cinema nordeste

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CINEMA E HISTÓRIA: UMA IMAGEM DO NORDESTE ROSSANA DE SOUSA SORRENTINO LIANZA JOÃO PESSOA JUNHO - 2007

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Page 1: Cinema Nordeste

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CINEMA E HISTÓRIA: UMA IMAGEM DO NORDESTE

ROSSANA DE SOUSA SORRENTINO LIANZA

JOÃO PESSOA JUNHO - 2007

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CINEMA E HISTÓRIA: UMA IMAGEM DO NORDESTE

ROSSANA DE SOUSA SORRENTINO LIANZA

Orientadora: REGINA MARIA RODRIGUES BEHAR

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de Ciência Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.

JOÃO PESSOA-PB 2007

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L693c

Lianza, Rossana de Sousa Sorrentino Cinema e história: uma imagem do nordeste./ Rossana de Sousa Sorrentino

Lianza. - João Pessoa, 2007. 135 p. Orientadora: Regina Maria Rodrigues Behar. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Paraíba/CCHLA. 1. A Canga (filme) – crítica e interpretação. 2. Nordeste – representação cultural.

UFPB/BC CDU: 791.43 (043)

Page 4: Cinema Nordeste

ROSSANA DE SOUSA SORRENTINO LIANZA

CINEMA E HISTÓRIA: UMA IMAGEM DO NORDESTE

Avaliado em 09/07/2008 com conceito A

Banca examinadora da DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

____________________________________________________________ Profa Dra Regina Maria Rodrigues Behar - Universidade Federal da Paraíba - PPGH

Orientadora

____________________________________________________________ Profa Dra Sandra Amélia Luna Cirne de Azevedo - Universidade Federal da Paraíba -

PPGL Examinador externo

____________________________________________________________ Prof Dr Elio Chaves Flores – Universidade Federal da Paraíba - PPGH

Examinador interno

Page 5: Cinema Nordeste

I

DEDICATÓRIA

Ao meu marido Francisco Lianza Neto

Page 6: Cinema Nordeste

II

AGRADECIMENTOS

A Deus e à Virgem Maria por todas as graças recebidas e por terem me proporcionado a força e a perseverança para realizar esta conquista.

Aos meus pais (in memorian) e às minhas tias, Helena e Ceta, por acreditarem que eu podia ir mais longe do que os meus limites, ampliando sempre meus horizontes.

Ao meu marido, Francisco Lianza Neto, por seu amor dedicação e respeito, cujos agradecimentos nunca serão suficientes. Com ele divido a realização deste sonho e conquista, com o amor que transcende estas páginas, porque é na vivência das pequenas coisas do nosso dia-a-dia que ele aflora.

Aos meus filhos, Malena, Rodrigo e Carol, razão de alegria e orgulho, obrigada por se multiplicarem em digitadores, motoristas, decodificadores de fitas e revisores de texto, mas, principalmente, pelo amparo e carinho nas horas de inquietação na construção deste trabalho.

A Regina Behar, minha orientadora, pelo olhar arguto e argumentação precisa que possibilitaram a ampliação da visão do tema, pelos questionamentos, discussões e, principalmente, pela confiança e solicitude nas horas difíceis, em que a amizade foi confortante.

Aos meus irmãos Gianna, Silvana e Márcio pelo apoio fraterno e gratificante.

À minha amiga Regina Gonçalves pelo carinho, afeto e confiança depositados ao longo dos anos de nossa amizade e pela força iluminadora imprescindível aos historiadores, sendo sempre a minha guia.

À minha amiga Vilma que sempre esteve presente com sua preciosa amizade, solicitude e ponderações, a quem atribuo importante auxílio nas funções que exerci, principalmente pela confiança que sempre em mim depositou, expressa na palavra amiga.

Aos meus professores do Mestrado de História pelas valiosas contribuições proporcionadas no decorrer das exposições e discussões das disciplinas.

Aos meus colegas do Mestrado pela sua participação com informações e idéias que contribuíram para este trabalho e pelo estímulo e afeto ao longo do curso partilhado.

Ao diretor, roteirista e editor do filme “A Canga”, Marcus Vilar e ao também roteirista Waldemar José Solha, autor do livro homônimo, pela paciência, presteza e solicitudes nas entrevistas concedidas, fundamentais para conclusão deste trabalho.

Aos coordenadores do Programa de Pós Graduação em História representados pelo Prof Dr Elio Chaves Flores e pela Profa Dra Regina Gonçalves, coordenadores à época de nosso ingresso no mestrado, por proporcionarem a formação teórico-metodológica para a nossa qualificação profissional.

A Valéria e Viviana pela leitura valiosa e pela contribuição na revisão do trabalho para a forma final do texto.

A Virginia pela atenção e serviços, quando necessário, para nosso desempenho durante a construção desse trabalho.

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III

RESUMO A presente dissertação de mestrado, intitulada História e Cinema: uma imagem do Nordeste, tem como objetivo discutir, a partir da análise do filme A Canga, a persistência da representação cinematográfica do sertão nordestino como imagem que identifica, de forma homogeneizadora a região Nordeste. Para tanto, traçamos o percurso dessas imagens na cinematografia brasileira, identificando na matriz cinemanovista as marcas inaugurais dessa representação. Buscamos, então, a partir da análise do filme em seus diversos aspectos, compreender o discurso cinematográfico como representação vinculada a dimensões sociais e identitárias que se justificam a partir de sua filiação a uma cultura histórica constituída na “longa duração”. Desse modo, A Canga, um curta-metragem, produzido em 2001, foi analisado a partir dos temas que se encontram inscritos no texto fílmico e que são recorrentes nos discursos sobre o Nordeste: a seca, a fome, as relações de produção arcaicas, a violência da natureza e dos homens. Procuramos ainda compreender a produção do discurso fílmico como produto social, vinculado à autoria de indivíduos inseridos na história e na cultura de seu tempo e cuja produção articula-se a suas visões de mundo. Palavras-chave: Cinema Nordeste Representação História Cultural

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IV

ABSTRACT

The present dissertation for a Master’s degree, entitled History and Cinema: an image of the Northeast, has as objective to discuss, on the basis of the analysis of the film A Canga (The yoke), the persistence of cinematographic representations of the northeastern Brazilian hinterland in a way that identifies the Northeast region by homogenizing it. We do it by following the trail of these images along the history of Brazilian cinematography, identifying the Cinema Novo (New Cinema) movement as the matrix that inaugurates this representation. Analyzing this film in its many aspects, we reach to the understanding of cinematographic discourse as representations linked to social and identitary dimensions, explained by their filiations to a historical culture constituted in the “long duration”. A Canga, a short footage film, produced in 2001, was analyzed through the themes embedded in the filmic text and recurrent in the general discourse about the Northeast: drought, hunger, archaic relations of production, violence of nature and of man. We also aimed to understanding the production of filmic discourse as a social product, tied to the authorship of individuals that are inserted in the history and the culture of their time and whose weltanschauung is articulated to their production. Key words: Cinema Brazilian Northeast Representation Cultural History

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V

SUMÁRIO DEDICATÓRIA I AGRADECIMENTOS II RESUMO III ABSTRACT IV SUMÁRIO V INTRODUÇÃO 1

1. A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE REGIONAL/NACIONAL NA CINEMATOGRAFIA BRASILEIRA 13

1.1 - A cinematografia brasileira e a construção da identidade nacional calcada no regionalismo 13

1.2 - O Cinema Novo e a busca romântica pelo homem brasileiro 21

1.3 - O cinema brasileiro e o contexto pós-1964 36

1.4 - O declínio da cinematografia brasileira na década de 80 e a retomada nos anos 1990 38

2. NA CANGA: REPRESENTAÇÕES DO NORDESTE CINEMATOGRÁFICO 44

2.1 - A identidade nordestina e representação. 44

2.2 - Análise dos elementos constitutivos de A Canga 49

2.2.1 - Breve comentário e personagens 49

2.2.2 - A narrativa fílmica 49

2.2.3 - O tempo na obra fílmica A Canga 52

2.2.4 - O espaço instituído como cenário d’ A Canga 59

2.2.5. Análise fílmica e os arquétipos culturalmente constituídos 64

2.2.6. - Os sons em A Canga 66

2.2.7. - O primitivismo e as relações arcaicas

de poder e produção 67

2.2.8 - O poder e a religião 72

2.2.9 - Tragédia no enredo e na imagem cinematográfica sobre o Nordeste em A Canga 74

2.2.10 - A loucura: elemento catalisador da tragédia na obra fílmica A Canga 77

Page 10: Cinema Nordeste

VI

2.2.11 - A violência estrutural no filme A Canga 80

2.2.12 - O simbolismo da chuva no filme A Canga 81

2.2.13. - Os personagens d’ A Canga e os arquétipos universais 83

3. AUTORIA E IDENTIDADES EM A CANGA 88

3.1 - As dimensões da autoria 88

3.1.1 - A análise do conceito de autoria 88

3.1.1.1 - Chartier e Bourdieu e a autoria como

percepção simbólica da realidade social 88

3.1.1.2 - A questão da autoria e da representação 92

3.1.1.3 - Breve histórico do cinema e a trajetória da

autoria dentro do seu processo de constituição 96

3.1.2 - A memória como construção social 107

3.1.3 - Os perfis dos componentes do grupo autoral 108

3.1.4 - A dimensão coletiva da autoria: Vilar, Solha e Carvalho 112

CONSIDERAÇÕES FINAIS 124 REFERÊNCIAS 131

Page 11: Cinema Nordeste

1

INTRODUÇÃO

A Canga, curta-metragem dirigido por Marcus Vilar, produzido em 2001,

adaptado do livro homônimo, de Waldemar José Solha, que também participou da

autoria do roteiro, constitui-se no objeto de estudo desta dissertação de Mestrado, por

permitir uma leitura das tradições cinematográficas que cristalizaram certas imagens

representativas do Nordeste. Imagens essas, construídas pelos discursos e pelas práticas,

em meio a conflitos ideológico-culturais, entre diferentes grupos sociais, pela

homogeneização das diversidades histórico-culturais dessa região segundo seus

interesses específicos.

A renovação, ou reinterpretarão da história, a partir da multiplicidade de

testemunhos, já era apontada por Bloch que afirmava: “a diversidade dos testemunhos

históricos é quase infinita, tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica tudo que

toca pode e deve informar sobre ele” (BLOCH, 1979, p. 79). Dessa forma, as evidências do

passado e da sociedade contemporânea abrem espaços para o diálogo entre a história e

outras manifestações sócio-culturais.

Esses novos objetos levam os historiadores a buscar novas fontes,

voltando-se, alguns, para a oralidade e a imagem. O emprego de imagens como fonte de

conhecimento histórico, por alguns historiadores, é um procedimento bem mais antigo

do que normalmente se noticia, havendo evidência de sua utilização desde o século

XVII. Todavia, o uso da imagem como objeto de interesse e fonte para a história

começa a ser mais freqüente a partir da década de 1960 e, hoje, quando as imagens são

amplamente usadas, buscam-se, em grande escala, evidências visuais do passado. É o

que afirma Peter Burke na obra Testemunha Ocular: “A proposta essencial que este

livro tenta defender e ilustrar é a de que imagens, assim como textos e testemunhos

orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica” (BURKE, 2004, p.17).

Portanto, por se tratar de produção histórico-cultural realizada pelo homem, as

imagens tornam-se passíveis de estudo histórico, contanto que sejam contextualizadas.

De qualquer forma, o estudo das sociedades contemporâneas através dos seus acervos

de imagens é válido porque elas exibem representações que se concretizaram através de

escolhas feitas pelas forças sociais em luta por impor suas interpretações da

Page 12: Cinema Nordeste

2

complexidade social. As imagens cinematográficas não diferem dos outros tipos de

imagem (pictórica, fotográfica, escultural, etc.) no sentido de serem formas de

representação da sociedade.

O filme A Canga será trabalhado a partir da perspectiva de que as imagens

cinematográficas formuladas sobre o Nordeste, sendo ou não oriundas de autores

nordestinos, contribuem para a constituição da cultura histórica sobre a região.

Consideramos, também, que as imagens cinematográficas nos permitem tanto

reconhecer a universalidade dos valores humanos que veiculam, ampliando nossa

compreensão de elementos mitológicos universais, quanto, simultaneamente,

compreender especificidades e tradições locais. Contribuem, desse modo, para a

construção de padrões de identidade e para expressar e reforçar o sentimento gregário

das comunidades.

No caso do Nordeste, essas identidades são associadas a partir do século XIX às

origens da nação1, e à formação dos primeiros núcleos de colonização. O Nordeste,

observado a partir desse ponto de vista, participa da construção de nossa identidade

primeva, de nossos “mitos de origem”.

Neste trabalho, buscaremos analisar o processo de construção de certa imagem

do Nordeste, dentre outras, que foi amplamente tematizada pela intelectualidade

brasileira e especialmente por um grupo de cineastas para a construção de uma

identidade nacional. A singularidade da análise encontra-se na perspectiva da apreensão

das características dessa imagem, realçando a sua permanência como representação da

região nordestina: imagem de região seca, improdutiva, arcaica, constituindo-se como

referência de regionalidade para o povo brasileiro, mas também de região em que a

exacerbação das várias formas de opressão poderia produzir a ruptura revolucionária

que libertaria não apenas a região, mas toda a nação. Essa visão de Nordeste, que

permeia nossa cinematografia, emerge dos embates sócio-culturais não como simples

reflexo da sociedade ou da disputa sócio-ideológica entre grupos, mas do confronto e da

reunião de diversas narrativas que os diversos grupos sociais contam sobre si mesmos.

1 A idéia de nação remota, para alguns autores, relaciona-se aos movimentos que assumiam posições contra o sistema colonial, no final do século XVIII. Porém, diante de suas limitações, tomamos como referência, a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, no século XIX, que tiveram um amplo caráter por se estenderem por diversas províncias com seu discurso nacionalista. Conferir COSTA, Emilia Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.27-29.

Page 13: Cinema Nordeste

3

Dada a complexidade de funções que requer a criação do produto fílmico, a

influência das vivências dos produtores dos filmes, em seu conjunto, apresenta-se em

seus aspectos artísticos: no roteiro, na direção, nos personagens, no cenário, na

fotografia e na temporalidade representada no filme, abrindo-nos a possibilidade de

apreendermos, do emaranhados de práticas e relações aí expressas, o diálogo direto ou

indireto que os autores e os diversos atores sociais envolvidos estabelecem com o

contexto social no qual o filme é produzido.

Dessa forma, o cinema, parecendo um inocente produto do imaginário dos

produtores cinematográficos, intervém muito além das salas de projeção de filmes, uma

vez que ele está ligado à sociedade que o produz e que o recebe como uma forma de

representação de si própria. O filme não pode ser explicado só através da emoção

imediata que provoca no espectador, nem analisado apenas como um entretenimento ou

obra artística, mas como um produto sócio-cultural de amplas e mais complexas

repercussões, digno de ser estudado pelas ciências sociais (FERRO, 1992, p.87). Portanto, a

compreensão dos filmes como objetos de estudo histórico, através da abordagem da

história cultural, reafirma ou reinventa o significado das imagens. É isso o que tentamos

fazer ao buscar a origem de suas representações, no nosso caso, do Nordeste, em

tradições que também movem as lutas para a construção das identidades regional e

nacional.

É importante ressaltar que a cinematografia é o resultado de um esforço coletivo,

no qual se juntam ator, diretor, autor do roteiro, ou do livro em que o filme se baseia,

todos eles tendo em vista o público espectador, para a construção da narrativa fílmica,

tornando-a uma síntese sócio-cultural alimentada por tradições e sensibilidades

coletivas, que voltam ao espectador após terem sido filtradas pela literatura e pela

linguagem cinematográfica (BURKE, 2004, p. 119). É, portanto, de todos os pontos de

vista, um produto social coletivo, já que é feito de relações sociais e delas se ocupa.

O filme diz muito da realidade social, mesmo quando apresentada pelo avesso,

porque não é só imagem sonora ou não sonora, mas uma linguagem que se vincula à

representação das sociedades, tecendo um roteiro de suas temporalidades, além de criar

espaços sócio-geográficos diversos para a composição das narrativas, através de efeitos

de montagem. Os filmes são, pois, formas de comunicação através da imagem que

revelam o contexto de sua produção e, ao revelá-lo, atingem zonas não imediatamente

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4

visíveis da sociedade, surpreendendo e assustando ao apontar, muitas vezes, para

conflitos latentes. Assim, como afirma Marc Ferro:

O filme (...) está sendo observado não como obra de arte, mas sim como produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas. Ele não vale somente por aquilo que testemunha, mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza (FERRO, 1992, p. 87).

Segundo Marc Ferro, a análise das obras fílmicas e das realidades que

representam constitui-se, pois, para os historiadores fonte legítima de estudo e

compreensão das sociedades, já que os componentes do filme ─ cenário, roteiro,

técnicas, instrumentos ─ relacionam-se estreitamente com o que não é fílmico: o autor,

a produção, o público, a crítica e a sociedade. O filme, “objeto-imagem”, representa na

tela um mundo extraído do mundo social, que pode ser explorado pelas ciências

humanas para a compreensão do papel da indústria cinematográfica e para identificar

pontes entre os aspectos da formação dos valores e das linguagens estabelecidos no

cinema contemporâneo e na sociedade em que se insere (FERRO, 1992, p. 87).

Os historiadores, dessa forma, devem pensar as expressões culturais como

representações do mundo social, nas quais os atores sociais, como sugere Chartier,

descrevem a sociedade “tal como pensam que ela é, ou como desejam que ela fosse”

(1990, p. 19). Consideramos que vão nesta mesma direção as afirmações de Pierre

Bourdieu de que as disputas em torno das identidades estão ligadas à valorização dos

lugares de origem dos contendores, como elementos fundamentais nas “lutas pelo

monopólio do poder de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e de fazer

reconhecer, de impor a definição legítima da divisão do mundo social e, por essa via, de

fazer e desfazer o grupo” (BOURDIEU, 1998, p.107).

A formação de uma identidade regional passa por representações ligadas ao

lugar de origem, que fornecem meios para a classificação do que é reconhecido pelo

grupo e que se tornará consenso sobre o que está na raiz da sua unidade. O campo da

cinematografia, portanto, pode nos fornecer, através das práticas e relações que são

representadas pelas estratégias simbólicas de suas narrativas, indícios das relações de

forças em jogo para a construção de imagens sobre um lugar ou situação, permitindo a

visualização das estruturas sociais representadas.

A cinematografia brasileira mostra, desde seus os primórdios, a preocupação de

produzir imagens que pudessem ser reconhecidas como representações do “nacional”,

numa tentativa de controlar as manifestações culturais e pô-las a serviço de um discurso

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5

da homogeneidade social, em que os conflitos fossem diluídos. A historicidade e a

multiplicidade de atores sociais, porém, permitiram vários caminhos para a produção

cinematográfica, sem que a busca por elementos simbólicos unificadores se

desvanecesse ao longo do tempo. Filmes com temas envolvendo personagens

nordestinas como heróis míticos do povo brasileiro são reincidentes na cinematografia,

principalmente a partir dos cineastas do chamado Cinema Novo, que apresentam o

Nordeste como lugar das raízes do povo, que se teriam constituído num tempo ao qual a

tradição se refere como sendo o das origens, inventadas, no sentido do termo em

Hobsbawm, para “inculcar certos valores como tentativa de estabelecer continuidade

com um passado histórico apropriado” (1997, p.9). Tal tipo de narrativa tende a

impulsionar uma força transformadora decorrente do poder sagrado subjacente ao mito

da origem, difundido nas tradições universais, conforme as análises de Mircea Eliade

(2000, p.16), em que nos apoiamos para compreender a importância desse tipo de

representação na consolidação da imagem hegemônica da região como berço da

brasilidade.

Mircea Eliade, a quem nos referimos por seu trabalho sobre a estrutura dos mitos

e o “prestígio mágico das origens,” forneceu-nos formas de compreensão de fenômenos

culturais, com atributos religiosos ou sagrados, presentes nas sociedades ditas arcaicas,

que explicam, pela narrativa dos mitos, o fundamento do mundo e a constituição do

homem como é hoje.

Considerando os argumentos acima, tomamos como foco as tradições

representadas como forma de classificação e caracterização da sociedade, tendo por

base o princípio da divisão, para instituir a identificação de lugar e de uma identidade,

que persiste como discurso da regionalidade Nordestina. A invenção da tradição exige

valorização de aspectos do sagrado, estabelecendo-se assim um diálogo entre o que é

visto como traço de nordestinidade e o que é universal, próprio do humano, que

tentamos identificar e analisar em todo o corpo deste trabalho.

O primeiro capítulo focalizará, no curso do desenvolvimento do cinema

brasileiro, especialmente as obras fílmicas do Cinema Novo, que destacaram o Nordeste

como lugar de identificação e origem da população nordestina, através do sentimento de

pertença, e suas contribuições para a construção de uma identidade regional/nacional.

Trataremos de mostrar como tal representação do Nordeste pretende ser questionadora,

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6

numa visão romântica de sua atuação no processo de reforma ou de transformação do

contexto social nacional.

Os filmes que destacaremos nessa cinematografia são O Pagador de Promessas,

de Anselmo Duarte; Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na

Terra do Sol, de Glauber Rocha e Abril Despedaçado, de Walter Salles, este já bem

posterior ao Cinema Novo. Além dessa filmografia, utilizaremos a contribuição do

documentário Aruanda, de Linduarte Noronha, como marco da fotografia que se

cristaliza como certa imagem do Nordeste, e Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo

Coutinho, no qual podemos ver as contradições do discurso proposto pelo cineasta,

fundamentado na visão romântica do papel do intelectual na conscientização da massa

popular, com as falas dissonantes de alguns dos entrevistados/personagens do seu filme.

Nesse capítulo, a discussão histórica do cinema como elemento de construção de

identidade regional/nacional contará com a contribuição das análises de Maria Rita

Galvão e Jean Claude-Bernardet, em seu livro, O Nacional e o Popular na Cultura

Brasileira: cinema (1983); Paulo Emílio Salles Gomes, na sua obra Cinema: trajetória

no desenvolvimento (1980); e Célia Aparecida Ferreira Tolentino, com seu livro O rural

no cinema brasileiro (2001). Estas obras contribuem para a reflexão e a proposta de

uma tradição cinematográfica que instituiu o Nordeste como o lugar depositário das

raízes do povo brasileiro, ao detectar a preocupação com os valores nacionais. A

literatura brasileira como fonte de inspiração, para a criação simbólica do nacionalismo

com base regional através do culto à natureza, à paisagem e ao próprio povo brasileiro.

Esse enfoque coincide com as preocupações de certos autores, com os quais

necessariamente dialogaremos, e que detalhamos em seguida.

Marcelo Ridenti, no livro Em busca do povo brasileiro (2000), analisa a

formação de estereótipos advindos das narrativas míticas ou sobre as origens de um

povo, instituindo-se em imagens discursivas que povoam o nosso cinema, num estilo de

narrativa romântico-revolucionária apresentada, muitas vezes, como base para idéias

reformistas.

José Mário Ortiz Ramos, na obra Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50,

60, 70 (1983), analisa as contribuições desses cineastas na produção cultural dessas

décadas, como posição numa luta relativa ao campo do poder, em que ao povo brasileiro

é dada a atribuição de construir a nação, numa concepção romântica revolucionária

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7

repleta de ambigüidade, mas que influi fortemente na afirmação de uma identidade

nacional-popular, instrumento de lutas políticas entre grupos para o direcionamento

sócio-econômico e político do país, nas décadas por ele analisadas.

Acrescentem-se as contribuições de Glauber Rocha, no artigo A Eztetyka da

Fome, do seu livro Revolução do Cinema Novo (1981), e na sua filmografia, que

apresentam a luta do povo em condições miseráveis de sobrevivência e sua persistência

em permanecer, até mesmo pela violência, no combate cotidiano, Glauber traz as

imagens desse lugar denominado Nordeste como representações resultantes do embate

de grupos adversários dentro da nossa sociedade, propondo mesmo a violência como

forma estética de tematizar culturalmente o povo brasileiro.

Resta mencionar Luiz Zanin Oricchio, com o livro Cinema de Novo: um balanço

crítico da retomada (2003), no qual identifica filmes mais recentes cujos perfis são

herdados do Cinema Novo, dos quais nos interessa a permanência da visão do Nordeste

arcaico, primitivo e seco.

Em suma, nessa primeira parte de nosso estudo, tratamos de apreender a tradição

cinematográfica do Cinema Novo para a compreensão da permanência de uma imagem

sobre o Nordeste como fortalecimento de uma identidade local/nacional ─ apesar das

transformações do mundo moderno ─ por ter-se tornado, devido à força do discurso da

origem, evocação de resistência à fragmentação cultural e política a que o mundo social

se encontra exposto.

O segundo capítulo centra-se na análise específica do filme A Canga através da

apresentação do cenário, dos personagens e dos estereótipos culturais da temporalidade,

além das formas arcaicas de produção e do pátrio-poder, com as quais esse filme

representa o Nordeste.

O cenário d’A Canga retoma uma imagem recorrente na literatura e na

cinematografia sobre o Nordeste, introjetada ao longo do processo de construção de

nossa identidade, através de produtos culturais, das práticas e das relações sociais. O

Nordeste do filme, como cenário em que o sol, tremeluzindo em círculos de fogo,

castiga o solo avermelhado, ressequido e desprovido de folhagens, já foi incorporado ao

discurso, ao pensamento e à memória coletiva do povo nordestino, traduzido em

imagens pela cinematografia brasileira que, ao incorporar essa representação, também a

difunde e a institucionaliza.

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8

Para o confronto entre o Nordeste representado pelo cinema e o Nordeste da

literatura e dos estudos acadêmicos, tomamos por base os trabalhos de Euclides da

Cunha, Os Sertões (1982), grande obra clássica da nossa literatura em que o autor

fornece aspectos que serão trabalhados por poetas, escritores e acadêmicos; de Manuel

Correia de Andrade, A terra e o homem no Nordeste: contribuições ao estudo da

questão agrária no Nordeste (1986), onde as complexidades das relações de produção do

campo brasileiro, especialmente o nordestino, são estudadas como situações específicas.

Seus conhecimentos geográfico, econômico e sociológico foram fundamentais para o

nosso trabalho e para outras obras nas quais nos apoiamos; de Rosa Maria Godoy

Silveira, O Regionalismo Nordestino: existência e consciência da desigualdade regional

(1984), em que a questão regional é estudada como posição sócio-política dos setores

dominantes da região canavieira característica do Nordeste a partir da articulação entre

os vários espaços durante o processo de formação da nação brasileira e da dinâmica do

capitalismo mundial neles inserida; de Durval Muniz Albuquerque Jr., A invenção do

Nordeste e outras artes (2001), na qual o autor atribui a emergência do lugar Nordeste

como produção cultural, em que os diferentes discursos das forças sociais expõem o

caráter político das representações que definem o Nordeste, contribuindo para a leitura

das imagens discursivas sobre esse espaço; de Fernando Patriota, De Baraúnas e

Palavras: ensaio sobre o sertão (2003), que mostra o sertão nordestino em sua

“ambivalência”, decorrente das estações de chuvas e de estios, e como espaço de

vivência rica para os habitantes que, cotidianamente, nela vivem; de José Jonas Duarte

da Costa, Impactos Sócios Ambientais das Políticas de Combate à Secas na Paraíba

(2003), trabalho no qual estuda, criticamente, as políticas de combate à seca no semi-

árido nordestino, centradas numa discursividade em que se apregoa a impropriedade de

sobrevivência nesse espaço, que é amplamente questionada pelo autor; e de Lúcia de

Fátima Guerra Ferreira, Raízes da Indústria da Seca: caso da Paraíba (1993),

contribuindo para caracterizar a indústria da seca na Paraíba, pois revela a dominação

oligárquica no período estudado, possibilitando a percepção das práticas políticas e a

compreensão das desigualdades sócio-econômicas internas e entre a região Nordeste e

os outros espaços nacionais.

