quase apenas via escuridão. As janelas dos meus olhos quase não se abriam mais.

Creio que estava praticamente morto para educação escolar.... Talvez, respirando com ajudar

de aparelhos. Não por acaso, a expressão cinema educativo era amplamente visto pelas pessoas

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como algo chato e tedioso. Até que um dia, eu fui subitamente ressuscitado da mansão dos

mortos e quase elevado aos céus de forma súbita.

O que provocou minha ressureição?

Uma palavra explica, transversalidade.

Eis a palavra da ressureição.

Foram as discussões realizadas por especialistas em educação, sobre a necessidade de

transversalizar os temas desenvolvidos dentro das disciplinas escolares, que criou as condições

de possibilidade para que eu voltasse com toda força para o ambiente escolar, pois, a partir

dessas discussões, os pesquisadores começaram a escrever artigos acadêmicos em que

destacavam o cinema como ferramenta pedagógica em potencial para o desenvolvimento da

transversalidade, já que, os filmes eram ferramentas que apresentavam ao estudante o mundo,

conceitos e temais sob uma perspectiva holística.

Na educação em ciências, por exemplo, estudos como de Piassi e Pietrocola (2009),

falam que eu, o cinema, sou um tipo de mídia que atravessa o processo de educação científica

ao promover ideias sobre a ciência e seu processo de construção, sem procurar, no entanto,

explicar o que é a ciência ou ensinar conceitos científicos para seu público (embora isso possa

ocorrer ocasionalmente).

Piassi (2007), em trabalho anterior, já ressaltava que utilizar-me na sala de aula

possibilita aos estudantes aprimorem o entendimento sobre o conhecimento científico tanto

como um processo racional quanto como um processo de descoberta.

Já Faria (2011) vai dizer que se deve ter atenção ao me utilizar, pois, imagens distorcidas

de ciências encontram-se presentes nas mídias, que, pelo seu grande alcance entre as pessoas,

acaba difundindo ideias equivocadas de ciências e, por conseguinte, afastando ainda mais o

conhecimento científico do cidadão, de modo especial os estudantes, que são vistos como uma

das principais “vítimas” das imagens distorcidas veiculadas pelo cinema.

Foi assim, com uma explosão de artigos acadêmicos, que ressuscitei...

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VII- Um breve epílogo ou uma história sem fim...

Que artefato pedagógico escolar eu sou hoje?

Bem, olhando para o hoje, penso que sou um artefato pedagógico que deve formar um

cidadão com um olhar abrangente sobre o mundo em que vive, um artefato capaz de formar

para cidadania.

Tal artefato é bastante diferente do cinema artefato pedagógico nos tempos de Roquette-

Pinto, posto que, naquela época, o cinema artefato pedagógico escolar deveria produzir o

homem científico brasileiro para levantar a estima da nação.

Nesse sentido, assumindo que os enunciados/discursos produzem objetos, não é possível

precisar o artefato que serei amanhã, pois vai depender das condições de possibilidades e dos

enunciados que nela emergirem.

Mas, aí já é outra história...

Outro dia conversamos!

VIII- Referências bibliográficas ou simplesmente minhas leituras...

CATELLI, Rosa. O cinema educativo nos anos de 1920 e 1930: algumas tendências

presentes na bibliografia contemporânea. Intertexto. Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 12, p. 1-

15, janeiro/junho 2005.

CORAZZA, S. M. Labirintos da Pesquisa, diante dos ferrolhos. IN: COSTA, M. V. (org).

Caminhos Investigativos - novos olhares na pesquisa em Educação. Rio de Janeiro: DP&A

Editora. 2002.

FARIA, Ana Constância Macedo. O cinema e a concepção de ciência por estudantes do

ensino médio. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências). Universidade de Brasília,

Brasília, 2011.

FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. Rio de Janeiro: Loyola, 2006.

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. 2012b.

FOUCAULT, Michel. Por trás da fábula. In. Estética: literatura e pintura, música e

cinema. Coleção: Ditos e Escritos, vol. III. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de

Janeiro: Forense, 2009.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

GALVÃO. Elisandra. A ciência vai ao cinema: uma análise de filmes educativos e de

divulgação científica do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Dissertação de

mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Ciências

Biomédicas. 2004.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das

Letras, 2° Edição. 1994.

MASSARANI, Luísa. A divulgação científica no Rio de Janeiro: Algumas reflexões sobre

a década de 20. Rio de Janeiro: IBICT e UFRJ, 1998. Dissertação (Mestrado) - Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Informação, Instituto Brasileiro de Informação em C&T e Escola

de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.

PIASSI, Luís Paulo de Carvalho. Contatos: a ficção científica no ensino de ciências em um

contexto sociocultural. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo. Faculdade

de Educação. 2007.

PIASSI, L. P.; PIETROCOLA, M. Ficção científica e ensino de ciências: para além do

método de ‘encontrar erros em filmes’. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-

540, set./dez. 2009.

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VIANA, Marger da Conceição Ventura. ROSA, Milton. OREY, Daniel Clark. O Cinema como

uma ferramenta pedagógica na sala de aula: um resgate à diversidade cultural. Ensino em

Re-Vista. v.21, n.1, p.137-144, jan./jun. 2014.