Essas obras nos revelam as dimensões do espaço nordestino, dizem de sua

diversidade, exploram a multiplicidade de situações climáticas, a riqueza da vegetação

nativa e a exuberância de seu bioma; e o fazem, inclusive, observando a diversidade de

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situações na área específica do Sertão, contradizendo a paisagem que foi construída

como homogeneidade nas narrativas filmicas. Assim, revela-se o caráter seletivo da

imagem cinematográfica da terra seca e árida, caracterizada pela vegetação de

cactáceas, e costumes patriarcais e arcaicos.

A temporalidade fílmica será analisada a partir do trabalho de Paulo Roberto

Arruda de Menezes, publicado na revista de Sociologia da Universidade de São Paulo,

Tempo Social, 2 que distingue um “tempo objetivo”, “o tempo do filme” ─ no caso d’A

Canga os 12 minutos de sua duração ─ de um “tempo no filme” que, neste caso,

compreendemos como um dia na vida dos personagens, e de um “tempo subjetivo” que

nos remete à longa duração, presente nas relações arcaicas de dominação patriarcal e na

forma milenar de arar a terra, permitindo-nos compreender melhor a pluralidade da

temporalidade histórica.

O conceito de “longa duração” de Braudel (1986, p.13-17) será a base para

entendermos a cristalização das imagens do Nordeste da seca, segundo os critérios desse

autor, que compreende o imobilismo de algumas as relações sociais como decorrentes

de limites impostos pelo clima, pela vegetação ou outros entraves que se prolongam

culturalmente, por uma sucessão de gerações, cristalizando-as e tornando-se difícil de

ser transposta. Ajuda-nos a compreender a ambigüidade da construção da representação

desse Nordeste, pela contradição entre o arcaico resistente à passagem do tempo e a

mudança que esse discurso, que também se apresenta como denúncia do arcaísmo,

espera poder provocar.

Em A Canga, o pater poder, como força simbólica da unidade familiar, cujo

fundamento se encontra no princípio da unidade como condição para a sobrevivência do

grupo, gerador da submissão, contribui para a compreensão dessa imagem de Nordeste e

de seu universo de poder. À luz da análise em Bourdieu (1998), podemos compreender

a força da fala performática, que institui, delimita e classifica hierarquicamente os

grupos e seus discursos no mundo social em permanente conflito.

A violência, elemento da tragédia utilizada como estilo de linguagem

impactante, é analisada sob a perspectiva de Glauber Rocha, exposta em seu artigo e em

seu filme acima mencionados, que a apontam como denúncia social, que reconhecemos

2 Cinema, imagem e interpretação. In: Revista Tempo Social; Sociologia. USP, S. Paulo, 8(2): 63-104, outubro de 1996.

Page 20: Cinema Nordeste

10

também em A Canga, tributária da mesma cinematografia e parte do constante processo

de construção da narrativa histórica sobre a identidade nacional/regional.

A tragédia, usada por Marcus Vilar como enredo propício para falar de tempos

remotos, referentes às origens e aos mitos pelos quais os homens se explicam, mantém-

se como condição atual e será compreendida através de uma leitura de Aristóteles. A

consideração da tragédia desvelará um aspecto crucial d’A Canga na medida em que

nos permite trilhar caminhos que dêem sentido às condições de existência dos sertanejos

nesse lugar adverso, associando a ação de seus personagens aos motores da tragédia,

atos de grandeza tomados como referência identitária para a construção de uma

representação que atenda aos interesses dos grupos oprimidos dentro do mundo social.

As narrativas tradicionais universais, recontadas de geração a geração, que

apontam para o caminho da recriação do mundo e da regeneração da humanidade ─

como a narrativa do dilúvio dos tempos míticos, que reconhecemos na narrativa fílmica

analisada ─ são pontos de referência para uma leitura da identificação do Nordeste

enquanto lugar de origem e, portanto, talvez de renascimento do povo brasileiro. A

chuva, no final do filme A Canga, traz essa carga de recriação, imagem próxima das

visões escatológicas judaico-cristãs que tratam o dilúvio como uma regeneração dos

homens, possibilitando o acesso ao paraíso, onde não haverá mais seca e fome. Ela dá

múltiplos sentidos à narrativa apontando para a complexidade dos simbolismos nas

leituras dos produtos culturais.

Também buscamos, com base nos estudos de antropologia do cinema de

Massimo Canevacci (1984), um esquema de caracterização dos personagens de Vilar-

Solha. Para esse autor, o cinema representa na modernidade, a reificação dos antigos

ritos nos quais a cisão entre o sujeito e o objeto ainda não tinha sido plenamente

constituída. A idéia de que o cinema reproduz uma síntese entre o espetáculo e o

espectador, na qual o espectador absorve os aspectos ideológicos do filme como formas

quase míticas, permite-nos transitar entre os mitos e a história, na busca das imagens

arcaicas que povoam a memória coletiva, para entendermos como o mundo social é

apreendido em suas representações.

Nossa análise do filme, nos aspectos acima comentados, considerará

principalmente a função dos mitos para a compreensão da persistência da imagem seca

do Nordeste, a partir da delimitação, classificação e institucionalização de discursos e

imagens que promovem uma divisão regional dita “natural”. Interrogamo-nos acerca da

Page 21: Cinema Nordeste

11

relação entre a concretude a que se referem essas imagens e a permanência do discurso

da seca, apesar de ser claramente visível, no Nordeste real, a multiplicidade de situações

e paisagens físicas e sociais.

No terceiro capítulo, abordaremos a questão da autoria do produto cultural. No

caso do cinema, especificamente, consideramos o autor como uma pluralidade de “eus”,

pela diversidade de funções, de práticas e de relações indispensáveis no processo de

criação da obra fílmica, elegemos o núcleo autoral nas figuras do roteirista, do diretor e

diretor de fotografia. A obra fílmica, desse modo, é enriquecida pelas relações que essa

tríplice autoria estabelece ao longo de sua vivência, no próprio tempo de elaboração e

realização do filme.

Além de ressaltarmos, no caso do filme A Canga, a condição coletiva de sua

produção, incluindo vários atores sociais, destacamos o núcleo autoral da obra em foco,

o filme, ou seja, aqueles que assumem as funções do roteirista, do diretor e do fotógrafo.

A historiografia da autoria no campo cinematográfico é analisada com base em

Claude-Bernardet, que expõe as contribuições da revista francesa Cahiers du Cinéma

para a elaboração da “política dos autores”, que influenciou o cinema brasileiro nesta

questão. Esse autor, ao dialogar com os críticos de cinema brasileiros das décadas de

1950/60, traz a concepção de autoria na cinematografia brasileira com a especificidade

─ introduzida a partir de Gustavo Dahl e tomada como bandeira por Glauber Rocha ─

que vincula o estilo à correspondência entre a forma de linguagem e a temática que o

filme aborda, considerando-se as características sócio-políticas do país.

A partir desta articulação entre autor e contexto, tomaremos as lições de

Foucault quando trata da autoria como função. Essa contribuição é importante para a

percepção da forma indireta ─ através das representações ─ pela qual os diferentes

autores e os diferentes “eus” de cada autor emaranharam-se numa rede de

intertextualidade.

Partindo da discursividade que se instala e produz novas obras, herdeiras da

idéia originária, é que Foucault vê a função da autoria que se institucionaliza como tal

na medida em que o discurso que ela faz circular é aceito pelo grupo como sendo de tal

autor (autores), esclarecendo-se, assim, o caráter da autoria como construção histórica.

A representação, como forma de apropriação do mundo social, afirma Chartier

(1990), tem sua origem na autoria que seleciona, recorta, delimita, classifica e

Page 22: Cinema Nordeste

12

caracteriza aspectos desse mundo. Os autores da obras culturais o fazem projetando

sobre a sociedade as imagens correspondentes ao que pensam do seu mundo e de seu

tempo, e conforme os interesses do grupo em que estão inseridos, que se conflitam

internamente e com outros grupos. Assim sendo, consideramos o estudo da autoria

como fundamental para a compreensão das narrativas fílmicas como leituras originais

que interferem na configuração histórico–cultural de seu mundo social.

Em nosso estudo, trabalharemos também registro do making off d’A Canga,

como representação da representação, na qual se constrói e se afirma a dimensão das

autorias, segundo a imagem que o grupo de autores faz de si mesmo, apresentada de

forma harmônica, independente de tensões possíveis no âmbito do grupo autoral. Tal

representação da representação será, por outro lado, confrontada com o que

encontramos nas falas (entrevistas) das pessoas que assumimos como núcleo autoral do

filme, por assim se apresentarem no produto, o making off, no qual cada função ─ de

diretor, de roteirista e de diretor fotográfico ─ diz de sua marca no filme.

Em suma, nosso estudo tratou de evidenciar o diálogo do filme A Canga com os

outros filmes analisados no primeiro capítulo, permitindo percebermos a matriz da

tradição temática na vertente do Cinema Novo ao qual o nosso objeto de estudo se filia.

Analisamos também o diálogo interno ao filme, entre seus vários elementos narrativos,

e, por último, a relação do filme com cada um dos seus autores e com o contexto sócio-

cultural em que se insere a autoria.

Entendemos que a análise da representação fílmica por todos esses ângulos nos

permite uma leitura mais rica do mundo social que representa e de sua construção

histórico-cultural.

Page 23: Cinema Nordeste

13

CAPÍTULO I

A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE REGIONAL/NACIONAL NA

CINEMATOGRAFIA BRASILEIRA

1.1 A cinematografia brasileira e a construção da identidade nacional calcada no

regionalismo

Na cinematografia brasileira das três primeiras décadas do século XX, quando

ainda se apresenta de forma incipiente, já aparece a preocupação com a busca da

representação do “nacional”. Essa busca se manifesta como a valorização dos costumes

do interior, até à idealização da comunidade rural e indígena, conforme o processo

analisado por Galvão e Claude-Bernardet (1983, p.25-28) 3. A figura do sertanejo já

aparece, então, no cinema brasileiro, como um dos elementos de constituição do

nacional.

O nacional, todavia, nessas primeiras décadas, não aparece reduzido ao

“popular” e ao rural, pois, já então, surgem, embora em poucas produções e exibições,

as comédias urbanas, os “melodramas” tradicionais e os dramas históricos, como lembra

Paulo Emílio Salles Gomes (1980, p. 58-71) 4. A preocupação de construir simbolicamente

o nacional não se reduzia apenas aos aspectos geográficos, à exaltação da natureza, às

riquezas naturais e à extensão do território, como traços constitutivos. Já então

aparecem, como temática do cinema brasileiro, valores e práticas culturais através da

crônica dos costumes, do modo de vida, das crenças, ou seja, de tudo que se refere à

dimensão das subjetividades e das práticas culturais relacionadas à idéia de brasilidade.

A utilização do padrão estrangeiro, porém, como modelo para o enfoque de

conteúdos sobre o território e os valores nacionais era, naquele período, quase

3 Os autores contribuem para o estudo da representação do nacional na cinematografia brasileira, através das tradicionais representações da região nordestina, como um dos elementos para a construção da identidade cultural e da unidade social. 4 Através desse autor, percorreremos a trajetória da cinematografia brasileira, relacionando-a ao contexto político e econômico que a condiciona.

Page 24: Cinema Nordeste

14

inevitável, pois, tanto quanto a técnica e os instrumentos, muitos dos produtores

também eram estrangeiros imigrados, como destaca Paulo Emílio. Os primeiros filmes

exibidos e produzidos no Brasil foram feitos por portugueses e italianos.

A preocupação com uma representação do que é “nosso”, pela cinematografia

brasileira, segundo Galvão e Claude-Bernardet (1983, p.35-38) opõe, então, cineastas e

críticos de cinema; enquanto para alguns as representações das especificidades, da

simplicidade ou da pobreza são características expostas de brasilidade, vistas como

retrato do povo e como expressão do nacional, outros rejeitam essa visão que associaria

o país à miséria e à falta de progresso. Assim, a busca de representação de um “Brasil

moderno, urbano e cosmopolita,” constituirá outro caminho percorrido por essa

cinematografia. Essa segunda proposta estabelece-se com mais intensidade a partir do

processo de industrialização do país e a conseqüente expansão de centros urbanos, que

alteram a composição da sociedade brasileira trazendo à tona o empresariado e os

trabalhadores industriais, bem como os profissionais liberais. O cinema trata de exaltar

os valores estéticos dos setores mais modernos da sociedade e das áreas mais

desenvolvidas do país, repudiando as imagens esteticamente pobres, que considera

grotescas (Idem, p. 35-38).

O modernismo introduzirá uma nova concepção literária e artística, voltada para

a descoberta do Brasil, reforçando o sentimento nacionalista que busca, nas

peculiaridades regionais do país, uma especificidade para contrapor-se aos modelos

estrangeiros. Essa preocupação repercutiria em muitas obras literárias da década de

1930, que tomaram como enfoque os problemas sociais específicos da nação brasileira.

Posteriormente, essa literatura influenciaria a produção cinematográfica dos anos 1960,

especialmente, aquela vinculada ao Cinema Novo, que partirá da constatação da

situação nacional de dependência cultural imposta pela modernidade do capital

estrangeiro e buscará a compreensão do seu caráter a partir da análise antropológica e

sociológica das clivagens presentes na sociedade. Essa cinematografia não só explicitará

os pontos de contradição presentes nas relações entre diferentes grupos que coexistirão

no país na década de 1960, como defenderá a construção de uma estética própria e

produzirá discursos e imagens persistentes como representações que contribuem para a

formação das nossas identidades culturais.

Page 25: Cinema Nordeste

15

Salles Gomes (1980, p.72) 5 destaca o filme Favela dos Meus Amores, produzido

por Carmem Santos e dirigido por Humberto Mauro6, como exemplo da preocupação

com o popular na cinematografia da década de 1930. Paulo Emílio vê a participação de

habitantes de favela nessa produção como contemplação de um setor social enquanto

representante do povo. Ele percebe aí uma antecipação do neo-realismo do cinema

italiano do pós-guerra que mostra os problemas do mundo contemporâneo devastado

pela guerra, com o subdesenvolvimento, o desemprego e as condições sociais que, mais

tarde, influenciariam os nossos cineastas das décadas de 1950 e 1960.

De acordo com Galvão e Bernadert (1983, p. 63) o nacional, vinculado ao popular,

aparecerá também claramente no cinema brasileiro no final da década de 1940, com a

produção da empresa paulista Vera Cruz (1949), ao tipificarem-se figuras

representativas do povo brasileiro.

No entanto, não se podia simplisticamente considerar a Vera Cruz como a

empresa brasileira por excelência: “Antes, [a revista] Fundamentos via a Vera Cruz

como uma empresa 100% brasileira” (Fundamentos 4/60), depois a vê “comprometida

com o trust anglo-americano” (GALVÃO e BERNARDET, 1983, p.63) 7. Os mesmos autores

apontam a complexidade dessa questão, observando que

(...) na colocação de Nelson Pereira dos Santos, a simples oposição estrangeiro/nacional não dá conta da situação, o inimigo burguês não está apenas lá fora, está também aqui dentro (...) O filme nacional e popular que se opõe ao filme cosmopolita em qualquer lugar não é apenas diferente, não é apenas popular, mas, para Nelson, ele é anti-burguês (GALVÃO e BERNARDET, 1983, p. 68-69).

A Vera Cruz argumentava a seu favor o fato de vender, até para o exterior, a

imagem do Brasil como um país rico em expressões culturais decorrentes das

diversidades regionais. A empresa Vera Cruz produziu um dos maiores sucessos de

crítica na época, o filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, premiado em Cannes.

Propondo o Nordeste como temática nacional e tornando-se o primeiro sucesso

internacional, o filme, segundo os autores citados, comprovava a tese defendida pela 5 O autor, crítico de cinema, roteirista e estudioso da cinematografia brasileira, contribui com o seu mergulho nessa cinematografia, relacionando-a com as precariedades técnicas e de recursos decorrentes da própria situação de dependência econômica do país. Sua leitura da cinematografia brasileira permite compreender os elementos que construíram a linguagem cinematográfica do Cinema Novo e sua repercussão na cinematografia atual. 6 Favela dos meus amores. Rio de Janeiro, 1935. Prod: Brasil Vita Filmes. Dir.: Humberto Mauro. Fot: Osvaldo Nunes. Mot: Charles Whally. El: Carmem Santos, Jaime Costa, Rodolfo Mayer, Antônia Marzulo. 7A revista Fundamentos, fundada em 1948, abordava temas sobre cultura em geral e contava com as colaborações dos cineastas Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, e caracterizava-se pela defesa do cinema brasileiro.

Page 26: Cinema Nordeste

16

Vera Cruz de produção de um cinema que fosse, “simultaneamente, nacional e

internacional” (GALVÃO e BERNARDET, 1983, p. 117) 8.

Esse filme introduzirá imagens-clichê do Nordeste ─ chão rachado, cactos e

caveiras de boi ─ na cinematografia brasileira, tornando a representação específica

dessa região o protótipo do tipicamente brasileiro, que seduzirá os cineastas movidos

pela busca de traços reconhecidamente “nossos”, ou seja, de uma temática nacional.

Mesmo que inspirado no western americano, o discurso de uma identidade com base em

determinados setores sociais, ainda que estereotipados na narrativa fílmica, instala-se

para ficar. O sertão do Nordeste é representado como o lugar do atraso, fora dos padrões

civilizados, contribuindo para o mito do nordestino primitivo, já explorado por Euclides

da Cunha quando, em Os Sertões, descreve essa paisagem nordestina concluindo pela

necessidade de qualidades específicas dos seus habitantes para conseguirem sobreviver

numa área tão inóspita (CUNHA, 1982, p. 52-67) 9.

A publicação, em 1902, do livro Os Sertões, que relata a campanha do exército

brasileiro contra o arraial de Canudos, pode ser considerada o marco inicial da

preocupação com o drama da população do interior brasileiro, tornando-se, mais tarde,

ponto de referência para discursos e imagens de resistência, elaborados pelos

intelectuais frente a qualquer tipo de ameaça contra o povo ou a nação. A descrição dos

caracteres geológicos e topográficos do Sertão de Canudos, no interior da Bahia, por

Euclides da Cunha, tornou-se o cenário representativo da idéia de Nordeste,

constituindo-se como imagem predominante da região e também foi apropriada pelo

discurso regionalista das classes dominantes nordestinas que a ele recorrerão quando for

necessário defender seus interesses.

Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, multiplica-os e reflete-os, e refrata-os, num reverberar ofuscante pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam as acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia incomparável no fulgor fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida (CUNHA, 1982, p. 23).

8 Ver na obra a relação entre o regional e o nacional como fator de unidade social. 9 Importante para a compreensão da instituição do lugar, Nordeste, como ponto de referência das origens da identidade nacional.

Page 27: Cinema Nordeste

17

Na década de 1930, tal visão da terra e da sociedade do Nordeste reflete-se na

produção literária dos autores nordestinos, também portadora dessa busca pelo nacional

que se torna uma bandeira do Estado pós-Revolução de 1930. Para autores como

Albuquerque Jr. uma característica literária dessa produção é a noção de “saudade”

como elemento que entrelaça todos os enredos, provavelmente por ser criação de uma

intelectualidade ligada por parentesco ou afeto ao antigo grupo dominante, então em

vias de ser historicamente destituído de posses e poder (2001 p. 65-120). É, assim, sob a

forma de herança que se recuperam os traços de um discurso capaz de demarcar o lugar

denominado Nordeste como depositário das raízes históricas da nação. Essa vinculação

às origens lhes garante o lugar de antecedência, de prioridade na formação de uma

brasilidade que se inventa a partir dos primeiros colonizadores e seus descendentes.

Começa-se, assim, a privilegiar uma paisagem que se perpetuará na

cinematografia nacional, afirmando-se o espaço da seca como eminentemente brasileiro.

A área da seca é o que caracteriza a região nordestina retratada neste cinema, mas, em

geral, é utilizada como imagem de todo um Brasil arcaico, preso a formas rudimentares

de produção e relações patriarcais de poder, discurso próprio não apenas dos

regionalistas, mas também de uma proposta desenvolvimentista, que defende um

nacionalismo ligado à industrialização e à iniciativa privada. Tal imagem do Nordeste,

marcada pelo fenômeno da estiagem e seu cortejo de desgraças, já presente na

imaginação coletiva, serve, portanto, de reforço para a necessidade do progresso, da

integração, do desenvolvimento, de transformação nacional.

O Cinema Novo, que virá mais tarde, também reforçará as imagens da terra seca

como representação de todo o Nordeste, apesar de, na verdade, essa característica ser

específica de parte da região como normalidade num certo período do ano. Em anos

excepcionais, a estiagem se prolonga estabelecendo uma condição de anormalidade

climática com a drástica pluviométrica, que, então caracteriza a tragédia dos anos de

seca absoluta que inviabilizam a produção dos meios de subsistência das populações

sertanejas. Assim, o cenário torna-se quase um personagem das tramas, das narrativas

cinematográficas e literárias que a ele se referem, pois perderiam parte do sentido se não

fossem as condições adversas do meio em que se desenrolam.

Page 28: Cinema Nordeste

18

A utilização comercial do tema do cangaço nordestino pela Vera Cruz, com o

sucesso do filme de Lima Barreto, O Cangaceiro10, permitiu a difusão popular da

imagem cinematográfica do Nordeste e, através do diálogo dessas imagens com o senso

comum, com a literatura e com o universo acadêmico o estabelece como local arcaico,

rural e depositário das tradições do povo brasileiro.

O filme O Pagador de Promessas11, de Anselmo Duarte, baseado na peça de

Dias Gomes, segue os passos d’O Cangaceiro: tem também pretensões comerciais e boa

aceitação no mercado internacional, sendo premiado no festival de Cannes, em 1962.

No filme de Anselmo Duarte, porém, a câmara transita entre a imagem de representação

do Nordeste como terra seca com arbustos e folhagens característicos da região e a

imagem de áreas urbanas junto a praias cobertas de coqueiros; espaço urbanizado e

racional. O contraste entre litoral, visto como urbano e civilizado, frente ao sertão, rural,

desolado e arcaico, recoloca a discussão da representação da região nordestina como

lugar de chão inóspito e improdutivo. Nesse chão, as figuras simples do povo, em suas

expressões de fé, são vistas como subversivas ou loucas por suas práticas e valores

questionáveis pela política oficial e religiosa, e incômodas para a organização

sociocultural dominante, contrapondo-se à ordem, num alerta para a necessidade de se

estabelecerem formas de integração e diálogos entre os diversos setores sociais. O

conflito entre campo e cidade, nesse filme, aglutina setores sociais, expõe contradições

sócio-culturais e obtém toda a sua força do personagem Zé do Burro que representa o

nordestino rural, e do final apoteótico que não difere de obras convencionais, dentro de

um padrão mais comercial.

No Congresso Paulista do Cinema Brasileiro de 1952, Nelson Pereira dos

Santos, cineasta ligado à corrente que defendia o cinema nacional contra as amarras dos

modelos internacionais e contra a invasão do mercado nacional pelos filmes

estrangeiros, afirma, conforme as citações de Galvão e Claude-Bernardet:

O conteúdo é o fator preponderante para aceitação do filme pelo público. As bilheterias dizem que o público brasileiro em primeiro lugar aprecia as histórias dos filmes brasileiros, pois ele fica na

10 O Cangaceiro. São Paulo, 1953. Produção: Vera Cruz. Direção: Lima Barreto. Fotografia: H.C.Fowle. Montagem: O. Hanfericheter. Elenco: Alberto Ruschel, Milton Ribeiro, Marisa Prado, Vanja Orico (Apud RAMOS, 1983, p. 166). 11 O Pagador de Promessas. Rio de Janeiro, 1962. Produção: Oswaldo Massaini. Direção: Anselmo Duarte. Roteiro: Anselmo Duarte. Fotografia: Henry Chick Fowle. Elenco: Leonardo Vilar, Glória Menezes, Dionísio de Azevedo, Norma Bengel, Geraldo Del Rey. Fonte: <http://www. adorocinemabrasileiro.com.br/ filmes/ pagador-de-promessas/ pagador-de- promessas. Asp>. Acesso em 04/11/2006.

Page 29: Cinema Nordeste

19

expectativa de ver na tela sua vida, seus costumes. (...) Conteúdo nacional é fator decisivo para a conquista de mercado. Assim, o nosso cinema estaria desenvolvendo–se mentalmente e atuando profundamente na vida moral e social. As fontes para alcançar estes conteúdos serão principalmente a literatura, o folclore e a história (GALVÃO e BERNADERT, 1983, p. 74-75).

Esse cineasta, junto com Alex Viany, crítico e também cineasta, identificou-se

com o projeto cultural cujo foco principal é a crítica social, numa profunda preocupação

com a construção de personagens e situações brasileiras, tendo como fonte a literatura

da década de 1930, principalmente as obras de Graciliano Ramos e de Jorge Amado

(RAMOS, 1983, p. 22) 12. Como exemplo dessa proposta de engajamento na ampla

discussão sobre o caráter nacional e popular da cinematografia, defendida por alguns

cineastas desse período, podemos citar o filme, Rio 40 Graus13, de Nelson Pereira dos

Santos, rodado entre 1954-55. Esse filme é considerado por Marcelo Ridenti como um

dos precursores do Cinema Novo, ao expor, na tela, a vida dos favelados no Rio de

Janeiro (2000, p.69). Por essa mesma razão, o filme foi proibido pela polícia do Distrito

Federal, em 1955, porque, de acordo com o chefe de polícia, exibia uma imagem

degradante do Rio de Janeiro. Rio 40 Graus só foi lançado em 1956, após uma

campanha para sua liberação.

Nesse filme, o diretor não separa, mas sim soma as idéias do nacional e do

popular, visando a comunicação mais direta com o povo. Portanto, a preocupação da

busca pelo nacional e pela problematização das questões sociais marcará a

cinematografia dos anos 1960, tanto quanto outras expressões artísticas analisadas por

Ridenti como manifestações de um romantismo revolucionário, que também contribuiu

para a visibilidade do Nordeste como espaço de denúncia social. Segundo o autor, a

busca pelo autêntico homem do povo, com raízes rurais, visto como isento da

contaminação da modernidade urbana capitalista, encontra-se presente em diversas

versões do romantismo rebelde que compõem os movimentos sociais, políticos e

culturais do período pré e pós 1964:

O romantismo revolucionário esteve presente, em versões diferenciadas, tanto nos programas de grupos de esquerda, como nas

12 Esse autor, que discute a relação Estado e cinema brasileiro, ao vincular a atuação do Cinema Novo ao universo cultural sob o controle do Estado ditatorial, permite-nos ver a busca pelo homem brasileiro como construção de uma identidade cultural dentro do embate entre a política cultural estatal e a proposta cinemanovista. 13 Rio 40 Graus. Rio de Janeiro, 1955. Direção: Nélson Pereira dos Santos. Roteiro: Arnaldo de Farias e Nelson Pereira dos Santos. Elenco: Roberto Bataglin, Glauce Rocha e Jece Valadão. Fonte: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio,_40_graus > Acesso até 09/05/2007.

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20

produções artísticas, que marcaram diferentes conjunturas na sociedade brasileira (...) Em diversos momentos, ao longo dos anos 60, a revolução brasileira - em suas diversas acepções, em geral tomando como base principalmente a ação do camponês e das massas populares, em cujas lutas a intelectualidade de esquerda estaria organicamente engajada, foi cantada em verso e prosa na música popular, nos espetáculos teatrais, no cinema, na literatura e nas artes plásticas (RIDENTI, 2000, p.43) 14.

Galvão e Claude-Bernardet apresentam-nos outro precursor do Cinema Novo: o

documentário Aruanda15, realizado na Paraíba, em 1960, por Linduarte Noronha,

destacado por sua repercussão no universo da cinematografia brasileira, provocando

entre os jovens cineastas a busca por uma linguagem própria para o cinema nacional.

Apesar do seu “estado quase bruto”, ou justamente por isso, o filme permite uma visão

do estilo e da configuração que o cinema brasileiro deveria seguir. O cotidiano da

comunidade sertaneja, num ermo distante, no qual impera a mais absoluta pobreza, na

luta pela sobrevivência através da fabricação de utensílios de barro, realça as relações

primitivas e rudimentares de produção, enfatizando a dependência do homem frente à

natureza, apresentada de forma a expor o povo sem maquiagem ou artifício e instituir os

lugares desertos como pontos de origem das raízes desse povo. O estado bruto das

imagens, correspondente ao tema, evidencia-se na escassez de recursos técnicos e

formais, com uma fotografia contrastante em que a luz não é elaborada e capta de forma

crua o sol queimando, o que denuncia a pobreza de recursos técnicos na produção da

obra e da situação do próprio homem em foco, forma de expressão estética já apontada

por esses mesmos autores como importante aporte de alguns cineastas desse período.

Essa experiência vai marcar a cinematografia brasileira, pois o documentário de

Linduarte Noronha inspira cineastas que buscavam a adequação de suas obras à

realidade e que passam a utilizar fortemente esse tipo de imagens nas representações do

Sertão nordestino, já colocado como expressão de nossa brasilidade na obra Os Sertões,

de Euclides da Cunha (1983, p.197). Inaugura, assim, a fotografia que se tornaria marco

da imagem genuinamente brasileira, apresentando luz sem filtro, com uma luminosidade

inquietante. Essa técnica, em seguida, utilizada por Nelson Pereira dos Santos em Vidas

14 É a caracterização da época em que o Cinema Novo produz as suas obras fílmicas, das quais algumas são pontos de referência para o nosso objeto de análise. Torna-se assim indispensável referirmos-nos ao pensamento desse autor sobre o que os artistas consideravam revolucionário, e ao conceito de romantismo que lhe serve para a compreensão da produção artística nos anos de 1960 e 1970. 15 Aruanda. Paraíba, 1960. Direção: Linduarte Noronha. Roteiro: Linduarte Noronha. Fotografia e montagem: Rucker Vieira. Fonte:< http://portacurtas.uol.com.br/filme.Asp/ cód.= 4746> Acesso em 04/11/2006.

Page 31: Cinema Nordeste

21

Secas16, filme produzido em 1963, traz a luz “estourada”, mostrada em toda sua

intensidade, fazendo parecer que a caatinga está incendiada.

Em Vidas Secas, as cenas filmadas dentro de casa são especialmente escuras

para contrastarem com a claridade externa e acentuar a luminosidade cruel, cáustica e

enlouquecedora, introduzida na primeira cena do filme pela intensa luz branca,

ofuscante, denunciadora da dor e do abandono que sofre a família de retirantes,

chefiados por Fabiano, que caminha suada e obstinada por uma região deserta, sobre o

solo calcinado, inteiramente desprovido de meios para a sobrevivência humana. Os

rostos dos retirantes são retratos do sofrimento, mas caminham, mesmo assim, na

certeza de que lhes resta apenas viver a sua vida seca e injusta.

1.2 - O Cinema Novo e a busca romântica pelo homem brasileiro

O fim da década 1950 e o início dos anos 1960 apresentam nos movimentos

sócio-culturais o traço que Ridenti denominou de “romantismo revolucionário”. No

Brasil, entre os eventos que provocaram, que impulsionaram essa perspectiva de

Revolução entre nós ele destaca:

(...) algumas marcadas pelo ideário socialista e pelo papel destacado dos trabalhadores do campo, com a Revolução Cubana de 1959, a luta de Independência da Argélia em 1962, além da antiimperialista em curso no Vietnã, lutas anti-coloniais da África (RIDENTI, 2000, p.33).

Nos países periféricos, no âmbito do desenvolvimento capitalista cresce a

esperança na participação das massas na transformação social, na perspectiva de uma

versão terceiro-mundista de movimentos revolucionários não alinhados com as políticas

dos países capitalistas ocidentais, nem com o socialismo vigente no Oriente nos estados

socialistas. Essa perspectiva é também revestida de certo romantismo e apoiada nas

classes médias intelectualizadas, que se viam obrigadas a se tornar trabalhadores

assalariados pelo efeito da acelerada mercantilização das sociedades contemporâneas

(RIDENTI, 2000, p.35).

Segundo Ridenti, no Brasil, as exigências por melhorias nos setores sócio–

econômicos feitas pelos trabalhadores rurais e urbanos desestruturam a sociedade, que

16 Vidas Secas. Rio de Janeiro, 1963. Prod: Luis Carlos Barreto, Herbert Richers, Nelson Pereira dos Santos e Danilo Trelles. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Fotografia: Luis Carlos Barreto e José Rosa. Elenco: Átíla Iório, Maria Ribeiro, Jofre Soares. Fonte: <http:// www. adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/vidas-secas-asp> Acesso em 04/11/2006.

Page 32: Cinema Nordeste

22

já não se contenta com a direção política que emperra as reformas de base reivindicadas

pelos setores populares que põe em xeque a estabilidade das instituições, o direito de

propriedade e a coercitividade do Estado. A mobilização pelas reformas estruturais

conta com marcante presença das esquerdas e com as lideranças trabalhistas e

nacionalistas, formando uma corrente difusa, que se coloca como uma força para a

superação do capitalismo e para a construção do “homem novo” enraizado nas tradições

populares (RIDENTI, 2000, p.52-55).

A reação, no Brasil, ao processo de industrialização, urbanização, concentração

de rendas, impostas pelo desenvolvimento capitalista, induz os trabalhadores e demais

despossuídos a reivindicações que são incorporadas pelos programas de vários grupos

de esquerdas e pelos artistas, que se sentem chamados a se tornarem porta-vozes dos

setores sociais que buscam a transformação das condições sociais. Aí, também, Ridenti

reconhece uma tendência romântica, pois esse movimento identifica o camponês como

representante por excelência de todo o povo oprimido, visto como a genuína expressão e

raiz do homem brasileiro e de seus valores. Ocorre a construção de uma identidade

abrangente de todos os oprimidos que identifica o campo, local marcado pelo

misticismo e pela violência, como o espaço onde se trava a luta libertária (p. 24-25) 17.

No campo da produção cinematográfica os cineastas se dividiam quanto à

proposição de uma cinematografia atrelada ao conteúdo nacionalista. Na década de

1960, duas vertentes se conflitavam acerca da proposta de industrialização do cinema

nacional, estando o cerne da polêmica na questão da temática a ser desenvolvida: se

deveria privilegiar um conteúdo nacional ou um conteúdo cosmopolita, alternativas que

Ramos assim caracteriza:

Surge a contrapartida clara e bem demarcada entre uma tendência que se vinculava ao forte centro de irradiação do nacionalismo da época, atravessando a cultura e o cinema pelo binômio “desalienação-libertação nacional”, e a concepção que submetia o “nacional” a valores ditos universais, caracterizando uma postura “universalista-cosmopolita” (RAMOS, 1983, p. 39).

Naquele contexto, porém, a reatualização da renovação estética da década de

1920 e da literatura social da década de 1930 é que se torna referência para o projeto

17As análises desenvolvidas sobre as manifestações políticas e culturais, a partir das décadas de 1950 e 1960, como produtos de uma visão romântica e revolucionária do mundo, nos servirão para a compreensão da permanência de uma tradição na cinematografia brasileira que se mantém em nosso objeto de estudo.

Page 33: Cinema Nordeste

23

político nacionalista, exacerba o discurso de uma “autenticidade” nacional, adotando,

muitas vezes, uma postura paternalista frente à cultura popular que acaba por

predominar no cinema e nas artes em geral.

O filme de Nelson Pereira dos Santos, fiel ao livro publicado em 1938, Vidas

Secas, de Graciliano Ramos, autor que se destacara na literatura dos anos 1930, mostra

as características gerais dessa cinematografia, ou seja, o caráter de denúncia social e de

correlação dos aspectos climáticos e geológicos com a organização opressora do poder e

da produção. Por outro lado, introduz uma abordagem poética, dentro de um estilo de

linguagem seco e rude, construindo personagens que, entregues ao próprio abandono,

tangidos pela seca, não conseguem articular mais que meias palavras, pois se vêem

como bichos, destituídos de sua humanidade, num primitivismo assustador e num

imobilismo ditado pela seca e pelo ambiente de submissão e silêncio imposto, que os

obrigam a um eterno retorno. Nesse ambiente os homens são incapazes de nomear as

coisas e de argumentar ou defender-se diante da opressão dos coronéis, patrões cruéis e

exploradores. A impossibilidade de comunicação provoca o isolamento e a solidão,

aprofundando a escassez generalizada de palavras, de afetos e de recursos materiais que

marca suas vidas, deixando-os à mercê de violenta forma de manipulação, através da

coação, mas, sobretudo do controle do saber, privados da articulação das palavras que

os libertariam, que lhe permitiria a argumentação, a comunicação de idéias. A família de

Fabiano move-se em busca da sobrevivência, do domínio da palavra, da comunicação

dos sonhos que possam dar sentido ao caminhar sob o sol escaldante, já que, como

sonha Sinhá Vitória, esse caminhar pode levar à cidade onde não há isolamento e onde

os seus filhos poderão aprender as palavras (RAMOS, 1995).

É para destacar a questão agrária em discussão na década de 1960, segundo

Célia Aparecida Ferreira Tolentino (2001), que Nelson Pereira dos Santos, através do

processo de embrutecimento dos seus personagens, retoma a denúncia de Graciliano

Ramos contra as condições socioeconômicas das décadas de 1930 e 1940, que se

mantêm na exploração dos desfavorecidos. Os problemas dos retirantes, narrados por

Graciliano, permitem trazer à tona o subdesenvolvimento do país, assim pensado por

Nelson Pereira dos Santos, e por outros jovens críticos e cineastas que integraram o

movimento cinemanovista. Célia Tolentino faz notar que, também nesse filme, a

narrativa do drama dos retirantes e a descrição do sertão seco, marcado por relações de

trabalho centradas na exploração e pela crescente concentração de terras, além do abuso

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24

de poder, fazem da seca e da escassez a representação da correlação entre a ausência de

recursos materiais e a forma de poder instituído:

Subscrever os problemas do Nordeste brasileiro ao subdesenvolvimento é uma atitude comum para a época, assim como tomar a particularidade do capitalismo em versão brasileira particularidade do capitalismo por ausência. Isso incluía a dificuldade de entender a maior parte da miséria como resultado da forma específica que o uso da propriedade e da força de trabalho adquirem no Brasil desde a sua condição colonial (TOLENTINO, 2001, p. 147)

18.

Esta visão do subdesenvolvimento era tida como uma característica do

capitalismo no Brasil, por alguns cineastas que atribuíam a dependência econômica e a

colonização cultural à falta do pleno desenvolvimento do capital nacional.

O livro Raízes da indústria da seca: o caso da Paraíba (1993) 19, de Lúcia de

Fátima Guerra Ferreira, permite-nos entender a relação da seca com o abuso de poder,

aliada à perpetuação de formas arcaicas de produção. De acordo com a autora, o sistema

oligárquico que controlava famílias e dependentes, detentor, também, do controle

político, econômico e fundiário, permitia a continuação de uma situação que, desde a

seca de 1877-1879, com seu cortejo de flagelos e concentração de retirantes, se tornou

marco do discurso dos representantes políticos nordestinos que reivindicavam a

liberação de verbas governamentais para obras contra a seca. Obras que seriam

realizadas dentro das cercas dos grandes proprietários, e a serem empregadas em

“frentes de trabalho” que se concretizavam, de fato, na utilização dos flagelados em

trabalhos forçados, gerando-se assim uma prática política que alimenta os efeitos

calamitosos da seca:

Na verdade a seca afeta toda a economia nordestina, atingindo pobres e ricos, embora com intensidades diferentes. Enquanto a lavoura de subsistência do pequeno agricultor é totalmente destruída pelas estiagens prolongadas, o grande proprietário, que depende do algodão e da pecuária, tem condições de minorar seus prejuízos. Isso ocorre não só pelas características da cultura algodoeira, mas, também, porque as reservas d’água dos açudes particulares são destinadas prioritariamente para o gado e raramente para a população pobre, que fica sem água sequer para beber (FERREIRA, 1993, p.127).

18A autora, ao analisar a sociedade brasileira através do enfoque do mundo rural no cinema brasileiro, em sua diversidade estética e temporal, aponta para as representações do rural/agrário como imbricação da obra de arte com o contexto histórico cultural, permitindo-nos a observação da construção de identidades culturais. 19 O entendimento da seca como instrumento político de grupos sociais perpassa o discurso do grupo no poder, na época enfocada pela autora e ainda permanece apesar do uso de novos mecanismos tecnológicos, pois a sua condição catastrófica beneficia a manutenção dos herdeiros da estrutura política montada durante a implantação da república.

Page 35: Cinema Nordeste

25

Nelson Pereira é comentado por Galvão, Bernardet, Ramos e Tolentino, que

estudam a cinematografia das décadas de 1950, 1960 e 1970, a partir de diferentes

perspectivas. Vinculada ao nacional e ao popular pelos dois primeiros autores,

relacionada ao Estado pelo terceiro e, finalmente, relacionada ao rural pela última

autora. Esses autores reforçam o traço da construção de uma imagem nordestina na obra

fílmica Vidas Secas.

A caracterização da região nordestina como seca, com relações pré–capitalistas,

técnicas rudimentares, que tornam a produção dependente dos ciclos da natureza,

aparece muitas vezes na literatura e na cinematografia brasileira como denúncia das

condições de subdesenvolvimento do país, da exploração e do abuso de poder dos

coronéis, que utilizavam o fantasma da seca para transformar o trabalhador em agregado

inteiramente dependente, sujeito a contas fraudulentas, à expulsão e à violência,

impossibilitado de concretizar o mais simples dos sonhos.

No filme de Nelson Pereira dos Santos, os sonhos de Sinhá Vitória, que almeja

escola e roçado próprio para seus filhos, não têm ressonância em Fabiano porque a

escassez material passa a ser uma escassez de afeto e de comunicação. Além disso, na

prática diária e com sua falta de saber que carece de maior capacidade de abstração,

Fabiano diferenciava-se de sua mulher que sabia fazer contas com o auxílio de

sementes. Isso impossibilitava o diálogo entre o casal, dificultando a ação

transformadora dentro do universo local. A responsabilidade dessa ação é transferida

pelo diretor para a sociedade que recebe o filme, porquanto esse é o papel atribuído à

cinematografia com que Nelson Pereira dos Santos se identifica e que difunde propondo

a representação do nacional, deslocada para a região nordestina, como um mundo

arcaico que, embora rico em tradições culturais, ainda não está pronto para fazer as

mudanças necessárias, mas chama os espectadores à consciência social.

O filme, Deus e o Diabo na Terra do Sol 20, de Glauber Rocha, produzido em

1963, também expressa a impossibilidade da transformação enquanto o povo não tomar

conhecimento das formas simbólicas coercitivas que lhe são impostas pelos grupos

detentores do poder.

20 Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro, 1964. Prod: Copacabana Filmes/ Jarbas Barbosa / Luis A. Mendes. Direção: Glauber Rocha. Roteiro Glauber Rocha e Walter Lima Jr. Fotografia: Waldemar Lima. Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Maurício do Valle, Othon Bastos, Lídio Silva. Fontes: <http://pt wikipedia. org/wiki/ Deus e o Diabo na Terra do Sol.>; <http://www. adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/deus-e-o- diabo/deus-e-o-diabo.Asp> Acessos em 04/11/2006.

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26

Inicia-se com uma imagem feita do alto, como se do céu víssemos o vasto

sertão, sem fronteira, uma imensidão de terra seca e com rala vegetação; depois, é

enquadrada uma caveira de boi, reforçando a imagem-clichê sobre esse espaço, que teve

como matriz, o início do filme Aruanda, retomado em Vidas Secas e, bem mais tarde,

na abertura do filme A Canga (de Marcus Vilar, 2001). Todos têm o mesmo cenário

precedendo a introdução das personagens em cena. Essa fotografia se constituirá na

imagem fundante de um lugar que representa o relicário das raízes do povo brasileiro,

marcando um estilo nacional que se contrapõe ao estilo imposto pelos filmes

estrangeiros. O filme de Glauber se faz na década de 1960, momento marcado por

intensa discussão política e estética na cinematografia que, segundo ele:

De Aruanda a Vidas Secas o Cinema Novo narrou, descreveu, discutiu, analisou, exercitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria (ROCHA, 1981, p. 30).

Em seu filme, Glauber Rocha toma o messianismo e o cangaço como formas de

rebeldia primitiva que apontavam para a possibilidade da transformação do

conformismo, visível na figura do Fabiano de Vidas Secas, na conscientização política

para a qual o diretor propõe-se a contribuir com sua obra fílmica.

A eloqüência e a música, neste filme, são opostas à falta de musicalidade e de

diálogos do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Glauber Rocha utiliza a

narrativa do cordel como uma de suas fontes; com esse instrumental introduz aspectos

de linguagem próprios da cultura brasileira. Apropria-se desta forma da literatura

popular para trazer uma história da literatura da década de 1930 de volta à cena, desta

vez na tela do cinema e num contexto agitado por discussões sobre a reforma agrária e

sobre os caminhos para um cinema autônomo e independente (TOLENTINO, 2001, p. 174-

175).

A narrativa fílmica de Glauber representa a vida do vaqueiro Manuel que,

vivendo numa miséria esmagadora decorrente de uma produção primitiva e de uma

violência insuportável, é levado, num momento de desespero pela exploração sofrida, a

matar o seu patrão. Manuel, assim, tornando-se consciente das humilhações e da

exploração, rompe com a opressão e tenta recuperar um pouco de sua humanidade que

era cotidianamente suprimida. É, então, obrigado a fugir para a caatinga com sua

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27

mulher, Rosa, e se junta ao bando de fanáticos seguidores do Santo Sebastião, um

profeta messiânico, portador de um discurso que afirmava: “O mar vai virar sertão e o

sertão vai virar mar”, prometendo ao pobre riqueza, no reino de Deus, e pobreza para o

rico, no inferno. Tal discurso remete aos milenarismos da tradição judaico-cristã,

recuperados por Glauber Rocha por mexerem com o imaginário coletivo, em que a

esperança de recuperação do Paraíso mobiliza os sonhos e permite suportar a dureza e a

concretude da vida. Portanto, ao retratar uma sociedade injusta, esse cineasta se apropria

do espírito profético, que propõe um mundo novo como instrumento de transformação,

mas acaba por desmistificá-lo na cena final, em que mostra a corrida livre de Manuel

pelo sertão que se transforma em mar revolto, revolucionário.

Eliade atribui ao mito do milenarismo uma função de otimismo que acalenta o

sonho de um mundo melhor, cujo advento, porém, só ocorreria após uma catástrofe

purificadora.

Este mundo – o Mundo da História – é injusto, abominável, demoníaco; felizmente, ele já está em vias de decomposição, as catástrofes já se iniciaram, este velho mundo já começa a fender-se de todos os lados: muito em breve ele será aniquilado, as forças das trevas serão definitivamente derrotadas, os “bons” triunfarão e o paraíso será recuperado. Todos os movimentos milenaristas escatológicos dão provas de otimismo (ELIADE, 2000, p.64-65) 21.

Após a morte de Sebastião, executado por Rosa, numa expressão de violento

amor pelo marido e pelo desejo de libertá-lo da loucura imposta pelo Santo, o casal

fugitivo e despossuído se vê sem outra escolha senão a de juntar-se ao bando de

Corisco, apresentado como o cangaceiro de “duas cabeças”, debatendo-se entre o desejo

de uma vingança pessoal e a possibilidade de uma ação mais ampla em defesa de um

povo oprimido. Sem conseguir atinar com o sentido do derramamento de sangue,

Manuel entrega-se cegamente a atos de brutalidade e sadismo sob o comando do

cangaceiro.

Manuel, porém, sobrevive à catástrofe, o massacre dos fanáticos (“Deus”) e dos

cangaceiros (“Diabo”), provocada por Antônio das Mortes. “Antônio das Mortes,

matador de cangaceiros”, é personagem de consciência ambígua, pois se vê como

jagunço que recebe dinheiro dos representantes do poder, mas percebe que suas vítimas

não têm consciência da situação em que vivem: o contexto social que produz o cangaço

21O autor estuda o mito da origem, na sua análise dos mitos e sua relação com a realidade social, possibilitando–nos ver o milenarismo como um dos fatores explicativos para a organização social em questão, visto que, para esse autor, o mito ajuda compreender como a sociedade está constituída.

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e o messianismo. Assim, apesar de ver-se como jagunço, projeta-se também como

aquele que liberta o povo dos mitos, permitindo, por seus atos, que o homem do povo se

torne capaz de exercer seu papel na história porque “a terra é do homem, nem de Deus

nem do Diabo”. Poupado do massacre, com sua mulher, como testemunhas dos atos de

Antônio das Mortes, na cena final do filme Manuel sai em desabalada corrida pelo vasto

sertão, não se detendo nem quando Rosa cai ao chão, e prossegue em movimento

enquanto a superfície da terra sertaneja se transmuta em um mar revolto, símbolo da

dinâmica da transformação revolucionária que o filme busca contemplar com a proposta

de engajamento.

O filme, rico em imagens resultantes da análise social, econômica e política e da

apreensão das formas de expressão do povo nordestino, torna-se uma contundente

representação dos problemas do campo no Nordeste e no Brasil. A abordagem de

Glauber Rocha, nesse filme, não se limita a uma visão maniqueísta, mas expõe as

contradições de Manuel que, de vaqueiro, torna-se matador do patrão, depois seguidor

do santo missionário e finalmente cangaceiro, em uma épica jornada, na qual a terra,

que pertence ao homem, não a ‘Deus e nem ao Diabo’, só pode ser alcançada no

percurso transformador e na agitação das convulsões sociais expressas nas imagens do

mar revolto invadindo o sertão.

A linguagem nacional popular torna-se o objetivo a ser atingido pelos novos

cineastas, preocupados com a realidade social. Assumem o homem brasileiro como

foco e adotam uma técnica própria que rejeita o formalismo e os valores estrangeiros,

valoriza a secura e o despojamento da fotografia direta para a aproximação da realidade.

Essas posturas são coerentes com a preocupação fundamental dos cinemanovistas que

viam como sua missão a mobilização da sociedade rumo à transformação

revolucionária, o que parecia exigir que veiculassem nas suas narrativas fílmicas, uma

representação unificada do país e do povo, deixando de lado as imensas diversidades. A

fundação de uma nova nação pelo povo de uma região inóspita, que precisou ser

valentemente desbravada, é a visão de resistência escolhida pelos cineastas, através da

qual estabelecem sua identificação com os movimentos sociais.

O culto ao povo projeta a idéia de um herói mítico, transformador das condições

sociais, herói esse significando todas as categorias de oprimidos catalisadas numa força

revolucionária cuja identificação se dá através da posição de classe. Tal interpretação

sociológica para a sociedade brasileira se traduz, nesses filmes, pela insistência em

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29

ações impulsivas, incontroláveis, perigosas e explosivas para descrever o Nordeste

como lugar de representação do povo e da origem da nação. Esses conjuntos de traços,

muito evidentes no Cinema Novo, permitem, sem dúvida, enquadrá-lo como expressão

do “romantismo revolucionário”, como o faz Ridenti, com base no conceito formulado

por Löwy e Sayre, para caracterizar o cinema brasileiro e outras criações artísticas da

década de 1960 (RIDENTI, 2000, p.29-30). É, afinal, esse conjunto de traços que também

nos faz reconhecer, no filme A Canga, ao qual voltaremos mais adiante, o personagem

Zé como detentor da carga heróica do filme, como aquele que questiona o pater poder

enquanto representação do mando dominador e da exploração 22.

O Nordeste, palco das Ligas Camponesas na década de 1950, inspirará a escolha

da figura heróica do camponês como símbolo não apenas de uma classe, mas de um

povo unificado e revolucionário, impregnado de poder sagrado, evocado para revigorar

a concepção de uma identidade nacional que teria permanecido a mesma desde um

passado que busca o imemorial e mítico. Trata-se de um processo semelhante ao que

nos apresenta Hobsbawm nas suas discussões sobre o termo “tradição inventada”, que

se aplica à busca de recriação de um passado para institucionalização de uma proposta

nacional presente. Este autor faz notar que em certas situações, o passado elegido como

sagrado nem sempre é tão longínquo, mas, no caso da construção da identidade nacional

com base na transformação ou resistência de uma classe, articulam-se as velhas e

unanimente reconhecidas imagens dos camponeses para compor a representação de um

povo com virtudes de continuidade histórica, adequada às exigências do contexto

presente (HOBSBAWM E RANGER, 1997, p. 9-10) 23. Portanto, buscar uma origem do povo

brasileiro é voltar ao “tempo forte”, mencionado por Eliade como tempo de origem, que

permitirá, de certo modo, uma nova criação, uma nova nação, colocando-se, assim, nas

mãos do povo mítico a missão revolucionária que o mundo moderno atribuía à ação de

uma classe, de um partido ou de uma personalidade política. A “perfeição do princípio”,

ligada à idéia da perfeição e da beatitude, e fundamentada no mito da origem, é

22 As obras artísticas com as características do romantismo rebelde citadas por Ridenti são muitas, mas destacamos os filmes O Pagador de Promessas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, que focalizam no camponês a possibilidade de transformação social. 23 A “tradição inventada” é entendida por Hobsbawm como “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWM E RANGER, 1997, p.15).

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projetada para o futuro atemporal, que restaura o estado “paradisíaco” inicial, idealizado

como superação futura da atual situação cultural e socioeconômica (ELIADE, 2000, p. 52) 24.

Podem-se reconhecer esses processos na identificação da nação brasileira

buscada pelos cineastas do Cinema Novo em suas obras, com o intuito de levantar

discussões sobre o caráter de dependência socioeconômica e cultural do país, essenciais

às transformações que a sociedade brasileira requisitava, segundo a visão desse

movimento cinematográfico. A necessidade de resgatar a representação de um povo

originário de uma mesma nação, num tempo remoto, implica na eleição do homem

simples do povo como depositário das características simbólicas deste povo primordial,

articulando elementos do passado aos novos elementos para a construção da identidade

nacional.

Fiéis à temática geral da nova tendência, focalizando o homem simples do povo

brasileiro, os filmes Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, o documentário

Aruanda de Linduarte Noronha e os curtas-metragens, Arraial do Cabo, de Paulo César

Saraceni, e Um Dia na Rampa 25, de Luís Paulino dos Santos, que mostra um dia de

trabalho na rampa do Mercado Modelo, em Salvador, são experiências incorporadas ao

movimento denominado de Cinema Novo, cujos fundamentos, experimentos e

propostas foram divulgados principalmente pelos cineastas Glauber Rocha, Gustavo

Dahl e Claude Bernardet, dentre outros (ROCHA, 1981) 26.

Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Leon Hirszman,

Joaquim Pedro de Andrade, Eli Azevedo, Miguel Borges, Luiz Paulino, Gustavo Dahl,

David Neves, Claude-Bernardet, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Carlos Diegues,

Miguel Torres, Paulo César Saraceni, dentre outros, desde o princípio integraram o

movimento do Cinema Novo. Inspiravam-se na literatura da década de 1930 e no

movimento modernista da década de 1920, vanguardas da busca da verdadeira imagem

do povo brasileiro em suas expressões sócio-culturais. Como definiu Gustavo Dahl,

citado por Rocha: 24 Ao discutir o mito da origem, o autor nos fornece importantes luzes para a compreensão de fenômenos que povoam a imaginação coletiva e servem de modelo para a conduta humana, pois falam do que teria ocorrido de forma sacralizada, de uma realidade que até hoje permanece. 25 Arraial do Cabo. Prod: Joaquim Pedro, Sergio Montagna, e Geraldo Markan. Direção: Paulo Saraceni. Texto: Cláudio Mello de Souza. Narração: Ítalo Rossi. Fonte: < http:// www.contraponto.com.br.> Acesso em 20/02/2007. Um dia na rampa. 1956. Direção: Luis Paulino dos Santos. Fot: Waldemar Lima. Colaboração Glauber Rocha. < http:// ptwikipedia org/wiki. Um dia na rampa> Acesso em 20/02/2007 26 Livro polêmico e instigante sobre as imagens diversas do cinema brasileiro entre as décadas de 1960 e de 1980, porém centraremos o nosso enfoque na Eztetyka da Fome, como crônica social engajada que se manifesta culturalmente num ensaio vigoroso sobre fome/violência.

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Não queremos Eisenstein, Rosselini, Bergman, Felini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. O nosso cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o de Humberto Mauro que nos deu em Ganga Bruta nossa raiz mais forte (ROCHA, 1981, p.17).

Concluindo, Glauber afirma:

No Brasil o cinema novo é uma questão de verdade e não de fotografismo. Para nós a câmara é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia, mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil! Isto é quase um manifesto (ROCHA, 1981, p.17).

Para Galvão e Bernardet, o conceito de obra de autor do Cinema Novo é

entendido como uma arte de contestação, de posição diante do mundo, na qual a relação

entre o individual e o social configura uma linguagem específica do cinema brasileiro,

muitas vezes condensada na expressão “uma idéia na cabeça e uma câmara na mão”,

típica desse movimento cinematográfico. A “câmara na mão” indicando, por certo, “a

maleabilidade e liberdade de utilização da câmara” e um estilo de filmagem, mas

também um tipo de produção e uma temática centrada naquilo que os cinemanovistas

consideravam as autênticas raízes brasileiras (1983, p.203).

As lutas sociais reais, que crescem no país no início da década de 1960,

na cidade e no campo, aprofundam a disputa ideológica no campo artístico e

cinematográfico, de acordo com a avaliação de Ramos.

Agudizam-se também as relações artístico-intelectuais/intelectual-sociedade, surgindo possibilidades de aliar o movimento cultural mais organicamente às perspectivas de transformações sociais. Penetramos numa época em que o ideário isebiano sofre redefinições, as “reformas de base” catalisando os embates políticos e particularmente para o campo artístico-cultural estávamos sobre forte influência do CPC. Uma “arte popular revolucionária” devia ser construída pelos “militantes da cultura popular” (ou “artistas revolucionários”) visando intensificar em cada indivíduo a sua consciência de pertencimento ao todo social, esta era a receita cepeciana, conferindo um papel bem determinado ao intelectual nas suas relações com o “popular” ( 1983, p. 41- 42).

A forma de abordagem do popular, quase sempre é direcionada por uma

visão dicotômica e simplista, expondo, no seu discurso, as manifestações populares

desprovidas de sua diversidade, e é marcada por uma postura paternalista e didática

pretendendo direcionar as classes sociais populares para a missão de aglutinar numa

unidade as insatisfações do conjunto da sociedade.

Ramos acredita que a cultura, assim concebida, é politizada por representar o

discurso nacionalista, através da construção de uma narrativa cinematográfica que

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homogeneíza as diversidades regionais para produzir uma identidade nacional com base

em supostas características específicas do povo brasileiro em geral. Ramos nos faz ver

essa postura, através do encadeamento de uma série de expressões do cineasta Nelson

Pereira dos Santos:

(...) a procura do “nosso ser cultural”, da ”autenticidade” e “raízes” “do homem brasileiro”, tudo encaminhado para a “independência cultural” e o rompimento da “colonização cultural” é algo louvável e um bom antídoto para posturas “etnocêntricas” e ações autoritárias, que podem dominar os intelectuais na sua relação com a cultura popular (RAMOS, 1983, p. 130-131).

Segundo Salles Gomes, citado por Galvão e Bernardet, a autenticidade do

nacional e uma identidade cultural verdadeiramente brasileira são buscadas, mesmo

pelos não nordestinos, no rural e no Nordeste porque aí teria resistido uma tradição que

não fora ainda devorada pelo “progresso” (1983, p.119-120). A estilização artística da

região provém, assim, de um fundo comum que compõe a imaginação coletiva e que

torna essa construção ficcional verdadeira, ou verossímil, aos olhos do público (GOMES,

1980, p. 219-220). A literatura dos primeiros tempos republicanos já tinha inaugurado uma

contemplação do mundo arcaico como representação do nacional com a obra de

Euclides da Cunha que, ao longo dos anos, vai exercer uma forte influência sobre a

imaginação artística brasileira, incorporando-se ao folclore, à literatura e às artes a

representação das condições de vida da região mais pobre do país como elementos

constitutivos de certas formas de heroísmo. Tal persistência da visão descortinada por

Cunha expressaria, na sua essência, a aspiração por justiça e igualdade social presente

nos brasileiros de todas as regiões que vêem, espelhadas nos sertões, a miséria que

povoa também suas existências (CUNHA, 1982 , p. 47-101).

A imagem representativa do trabalho do homem do povo, de seu

pensamento e sua imaginação será uma preocupação predominante do Cinema Novo.

Hobsbawm (1997, p.9-10) sugere que, para formar uma cultura nacional que se expresse

nas diversas formas culturais e artísticas, é necessária a construção mítica das origens da

nação como representação cultural, dando-lhe um caráter imutável por meio de

repetidas narrativas sobre um passado imemorial, situado num tempo mítico:

Em poucas palavras elas são reações a situações novas que assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. E o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social (...) (HOBSBAWM, 1997, p.10).

Page 43: Cinema Nordeste

33

O Nordeste, em algumas das obras de cineastas identificados com a proposta

nacionalista, representa-se como o lugar dos ancestrais, situado num tempo remoto que

demora a passar e no qual as relações e as práticas sociais se cristalizaram através da

manutenção das tradições. A seca era retratada através de uma imagem estável e

unívoca do lugar (o sertão) que deveria suscitar o sentimento de pertença para

nordestinos e brasileiros, estendendo-se para o espaço nacional. Estas reflexões,

referentes às imagens do Nordeste vinculadas à seca, apoiam-se nas concepções de

Chartier que vê as representações como “instrumento de um conhecimento mediato que

faz ver um objeto ausente através da substituição por uma ‘imagem’ capaz do

reconhecimento em memória e de figurar tal como ele é”, ou como pensamos que é

(CHARTIER, 1990, p. 20).

No caso da representação do Nordeste nas obras analisadas, o privilegiamento

das imagens da seca à custa da ocultação de suas florestas luxuriantes, − de fato

coloridas de verde, amarelo, roxo e atravessadas por córregos d’águas − ajusta o lugar à

representação escolhida para dar crédito e valor à criação da diferença ou à exploração

de diferenças já preexistentes. É a partir de uma imagem contínua – um Nordeste de

ponta a ponta esturricado pelo sol, ao longo de um tempo sem fim – que ocorre a forma

de hábitos e práticas que determinam limites e posições sociais, fazem e desfazem os

grupos sociais. A veiculação dessa imagem, constante nos discursos regionalistas da

classe dominante, bem como nos próprios textos literários e cinematográficos e outros

ainda, que com a intenção de denúncia e crítica dessa mesma classe dominante, como

que obriga os nordestinos a serem o que se diz que eles são.

Após o golpe de 1964, as intenções cinemanovistas podem ser muito bem

compreendidas pelo manifesto de Glauber Rocha, Eztetyka da fome, que defende a idéia

de que as imagens da fome, da miséria e da seca são capazes de fazer com que a obra

cinematográfica e os cineastas intervenham efetivamente na realidade social,

conscientizando o espectador para a necessidade de transformação tanto da própria arte

quanto da sociedade. Muitos artistas, através de suas abordagens sociológicas,

procuravam mostrar a atuação política do sujeito na sociedade com uma postura que

mobilizava os interesses do grupo com o qual se identificava.

A reivindicação da autonomização cultural, numa perspectiva nacionalista frente

ao produto estrangeiro, foi uma das principais bandeiras erguidas pelos cineastas

liderados por Glauber Rocha, o mais eloqüente porta-voz do cinemanovismo, que não

Page 44: Cinema Nordeste

34

hesita em defender uma estética da violência. Glauber afirma que a violência é

definidora, instrumento de alerta e de luta contra a exploração do colonizador produtora

da miséria e da fome, traços escolhidos como identificadores do povo nordestino e

brasileiro. Na medida em que setores sociais ligados ao poder rejeitam aquilo que

chamavam de “miserabilismo” do Cinema Novo, reforça-se nesse movimento artístico e

político a tendência à denúncia social. O cinema, segundo Glauber, deve expressar a

violência da fome como símbolo, numa forma dramática de enfrentamento da

exploração e de desmascaramento dos padrões políticos e estéticos da elite, numa

estratégia de provocação ou de testemunho. Segundo Glauber, a inquietação causada

pela exibição da violência é indispensável à conscientização da sociedade e o único

caminho para que o faminto se faça ouvir: “Aí reside a trágica originalidade do Cinema

Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior

miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida (...)” (ROCHA, 1981, p.31-32).

Alguns filmes introduzem, explicitamente, a fome na cinematografia com suas

personagens sujas e famélicas em busca de meios para sobreviver. É o caso, por

exemplo, do documentário Aruanda, marco da introdução desse traço na

cinematografia, e de Vidas Secas, que mostra a família de Fabiano fugindo da seca e da

miséria, em condições subumanas. Porém, a fome e a escassez são, sobretudo,

instrumentos de denúncia da exploração, da concentração de terras e da violência

exercida pelos poderosos ou representantes do poder. O recurso à violência simbólica

aparece mesmo nos seus representantes subalternos, como o “soldado amarelo” de

Vidas Secas, impondo sua autoridade por meio de uma mentira cultural, não permitindo

a Fabiano rebelar-se. Ao afirmar “governo é governo”, o “soldado amarelo” coloca-se

como representante de uma força que está acima da compreensão do retirante e à qual

só lhe resta submeter-se e esquecer, em seu mudo sofrimento, a fome de justiça e

respeito. Trata-se do retrato da violência que, segundo alguns críticos e cineastas,

reflete a situação do país, preso pelas amarras coloniais e dependente de interesses

internacionais. Essa filmografia, ao denunciar as condições do subdesenvolvimento,

aponta a própria dependência do cinema brasileiro, como sugere Gomes:

Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento. (...) O filme brasileiro primitivo (...) na procura de subsistência, tornou-se um marginal, um pária numa situação que lembra a do ocupado, cuja imagem refletiu

Page 45: Cinema Nordeste

35

com freqüência nos anos vinte, provocando repulsa ou espanto (GOMES, 1980, p. 85 e 89).

No filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, a violência é a manifestação cultural

da condição de miserabilidade que Glauber atribuía às áreas que sofreram um cruel

processo de colonização. A violência é, nesse contexto, um instrumento revolucionário

para a conscientização, pois mina as estruturas da dominação quando expõe, sem

maquiagem, a fome, a sujeira, a miséria e, conseqüentemente, a loucura. É, também, a

violência dos castigos impostos pelo Santo Sebastião às prostitutas e pelos sacrifícios

exigidos aos seus seguidores, chegando ao extremo de sacrificar uma vida humana para

a purificação das almas que se expressam nos condenados à fome. A violência do

cangaço, com requintes de sadismo, nas intensas e incômodas cenas de castração e de

esfolamento, é alerta para o horror e para a explosão que a brutal fome e a

desumanidade podem produzir.

O discurso proferido pelo Cinema Novo, defendendo uma linguagem

cinematográfica própria, combatia a sujeição ao padrão externo, principalmente ao

norte-americano. Apesar desses cineastas afirmarem as especificidades da

representação da miséria da/na cinematografia brasileira, não negam influência recebida

da obra do cineasta russo Eisenstein, em que forças sociais se confrontam sem que

apareça, geralmente, o herói individual, mas sim a exaltação dos movimentos

revolucionários. Essa influência pode ser reconhecida também nos cortes rápidos,

efeitos de aceleração e utilização de primeiros planos e iluminação fortemente

contrastada, que segundo Vanoey e Galiot-Lété são características da cinematografia de

Eisenstein (1994, p.29) 27. Essa abordagem é visível nas obras de Glauber Rocha,

principalmente, em Deus e o Diabo e Terra em Transe, ao lado de outras influências do

cinema europeu, como o neo-realismo italiano, e a nouvelle vague francesa.

O cinema brasileiro era parte de um contexto mais amplo e as influências

estrangeiras não poderiam ser evitadas nem desprezadas, pois estimulavam e tornavam

fecundas as obras dos cinemanovistas, sempre em busca de alternativas para a

formulação de estilos que afirmassem a cinematografia nacional, em diálogo com as

27 Os autores destacam o neo-realismo italiano como uma busca em testemunhar o mundo contemporâneo em sua verdade e a nouvelle vague francesa, sua forma de produção despojada, com carência de equipamentos, exigüidade orçamentária e limite de equipe de trabalho, apresentando uma linguagem que questionava a clássica narrativa cinematográfica, com montagem fracionária e com o uso da câmara na mão, além da iluminação natural.

Page 46: Cinema Nordeste

36

outras cinematografias, principalmente as vanguardistas que buscavam alternativas ao

modelo hollywoodiano28.

O orgulho de ser brasileiro, na época em que o Brasil vivia uma efervescência

cultural, realçada pela premiação de O Pagador de Promessas, em Cannes (1962), é

frustrado com a vitória do golpe militar de 1964, fim do sonho de um Brasil

revolucionário. O governo militar, após a edição do Ato Institucional Nº5 (AI-5), de

1968, acentua as suas posições antidemocráticas que têm um impacto terrível sobre a

produção cinematográfica brasileira ao defender os interesses estrangeiros e ao esvaziar,

através da censura, a sua conotação política (RIDENTI, 2000, p.37-40). A nação é

submetida a um discurso unificador autoritário, ditado por um poder coercitivo que

sufoca qualquer tentativa de construção de representações que questionem a

legitimidade dessa identidade imposta.

1.3 - O cinema brasileiro e o contexto pós-1964

O Estado, após o golpe de 1964, encampou a diretriz de desenvolvimento

cinematográfico com dimensões industriais, incluindo co-produções com empresas

estrangeiras, acompanhadas de medidas tímidas para limitar a concorrência do filme

estrangeiro, numa política claramente liberal, conforme afirma Ortiz Ramos:

O Estado resolvera assumir e administrar de forma centralizada os problemas do campo cinematográfico, mas esta decisão só chegava numa época em que a crise política do período 1960-64 já estava superada, em que uma decisão pelo alto se tornava possível. (...) Eram mantidas as balizas do “desenvolvimento cinematográfico” oriundo do período anterior, com uma proposta de cinema brasileiro definida: um cinema de dimensões industriais, associações em co-produções com empresas estrangeiras, e medidas modestamente disciplinadoras da penetração do filme estrangeiro. (...) Uma leitura do Projeto e exposição de motivos do INC revela a docilidade e extremo cuidado com que era tratada a questão de um possível cerceamento do cinema estrangeiro, sendo que “mercado aberto” e “política liberal” eram as tônicas repisadas (RAMOS, 1983, p.53).

28 O modelo hollywoodiano, de bases industriais, era vinculado às produções de grandes estúdios como Warner, MGM, Paramount, entre outros. A capacidade de investimento dos mesmos garantia o cinema espetacular, baseado no rigor estético e na grande qualidade técnica. Por outro lado, esse cinema do espetáculo, do entretenimento era criticado por sua visão mercadológica e seus produtos estéticos, os filmes, por não traduzirem, em geral, uma perspectiva social crítica.

Page 47: Cinema Nordeste

37

A penetração do Estado no campo cultural, através do Instituto Nacional de

Cinema (INC), criado em 1966, segue a tendência de esvaziamento da luta política nas

obras cinematográficas. No fim da década de 1960 e início da década de 1970, a

preocupação em atingir um amplo mercado cinematográfico aparece, sobretudo, em dois

filmes: Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, e Como era gostoso o meu francês 29,

de Nelson Pereira dos Santos, mas produzem-se outras obras, como São Bernardo 30, de

Leon Hirszman, e Zezero31, de Ozualdo Candeias, que incomodam os órgãos de

controle das produções cinematográficas e os setores sociais ligados ao poder, por seu

forte caráter de crítica ao sistema socioeconômico implantado pelo regime militar.

Segundo Ramos:

Torna-se desta forma difícil detectar uma capitulação, ou a sempre acusada cooptação dos cineastas, no confronto com a política estatal nesta segunda metade dos anos 60. Ocorreu, sim, a inevitável aderência do cinema brasileiro, e de sua ala mais politizada, à expansão capitalista, articulada com uma postura mais cautelosa e investigativa, antropológica se seguirmos Cacá, induzidas pela derrota do projeto e o avanço repressivo do Estado (1983, p.87).

A produção cinematográfica se diversifica com o aparecimento da Embrafilme

(em 1969) numa reatualização do “desenvolvimentismo”, com uma política de

financiamento que revela uma preocupação comercial, sendo escolhidos os projetos que

têm viabilidade econômica. Inclue-se, dentro dessa tendência, uma diversidade de

filmes e gêneros como, entre outros, a pornochanchada, as comédias de Renato Aragão,

as com enfoque ufanista (RAMOS, 1983, p. 97-98).

O filme Cabra Marcado pra Morrer 32, de Eduardo Coutinho, é fundamental

como testemunho do processo sofrido pela cinematografia brasileira pós-1964. Nele, o

passado é trazido à tona, não só pelos protagonistas, mas pela própria história do filme,

29 Macunaíma. Rio de Janeiro, 1969. Produção: Filmes do Serro/ Grupo Filmes/ Condor Filmes. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Fotografia: Guido Cosulich. Montagem: Eduardo Escorel. Elenco: Paulo José, Grande Otelo, Dina Staf, Jardel Filho (Apud RAMOS, 1983, p. 170). Como era gostoso o meu francês. Rio de Janeiro, 1971. Produção: Luis Carlos Barreto/ César Tedim/ Condor Filmes/ Difilm. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Fotografia: Dib Litfi. Montagem: Carlos L. Soares. Elenco: Ana Maria Magalhães, Arduíno Colasanti, Ana Maria Miranda (Idem, p.166). 30 São Bernardo. Rio de Janeiro, 1972. Produção: Saga Filmes, Mapa Filmes e L. C. Barreto. Direção: Leon Hiszman. Fotografia: Lauro Escorel. Montagem: Eduardo Escorel. Elenco: Othon Bastos, Isabel Ribeiro, Nildo Parente, Wanda Lacerda, Mário Lago (In: RAMOS, 1983, p.174). 31 Zezero. São Paulo, 1972. Media - metragem. Prod: Dir. Fot: Ozualdo Candeias. Mot: Luis Elias. El: alunos da escola de cinema de José Mojica Martins (Idem, p.175). 32 Cabra marcado para morrer. Rio de Janeiro, 1985. Produção: Mapa Filmes, Eduardo Coutinho Produções Cinematográficas. Direção: Eduardo Coutinho. Foografia: Fernando Duarte, Edgar Moura, Montagem: Eduardo Escorel. Elenco: Eduardo Coutinho, Elizabeth Teixeira, Ferreira Gullar, João Vigínio Silva, Moradores do Engenho Galiléia, Tite de Lemos. <http://www.adorocinema.com.br/ filmes/ cabra- marcado- para- morrer/ cabra- marcado- para- morrer.asp> Acesso em 04/11/2006.

Page 48: Cinema Nordeste

38

planejado e iniciado após a morte do líder paraibano das Ligas Camponesas, João Pedro

Teixeira, assassinado a mando de latifundiários, em 1962. O filme tinha como objetivo

contar, em forma ficcional, a saga do líder camponês. O projeto era do Centro Popular

de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), e já havia avançado na fase

de filmagens, porém o golpe militar deixa-o inconcluso. O filme só é encontrado e

retomado, como documentário sobre sua própria história, a de seus autores e

personagens, em 1981, conforme relata Ridenti:

Com o golpe de 1964, o filme não se completou. Persistente, Coutinho concluiria – entre 1981 e 1984 − o premiadíssimo Cabra marcado para morrer, mostrando as cenas filmadas na época e a perseguição da viúva de Pedro Teixeira, Elizabeth, cuja família dispersou-se pelo Brasil afora, pois a líder camponesa teve de fugir da repressão, separando-se dos filhos e assumindo nova identidade, em seu “exílio”, no Rio Grande do Norte. O filme debruça-se sobre o passado, não só dos protagonistas, mas também do cinema e da política brasileira, após quase vinte anos de vigência da ditadura civil-militar, que se encerrava. (...) A riqueza e a beleza de Cabra marcado para morrer consiste justamente na superposição contraditória de discurso na tela, mesmo que conduzidos pelo diretor: o discurso da UNE e da esquerda nos anos 60, sua autocrítica nos 80, as falas dos entrevistados – diversas entre si- que confirmam e contradizem ao mesmo tempo os discursos de esquerda e também da ditadura sobre os camponeses, os quais mostram sua cara e sua voz, independente de serem superpostas a outras vozes e embaralhadas com elas (RIDENTI, 2000, p.98-99).

A busca da “verdadeira cara” do povo não deixa de estar presente no filme de

Coutinho, voltando à tradição de retratar o camponês como herói. Mas também se

introduzem elementos novos ao revelar-se a própria contradição das classes médias e

sua visão romântica sobre o povo brasileiro, ao mostrar discursos contraditórios dos

representantes do “homem simples do campo” através dos próprios filhos de Elizabeth e

João Pedro Teixeira, participantes tanto da primeira etapa do filme, em 1964, quanto de

sua continuação ou nova versão em forma de documentário. O filme expõe, em algumas

das falas dos entrevistados, uma visão desprovida de crítica ao regime militar,

decorrente do processo de censura e de propaganda que se impôs à população,

principalmente aos setores mais privados de outras fontes de notícias que não as oficiais

e os meios de comunicação comprometidos com a ditadura.

1.4 - O declínio da cinematografia brasileira na década de 1980 e a retomada nos

anos 1990

Page 49: Cinema Nordeste

39

A extinção da Embrafilme, em 1990, reduz a produção, sendo pouquíssimos os

filmes lançados nos anos seguintes. A produção cinematográfica, a começa a apresentar

certo crescimento com incentivos da Lei do Audiovisual,

(...) o cinema saiu do estado crítico em que estivera nos primeiros anos da década. A produção cresceu e se estabilizou em torno de 20 a 30 títulos por ano. (...) entre 1995 e 2001, o país produziu 167 longa-metragens, contra menos de 30 nos primeiros anos da década anterior (ORICCHIO, 2003, p.27).

Essa lei, entretanto, junto com outras fontes de recursos como os concursos

promovidos pelas instituições governamentais, permitiu a retomada do cinema

brasileiro com grande diversidade de temas e gêneros: comédias, obras de denúncia,

filmes infantis, neo-chanchada, policiais, épicos e intimistas, de acordo com análise de

Oricchio (2003, P.25-30) 33.

O contexto de reconstrução da democracia leva alguns cineastas a persistirem

numa vertente preocupada com as referências para a construção de uma identidade para

o Brasil, que se revela em filmes como Terra Estrangeira e Central do Brasil 34. Este

último re-elabora a construção da nacionalidade sob o prisma da pluralidade. Partindo

da metrópole para o interior, o filme vai visitando os chamados “grotões” brasileiros

quando a trama reúne Josué, o garoto que acaba de perder a mãe, e Dora, “uma escritora

de cartas para analfabetos”. Para Oricchio a busca da identidade viaja na direção do

interior, do sertão, mais uma vez revisitado como “reserva moral”, recanto de “pobreza

digna”, da solidariedade, em contraponto às condições de criminalidade da cidade,

retomando as imagens remotamente construídas e reatualizando-as. Entretanto, Central

do Brasil sai em busca da reconciliação, “do apaziguamento dos contrários”, − que se

tornarão marcos da cinematografia atual − e não da violência, da denúncia e da luta que

alimentaram a cinematografia das décadas de 1950 e de 1960 (ORICCHIO, 2003, p.135-

138).

33 Numa relação entre as produções cinematográficas das décadas de 1960 e depois de 1990, o autor fornece-nos uma referência para o estudo da formação da cinematografia brasileira como um processo, no qual são descartadas ou retomadas expressões culturais que se tornaram marcos da identidade nacional. 34 Terra Estrangeira. Rio de Janeiro, 1995. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. Fotograia: Walter Carvalho. Montagem: Walter Salles, Felipe Lacerda. Elenco: Fernanda Torres, Fernando Alves Pinto, Luís Melo e Alexandre Borges. Central do Brasil. Rio de Janeiro, 1998. Direção: Walter Salles. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Isabelle Rathery e Filipe Lacerda. Elenco: Fernanda Montenegro, Marilia Pêra, Vinícius de Oliveira, Othon Bastos, Mattheus Nachtergaele (Apud ORICCHIO, 2003, p. 244 e 237).

Page 50: Cinema Nordeste

40

Em Abril Despedaçado35, de Walter Salles, produzido em 2001, volta-se ainda

ao sertão, e, embora a paisagem não seja tão seca, refere-se à economia primitiva e

escassa. Retrata a rivalidade entre duas famílias, os Breves e os Ferreiras, no sertão da

Bahia, que se matam lentamente. Em cada família que perde um dos seus membros

assassinado por alguém da família inimiga, outro é escolhido pelo chefe do grupo para

vingá-lo. Esse código de morte instaurou-se em decorrência da disputa de terras no

passado, e leva ao processo de extermínio mútuo das duas famílias. No tempo da

narrativa fílmica as terras da discórdia estão nas mãos dos Ferreiras, donos de uma

criação de gado em franca expansão, em contraste com a pouca produtividade das terras

dos Breves, dedicadas à cana-de-açúcar.

O núcleo familiar dos Breves, cujo filho mais velho acaba de morrer, é composto

agora pelo pai, a mãe, Tonho e o Menino, como é chamado o caçula, ainda criança, sem

nome e sem futuro, como os meninos de Vidas Secas. Tonho é, então, destinado pelo

pai para a missão de vingar o irmão. A sobrevivência desse grupo depende da produção

de rapadura e do trabalho intenso de todos os seus membros que movem uma bolandeira

puxada a bois. É a representação de um tempo cíclico do qual não se pode escapar, pois

se tem de viver a eterna vingança ancestral, numa repetição da miséria, da desesperança

e da falta de sonhos. Uma vida na qual é proibido ser alegre, ter ilusões e fantasias, uma

vez que os “mortos governam a vida dos vivos”.

Tonho cumpre sua missão tornando-se o próximo alvo desse código de honra,

condição representada na tarja negra que traz amarrada num dos braços e que determina

o seu tempo de existência marcado e que é também pelo balançar, no varal do terreiro

da família Ferreira, da camisa da última vítima exposta ao sol até que esmaeça a mancha

de sangue, prazo simbólico para a vingança. Tonho segue a mesma rotina diária de

produzir rapaduras, enquanto espera a emboscada que pode tirar-lhe a vida. Seu destino,

entretanto, é interrompido pela ação do Menino que, antecipando a morte que lhe estaria

certamente destinada no futuro mais remoto, põe a tarja preta no próprio braço, o

chapéu de Tonho na própria cabeça, sai para o terreiro ao encontro do vingador e liberta

o irmão do ciclo assassino.

35 Abril Despedaçado. Rio de Janeiro, 2001. Produção: Produção Artur Cohn, Produtores Associados Jean Labadie, Carole Scota, Produção Executiva: Mauricio Andrade Ramos. Direção: Walter Salles. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Isabelle Rathery. Eleno: José Dumont, Rodrigo Santoro, Ravi Ramos Lacerda (Apud ORICCHIO, 2003, p. 235).

Page 51: Cinema Nordeste

41

A paisagem se repete, mesmo utilizando-se outra técnica de filtro de cor e luz,

como nos filmes antes analisados. Como naqueles filmes, a fotografia de “Abril

Despedaçado” retrata o Nordeste como lugar de forte luminosidade, solo rachado e

esturricado, sol causticante e vegetação rala, embora, de certa forma, a dureza da

paisagem seja mitigada, seja menos densa a claridade e intercalem-se áreas

descampadas com espaços de ocorrência de arbustos próprios da região. É uma

importante contribuição para a discussão da imagem que havia sido construída na

imaginação coletiva sobre o Nordeste. As condições adversas do meio ambiente e a

pobreza de técnica e de recursos, como fatores determinantes na formação de uma

sociedade tradicional e da cristalização de valores arcaicos, continuam

institucionalizadas como representação específica da região nordestina, mesmo sendo o

filme de Walter Salles inspirado na obra homônima do albanês Ismael Kadaré. O

romance de Kadaré narra, com viés antropológico, a história vivida numa sociedade

isolada pela paisagem inóspita e pelo inverno rigoroso das montanhas albanesas, mas

pôde ser adaptado por Salles como representação do Nordeste através da inserção ou da

coincidência de elementos que caracterizam essa região na imaginação social: sol

escaldante substituindo a neve albanesa, solo improdutivo, relações arcaicas de

produção, pátrio-poder incontestável, violento código de honra.

A terra seca e o sol escaldante estão presentes, já que se tornaram uma espécie

de elemento imprescindível do cinema brasileiro ao representar o Nordeste como espaço

físico e emocional, pois não o reconhecemos quando a luz branca não é intensa e

quando não aparece o solo ressequido juncado de carcaças de animais. Sem esses

elementos perder-se-iam a dramaticidade e a autenticidade do discurso sobre a vida no

sertão e o reconhecimento do próprio lugar como origem da identidade nordestino-

brasileira.

Enfim, ao longo do percurso da cinematografia brasileira, percebe-se a

construção do mundo rural habitado pelo retirante ou pelo homem que lida com a terra

seca e com meios de produção escassos e rústicos, sujeito ao “coronel” representante do

poder local que o explora e impõe-lhe a miséria. Esse sertanejo só veria saída no

messianismo religioso conservador ou no cangaço desumano, irracional e demoníaco

que constituiria e reafirmaria, até o presente, uma visão imaginária do lugar nordestino

onde o homem mítico brasileiro começou a traçar a história nacional.

Page 52: Cinema Nordeste

42

O recurso à constante re-interpretação do passado, em função das lutas que se

travam no presente, faz parte do processo de engendramento de alternativas históricas

em busca de legitimidade social. Compreender essa luta e como ela se representa em

marcos e imagens é fator indispensável para a desconstrução da memória dominante

(NEVES, 1994, p. 111-117) 36.

O cinema, portanto, deve ser revisto segundo as considerações de Canevacci:

A crítica do cinema como dialética entre uma nova sociologia da natureza e uma antropologia da sociedade, deve explicar as formas − ambas mediatizadas historicamente – da composição de classe e da composição da natureza de cujo “interior” nasceram as representações miméticas: o mito, o teatro, a fabula, a religião, o enredo romanesco, chegando até a forma-cinema (CANEVACCI, 1984, p. 24, grifos do autor) 37.

A identidade arcaica é revivida no cinema pela representação mimética, que

produz uma sensação de imortalidade quando se desenrolam, na narrativa fílmica, os

caracteres específicos e gerais do ser humano que, além de se apresentar como

realidade, capturando a consciência do espectador, numa articulação entre o particular e

o universal, permitem o reconhecimento da sua condição humana de existir e da herança

cultural no processo de constituição dessa humanidade (CANEVACCI, 1984, p. 23-39).

A mistura desses elementos na narrativa fílmica, destacada por Canevacci, é

ressaltada por Paulo Emílio Salles Gomes quando analisa as sensações que o filme

provoca no espectador, frisando a vontade de “existindo ou não Deus, sair pela rua

gritando que ele (o homem) foi feito à sua imagem e semelhança”, porque o lazer se

articula com a informação culturalmente constituída, realimentando a imaginação

coletiva que compõe os mitos e arquétipos formadores da identidade nacional (GOMES

apud GALVÃO e BERNARDET, 1983, p. 217).

O mito da “criação” da nação brasileira, que evoca os feitos de entes poderosos e

sobrenaturais, constitui-se como modelo para os demais atos humanos. Estabelece

padrões de comportamento, instituições, maneira de trabalhar, pela transmissão narrada

dos mitos que rememoram e re-atualizam um tempo primordial, permitindo reviver o

36 Este estudo percorre o processo de construção da memória regional através da territorialização que cristaliza a imagem nordestina, encobrindo as suas multiplicidades e sua mutabilidade com um discurso de permanência, para desconstruí-lo através da análise da seca de 1978-1983. 37 O antropólogo italiano em busca do “espírito do cinema” analisa a reprodução de estereótipos advindos da mitologia, que cerca a representação mimética, revelando o cinema como representação cultural da história do homem no tempo e no espaço buscando sua essência, que permite identificações por pretender ser a realidade.

Page 53: Cinema Nordeste

43

mito, ou seja, reaprender a lição criadora para intervir na ação humana (ELIADE, 2000,

p.22-23).

A análise dos filmes e do processo de formação de uma cinematografia brasileira

sobre determinados arquétipos, principalmente a imagem do sertão nordestino e de seus

habitantes, permite a compreensão dos fundamentos espaciais, temporais e arcaicos da

memória dominante, fazendo-se possível, então, desconstruí-la e dar lugar a novas

representações na luta por libertação e justiça, subjacentes ao processo de construção

das imagens do Nordeste como depositária da origem da identidade cultural do povo

brasileiro, no imaginário coletivo. Esse esforço, que tem seu ápice na cinematografia

dos anos de 1960, fundamenta a narrativa do filme A Canga, produção de 2001.

Assim, o diálogo d’A Canga com a produção desse período dá-se no espaço

dessas representações, evidenciando sua pertença ao conjunto de obras que se

destacaram pela preocupação com os problemas de nossa brasilidade e regionalidade.

Todavia, não se omitirá na análise dessa obra fílmica a presença de valores

culturais universais, uma vez que o foco de nosso estudo está posto, precisamente, na

tensão entre a universalidade, retratada na tragédia, nos códigos de honra e no pátrio-

poder, por exemplo, e a particularidade, expressa na representação do Nordeste com

base na cinematografia das décadas de 1950 e 1960. De fato, poderemos demonstrar que

a obra de Marcus Vilar, anterior A Canga, contribui para o complexo diálogo entre o

passado, as tradições e a busca esperançosa de transformações futuras articulando-se,

assim, com o pensamento romântico revolucionário analisado por Ridenti. Procuramos

fazê-lo através da análise dos seus aspectos histórico-culturais, servindo-nos dos saberes

da História Cultural para a compreensão da instituição do lugar Nordeste, representado

na cinematografia brasileira como uma das referências identitárias regionais e/ou

nacionais.

Page 54: Cinema Nordeste

44

CAPÍTULO II

NA CANGA: REPRESENTAÇÕES DO NORDESTE CINEMATOGRÁFICO

2.1 - A identidade nordestina e representação.

A necessidade de se construir imagens que, através de representações, criem a

ilusão de concretude do mundo, sempre foi uma característica presente nas artes,

segundo Jacques Aumont (1993, p. 199-200). Esse autor caracteriza a busca de recriação

do real, através da analogia da realidade, como “construções que misturam em

proporções variáveis imitações da semelhança natural e produção de signos

comunicáveis socialmente” (1993, p. 203) 38

.

As representações artísticas, porém, são produzidas e recebidas por grupos e

indivíduos que não são imparciais ou “neutros”, elas se expressam como produções

simbólicas que, em sua materialidade, “derivam da posição ocupada num campo de

concorrência por esses depositários de uma autoridade delegada” (BOURDIEU, 1998, p.87).

Tal campo nunca é imóvel nem homogêneo, pois nele geram-se constantemente

divisões internas, criam-se hierarquias e delegação de autoridade que introduzem

diferenças de poder, conforme explica Pierre Bourdieu. Assim, na dinâmica

concorrencial de um determinado campo social, as imagens são recebidas e poderão ser

utilizadas como instrumentos de persuasão e gerar/reforçar a dominação política,

dependendo de sua “eficácia simbólica”. De acordo com Bourdieu (1998, p.95) a eficácia

simbólica de uma imagem “repousa completamente na crença”, na “ficção social” de

um poder a ela associado ou negado, segundo o poder atribuído ou negado àquele que a

produz ou que a interpreta. Essa crença, ainda segundo Bourdieu, é fundamental nas

lutas internas aos campos sociais. São essas representações que conduzem à aceitação

ou à rejeição dos princípios e posições defendidos pelos diferentes grupos sociais, ou

subgrupos dentro de campos amplos, e configuram as tensões sociais na busca do

exercício de poderes que justifiquem as práticas e relações sociais (1998, p.93-96).

38 As imagens analisadas sob a perspectiva de semelhança e analogia, e apreendidas através de códigos socialmente construídos, permite-nos vê-las como representações de um referencial da sociedade, que têm o papel de expressar o mundo social a partir das diversas perspectivas dos grupos de interesse das classes sócias.

Page 55: Cinema Nordeste

45

As representações dos espaços como lugares de origem que permitem ou não o

acesso ao poder, conferem ou não autoridade, ou como lugares aos quais se pertence ou

não, nos quais se tem ou não o direito de estar e algum grau de poder, compõem

discursos estratégicos para organizar o mundo social segundo interesses de grupos que,

na luta pelo exercício de poder, tentam construir imagens impregnadas de sentidos que

garantam as práticas de dominação e a permanência dos sujeitos no controle político.

As representações a propósito das supostas propriedades de um lugar, pontos de

referência para instituição da unidade social, impõem-se através de:

(...) lutas em torno da identidade ética ou regional, quer dizer, em torno de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem, bem como das marcas que lhes são correlatas, como, por exemplo, o sotaque, constituem um caso particular das lutas entre classificações, lutas pelo monopólio de poder de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social(...) (BOURDIEU, 1998, p. 108, grifos do autor).

O Nordeste, nessa concepção, constitui-se como região a partir do trabalho de

criação de determinados setores sociais que se relacionam em um espaço específico e

compõem, com outras áreas, um conjunto nacional, politicamente definido por grupos

que o reconhecem como espaço construído em seu processo de produção material e

cultural, através da qual se articula com o capital e com o Estado, formando uma

entidade político-administrativa. Segundo o pensamento de Maura Penna39:

(...) as demarcações geopolíticas estabelecidas pelo Estado, o regionalismo, sob determinadas condições sócio-históricas, dá significado peculiar ao espaço da região, reafirmando-o enquanto um referencial de identificação, região então se explica como conceito que, fundado sobre critério territorial - espacial e físico - inclui um plano simbólico (1992, p. 20).

Esse Nordeste só se torna um tema central de filmes a partir da década de 1950

quando, discursivamente, encarna um papel na divulgação do pensamento de setores

sociais que almejam alcançar estilo próprio para a cinematografia brasileira. Nesse

cinema são engendradas representações que expressam desigualdades sociais gritantes,

utilizadas como denúncia das reais condições do país, vistas de forma homogeneizada e

reforçando um discurso que faz da região o anúncio do subdesenvolvimento.

A imagem do Nordeste da pobreza, da exploração e do sofrimento, amplamente

utilizada pela cinematografia vinculada a setores políticos que acreditavam na

39 A discussão de região como identidade política representativa de um grupo social respalda a idéia de que a luta das representações da identidade nacional está imbuída de conotação política e de dominação simbólica.

Page 56: Cinema Nordeste

46

transformação socioeconômica do país, também é apropriada pelo regionalismo

difundido por outros grupos que buscam o poder ou que já se encontram nele instalados.

Ambos os processos contribuíram para a instituição da região Nordeste como território

reconhecido, um lugar situado espacial, social e culturalmente.

A imagem de Nordeste, presente na cinematografia brasileira, como lugar seco,

árido, inóspito, com rala vegetação e com escassez de recursos materiais, se apresenta

seguindo essa tradição cinematográfica no filme A Canga 40, objeto de nosso estudo.

Uma análise mais detalhada dos elementos internos do filme evidencia sua articulação

com a especificidade cinematográfica que apresenta a região como palco de convulsões

sociais, desde os anos de 1950 e 1960, que persistiu nas décadas posteriores com mais

requintes de forma e estilo. Essa influência é de fundamental importância para a

compreensão da concepção filmica d’A Canga.

Antes de iniciarmos a análise do filme consideramos pertinente indicar, duas

vertentes historiográficas que se debruçam sobre as análises da regionalidade nordestina

e o faremos a partir de dois autores contemporâneos, pois expressam a persistência do

debate em torno das questões de identidade regional e atualizam os termos no diálogo

com matrizes teóricas diversas. São eles Rosa Maria Godoy Silveira com a obra O

regionalismo nordestino: existência e consciência da desigualdade regional (1984) e

Durval Muniz de Albuquerque Jr. com o livro A invenção do Nordeste: e outras artes

(2001). Ambos os trabalhos se constituem em obras de fôlego vinculadas, por seu

caráter de teses de doutorado, a um amplo debate com a historiografia do momento que

se configuram como obras da história do Nordeste.

A obra de Silveira, teoricamente está vinculada à vertente marxista, e tem como

referenciais a produção de Manuel Correia de Andrade, pois, segundo a autora traz

fundamental contribuição para o estudo geográfico o meio físico e das relações de

trabalho, na região Nordeste. Também dialoga com Francisco de Oliveira no que se

refere à “teoria da dependência”, que caracteriza as regiões como processo que liga as

economias locais à economia mundial. O trabalho de Francisco Oliveira, Elegia para

uma re(li)gião (1977) é destacado pela autora por revelar as implicações da criação da

Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) com as exigências

40 A Canga. Paraíba, 2001. Prod: Durval Muniz Filho. Dir.: Marcus Vilar. Roteiro: Marcus Vilar e W. J. Solha. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Francisco Sérgio Moreira. Elenco: W. J. Solha, Zezita Matos, Everaldo Pontes, Servilio Gomes e Verônica Cavalcanti. Fonte: <http://www.curtagora.com/filme.Asp?Código =3804 Ficha= Completa> Acesso em 16/04/2005.

Page 57: Cinema Nordeste

47

de reprodução do capital no Brasil, principalmente, por ressaltar as relações de classe e

suas lutas para o conceito de região e por se constituir para a autora ponto de referência

para o diálogo com a concepção dualista e possibilitar as interpretações de Celso

Furtado (SILVEIRA, 1984, p. 31-36).

A situação de crise no espaço nordestino pode ser entendida, conforme o

pensamento de Rosa Maria Godoy Silveira não apenas a partir de falta de braços e de

recursos, frutos do processo de descapitalização decorrente da forma arcaica de

produção, mas, principalmente, ao processo de acumulação capitalista no Brasil,

desigual e combinado, produzindo as diferenças regionais, desde o início da formação

do Estado Nacional (1984, p.54-55). Porém, a representação dessa crise que institui a

diferença regional é pensada a partir da desorganização demográfica e produtiva do

espaço algodoeiro-pecuarista, provocado pela grande seca de 1877-1879.

A crise significa, então, um momento do processo histórico em que os elementos básicos componentes do espaço regional estão sendo reestruturados (substituídos ou transformados), em decorrência de condições internas e externas à região, e cujo sentido é conferir maior racionalidade à ordem capitalista mais ampla (1984, p.55).

Para Silveira, esse enfoque na crise favorece a encenação das representações

nomeadas pelo discurso sobre ela que evita o aprofundamento das diferenças internas,

pois homogeneíza a região segundo a racionalidade capitalista, beneficiada pela

desigualdade regional e, que atende aos interesses dos segmentos sociais internos

vinculados a outros setores dominantes do país.

Nesse processo, novos espaços se configuram mais dinamicamente inseridos no sistema econômico mundial capitalista, como foi o caso da área cafeeira estabelecida territorialmente no denominado Centro-Sul do país. Enquanto isso, outros espaços, sobretudo o chamado Norte, perderam dinamismo, postas as contradições das forças produtivas e das relações sociais que os estruturavam (...) (SILVEIRA, 1984, p.16).

A obra de Albuquerque Jr., por seu turno filia-se à vertente foucaultiana e

questiona, nos termos dessa matriz, as análises baseadas nas perspectivas teóricas de

recortes geográfico-espaciais e sócio-econômicos vistos como explicativos da

constituição do Nordeste como Nordeste. As contribuições de Deleuze, Guattari, Paul

Veyne e Roger Chartier levam o autor a enfocar a instituição da região Nordeste e a

identidade nordestina como construção discursivo-imagética, trazendo à tona essas

práticas como fonte de estudo e de entendimento das forças políticas nelas inseridas.

Page 58: Cinema Nordeste

48

Essa leitura sobre a “invenção do Nordeste” como espaço geográfico, político e

cultural é feita por Durval Muniz de Albuquerque Jr., que atribui o surgimento do

Nordeste aos diferentes discursos das forças sociais, que criam imagens representativas,

instituídas social e culturalmente, configurando a região como um lugar de diversas

formas de divisão, de exclusão e de identificação.

O nosso objetivo é entender alguns caminhos por meio dos quais se produziu no âmbito da cultura brasileira o Nordeste. O nexo de conhecimento e poder que cria o nordestino e, ao mesmo tempo, o oblitera como ser humano. O Nordeste não é recortado só como unidade econômica, política ou geográfica, mas, primordialmente, como um campo de estudos e produção cultural, baseado numa pseudo-unidade cultural, geográfica e étnica. O Nordeste nasce onde se encontra poder e linguagem, onde se dá a produção imagética e textual da espacialização das relações de poder. Entendamos por espacialidade, as percepções espaciais que habitam o campo da linguagem e se relacionam diretamente com um campo de forças que as institui. (ALBUQUERQUE Jr., 2001, p. 23).

Consideramos a breve indicação desses autores necessária, pois, uma vez que

discutiremos uma representação cinematográfica do Nordeste, situamos nosso trabalho,

no campo dos discursos e consideramos importante percebê-los enquanto tais, com seu

papel frente à fixação de interpretações, na constituição de perspectiva identitárias e

mesmo de estereótipos. Cabe, no entanto, em nossa concepção, compreender que os

discursos só se revestem de tal competência na medida em que tenham como base

referenciais históricos, engendrados na concretude das realidades sociais. Portanto, o

poder instituinte dos discursos, em nossa interpretação, só se torna possível na medida

em que a realidade do mesmo se articula a referentes que podem ser identificados pelos

grupos sociais aos quais se dirige.

A compreensão do Nordeste como construção de um lugar, através

representações constituídas por imagens e textos, não pode ser separada de determinada

realidade social. Portanto, a apreensão desse universo das representações possibilita

pensarmos a regionalidade como campo das forças sociais em competição, que através

de práticas e relações, dentro de condições materiais, sociais e simbólicas, impõem uma

concepção de mundo que interessa aos grupos que tem existência dentro de um espaço

instituído ou em processo de instituição.

Page 59: Cinema Nordeste

49

2.2 - Análises dos elementos constitutivos de A Canga

2.2.1- Breve comentário e personagens

O filme retrata, em doze minutos, o cotidiano de um grupo familiar, ambientado

em árida paisagem do sertão nordestino. O grupo é composto dos seguintes

personagens: Ascenço Ferreira, o pai e líder do grupo. Afeiçoado à terra e resistente à

idéia de deixá-la, insiste em ficar nela apesar de improdutiva, obrigando a sua família

ao sacrifício sob seu jugo, literalmente representado por uma canga de boi de arado; a

esposa, Sinhá Nana, é mulher submissa e desprovida de poder e voz, pois praticamente

não fala; os filhos, Zé e Cipriano; o primeiro, não aceita a forma como o pai conduz o

trabalho e a sobrevivência da família, havendo confronto entre eles, e o segundo

comporta-se como animal, emitindo ruídos semelhantes aos dos bichos e dos aboios; e,

finalmente, a esposa de Zé, Zefa, está grávida, mas ainda assim é submetida ao árduo

trabalho pelo sogro.

A canga, normalmente colocada no cachaço dos animais, permite mantê-los

unidos, puxando o arado. Trata-se de objeto muito pesado, feito de madeira, em forma

retangular bem mais longa no comprimento do que na largura e na altura. Uma canga

não é completamente reta, tendo em sua parte mais longa duas reentrâncias em forma de

semicírculos para adaptá-la ao pescoço dos animais. No caso do filme, a canga é

instalada nos ombros dos dois filhos do velho Ascenço que os obriga a trabalhar sob o

chicote feito de uma longa tira de couro, estalado no ar a todo momento, para intimidar

e coagir os filhos que estão no lugar dos animais. Eles são ajudados pelas mulheres que

puxam duas pontas de cordas, num esforço sobre-humano, pois devem arrastar os

homens que trazem a canga às costas, enquanto o chefe do grupo conduz um arado

rústico para fazer sulcos na terra esturricada.

2.2.2 - A narrativa fílmica

A narrativa fílmica inicia-se com os personagens surgindo no horizonte, sob um

céu límpido quase sem nuvens e avançando num amplo espaço de terra avermelhada,

local onde se desenvolve toda a ação. Surge primeiro Cipriano, emitindo sons esquisitos

Page 60: Cinema Nordeste

50

e animalescos, como se fosse o arauto da forma opressora e desumana de trabalho

agrícola vigente naquele lugar. O som do chicote, ao longe, e gritos de comando

introduzem o personagem Ascenço, conduzindo os filhos para a canga. Nesse momento,

já podemos perceber a tensão que, pouco a pouco, instala-se entre Zé e o pai. A câmara

enquadra o rosto carregado e revoltado de Zé enquanto Cipriano, com chocalhos presos

no pescoço, agitando-se e babando, parece que incorpora o animal no qual foi

transformado. A visão de Cipriano parece, momentaneamente, desviar a atenção do pai

da revolta expressa na fisionomia do outro filho.

Com o início do trabalho na canga vemos o conflito adensando-se no núcleo

masculino da família. A loucura de Cipriano o faz suportar o jugo que lhe é imposto

pelo chicote, mas a lucidez de Zé está aguçada e, ao olhar para sua mulher, puxando a

corda, trôpega, fungando e gemendo, diz ao pai que ela, grávida, não pode fazer aquele

trabalho. O velho, porém, ignora-o, impondo o seu poder que se expressa com estalar do

chicote. A argumentação de Zé contra a inutilidade do trabalho e da permanência nessa

terra inóspita é respondida por Ascenço com repreensão pela sua falta de fé e com a

afirmação de que “ainda hoje vai chover”. Há uma relação do poder com o sagrado, que

é acentuada pela oração que o velho faz para fechar o corpo, ao perceber a contida, mas

intensa, raiva do filho. Zé demonstra que não se conforma com o modo tirânico e cruel

com que pai conduz o grupo para o trabalho e com o qual pretende garantir a

sobrevivência familiar. A câmera focaliza, em plano detalhe, o olho e o ouvido de Zé:

SEQÜÊNCIA 04 - DELÍRIOS SONOROS DE ZÉ 41

Zé começa a ranger os dentes e o suor corre na sua testa. Sua raiva é tanta, que ele começa a puxar a canga com força, e se perde em pensamentos. Na sua cabeça, o mais leve retinido da lâmina passando nas pedras soa limpo e fino; a zoada do mastigado das alpercatas revelava cada pedrinha, espinho, graveto. Ele começa a sentir todo o arrocho do peso da canga e a compreensão de uma raiva surda que se torna desespero. O velho pela primeira vez sente medo de Zé, que parece onça ferida. 42

O som do ambiente é super dimensionado para dar a sensação de angústia e

opressão, reforçada pelo close no rosto de Sinhá Nana e depois no de Zefa, que

41 A seqüência corresponde à filmagem do início ao final da tomada, o plano corresponde a cada tomada de uma cena. Segundo a distância entre a câmara e o objeto, pode ser: 1) plano geral (mostra o conjunto ou meio conjunto da ação); 2) plano médio (mostra as figuras humanas em pé); 3) plano americano (as figuras humanas são mostradas do joelho para cima); 4) plano próximo (apresenta a cintura e o busto); 5) primeiríssimo plano (mostra o rosto). Essas informações foram extraídas da obra de VANOYE, Francis e GALIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaios sobre a Análise Fílmica. Tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Papirus, 1994, p.37-38. 42 Trecho do roteiro do filme A Canga. As expressões aspeadas, dentro do capítulo, quando não se referem aos autores citados, foram retiradas do roteiro do filme.

Page 61: Cinema Nordeste

51

traduzem, em suas expressões, todo o esforço e o sofrimento conjunto dessa família

tentando transformar uma terra cheia de pedregulho em própria para o cultivo. As costas

de Zé são enquadradas pela câmara, mostrando os músculos tensos e, em seguida,

focaliza em close o rosto do pai rezando para fechar o corpo. A reza parece tranqüilizar

os temores de Ascenço frente à revolta de Zé.

O auge da situação de confronto que se delineia é diluído pelo ato de loucura de

Cipriano que extravasa a sua revolta através da masturbação, chamando a atenção do

irmão que, no mesmo instante, o repreende, desferindo-lhe um violento pontapé na

virilha.

Na seqüência seguinte, a navalha do arado fica presa numa pedra, representação

que acentua o grau de dificuldade do trabalho para arrancar o seu sustento da terra árida

e seca. A desesperança está expressa nos rostos dos que carregam e puxam a canga,

menos no de Cipriano, que continua alegre a babar e a sacudir o chocalho. Sob o

comando do pai, eles puxam com força o arado, preso à pedra, e caem todos no chão.

Sinhá Nana ajuda Zefa a se levantar, mas o velho Ascenço não permite que Zé a auxilie.

A câmara enquadra o rosto de Zé olhando para Zefa, que, nesta cena, já puxando a

corda, diz: “Um dia isto vai acabar”.

Cipriano, mais uma vez, serve como fator de desestabilização, mantendo o clima

de conflito instalado, pois, sai da canga e começa a correr pelo campo. Este é limitado

de um lado por uma base de pequena montanha cheia de pedras e, do outro, por uma

irregular planície, também com pedregulhos e uns poucos arbustos, alguns com folhas

verdes, outros completamente secos. Cipriano corre emitindo os seus aboios, perseguido

por seu pai; o movimento da perseguição faz subir da terra avermelhada poeira e vapor

que transmitem a sensação de calor intenso. O pai, enfurecido, chicoteia o filho qual

animal desgarrado e o põe de volta sob o instrumento, provocando a brusca queda de

Zefa.

A câmara aproxima-se da personagem para mostrar todo o seu desespero e

sofrimento por ser submetida ao esforço demasiado para a sua condição de grávida,

pesada, com pernas trôpegas, sem forças e agilidade para a tarefa que lhe é imposta. Sua

revolta é traduzida no grito “Eu não agüento mais”. Ascenço, porém, em resposta a essa

explosão, chicoteia a mulher caída.

Page 62: Cinema Nordeste

52

Diante da cena, Zé alerta o pai para que não bata em sua esposa e o ameaça. O

clímax é constituído pelo insulto de Zefa, que chama o esposo de corno, e declara aos

gritos que o filho pode não ser dele e sim de seu próprio pai, enquanto Cipriano,

bestializado, baba parado. Zé, surpreso e atônito, é segurado pelo pai, enquanto Sinhá

Nana olha para o marido de forma incrédula e repreensiva. O grito da esposa parece

intensificar a consciência da condição de animal, imposta pelo pai a Zé, quando o pôs

na canga e quando não respeitou a sua mulher.

O velho Ascenço reage de forma brutal, com um pontapé à acusação de Zefa.

Expressa, assim a loucura que ronda os espaços e situações-limite em que homens

vivem de forma tão miserável que a bestialidade se incorpora à ânsia de sobrevivência.

A câmara enquadra as costas do velho pai, pois ele se encontra ainda voltado

para Zefa, e Zé o chama: “Pai”! A câmera enquadra a arma, enquanto se escuta o som

de um tiro. O rosto de Sinhá Nana aparece em close e expressa espanto e alívio. Surgem

nuvens pesadas, o céu escurece e, de azul claro que era, torna-se escuro e meio

encoberto por nuvens pretas que sufocam o sol que se põe, avermelhando um pedaço do

céu. Cipriano é focalizado da cintura para cima, limpa a baba e fica ereto, torna-se

humano como se fosse pela primeira vez uma pessoa; livra-se da loucura e recupera a

dignidade humana. Chove torrencialmente e a câmara finalmente focaliza o chocalho, a

canga e o trabuco, atirados ao chão encharcado.

2.2.3 - O tempo na obra fílmica A Canga

A Canga, como produto cultural que compõe uma narrativa, sugere-nos três

temporalidades fílmicas que nos permitem uma correlação com o tempo histórico,

conforme Paulo Roberto Arruda de Menezes, que apoiado em Marcel Martin, afirma

sobre “a tripla noção do tempo no cinema”:

A primeira estaria diretamente ligada ao tempo de projeção da sessão. A segunda, ao tempo da ação que se desenrola, ao tempo da história que se conta. A terceira, ligada diretamente à nossa percepção, à sensação de que o filme passou rápido ou muito devagar (MENEZES, 1996, p.93, grifos do autor).

O tempo, no cinema, é construído através da sensação que provoca, é vivido

segundo a experiência pessoal do espectador. Tal dimensão permite a apreensão da

temporalidade histórica, porque alerta para as diferenças da percepção do tempo

Page 63: Cinema Nordeste

53

conforme a intensidade das sensações que a narrativa fílmica provoca com a “sucessão

de imagens” postas em movimento, dando a impressão de aceleração ou de compressão

do tempo.

Neste tempo como vivência, nesta experiência diferencial do tempo, aquele tempo de escoamento incessante transforma-se no que ele era desde sua origem, uma pura e completa abstração. Aparece, nesse contexto, como figura do pensamento que tende a esconder outras dimensões desta malha temporal, essencialmente descontínua, que só encontra seu fluxo linear através da convenção. Dando destaque às funções da memória, das tradições, dos ritos coletivos, da repetição, mostrando como de certo modo a cultura pode neutralizar o tempo (esse tempo do escoamento perpétuo) o que determina uma experiência subjetiva do tempo totalmente diferente daquela até aqui examinada, em que o passado ou o presente podem tornar-se a dimensão privilegiada (MENEZES, 1996, p.92).

Braudel compreende a temporalidade histórica como a “duração social, esses

tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens que não são só substâncias do

passado, mas também matéria da vida social atual” (1986, p.9). O tempo histórico é

também percebido como múltiplo, pelas experiências nas quais ocorre.

Para Braudel o primeiro tempo é o tempo breve do acontecimento, assim

definido: “o tempo breve, à medida dos indivíduos, da vida cotidiana, das nossas

ilusões, das nossas rápidas tomadas de consciência; o tempo por excelência, do cronista,

do jornalista” (1986, p.10).

A história econômica e social introduziu períodos que alteram o tempo

tradicional do acontecimento, em que há variações de taxas econômicas, tais como as

citadas por Braudel: “a curva de preços, progressões demográficas, movimentos de

salários e variações das taxas de lucros” (1986, p. 12), delineando um quadro conjuntural,

que se apresenta como nova referência:

Surge uma nova espécie de narração histórica – pode dizer-se o “recitativo” da conjuntura, do ciclo e até do “interciclo” – que oferece à nossa escolha uma dezena de anos, um quarto de século e, em última instância, o meio século do ciclo clássico de Kondratieff (BRAUDEL, 1986, p.12).

Por fim, Braudel nos apresenta a longa duração descrevendo-a nestes termos:

Para nós historiadores, uma estrutura é, indubitavelmente, um agrupamento uma arquitetura; ainda mais uma realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transpor. Certas estruturas são dotadas de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: obstruem a história, entorpecem-na e, portanto, determinam o seu decorrer (1986, p. 14).

Diante da análise da temporalidade filmica e da histórica podemos, a partir do

filme A Canga, compreender a tríplice noção de tempo no cinema e estabelecer

Page 64: Cinema Nordeste

54

associações com a temporalidade da história. A cena do drama familiar é representada

como um dia de trabalho cotidiano, referindo-se ao tempo objetivo, à temporalidade

histórica, ao curto tempo de duração dos acontecimentos. Todavia, percebe-se o tempo

esticado em alusão à longa duração, quando retrata o vai-e-vem da família sob a canga,

arando uma área já sem pedras, sem vegetação, produto de longos dias de trabalho. Diz

respeito, também, à longa duração pela demarcação e posse da terra herdada dos

ancestrais. A brevidade do filme, de apenas doze minutos, também se relaciona ao

tempo curto. Entretanto, ao retratar uma forma arcaica de produção e o domínio

excessivo do pai sobre a família, mexendo com experiências vividas ou relatadas ao

espectador por sua referência a heranças culturais, distingue-se de um tempo subjetivo,

pois a narrativa é absorvida como uma longa duração, na sua perspectiva de quase

imobilismo, ao retratar como a família arava a terra sob o domínio patriarcal.

A discussão de Paulo Roberto Arruda de Menezes (1996, p. 90-93) 43 nas

considerações sobre a tripla noção de tempo no cinema permite, junto com a idéia de

longa duração de Braudel, uma análise precisa das imagens do filme. Suas imagens nos

remetem a um período arcaico no qual o trabalho de arar a terra é feito com métodos

rudimentares e sob castigos cruéis, constituídos pela lógica imposta desde a

colonização. Apesar da presença real e crescente, na região, de grandes áreas de

produção baseada em métodos, maquinaria e insumos modernos, esse tempo arcaico

permanece, até hoje, nas práticas e nas falas de certos políticos, fundados nessa imagem

cristalizada do Nordeste seco e atrasado, construída e reconstruída ao longo do tempo e

difundida nos artefatos e nos discursos, como ocorre, por exemplo, na literatura dos

anos 1930 e na cinematografia dos anos 1960.

Todo filme é pensado, segundo Menezes, ao dialogar no seu texto com Marcel

Martin, como se fosse “pura temporalidade”, pois é “representação da duração das

coisas” na busca da aproximação do real que nunca é atingido. A temporalidade do e no

filme trata da construção de sensações que misturam tempo e memória, predominando o

tempo subjetivo, ou seja, o tempo vivido em função das experiências anteriores do

espectador (1996, p.92-93). A ilusão do tempo, criada pelo movimento das imagens,

constrói temporalidades que evocam a memória e nos ajudam a olhar a realidade através

43 Sua análise sobre a imagem cinematográfica é fundamental para a compreensão da diversidade de tempos e espaços, pois articula a memória que, a partir do presente, atribui significações às evocações das imagens fílmicas.

Page 65: Cinema Nordeste

55

do fluxo da memória, tornando as imagens do passado significativas na percepção de

nossa identidade e nossa posição no mundo.

O movimento da câmara, no carrinho móvel em cima de um trilho, quando filma

a família arando a terra num vai-e-vem, tanto se revela como o curto tempo de um dia

de trabalho como, simultaneamente, pela relação evocada com o tempo da memória e

das narrativas cristalizadas sobre o Nordeste, e remete para uma dimensão milenar da

atividade num vínculo absolutamente subjetivo com a longa duração das estruturas

relacionadas aos tempos braudelianos. Outro recurso usado é filmar em cima de

andaime de madeira, a partir de um ângulo do qual a imagem é vista de cima para baixo

acentuando a impressão de vastidão e de isolamento do núcleo familiar44.Uma imagem

que remete também ao discurso da permanência e a representação das unidades

familiares em isolamento, trabalhando ou imigrando como retirantes. Imagem presente

nos filmes sobre o Nordeste (Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol), no

artesanato popular, na música, na poesia e no cordel, nas práticas culturais e nas suas

representações imagéticas.

A narrativa d’A Canga é representada no ritmo de tempo de organização da vida

coletiva, ordenado e seqüenciado, cotidianamente, na rotina do trabalho e dependente

dos ciclos naturais determinantes do tempo de plantar e colher, numa estreita vinculação

entre homem e natureza, na qual as relações sociais de produção são perpassadas pelas

condições adversas do meio ambiente exigindo uma disciplina estafante. Nesse ritmo, o

tempo se apresenta como uma longa duração no sentido braudeliano devido à

dificuldade que os personagens têm de se emancipar dos limites impostos pela natureza,

e da improdutividade mantenedora de formas de vida onde interações e práticas sociais

demoram a se modificar, cristalizadas e transmitidas como elemento estável para

sucessivas gerações, como no caso d’A Canga, em que o cultivo da terra repete técnicas

de produção de épocas muito remotas. A longa duração, segundo Braudel (1986, p.14-15),

constitui-se de pontos de estabilidade ou obstáculos sociais que apresentam limites ao

homem, de imposições difíceis de serem rompidas pela força dos dados geográficos, da

constituição biológica e das prisões psicológicas e espirituais que fixam cultural e

socialmente os grupos sociais. No filme, a representação da lida familiar num estágio

técnico muito rudimentar evoca um tempo bíblico, arcaico, doloroso, desgastante, mas

44 O making off de A Canga se constitui num documentário e foi disponibilizado pelo diretor Marcus Vilar em suporte digital.

Page 66: Cinema Nordeste

56

também com sua conotação de remissão que se tornou referencial do espaço em

questão.

Braudel exemplifica a longa duração através dos marcos geográficos, ao afirmar:

O homem é prisioneiro, desde há séculos, dos climas, das vegetações, das populações animais, das culturas, de um equilíbrio lentamente construído de que não se pode separar nem correr o risco de voltar a pôr tudo em causa. Considere-se o lugar ocupado pela transumância na vida de montanha, a permanência em certos setores da vida marítima, arraigados em pontos privilegiados das articulações litorais; repare-se na duradoura implantação das cidades, na persistência das rotas e dos tráficos, na surpreendente fixadez do marco geográfico das civilizações (BRAUDEL, 1986, p.14-15).

A longa duração apresentada por Braudel nos possibilita compreender melhor a

sobrevivência, no campo cultural, de práticas sociais, comportamentos e formas de

pensar que permanecem nas sociedades por muitas gerações, e as mantém presas a

rígidos códigos sociais impostos por seus ancestrais, que só lentamente, na longa

duração da passagem dos séculos, se desgastam, ainda assim deixando resquícios nas

narrativas e nas formas culturais herdadas.

A perspectiva da longa duração, nesse caso, aproximando a visão braudeliana de

nossa leitura do filme A Canga, nos remete a uma dimensão mítica, presente nas

temporalidades das sociedades tradicionais que, segundo Eliade, manifestam uma visão

cíclica do tempo:

É que o mundo nasce, se esgota, morre e nasce novamente em um ritmo muito acelerado. (...) No entanto, é muito provável que essa concepção da criação e da destruição periódicas do mundo, ainda que tenha sido reforçada pelo espetáculo de morte e ressurreição periódicas da vegetação, não seja, por isso, uma criação de sociedades agrícolas. Ela já se encontra nos mitos das sociedades pré-agrícolas e é muito provavelmente uma concepção de estrutura lunar. A lua de fato mede as mais sensíveis periodicidades, e foram termos relativos à lua que primeiro serviram para expressar a medida de tempo. Os ritmos lunares sempre marcaram uma “criação” (a lua nova) seguida de um crescimento (lua cheia), de um decrescimento e de “morte” (as três noites sem lua) (ELIADE, 1991, p. 68-69).

A partir dessa herança, que permite várias temporalidades, pois dentro da

periodicidade da criação e destruição do mundo, ocorrem nascimento e morte de seres

humanos e de sociedades. Estas temporalidades têm sua duração observada pelo

historiador no presente para indagar as condições do que se manifesta silenciosa ou

ruidosamente:

Toda a cidade, sociedade em tensão com crises, cortes, deteriorações e cálculos necessários próprios, deve ser novamente situada tanto no complexo dos campos que a rodeiam, como nesses arquipélagos de

Page 67: Cinema Nordeste

57

cidades vizinhas de que o historiador Richard Häpke foi o primeiro a falar; por conseguinte, no movimento mais ou menos afastado no tempo – por vezes muito afastado no tempo – que alenta este complexo (BRAUDEL, 1986, p. 22).

A história como explicação do homem sócio-cultural busca, portanto, o

acontecimento e as permanências no campo cultural, que muitas vezes por sua

persistência são lidas como componentes de um tempo mítico, mas na verdade fazem

parte de uma continuidade de pensamentos e práticas que são herdados de ancestrais e

mantêm-se pelo peso da tradição.

A narrativa d’ A Canga faz-se no tempo linear retratando, sem interrupções, um

dia na vida das personagens. A própria data citada pela música tocada no desfecho do

filme, 19 de março, dia de São José, é uma data mítica por remeter a uma tradicional

prática de gerações em observar se choverá neste dia para prognosticar sobre a

invernada.

O filme A Canga faz referência ao tempo mítico, pela força simbólica dos ciclos

de chuva/fertilidade relacionados à dependência da família para com os fenômenos

climáticos. Ela se encontra presa à atividade de arar a terra, associada à herança dos

ancestrais e suas formas arcaicas de produção expressas na cena que focaliza a família,

sob a canga, percorrendo um mesmo pedaço de terra num vai-e-vem que representa a

continuidade da longa duração braudeliana.

As novas formas de apreensão do mundo social não são explicadas só pelas

questões socioeconômicas, são permeadas pela manutenção ou ruptura de práticas,

comportamentos e formas de pensamentos, ritos e crenças existentes dentro do campo

cultural, mas vinculados as hierarquias sociais, pois são formas de pensar, ser e ver o

mundo de grupos sociais. Portanto, a mentalidade é por nos enfocada com base em Le

Goff ao afirmar:

A história das mentalidades obriga o historiador a interessar-se mais de perto por alguns fenômenos essenciais de seu domínio: as heranças, das quais o estudo ensina a continuidade, as perdas, as rupturas (de onde, de quem, de quando vem esse hábito mental, essa expressão, esse gesto?); a tradição, isto é, as maneiras pelas quais se reproduzem mentalmente as sociedades, as defasagens, produto do retardamento dos espíritos em se adaptarem às mudanças e da inegável rapidez com que evoluem os diferentes setores da história (LE GOFF, 1988, p.72).

Assim, preocupada com as tradições imbuídas nas mentalidades representadas,

aportamo-nos no pensamento de Braudel que atribui a longa duração ao longo processo

de desgaste das mentalidades imbricando, desta forma, os fenômenos sócio-culturais

Page 68: Cinema Nordeste

58

com a temporalidade histórica. “Todos os níveis, todos os milhares de níveis, todos os

milhares de fragmentação do tempo da história, se compreende a partir dessa

profundidade, desta semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela” (BRAUDEL, 1986, p.

17).

A forma rudimentar de trabalhar a terra e o pater poder nos remetem ao longo

tempo, que cristaliza as ações e dificulta as mudanças por encontrar-se preso a uma

lógica sedimentada na cultura e na mentalidade, muito difícil de ser rompida45. A

trágica morte de Ascenço, por sua vez, aponta para outra temporalidade, que Zé

introduz na trama quando comete o parricídio, pois quebra o imobilismo e abre a

possibilidade de um novo tempo. Ele atua como o personagem de Antônio das Mortes,

em Deus e o Diabo na Terra do Sol que, a serviço da igreja e dos fazendeiros, é

chamado a defender a ordem estabelecida e um tempo linear, contra o tempo cíclico do

retorno ao paraíso que se propõe na pregação do Santo Sebastião, mas também mata o

cangaceiro que figurava um caminho violento para romper a velha ordem e o tempo da

tradição. “O matador de cangaceiro”, ao pôr em confronto essas temporalidades,

permite que o tempo histórico com sua complexidade, onde a dinâmica e a permanência

se confrontam constantemente, aflore para que Manuel possa construir sua própria

história no tempo.

Ao destruir o pater poder, Zé tira a família do ritmo cíclico do tempo,

apontando para o novo, simbolizado pela chuva, que permite a floração, portanto para a

diversidade da temporalidade. A partir daí, podem instaurar-se novas relações familiares

ou restaurarem-se as formas arcaicas ou, ainda, podem-se dissolver os laços familiares

partindo cada um por seu caminho, pois a tragédia abre a possibilidade desses

personagens conduzirem os seus próprios destinos.

45 Mentalidade − conceito surgido na década de 1960, a partir da preocupação da historiografia francesa com o campo histórico-cultural, que se debruçava sobre representações e concepções de sujeitos sociais. Entretanto, desde o início da formação dos Annales já surgiam estudos, como os de Marc Bloch, sobre práticas e crenças na Idade Média, que permanecem ao longo deste período estáveis e coletivamente partilhadas, conforme Chartier (1990, p. 39-41). Destacamos, ainda, para o surgimento desta categoria a articulação da história com as ciências sociais como a etnografia, a sociologia e a psicologia social. Mas o que a define é “a junção do indivíduo e do coletivo, do longo tempo e do quotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral”. Tendo dentre outras fontes ‘documentos literários e artísticos’, porém as análises das mentalidades devem ser feitas associadas às condições do local, da temporalidade e dos meios de materiais para o surgimento da forma coletiva de sensibilidade e de mentalidade de uma sociedade (LE GOFF e NORA, 1989, p. 71 e 76-77).

Page 69: Cinema Nordeste

59

2.2.4 - O espaço instituído como cenário d’A Canga

A Canga representa o espaço do sertão, que povoa a imaginação coletiva, e

tornou-se constitutivo da concepção não só da região nordestina, mas também para

alguns produtores culturais em diversos campos artísticos, da nossa idéia de brasilidade.

Lembremos que os elementos que definem o espaço em questão foram constituídos

histórica e culturalmente por uma ocupação demográfica e econômica e por um discurso

político, na já referida literatura de 1930, cujos elementos dramáticos serão

incorporados à linguagem cinematográfica. Assim, criou-se um padrão de imagem

própria para retratar áreas castigadas por um sol inclemente que seca a terra, seus

produtos e, numa perspectiva subjetiva, as pessoas que nela vivem46.

Essa claridade ofuscante constituir-se-á no referencial das terras nordestinas, e

marcará a fotografia do filme A Canga exacerbando as cores e a luminosidade a partir

de recursos técnicos, que enfatizam o colorido avermelhado do solo. O trabalho

fotográfico também intensifica a claridade do azul brilhante do céu por uma tonalização

artificial dessa cor. Utiliza-se ainda o recurso de pôr um recipiente com álcool em frente

à câmera que filma a paisagem, produzindo-se a impressão de que o solo emite vapor47,

sinal de grande calor. A vegetação específica - as cactáceas, o mandacaru, o xiquexique

e a macambira - também estão presentes nesse cenário tipificado do Nordeste.

A outra forma de ilusão é criada pelos movimentos da câmara e pelos ângulos

de filmagem, por exemplo, o movimento panorâmico da câmara no primeiro plano do

filme que mostra a paisagem e vem introduzindo os personagens, institui o lugar

Nordeste como lugar da narrativa fílmica.

A câmara é colocada em buracos no chão ou sobre o corpo do diretor de

fotografia que, deitado, registra o esforço, mais também a terra árida com pedregulhos e

o capim seco e esturricado. São tomadas que sempre valorizam as imagens do lugar, há

uma interação entre personagens e paisagens como se fossem frutos daquele tipo de

espaço, com se as ações se desenrolassem também movidas pelo calor, a intensidade da

cor e a desolação da vegetação. 46 Em relação a estas imagens na literatura consideramos que dois textos são fundamentais na construção cinematográfica do sertão nordestino: Os Sertões (1982) de Euclides da Cunha e Vidas Secas (1995) de Graciliano Ramos, obras já indicadas neste estudo. 47 Esta descrição tem como fonte as explicações do diretor de fotografia, Walter Carvalho, no making off. Neste podemos ver o momento da filmagem e comparar a paisagem sem este recurso e depois com o recurso, que deixa a imagem como se estivesse, realmente, por traz de uma fogueira.

Page 70: Cinema Nordeste

60

No filme A Canga, a aridez do solo com pedregulhos reforça a imagem da região

nordestina como inóspita, pois apresenta o vale seco, com solo pobre, cercado por

rochas chamadas de lajedos, aludindo a seu clima quente e seco, cujas chuvas se

concentram entre janeiro e julho. No entretanto, na realidade, a seca propriamente dita,

representação mais forte do Nordeste, não corresponde, de fato, à normalidade do clima,

pois só se manifesta quando as chuvas previstas para o período citado não ocorrem,

tendo-se de recorrer às cactáceas para a alimentação do gado ou retirar-se para áreas

com clima mais ameno. A obra de Manuel Correia de Andrade, em A Terra e o Homem

no Nordeste, é fundamental para o entendimento da imagem apresentada no filme,

rodado no Cariri Paraibano. Ele trabalha a dimensão desse espaço, geograficamente,

desvelando a paisagem de regiões sertanejas, pois nelas se percebe uma diversidade de

características, mas também traços que permitem observar “certa uniformidade” que se

revela na sua descrição como conjunto:

É cortado por vales de rios intermitentes que correm apenas alguns dias do ano, após queda dos grandes aguaceiros de verão e que têm, em geral, leitos muito largos e pouco profundos, separados por suaves interflúvios. Os solos são muito raros, às vezes até inexistentes, uma vez que aparecem grandes afloramentos rochosos, chamados localmente de lajedos (...) seu clima é considerado seco e a região é recoberta por uma vegetação de caatinga cuja densidade e porte variam consideravelmente, conforme as condições climáticas e edáficas locais. Nesta região, as áreas mais favoráveis são rodeadas por cercas de pedras, de pau a pique, de varas, de ramagem, e às vezes até de arame farpado e cultivadas com mandiocas, feijão, fava, milho e algodão (ANDRADE, 1986, p. 41).

A descrição de Manuel de Andrade do sertão nordestino remete para a paisagem

representada no filme A Canga, pois a imagem filmica traz à tona a aridez pobre de

solo, fauna e flora que requer suor e esforço físico para a sua ocupação, tornando a

sobrevivência humana um desafio.

Essa paisagem sertaneja também é analisada por Fernando Patriota que, mesmo

vendo as semelhanças presentes em todas as paisagens do semi-árido e do sertão,

destaca a heterogeneidade de sua fauna e flora, as quais, dissimuladas sob “a aparência

de espinhos e galhos retorcidos no rigor do estio, semelham ao longe esculturas

grotescas de sujeitos vegetais eretos e nus na terra devastada” (PATRIOTA, 2003, p. 10).

Mas a seca, para o autor, faz parte do cotidiano das populações dessas localidades:

(...) a ocorrência de uma estiagem prolongada, a seca, é constante normalmente prevista na funcionalidade da economia do Sertão, tal o desastre produtivo, o desmonte da equação pecuária e da agricultura, e

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61

a catástrofe social, com a desorganização e a destruição temporária do mercado de trabalho regional. E para além dos currais, a esqualidez cinzenta de árvores desnudas e galhos secos, a par da garranchada rastejante e espinhenta ostentando um verde fosco esmaecido, como a denunciar o limite de resistência da flora às queimaduras do sol. E de repente a exuberância verdejante dessa mata renascida com as primeiras chuvas invernais (2003, p.12).

Outro autor que descreve o sertão é José Jonas Duarte da Costa, destacando o

clima seco, com chuvas fortes oriundas das massas da Amazônia. Completa o

pensamento de Patriota, pois reafirma a precariedade de recursos para a sobrevivência

nesse espaço, mas centra as dificuldades em seus aspectos socioeconômicos e políticos:

Essas chuvas, quase sempre muito fortes e sobre o solo descoberto e ressequido, realizam uma espécie de lixiviação, retirando dos solos seus principais nutrientes, causando seu empobrecimento e a erosão em áreas antes produtivas. Os solos rasos e pedregosos empobrecem rapidamente, tornando–se menos produtivos para depois serem abandonados. Destruídas as matas ciliares, os rios em que outrora corria água, cerca de oito messes, tornaram-se temporários a maior parte do ano, escorrendo apenas água de enxurradas no início das temporadas chuvosas; ressalvando-se os rios perenizados pelas construções de barragens (2003, p.61).

A paisagem d’A Canga que, por um lado, tem raízes na cinematografia

brasileira, por nós já discutida, assemelham-se às descrições dos três autores citados

sobre o sertão nordestino no que diz respeito ao clima, ao solo e à vegetação, mas vale

ressaltar que esses autores se detêm na análise da ocupação, da produção e das riquezas

dessa área, na qual normalmente ocorrem as chuvas de inverno que podem ser

racionalmente armazenadas, sendo exceção a catástrofe da seca, imaginária de eterna

secura.

O filme também sugere a possibilidade de sobrevivência no lugar, quando o

provedor da família, o velho Ascenço, afirmando que ainda vai chover, insiste em arar o

solo desgastado por saber que o sertão tem períodos de escassez de chuvas e períodos de

inverno, conhecimento obtido nas experiências vivenciadas.

O que a câmara cinematográfica representa como lugar sertanejo é mais

complexo do que um simples espaço físico, numa articulação criativa em que as

imagens fílmicas têm significados de acordo com os valores e a evocação que

provocam. Nesse sentido Menezes afirma:

O cinema, conseqüentemente, pode tratar o espaço de pelo menos duas formas distintas. Pode ser um mero reprodutor de espacialidades físicas onde, pelo movimento da câmara e pelas longas tomadas

Page 72: Cinema Nordeste

62

(planos – seqüência), tenta-se reproduzir um espaço dado qualquer. Mas, e é aí que o mistério se mostra em sua plenitude, pode também ser o produtor de espaços singulares, percebidos como únicos e contínuos, não por o serem na realidade, mas apenas podendo ser vistos como tal por meio da justaposição sucessiva de fragmentos alinhavados caprichosamente pela vontade e arbítrio do montador, ou pelas exigências estéticas do diretor (1996, p.88 ) 48.

Assim sendo, o ritmo dos anos regulares da chuva, que traz o verde às matas e a

água aos rios, às barragens e aos açudes, não corresponde à imagem do Sertão

nordestino idealizado. A representação escolhida pelos cineastas é a das árvores

retorcidas com galhos secos e nus. Esta é preferida por ser a imagem que produz o

reconhecimento e o sentimento de pertença instituído pela caracterização legitimada

desse lugar, através da descrição construída socialmente, segundo determinados

interesses de grupos, atribuindo-se-lhe o caráter de “natureza natural”. Recorremos a

Bourdieu quando explica os ritos de instituição:

Falar em rito de instituição é indicar que qualquer rito tende a consagrar ou a legitimar, isto é, a fazer desconhecer como arbitrário e a reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a operar solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma transgressão dos limites constitutivos da ordem social e da ordem mental a serem salvaguardadas a qualquer preço, como no caso da divisão entre os sexos por ocasião dos rituais de casamento (BOURDIEU, 1998, p. 98, grifos do autor).

A força da imagem instituída sobre um lugar, fazendo-o ser reconhecido ─

através de traços considerados “naturais” ─ como o lugar de origem da constituição

social de um grupo, tem o poder de estabelecer os laços de afinidades necessários para

tecer a existência desse grupo. A reiteração dessas representações como reais recria e

mantém, ao longo dos anos, a unidade dos grupos sociais. Tais representações são

produzidas e/ou legitimadas, na sua maioria, pelo grupo que detém o monopólio do

poder ou que tem sua autoridade reconhecida pelos demais componentes da sociedade.

A manutenção desta imagem, vista como natural, institui-se como lugar de

referência estratégica de um grupo, é elaborada nas relações de poder, que delimitam

um espaço e o enquadram como homogêneo, apesar de fragmentado, diversificado e

contraditório, porém este lugar é uma construção formada em torno da idéia de

identidade cultural. Aqui apoiamos-nos em Albuquerque Jr., que concebe a região como

uma divisão do mundo social, o que nos permite relacioná-lo a Bourdieu, na medida em

que afirma: 48 O autor propõe várias espacialidades, realçando a singular e específica criada pela montagem, que tem significação ao articular esse espaço com a vivência do espectador.

Page 73: Cinema Nordeste

63

Historicamente, as regiões podem ser pensadas como emergências de diferenças internas à nação, no tocante ao exercício do poder, como recortes espaciais que surgem dos enfrentamentos que se dão entre os diferentes grupos sociais, no interior da nação. A regionalização das relações de poder pode vir acompanhada de outros processos de regionalização, como o de produção, o das relações de trabalho e o das práticas culturais, mas estas não determinam sua emergência (2001, p. 25-26).

A idéia do Nordeste “imagético-discursivo” como definidor dos “limites

político-institucionais”, forjada em um campo de batalha interna para cristalizar certas

representações, nos é fundamental. As representações não são descoladas das relações e

práticas que os agentes sociais estabelecem nas suas produções histórico-culturais,

portanto, a apropriação de uma imagem nos deve fazer refletir sobre os seus laços de

interdependência dentro do grupo e, conseqüentemente, como esse grupo vê a si próprio

e se expõe no mundo social na longa duração. Portanto, a cenografia foi centrada na

paisagem que representasse a vastidão, como explica o diretor Marcus Vilar.

A locação (...), eu queria, porque quando você começa a ter uma idéia de roteiro, você começa a imaginar as cenas: “vou filmar aonde e tal”... Eu precisava pr’ A Canga um descampado grande, que não tivesse nenhuma civilização perto, só o descampadão. (...) Então, assim, saí procurando e nada, e nada, e Durval, que é o produtor do filme, grande produtor por sinal, ele trabalhava muito em Monteiro. Eu sei que eu estava em São Paulo, fazendo um festival lá, Durval me liga: “Achei a locação d’A Canga!” Eu disse: “Quando eu chegar aí eu vou ver”. Quando eu cheguei lá, aquele descampadão, Aí tinha a estrutura da cidade (...) que o prefeito era amigo dele. O Batinga, Carlos Batinga conseguiu ajudar a gente com apoio de produção e logístico, com apoio de alimentação e transporte49.

Durval Leal, no making off, fala da preocupação de Vilar em procurar um lugar

representativo do agreste. Definiu-se o Cariri Paraibano como o lugar propício à

encenação da proposta do roteiro.

Para Walter Carvalho a característica fotográfica do filme A Canga é o resultado

da valorização de um cinema que vem de Linduarte, Vladimir Carvalho e explode em

Solha/ Vilar. Destacando, em sua fala, no making off:

Olha o Sertão, qual é o fotógrafo que não gostaria de tá aqui, nessa vegetação, nessa terra, nessas pedras, olha esse sertão bonito! Isto é o sertão paraibano, tem que ser filmado pelo cinema paraibano. Salve o cinema paraibano, salve o sertão brasileiro! Alô Glauber, salve Glauber, São Glauber50.

Na expressão acima se concentra o pensamento da instalação e instituição de

lugar, anteriormente discutido na historiografia, de uma vertente do cinema brasileiro e,

49 Citação extraída do making off 50 Citação extraída do making off.

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da noção de lugar de origem, ressaltada por Bourdieu, bem como toda a filiação

glauberiana do sertão de A Canga.

Segundo Walter Carvalho, esse é “um filme sem maquiagem, o que eu fizer a

mais com a imagem fica exagerado”. Entretanto, ele introduz uma cor mais quente para

acentuar a tragédia; sabemos que o avermelhado do filtro é que pinta toda a imagem,

conduzindo o espectador à sensação de calor e de opressão e, se esse vermelho não é

sanguinolento ─ o sangue não aparece em cena alguma ─ o calor e a paixão estão

implícitos no tom do filtro da câmara. A representação com seus recursos técnicos

propicia na verdade uma pseudo realidade mostrando que a fotografia e o cinema

realmente recriam os espaços e os espetacularizam.

2.2.5 - Análise fílmica e os arquétipos culturalmente constituídos

A Canga tem uma carga emocional que toca em pontos muito sensíveis: a terra,

fonte de vida, motivo da morte, a terra do sertão, a terra “severina” que provoca lamento

e motiva esperança ou loucura. O núcleo familiar cultiva a terra de forma que pode ser

associada à imagem de outros que lidam com o solo no sofrimento diário em busca da

sobrevivência. Nos doze minutos do filme, a cristalização das relações de trabalho e o

domínio do pater poder são claramente perceptíveis, assim como a passagem lenta do

tempo, mantendo a impressão de que eles aram o solo pedregoso há séculos, numa

longa duração, na acepção de Braudel. Nesse quadro, as práticas e as mentalidades se

mantêm quase intocadas pela mudança, devido às próprias dificuldades geográficas e à

forma de acumulação de capital, impedindo a circulação de informações e de novos

hábitos que poderiam vir a ser responsáveis pela transformação que desgastaria a

estrutura cristalizada.

A relação do pai com os membros da família alude ao tempo primordial, mítico,

e refere-se à formação de novos chefes de família, a partir da morte do velho chefe.

Nesse discurso e nessa prática, resquícios dos mais antigos da formação social do

Nordeste, são retomados ou mantidos como parte da identidade regional. O filme

expressa, nesse sentido, o tempo longo das mentalidades, mas também o domínio do

espaço sobre o homem, reforçando o mítico como explicação para as condições atuais

de produção do grupo conduzido pelo pai, que corresponderia ao chefe provedor das

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65

hordas primitivas. Eliade (1991, p. 19), ao discutir a história da religião, critica Freud por

relacionar a origem da religião ao sacrifício totêmico, ao parricídio primordial. Esta

relação foi amplamente difundida e faz parte dos elementos da psicologia freudiana; na

obra Totem e Tabu, o renomado psicanalista comenta o desejo dos filhos em ocupar o

lugar do pai, provocando o parricídio e a culpa responsáveis, segundo Freud, pelas

normas morais e éticas da sociedade 51.

O parricídio retratado no filme é a reafirmação da dialética do velho e do novo,

da longa e da curta duração, das permanências e rupturas. A mitologia, quando não

sacralizada nos permite analogias úteis para o entendimento da dinâmica social, assim

como da psicologia humana. Portanto, podemos fazer a releitura do mito de Cronos, o

deus do tempo, que devorava seus filhos logo após o nascimento, receoso de que eles o

assassinassem como tinha feito com o próprio pai para ocupar o seu lugar. A morte de

um dos filhos de Cronos só é detida pela astúcia da esposa Réia, que coloca no lugar

dele uma pedra que é devorada por Cronos. O filho salvo, ao crescer, mata o pai e

governa o destino dos mortais, tornando-se o deus dos deuses, Júpiter (MENARD, 1965, p.

35-37) 52

. A história narrada no filme A Canga expressa o momento da ruptura, quando

um filho mata o pai, significação da velha ordem, permitindo o estabelecimento de uma

nova ordem ou a repetição do ciclo.

A morte violenta da divindade não é esquecida, afirma Eliade, pois é

“indispensável às criaturas humanas” pelo fato de que “modifica radicalmente a

situação ou modo de ser do homem”, constituindo a própria humana (ELIADE, 2000, p.91).

No filme, o assassinato de Ascenço, arquétipo do pai criador e provedor, dá origem à

fecundação da terra, representada pela chuva que cai após a sua morte. Essa morte

significa a mudança, que pode ser revolucionária ou reformadora, mas sempre com

caráter de indispensável para a sobrevivência dos demais membros do grupo, traduzindo

certa ruptura da ordem estabelecida e remetendo-nos ao ‘mito de morte e ressurreição’,

exposto por Eliade. O simbolismo da renovação permite a possibilidade de libertação do

sofrimento e da dor como componente das explicações das sociedades arcaicas. A

família de Ascenço, que antes se encontrava amarrada, morta, presa à canga liberta-se 51 As experiências psicológicas, que por limites deste trabalho não serão enfatizadas, são enfocadas a partir do pai, repressor, punitivo e autoritário, com uma postura que provoca no filho o desejo de sua morte, pois o pai representa a velha ordem, a canga, que entravava a mudança. Esse é o enfoque que Vincenzo di Matteo dá ao parricídio em seu artigo Os Discursos Éticos de Freud, consultado no site <http://www.cbp.org.br/rev2957.htm> Acesso em 24/04/2007. 52 Édipo de Sófocles. Relata também um parricídio, em que o filho após esse ato assume o lugar social do pai.

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66

com sua morte − situação explicada pelo autor quando analisa o poder do deus

amarrador, “ele é sempre onividente, todo poderoso” por deter o “poder espiritual pela

magia” (ELIADE, 1991, p.69-70).

2.2.6 - Os sons em A Canga

A sonoridade do filme centrada nos gemidos, aboios e diálogo acentua a pobreza

e a miséria das personagens, não há outros sons a não ser o som da luta diária numa

terra adversa. Houve o cuidado em retirar qualquer manifestação sonora com algum

traço que descaracterizasse o lugar. O Nordeste, como espaço primitivo improdutivo,

preso às condições climáticas, é mantido no decorrer da narrativa, arrematada com a

música referente ao dia de São José53.

A importância dos sons, das vozes e ruídos na narrativa cinematográfica leva-

nos a procurar analogias entre a sonoridade do filme A Canga e a presente em Vidas

Secas e em Deus e o Diabo na Terra do Sol. No filme de Nelson Pereira dos Santos, o

ruído do carro-de-boi e os aboios de Fabiano são os únicos sons que preenchem o

silêncio entre as poucas palavras, pequenos monólogos dessa narrativa filmica pobre em

diálogos. A falta de fala em Vidas Secas representa mais uma forma de escassez na vida

dos personagens em foco.

Em A Canga, há poucos diálogos, curtos e conflituosos, sob um fundo sonoro

composto pelo som do chocalho, pelos aboios desconexos de Cipriano e pela respiração

ofegante dos personagens que puxam a canga, entrecortada por gemidos e pelo repetido

estalo do chicote. O chocalho e os aboios reforçam a condição de desumanidade que o

pai impõe a Zé e Cipriano. Do início do filme até o ponto em que a tensão entre Zé e

Ascenço se traduz em palavras, só se ouvem o chocalho e o aboio, que sublinham o

duro esforço de arar a terra, e o estalar do chicote, instrumento que representa o poder

de coação do pai. O som do arado na terra, aliado aos gemidos e ao sopro arfante do

grupo, sugere que a lâmina do arado rasga a carne da família que puxa a canga. Os

acentuados sons da pisada dos personagens no chão de pedras intensificam a impressão

de sofrimento dos que estão sob o jugo. Nesse filme, como nos outros dois acima

citados, enfatizam-se os sons específicos dos trabalhos próprios do espaço rural, 53 Análise com base no making off.

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principalmente aqueles mais rudimentares. O som do tiro é o único testemunho da

consumação da morte do pai, pois a cena só mostra uma mão com a arma. A morte é,

porém, como que confirmada pelo som da chuva que cai e produz a sensação de

recolhimento, sugerindo a intimidade dos personagens e a recuperação de sua identidade

perdida.

A música Ciência Nordestina, de Alessandro Maia, executada pelo Coral Voz

Ativa no final do filme, apesar do arranjo experimental, que mistura instrumentos

musicais convencionais com outros objetos, fala também da tradição nordestina, que

mantém rica herança sócio-cultural em “experiências e prognósticos sobre as

possibilidades de chuvas nos anos que virão”, nas palavras de Manuel Correia de

Andrade (1986, p.45). Entre essas tradições, a canção menciona a data de 19 de março, dia

de São José, que manda deixar no sereno seis pedras de sal, na noite de Santa Luzia, e

observar se derretem, sinal de boa invernada. Segundo Andrade: “Se estas experiências

derem resultados negativos, o sertanejo, apreensivo, começa a pensar nos horrores da

seca e na possível necessidade de retirada” (ANDRADE, 1986, p. 45).

2.2.7 - O primitivismo e as relações arcaicas de poder e produção

Outra semelhança entre os filmes citados no capítulo anterior e A Canga é o

destaque dado às formas de produção primitivas e da exploração nas relações de

trabalho, exercidas pelo coronel latifundiário ou pelo chefe da família, que impõem ao

trabalhador jornadas de trabalho carregadas de sacrifício e suor, grande desgaste físico e

emocional e angústia pela escassez de tudo. Os três filmes, a seu modo, apontam a falta

de racionalidade e a exploração desmedida da força de trabalho que, apesar de

provocarem um déficit de produtividade, permitem uma acumulação desmesurada para

o proprietário das terras.

Essa situação pode ser compreendida a partir das análises de Silveira sobre o

discurso regionalista, pois ela constrói uma relação concreta entre a posição política

ideológica dos grupos dominantes e a sua apreensão da imagem da seca que:

Ao mesmo tempo, o discurso constata a diferença do espaço regional sob uma forma emocional, autocompassiva. O espaço regional como um todo, internamente diferenciado, é encarado como uma vítima, ou melhor, um paciente dos acontecimentos, cujas causas lhe fogem,

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68

pairam acima de seu controle, ora sendo muito vagas, abstratas - o infortúnio -, ora sendo de origem natural - a seca – ou, ainda, concretas, porém esvaziadas de sua causalidade, remetidas à mão providencial – fome e novamente seca (SIVEIRA, 1984, p.163-164).

Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (1993), ao analisar as estratégias costumeiras de

combate à seca − caracterizadas como indústria da seca − aponta para o fato de que o

discurso regionalista da classe dominante encobre a permanência das mesmas formas

rudimentares de produção e de disciplinamento da população. A indústria da seca

converte a população que, por efeito da seca, se tornaria flutuante e ameaçadora para os

grandes proprietários, em mão-de-obra gratuita, agravando a permanente sujeição

configurada nas relações de trabalho não assalariadas mantidas mesmo fora dos

períodos de seca (1993, p.64).

O núcleo familiar que se encontra sob o poder do velho Ascenço pode ser

tomado como uma metáfora de um dos grupos sociais representados pela

cinematografia sobre o Nordeste que se constituíram numa tradição referente a este

lugar como ponto inicial da formação dessa regionalidade.

A família retratada em A Canga pertence ao grupo social classificado como

remanescentes de posseiros, abandonado à própria sorte pelo dono da terra. Tal

condição esclarece-se na leitura da obra de Valdemar José Solha (1979, p.70), base do

roteiro do filme, que aponta para a situação do grupo em questão. Nesse sentido, vemos

semelhança com os grupos familiares representados em Vidas Secas (de Fabiano) e em

Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Manuel).

Esses grupos familiares encontram-se sob o jugo do patriarcalismo vigente nas

estruturas de poder nas sociedades representadas pela filmografia sobre o Nordeste, e

reproduz, em seu interior, este poder, em uma dimensão que muitas vezes assegura a

permanência do domínio dos donos da terra deforma inquestionável, estendendo seus

tentáculos à esfera familiar, alimentada pelos ritos, gestos e palavras performáticas dos

chefes de família.

O pater poder se apresenta na sociedade nordestina, herdado do mundo rural

ocidental, legitimando a organização do trabalho da família sob os ditames

inquestionáveis de seu chefe para conduzir o trabalho e determinar normas e práticas,

geralmente ancestrais. Como explica Bourdieu, o lugar de onde se fala institui a

autoridade, reconhecida sob determinadas condições que definem a sua legitimidade; no

caso d’A Canga, a autoridade de Ascenço se afirma pela sua condição de pai, dotado da

Page 79: Cinema Nordeste

69

carga simbólica de detentor do saberes ancestrais. Essa autoridade acaba, porém, por

tornar-se ilógica, por estar fundada em costumes e ritos muito antigos que já perderam o

sentido para quem é submetido a ela, mas permanece irrevogável para o chefe de

família, que se impõe como detentor do capital cultural do grupo e mantém sua aura de

chefe e dominador por desempenhar função social reconhecida nas atividades

mobilizadas para o trabalho, conforme podemos analisar a situação à luz das

concepções de Bourdieu (1998, p. 87-89).

Nos filmes dos quais tratamos no primeiro capítulo, o patriarca, quando aparece,

tem esse poder sobre sua família, ainda que fora dela possa ser humilhado e esbofeteado

por coronel ou soldado, como em Deus e o Diabo e em Vidas Secas, ou mesmo pelo

padre, como em O Pagador de Promessas. O pater poder está representado no controle

de Fabiano de Vidas Secas sobre sua família, nas ordens do pai de Tonho para que ele

vingue o seu irmão morto, em Abril Despedaçado, no sentimento da mulher de Zé do

Burro, de O Pagador de Promessas, que se sentia obrigada a acompanhá-lo em seu

calvário.

No filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, a relação de mando do marido sobre

sua esposa é menos sólida: à medida que se embrenham na caatinga, em fuga, cresce o

poder de questionamento e de autonomia de Rosa. Ao submeter esse filme a uma

análise baseada na proposta de Pierre Bourdieu percebe-se que o poder do chefe sobre o

grupo só se concretiza em determinadas condições, nas quais suas ordens e sua

autoridade são condição para a sobrevivência e a unidade do grupo (BOURDIEU, 1998,

p.87-91). Assim, quando Manuel mata o patrão e é obrigado a fugir, pondo em risco sua

própria vida e a de Rosa, começa a perder um pouco dessa autoridade. Seu poder

continua dissolvendo-se na medida em que o próprio Manuel se submete ao mando do

beato Sebastião, delegando seu poder sobre Rosa ao beato e, mais tarde, a Corisco, que

assume até mesmo seu papel de marido, ao tomá-la como mulher.

Para a compreensão de formas como as posições, as práticas e relações dentro

das comunidades, com seus limites e restrições, que determinam as posições de

dominação, Chartier vê na obra cultural a possibilidade de ser o produto de “uma

negociação entre o criador ou uma classe de criadores e as instituições e práticas da

sociedade” (2002, p.94-96). Portanto, as formas de poder podem ser configuradas através

de representações que têm sua eficácia, como afirma Bourdieu, no reconhecimento do

poder do chefe pelo grupo que sofre a submissão. Esse autor é citado por Chartier

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70

quando analisa o consentimento social ou sexual como uma dominação simbólica: que

“só tem êxito na medida em que aquele que sofre contribui para sua eficácia; que ela só

o força na medida em que ele está disposto por uma aprendizagem previa a reconhecê-

la” (BOURDIEU apud CHARTIER, 2002, p.95, grifo do autor)

A compreensão de Chartier da violência simbólica permite-nos pensar as

rupturas da dominação dentro do campo da própria dominação, pela resistência ao

discurso que naturaliza as divisões sociais:

Definir a dominação imposta às mulheres como violência simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação, que é relação histórica e culturalmente construída, é afirmada como uma diferença de natureza, irredutível e universal. O essencial não é, portanto, opor termo a termo uma definição biológica e uma definição histórica da oposição masculino/feminino, mas, antes identificar os discursos que enunciam e representam como “natural” (portanto biológica) a divisão social (portanto histórica) dos papéis e funções (CHARTIER, 2002, p.96).

No filme, o pater poder é representado pela canga que é, portanto, o principal

elemento da trama, real e simbólica, objeto concreto, com seu próprio peso físico, e

símbolo do poder do pai sobre todos. Um poder que amarra e imobiliza a família,

pondo-a sob o cabresto que a faz caminhar na direção que o pai determina sem poder de

escolha; um poder que advém do provedor, daquele que detém o conhecimento dos

condicionantes da produtividade, indispensável para a sobrevivência de todos num meio

físico hostil e no nível rudimentar de técnicas de produção que lhe correspondem; poder

inquestionável, alimentado pelas situações geográficas e socioeconômicas que o levam

além da simples coercitividade e lhe atribuem o caráter simbólico de portador de uma

herança ancestral, cujas normas rígidas e sagradas de lealdade se apresentam como

condições indispensáveis para manter-se a unidade do grupo, e o extremo esforço

necessário à sobrevivência.

Nesse filme, o pater poder é o motor da tragédia54. O poder de Ascenço, até

então reconhecido e consentido, fundava-se na crença de que ele detinha o capital

cultural indispensável, os conhecimentos ancestrais passados de pai para filho que,

desde tempos imemoriais, vinham mantendo a unidade do grupo e a sua sobrevivência.

Essa crença dotava-o da autoridade pela qual sua fala tinha o poder de impor a execução

54 Tragédia, segundo Aristóteles, é a composição poética que imita as ações da vida dos homens de “caráter elevado”, em “linguagem ornamentada”, executada pela representação de atores. É composta de: mito, a alma da tragédia, na qual surgem a peripécia e o reconhecimento, e também de caráter, elocução, pensamento, espetáculo cênico e melopéia. Permitindo na sucessão das ações, que é o principal elemento do drama, a verossimilhança e a necessidade, provocando o terror e a piedade (ARISTÓTELES, 1991, p.205-210).

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71

de qualquer ordem, até mesmo de pôr seus filhos sob uma canga para substituir os bois

mortos pela seca com frases performáticas: “trabalha”, “força”, “Vamo arar essa

terra”, “venha trabalhar, seu sem vergonha... ligeiro, anda!”

Bourdieu explica a procedência desse poder simbólico ao afirmar que “essas

manifestações derivam sua eficácia específica do fato de que parecem encerrar em si

mesmas o princípio de um poder que reside efetivamente nas condições institucionais

de sua produção e de sua recepção” (1980, p.91). Considera, portanto, sob determinadas

condições que legitimam sua autoridade para pronunciar o discurso performático, que o

poder do chefe é aceito pelo grupo numa cumplicidade que mantém os mecanismos

sociais. O reconhecimento do poder de Ascenço por seus familiares é descrito na

seqüência 2 do filme, na cena 1 e no plano 1, conforme o Projeto de Produção

Cinematográfica.

Imagem Câmara baixa. Plano americano. O velho ergue a canga e diz aos filhos: Som Velho - Chega pra cá, Zé mais Cipriano, anda...! Cena 2 Plano 1 Imagem Primeiro plano. Lateral da canga. Zé zangado e Cipriano satisfeito, fazendo um barulho estranho, submetendo-se ao jugo. Câmara corrige e vai até o rosto de Zé, que olha Zefa e Sinhá Nana, puxando a corda, trôpegas. Som Cipriano - Alôba... Alôba... 55

A subversão herética, estudada por Bourdieu (1998, p. 118-120), permite as

mudanças no mundo social por romper uma ordem estabelecida pela autoridade, através

da inovação de práticas e experiências antigas, resultantes da luta pela construção do

novo grupo, que institui novas bases para legitimar a reapropriação da identidade social.

Porém, a subversão herética só ocorre se o chefe perder o reconhecimento de sua

autoridade ao se comportar de forma que quebre a coerência e a uniformidade do grupo,

como no caso do velho Ascenço. No filme, o pai só é destronado quando se comporta

de forma indigna para um portador do cetro e do capital cultural do grupo, ou seja,

quando é acusado pela nora de abuso sexual, transgredindo os limites impostos pela

identidade que lhe foi atribuída e que a ela se atribui.

55 Trecho do roteiro do filme A Canga.

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72

2.2.8 - O poder e a religião

Em A Canga, Ascenço, como detentor do conhecimento dos ritos e das

manifestações da natureza na frase “Já não disse que ainda hoje vai chover”, afirma sua

confiança na crença coletiva de que é portador da proteção divina, conferida pelo rito de

fechamento do corpo. Portanto, o poder de mando de Ascenço corresponde à sua

relação com Deus, também configurada por ritos e palavras “performáticas”, através da

reza que manifesta esse poder diante da família. A reza, publicamente manifestada, para

o fechamento do corpo − “Salvo entro, salvo estou. Salvo, salvo, salvo, salvo sempre

estarei e com o credo em cruz me fecho, Amém” − e as batidas no peito tocando o

bentinho e o escapulário definem um ritual mágico cuja força é reconhecida pelo grupo.

O simbolismo ritual não age por si só, mas apenas na medida em que representa – no sentido teatral do termo - a delegação: o cumprimento rigoroso do código da liturgia uniforme que rege os gestos e às palavras sacramentais constitui ao mesmo tempo a manifestação e a contrapartida do contrato de delegação (...) (BOURDIEU, 1998, p.93, grifo do autor).

A câmara, focalizando o objeto que representa o poder imobilizador do pai − a

canga − merece cuidadosa atenção. Filmada de baixo para cima, quando o personagem

Ascenço a ergue como um cetro impondo-a sobre os ombros dos filhos, concentra o

poder do pai sobre as ações desses. O ângulo escolhido apresenta os dois sob a canga,

reforçando, mais uma vez a figura do patriarca.

Esse pai poderoso remete a um poder simbólico, o da proteção divina. Sua

representação é construída na tomada em que a câmara, no ombro de Walter Carvalho,

caminha de costas e filma Ascenço, em plano americano (meio corpo), batendo no peito

e rezando com fervor56. Ao transformar-se uma representação em identificação provoca-

se um efeito simbólico que consiste em interpretar-lhe a essência como direito, mas

também como dever, que obriga os sujeitos à adoção de determinados comportamentos

para se ajustar à representação.

Assim, o ato de instituição de comunicação de uma espécie particular notifica a alguém sua identidade, quer no sentido de que ele a exprime e a impõe perante todos (...) quer notificando-lhe assim como autoridade o que esse alguém é e deve ser (BOURDIEU, 1998, p.101).

Pierre Bourdieu atribui, então, a eficácia simbólica das palavras de quem detém

o monopólio da manipulação dos bens sagrados ao fato de que ele mesmo e seu grupo 56 Conferimos os ângulos e perspectivas da câmara a partir do documentário making off de A Canga.

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73

reconhecem-no como o portador do direito de comunicação com o sagrado (1998, p. 95).

Assim, quando se inquieta, ao perceber a tensão na musculatura do seu filho Zé,

Ascenço, como procurador religioso reconhecido pelo grupo, tenta normalizar o

ambiente ao iniciar a reza que lhe fecha o corpo.

Segundo Chartier, as representações de ritos considerados como simbólicos

fornecem aos grupos um meio de organização do mundo social, através da construção

de uma forma de apreensão e comunicação do real que opera uma mediação entre

“signos lingüísticos, figuras mitológicas, religião e conhecimentos científicos” que

“constroem o mundo como representação”, traduzindo as posições e os interesses dos

grupos sociais 57 (CHARTIER, 1990, p. 19).

Esse autor contribui, ainda, para a compreensão da representação quando a

relaciona à presença da imagem frente à ausência do objeto, através da linguagem

simbólica, pela convenção dos signos que, na representação traduzem uma posição e

marcam a forma do grupo se exibir no mundo social (CHARTIER, 1990 p. 21). Portanto,

nos filmes trabalhados no primeiro capítulo, a força do poder religioso comanda a ação

como no caso das autoridades da Igreja de Santa Bárbara, no filme O Pagador de

Promessas, que auto-instituídas como porta-vozes de Deus, impõem seus dogmas sobre

os fiéis. O personagem, Santo Sebastião, do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol,

também representa o depositário de um poder divino que comanda a ação dos seus

seguidores questionando o poder da Igreja instituída e oficial. Porém, como se reveste

de um poder que é reconhecido pelo seu grupo, controla os beatos através de promessas

de salvação. E, por fim, no filme Abril Despedaçado, a divindade está representada no

código de honra dos antepassados, que regula a vida e a morte das famílias

representadas na trama. Portanto, dogmas e signos convencionados são lidos na

representação como ostentação. “Assim deturpada, a representação transforma-se em

máquina de fabrico de respeito e de submissão, num instrumento que produz

constrangimento interiorizado, que é necessário onde quer que falte o possível recurso à

violência imediata” (CHARTIER, 1990, p. 22).

57 Vê a representação como forma de apreensão do mundo social, pois são exibições próprias de grupos sociais que marcam sua existência através delas. Isto é fundamental para a reflexão sobre a sociedade, pois as representações são atribuições que os grupos sociais fazem de si mesmos.

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2.2.9 - Tragédia no enredo e na imagem cinematográfica sobre o Nordeste em A

Canga

A tragédia expressa em homicídios é outro elemento constitutivo de todas as

narrativas fílmicas anteriormente discutidas como herança cinematográfica com a qual

A Canga dialoga. Correspondem ao que Aristóteles considera a narrativa trágica, de

“casos que suscitam o terror e a piedade”, definindo a situação trágica como: “(...) a do

homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal

acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro”, que servirá para

desencadear a tragédia (ARISTOTÉLES, 1991, p.212.). Nos filmes estudados, o protagonista

também comete um erro fatal que o leva ao infortúnio, desencadeando a tragédia, pois

ele tem a predisposição para a ação catastrófica 58. Os filmes sobre o Nordeste tendem à

narrativa trágica porque representam, em sua maioria, situações de extrema dificuldade

que conduz as pessoas a situações-limite, que as levam quase sempre ao desespero, à

violência, à loucura. O tempo presente, nessas narrativas fílmicas, está preso a um

passado opressor, e as ações desesperadas têm a carga dramática exigida para a

construção da tragédia. Em A Canga personagens identificados como heróis, Zé e

Ascenço centralizam a ação. Mesmo não inspirando piedade a “figura paterna pode,

desta forma ser vista como a personagem que inicialmente encarna o papel de herói

trágico na trama dramática”, e “essa força de ação ‘heróica’ é que o torna o edificador

de sua própria derrocada futura” (LIMA, 2005, p.48). Portanto, movem seus atos em

direção ao erro, o que resulta em homicídios, face às contradições a que estão expostos,

em verossimilhança com situações vistas ou imaginadas pelo espectador.

Na narrativa fílmica de A Canga, a tragédia instala-se logo no início, quando o

pai ordena aos familiares que se submetam à canga cujo peso concentra a opressão

exercida pelo patriarca que, contra todas as adversidades, insiste em permanecer preso

ao solo hostil e essas condições é que lhe asseguram a posição de provedor, de

conhecedor e, portanto, de chefe absoluto. Essa ação do pai é então contestada pelo

filho Zé que tenta, verbalmente, convencer o pai de que a canga não é a opção mais 58 Destacamos, em Aristóteles, o erro trágico para mostrar a desgraça sem nos determos no caráter das personagens que cometem o erro, que nas narrativas fílmicas abaixo relacionadas é justificado como recurso de tragédia, como no caso de Manuel, de Deus e o Diabo Na Terra do Sol, que ao matar o patrão passa por infortúnios na comunidade do beato Sebastião e no acampamento de Corisco. E, assim como Fabiano, que incorre no erro de tentar argumentar com o soldado amarelo e termina preso e humilhado, no filme Vidas Secas, também Tonho, de Abril Despedaçado, ao matar um dos Ferreiras, passa a ter os seus dias de vida contados.

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racional para a manutenção da família. Zé argumenta: “Essa porcaria desse chão tá

esturricado!” “Vamo parar com isso, vamo embora daqui!”, “Não vê que não adianta?

Daqui a pouco, nem preá tem por aqui. Só cascalho e xiquexique!” O foco da câmara

nos rostos suados e sofridos dos demais personagens subjugados, expõe seu grau de

desesperança na atividade que executam.

A dramaticidade aumenta na cena em que o arado fica preso a uma pedra e o pai

usa o chicote para intensificar o esforço dos outros e transpor o obstáculo. O esforço é

tanto que todos vão ao chão, voltando logo aos seus lugares pela ação do chicote. A

situação de Zefa, porém, é ainda mais dolorosa, pois ela carrega o peso do filho, o que a

faz gemer enquanto tenta se levantar, provocando em Zé o impulso de socorrê-la, que é

contido pela ordem imediata do pai: “Volta pro seu lugar!” O movimento continua

apesar da indignação de Zé, mas Cipriano motiva a ação que levará ao desfecho trágico,

quando sai da canga e leva Zefa à nova queda e o sogro a chicoteá-la colocando Zé,

mais uma vez, contra o pai. O clímax dramático se concretiza quando Zefa, em

desespero, revela que Zé foi traído pelo próprio pai que abusava sexualmente dela, e

Ascenço, reagindo à acusação, dá um pontapé na sua barriga. Esse ato, erro trágico de

Ascenço que ultrapassa o limite de violência até então aceito, desencadeia a catástrofe

que o leva à morte (LIMA, 2005, p. 51-54) 59.

SEQÜÊNCIA 08 - HISTERIA DA NORA

E vai se tomando pela histeria, enquanto Zé se afasta levando chicotadas e levantando a canga, Cipriano sorri e balança os chocalhos. E ela continua - Teu pai se deitava comigo quando tu saía, desde o dia em que cheguei. Não sei nem se este filho que tou pra parir é teu ou dele. O velho por um momento fica indeciso. Depois corre para Zefa, desvairado, lhe dá um pontapé na barriga e diz: Puta mentirosa. 60

A tragédia desenrola-se em três cenas que, trazendo uma intensa violência,

prendem o espectador, assustando-o e chocando-o. Na cena em que a nora é chicoteada,

a câmera quase apoiada ao chão enquadra o braço e o movimento da personagem

Ascenço, que, na realidade, chicoteia um banco embaixo dele, conforme verificamos no

making off. O câmera filma o movimento de baixo para cima, tomada que na linguagem

cinematográfica ressalta a força e o poder do personagem. 59 Nesse trabalho, pioneiro na utilização do filme A Canga, que tem por base a Poética de Aristóteles, a autora destaca o “erro trágico” apresentado como “ o elemento que conduz o herói ao desfecho trágico”, categoria fundamental para o estudo da autora e de nossa argumentação da tragédia. Destacamos também, as características heróicas de Zé, pois a sua ação terrífica é que põe fim à opressão, instalando a catástrofe. 60 Trecho do roteiro do filme A Canga.

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No pontapé que Ascenço desfere na nora, que o acusa de abuso sexual, uma

câmara vai a sua frente, filmando a sua expressão facial e, outra posicionada no colo do

câmera registra a agressão, sem focar a vítima. O que é atingido é um rolo de pano na

mão de um dos integrantes da equipe de filmagem, novamente em observação da

construção fílmica a partir do making off de A Canga.

E, por fim, a tragédia na cena em que Zé mata o pai, a câmara fica atrás para

filmá-lo voltando-se para o filho, fazendo um close-up de Ascenço. Não vemos o rosto

de Zé, a câmara foca o dedo no gatilho, depois a mãe, mostrada do busto para cima e,

por último, o céu avermelhado com o sol se pondo61.

A “teatralização da vida social”, através das representações, tem em vista exibir

uma forma de estar no mundo. Conforme Chartier é moldada por uma série de práticas

que regulam as relações entre os indivíduos, produto de diferentes situações e estruturas

de poder, construções de sentidos plurais dependentes das especificidades do espaço, da

temporalidade e das práticas culturais, podendo ser inscritas em longas durações

(CHARTIER, 1990, p.21-28). A compreensão da tragédia, cuja origem unifica o sagrado e o

profano, pois se une aos primórdios, ou seja, à unidade originária do universo, produz

uma síntese entre a vida cotidiana e o eterno retorno, seja por meio da mimese ritual ou

filmica, conforme contribuições de Canevacci:

A igreja católica compreendeu mais do que qualquer outra instituição, a potência da imutabilidade, o seu fascínio irresistível de atração e mimese. Depois do período revolucionário inicial, durante a fase palio cristã, na qual as relações de comunidade se inserem na tradição mais criativa e solidária das forças rituais precedente, a formulação católica conseguiu conciliar numa síntese genial cultos e cerimônias pré-cristãs com a rigidez obsessiva dos próprios mysteria (1984, p. 43, grifos do autor) 62.

O pensamento de Canevacci pode ser enriquecido por Eliade, quando diz que os

mitos, alimento das tragédias, narram histórias que explicam as condições humanas de

existir.

“Os mitos, efetivamente narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também, de todos os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o homem se

61 Os comentários sobre os truques e movimento de câmara centrados no making off, foram aqui trabalhados como peça fundamental na decodificação do trabalho cinematográfico e nos permitiu compreender as estratégias da linguagem técnica do cinema na recriação da paisagem como cenário e das ações como truques para simular a violência que vemos como real no filme. 62 A análise antropológica do cinema que prioriza os arquétipos universais, produto da simbiose entre elementos pagãos e cristãos, consolidados na mimese da missa reproduzida pelo cinema, para inculcar valores na sociedade atual.

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converteu no que é hoje − um ser mortal, sexuado, organizado em sociedades, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras. Se o Mundo existe, se o homem existe, é porque os Entes Sobrenaturais desenvolveram uma atitude criadora no “princípio” (ELIADE, 2000, p. 16, grifos do autor).

Eliade, portanto, analisa o mito como representação que tenta a partir do que é o

homem hoje, buscar suas origens ancestrais para compreender através das imagens

míticas a construção de uma percepção do homem sobre sua condição histórico-cultural.

Chartier, de quem somamos contribuições a essas idéias, introduz as

representações trágicas no mundo social, tendo sua essência fundamentada no mito,

conforme Aristóteles (1991, p.207). Essas permitem a compreensão do funcionamento da

sociedade delimitando os grupos que participam da ação e exibem uma identidade,

como características reconhecidas e instituídas. “Descrevem a sociedade como pensam

que ela é, ou como desejariam que fosse” (CHARTIER, 1990, p.18), através dos códigos

culturais que traduzem suas práticas e divisões sociais enraizadas e difundidas de forma

quase sacralizada, mas que permitem “formas diferenciadas de interpretações”

(CHARTIER, 1990, p.28).

Portanto, a função do mito, desenvolvido na tragédia, é retomada no filme A

Canga, na linha da tradição constituída na cinematografia brasileira sobre o Nordeste e

seu mundo social. A tragédia que narra retoma figuras mitológicas constituídas ao longo

da vida das organizações sociais que, aqui, apesar de universais, vêm dar consistência à

percepção do lugar Nordeste, como uma criação muito remota. A Canga retoma

elementos da tradição clássica da tragédia para apontar para o novo, já que a morte do

velho Ascenço abre a possibilidade de novas condições de vida para seus familiares.

Portanto, com o enredo trágico que manifesta a luta pelo poder, permanece uma visão

do Nordeste arcaico, mas que aponta para a transformação, permitindo a apropriação

das suas características pelos grupos em luta para impor, para manter ou para subverter

a ordem.

2.2.10 - A loucura: elemento catalisador da tragédia em A Canga

A seqüência do arado, insistentemente roçando uma pedra, traduz a loucura que

move a tragédia deste filme. A câmara, sobre um banco, enquadra as imagens da pedra e

da roda do arado, sacolejado por cordas pelo diretor e pelos assistentes, mas mantido

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imóvel por um deles, passando a impressão que há imenso esforço para movê-lo. Na

verdade, enfoca a situação limite em que vive a família representada pela pedra, que não

é desviada, mostrando como a loucura paralisa as ações ou as torna sem lógica63.

A loucura, nas obras fílmicas em análise no capítulo anterior, está relacionada às

condições sócio-culturais e ao meio ambiente físico, pois é pela fome e pela injustiça

humilhantes, sob fustigação de um sol escaldante, que se perde o juízo.

Uma importante contribuição de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, ao

analisar a seca em busca de fenômenos com raízes mais profundas do que as revoltas

ocasionais, permitem-nos conjugá-la com o desespero permanente. É esse desespero de

fundo que provoca constantes distúrbios sociais, levando homens aparentemente

pacatos e ordeiros a enlouquecer quando a fome e a miséria extrapolam seus limites

“normais”, numa revolta contra a ordem e o poder estabelecidos pelo próprio processo

inicial de ocupação das áreas úmidas do sertão pelos colonizadores que subjugaram os

que dela foram subtraídos, instalando uma situação essencialmente conflituosa que

explode quando ocorre estiagem (1985, p. 5-13).

A seca possibilita o desmascaramento da estrutura social vigente, permite aos pobres verem os “outros” na estrutura social, o dominado percebe que a seca é diferente para ele e para a classe dominante, que ele chama de rico e que até enriquecem com ela. (...) A fuga em massa das populações do Sertão, principalmente dos dominantes, abre um vazio não só demográfico, mas um vazio de dominação, um deslocamento nas relações de poder e o Sertão torna-se então o reino dos cangaceiros, aqueles jagunços que se revoltaram contra os grandes proprietários, aqueles pobres que matam para sobreviver ou mesmo sonham em se tornar um coronel. Homem pobre revoltado que depois que entra no cangaço só sai morto e que mesmo que a chuva restabeleça a rotina do Sertão, esta já não o encanta mais, já não está mais disposto a se estabelecer, torna-se cangaceiro “profissional” (ALBUQUERQUE Jr., 1985, p. 7).

Quando a seca atinge o sertão, tudo se esgota, provocando uma desorganização

na sociedade sertaneja que quebra os vínculos socioeconômicos, políticos, culturais e

psicológicos, levando-a a loucura.

Passou pelo sertão um frêmito de nevrose (...). O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam-se mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhe a primazia no sacrifício (...). O sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e, afirmavam os jornais do tempo, em cópia tal que, depois de desfeita

63 Análise com base no making off.

Page 89: Cinema Nordeste

79

aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado (CUNHA, 1982 p. 98).

O filme em questão apresenta a loucura sob quatro aspectos, todos relativos à

hostilidade do meio ambiente e à impossibilidade de sobrevivência: 1) em Cipriano que

se comporta como um dos bois que ele substitui, sem pudor ou censura e, através da

loucura, foge da situação de opressão, imposta pelo pai; 2) a insanidade de Ascenço

manifesta-se pela confiança incondicional no conhecimento dos ancestrais, que lhe

garante chuva para aquele dia, contra qualquer interpretação racional do aspecto limpo

do céu, sem nuvens carregadas e, insano também é o caráter desumano, arbitrário,

violento e inquestionável das ordens cruéis que impõe à sua própria família; 3) a loucura

de Zefa é provocada não só pela fome, mas fundamentalmente pela dor e pela falta de

consideração diante da sua condição de mulher e de grávida que deveria receber

melhores cuidados, mas ao contrário, torna mais pesado seu fardo que reúne os pesos da

canga e do filho no ventre, filho que pode ser fruto de outra violência, do abuso sexual

do qual ela acusa o sogro. Mostra-se insana quando − caída e chicoteada, sentindo a

tensão entre pai e filho − mesmo conhecendo a gravidade do código de honra da

sociedade na qual vive, chama o marido de corno e denuncia a traição do sogro, que

abusara de seu poder de chefe e desobedecera às regras que sustentavam sua autoridade.

Zefa, assim, acaba de romper as bases da autoridade de Ascenço, provocando o tiro que

quebra a ordem estabelecida; 4) A lucidez de Zé será destruída pela situação-limite em

que se encontra, frente à revelação da traição do pai. Essa situação também o animaliza,

iguala-o ao boi que substitui, porque os chifres a que se refere a palavra corno,

pronunciada por Zefa, reforçam sua posição de humilhação e a traição à sua honra. O

ato de Zé, ao atirar no pai, é um ato de loucura que se manifesta na violência assumida

para libertar-se da condição de animal sob a canga.

O ciclo da violência é, porém transformador, como a violência glauberiana, ele

põe fim à loucura de Cipriano, pois o liberta da canga, podendo-se atribuir à sua loucura

um componente transformador ou libertário, como nos sugere a leitura de Eliade,

explicando a virtude libertadora da morte violenta de um deus (2000, p. 91-97).

Fica claro na narrativa de A Canga que a morte violenta de Ascenço traz a

possibilidade de renovação e de recuperação da condição humana antes perdida na

loucura e na opressão:

SEQÜÊNCIA 09 - MORTE DO PAI

O velho escuta alguém chamar seu nome. Olha pra trás, arregala os olhos e fica inerte. Um silêncio toma conta do lugar, num movimento lento, a câmara sai do cano do trabuco e vai até o gatilho. Enquanto ouve-se o som do tiro, o rosto de Sinhá Nana se traduz num espanto, seguido de alívio. Do seu lado, Cipriano, fica sério, começa a tirar os

Page 90: Cinema Nordeste

80

chocalhos. Começa a chover. No chão, cai o chocalho, a canga e a espingarda. Chove muito 64.

2.2.11 - A violência estrutural no filme A Canga

O pontapé de Ascenço contra sua nora e o parricídio são expressões de violência

que apresentam semelhanças com algumas obras da cinematografia de Glauber Rocha,

que utiliza e defende o seu uso na narrativa fílmica como meio de conscientização

porque, segundo esse cineasta, só através dela é que se podem expressar os sentimentos

profundos e as necessidades de um povo em pleno estado de miserabilidade.

A violência assumida como forma estética nos filmes de Glauber a exemplo de

Deus e o Diabo na Terra do Sol, já discutida em capítulo anterior, é usada para

contrapor-se à mendicância, propondo-se como denúncia da fome, da escassez, como

superação da contemplação conformista e como ação transformadora. Segundo Glauber

Rocha, a questão central da identidade brasileira está na miséria, muitas vezes ocultada,

mas por outras, explode numa “brutal” violência (1981, p. 28-31).

Pelo Cinema Novo o comportamento exato do faminto é a violência, e a violência do faminto, não é o primitivismo (...). Do Cinema Novo: uma estética da violência, antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, pela força da cultura que explora (ROCHA, 1981, p. 31-32).

Tomamos Glauber Rocha como parâmetro por sua teorização da violência como

proposta estética, e pela sua expressão em seus filmes, nos quais a violência tem o

caráter impactante desejado pelo autor como instrumento revolucionário para a

conscientização. Destina-se a minar as estruturas da dominação quando expõe, sem

maquiagem, a fome, a sujeira, a miséria e, conseqüentemente, a loucura. É, portanto, na

violência dos castigos impostos pelo Santo Sebastião às prostitutas e pelos sacrifícios

exigidos aos seguidores − chegando ao extremo de sacrificar uma vida humana para a

purificação das almas − bem como, na violência do cangaço, com requintes de sadismo

− que aparecem nas cenas de castração e de esfolamento, intensas e incômodas − que

Glauber realiza melhor seus objetivos.

64 Trecho do roteiro do filme A Canga.

Page 91: Cinema Nordeste

81

A violência, em sua obra, tem a função de alertar, pelo horror, para a

possibilidade da explosão popular que podem produzir a brutal fome, o desespero e as

condições desumanas que assemelham homens a animais. Glauber expunha a violência

como resposta a essa situação, pois através dela é que se desestruturaria a condição de

opressão, que conforme nossa interpretação será reiterada no filme, A Canga. Nele é

através do parricídio que a canga (a dominação opressora) cai por terra. Aqui violência

primordial está contida nas relações de caráter simbólico, instituídas pelas palavras do

pai, poderoso representante do saber dos ancestrais. Essas relações são sagradas,

impossíveis de serem quebradas em situações “normais”, e por isso a canga é tão

pesada, porque não é só o esforço físico de transportá-la que esmaga os filhos de

Ascenço, mas também a impossibilidade subjetiva de removê-la. Essa é a violência que

fere profundamente Zé e Cipriano, porque os destitui de humanidade.

O desenrolar da narrativa fílmica só vai acentuar essa violência, pois a

linguagem estabelecida nas relações familiares é o pontapé no ventre da nora, o chicote

que o pai empunha para acompanhar as suas ordens, cajado que no lugar do cetro o

investe de um poder de comando. O bastão empunhado pelo velho patriarca é mais um

realce da estrutura familiar em questão, na qual o poder instituído não pode ser

questionado ou ameaçado. A situação limite, vivenciada pelos familiares de Ascenço, se

expressa nas amarras que o poder coercitivo e simbólico do pai lhes impõe.

O clímax da narrativa cinematográfica corresponde à morte de Ascenço, o

último ato de violência do filme, através da qual tudo o que o personagem representa

pode ser visto, compreendido e questionado, libertando, afinal, a todos dos laços que

lhes eram impostos pela tradição e, por isso, do jugo da canga.

2.2.12 - O simbolismo da chuva no filme A Canga

A chuva que cai, em A Canga, tem uma conotação bíblica da purificação pela

água, como no batismo instituído por João Batista, que lavava e diluía os pecados dos

aflitos no rio Jordão. Assim, também, em A Canga, a opressiva carga do passado é

diluída pelo poder das águas tal qual um dilúvio purificador. Eliade, em suas análises

sobre o mito do dilúvio, atribui à imersão na água a simbologia da recriação do mundo e

Page 92: Cinema Nordeste

82

da regeneração do homem que, segundo o apocalipse judaico-cristão, volta ao princípio,

ao tempo de beatitude.

Segundo José Jonas Duarte da Costa, a visão da chuva, cuja ausência traz a

tristeza, a angústia e o desespero, corresponde a uma redenção para o sertanejo, “é o

complemento da terra”, traz “a esperança de vida e de nova realidade”. Esse autor,

porém, também ressalta a contradição social que condiciona o sentido até mesmo de um

fenômeno natural como esse, porque “a chuva ou a água, para muitos, é a própria vida, é

que vai garantir o sustento. Para outros, a lucratividade e, para maiores riquezas, tudo no

geral, sinônimo de felicidade” (2003, p.36-37).

Essa visão também pode ser atribuída ao estabelecimento de uma nova ordem,

pois o fim do mundo está ligado ao seu reinício. Após uma catástrofe, ele é modificado

e enriquecido. Instala-se uma nova situação, conforme os estudos de Eliade, sobre o

mito do dilúvio, que lhe atribui a virtude de abrir o caminho para a recriação do mundo,

projetando para o futuro a renovação paradisíaca (2000, p. 53-58).

A chuva em A Canga corresponde a um sonho específico do povo da região,

como mediação sagrada que permite ao homem trabalhar a terra, presente também nos

filmes anteriormente citados. Trata-se, portanto, de um elemento climático com uma

grande carga simbólica, representando a redenção e um recomeço da vida para povo do

semi-árido do Nordeste, cuja economia, dependente quase exclusivamente de atividades

agropastoris está ligada, primordialmente, a chuva. A estiagem persistente é

extremamente marcante, vista como uma ameaça constante na imaginação popular. A

chuva, na região nordestina mantém, portanto, o sentido que adquiriu desde o início das

sociedades agrícolas, como manifestação da divindade que desce do céu até o solo,

possibilidade de continuidade, presença das origens, reinstaurando o tempo primordial,

fertilizador e sagrado.

A dependência de água para a manutenção da vida humana confere à chuva uma

característica divina que extrapola o aspecto regional, sendo tradicionalmente vinculada

à divindade criadora, então, instrumento seja da cólera seja da bênção divina. No filme

A Canga, o pai, chefe do grupo, era inicialmente o detentor desse poder por

supostamente monopolizar o conhecimento dos sinais enunciadores da chuva.

Page 93: Cinema Nordeste

83

A chuva, que chega para fecundar a terra, põe ao chão as armas do pater-poder,

a canga e o chocalho, além do trabuco, pois onde a fome desaparece não há necessidade

de suas manifestações culturais, ou seja, da violência.

A chuva é a divindade inconsciente do Sertão. A chuva é o início de um ritual anunciado pelo rápido esverdeamento das matas desfolhadas e calcinadas e reverberado pela fugaz perenidade dos leitos temporários dos rios, açudes, barragens e boqueirões erguidos pelo homem e pela natureza, aproveitando racionalmente os acidentes geográficos e os caminhos pluviais. Quando as chuvas chegam no ritmo dos anos regulares, a vegetação ressurge do solo crestado; os bichos voltam a procriar...e os animais domésticos repovoam pastos e currais das fazendas. E acompanhado esse ritmo pendular da natureza, igualmente os postos de trabalho nas fazendas de pecuária, no amanho da terra e mesmo até repercutindo na vida comercial das vilas e cidades, no equilíbrio econômico que perpassa o ar das feiras sertanejas, nos anos “bons” de inverno (...) (PATRIOTA, 2003, p. 12).

Nesse sentido, a chuva de A Canga tem uma função indicativa, ela sinaliza para

o espectador o fim de um ciclo da seca e da opressão, como fenômeno natural com

previsibilidade e circularidade regidas por leis naturais, apesar da construção de seu

sentido e sua percepção serem elementos culturais da memória ancestral, heranças

culturais concernentes às relações primordiais entre os homens e seu meio ambiente. No

filme de Vilar, a chuva torna-se elemento simbólico em que, ao umedecer a seca terra,

estabelece a possibilidade de mudança.

A chuva, criada com o auxílio de um carro pipa, transporta a outra evocação

simbólica do lugar Nordeste, não pela sua abundância, mas, pela ausência, portanto,

quando ela é introduzida em cena, através do roteiro −, pois na novela de Solha não

existia - vai se harmonizar com a imagem romântica de Nordeste como redentor. A

chuva improvisada num dia de sol claro, caindo artificialmente pela mangueira de um

carro pipa molhando um restrito pedaço de terra, encharca o espectador de esperança no

porvir65.

2.2.13 - Os personagens d’ A Canga e os arquétipos universais

O fascínio que o cinema exerce sobre seus espectadores, segundo Canevacci,

decorre da mimética da repetição, originária da tragédia grega que, por sua vez, vem dos

ritos em honra a Dionísio. Tais mitos permitiam ao homem sair de sua individualidade

e, num êxtase, ligar-se a Deus, numa experiência da fusão à universalidade da qual faz 65 Descrição das técnicas de produção artificial de chuva no making off de A Canga.

Page 94: Cinema Nordeste

84

parte, através da “tragédia cuja origem unificava o momento do culto com o da

cerimônia, sagrado e profano eram indistinguíveis, unidos na “paixão” de Dionísio ”(1984,

p.40).

A sociedade cristã produziu uma síntese dos ritos sagrados e profanos anteriores

à cristandade e de seus sentidos, ao estabelecer o rito da missa, representação sagrada

que repete cotidianamente o ritual originário dessa religião, conduzido por uma classe

sacerdotal que conhece os textos e a ação cênica do rito, sobre o altar, separada − como

num palco − dos participantes comuns:

A dialética entre tolerância em face dos hábitos arcaicos e absolutismo em face dos próprios produziu uma gradual absorção e/ou sobrevivência dos ritos pagãos dentro da totalidade católica, conseguindo finalmente dobrar a infinita variedade de hábitos culturais presentes em várias partes do mundo – uma vez iniciadas as missões cristianizadoras - à unidade do dogma. Instrumento principal da triunfante homogeneização católica foi a centralidade da repetição cotidiana da missa. (...) que é construída segundo uma ordem precisa, de modo a encaminhar e predeterminar os fluxos dos olhares: em particular o “palco” onde ocorre a representação sagrada é bem separado da “platéia”, onde se organiza a participação cada vez mais passiva num rito transformado em espetáculo, com tudo previsto num roteiro recitado infinitas vezes (CANEVACCI, 1984, p. 44- 45, grifos do autor).

No cinema, analisado por Canevacci como recriação da mitologia na

modernidade capitalista, há uma massificação do rito da repetição das paixões humanas,

(1984, p.51), em que morte e ressurreição são o resultado da condição histórico-cultural

do homem, possibilitando o processo da dinâmica da sociedade, através das

representações. “O cinema é a mimese que retorna não sobre forma ‘eterna, mas como

reprodutibilidade técnica e espiritual, que mantém em seu interior toda a memória do

passado mais remoto” (1984, p.28).

Canevacci, seguindo esta argumentação sobre o poder mimético do cinema, que

se revela em seu produto cultural, o filme, busca na criação das imagens os arquétipos

culturais que tornam possíveis a compreensão da própria condição histórica cultural do

homem e como ele a explica através das representações.

Assim, Canevacci propõe um modelo analítico para compreender a posição dos

personagens nas tramas cinematográficas como repetições ritualizadas, no esquema de

divindade instaurado pelo cristianismo. Centrado nas análises de Jung − que propôs uma

nova figura, o diabo, também criado pelo pai, como adversário de Cristo − em

substituição a trindade divina, apresenta um modelo quaternário: Pater, Filius, Diabolus,

Spiritus. Com base nesse modelo, analisa diferentes tramas cinematográficas a partir da

Page 95: Cinema Nordeste

85

caracterização de cada elemento do modelo proposto por Jung. A proposta interpretativa

daquele autor sugere que Pater é o poder, a origem de tudo, o criador, a ação e a

potência genital, cujo sofrimento fará o mundo retornar às suas origens. Filius é a

individualidade que busca encontrar a sua origem no Pater, e sua finalidade é ser Pater,

viver o conflito da conquista da individualidade e da racionalidade, fazendo-se herói e

intermediário entre o Pater e o mundo. O seu sofrimento tem como fim restabelecer a

situação inicial, mas num nível superior, pois a sua autoconsciência foi construída na

“paixão” do mundo. O Diabolus é a individualidade negada, incontrolada e pulsante,

configurada na morte e no prazer, antagônica ao herói. O Spiritus “é a negação da

negação”, o feminino, o irracional, que se junta ao Filius para derrotar o Pater ou o

Diabolus (1984, p 57).

O cinema compreende, segundo Canevacci, os quatro elementos que se repetem

nas narrativas cinematográficas. Nele estão presentes a ação criadora e poderosa que

restitui às origens, como o Pater, sendo também formadora e reconhecedora de

individualidade, como o Filius, ou a negação da individualidade, através da qual as

pulsações e o inconsciente são representados, como o Diabolus, e, finalmente, a

presença insidiosa da luz do projetor constitui o fluxo das imagens, representando o

Spiritus. Logo, o cinema revela e reproduz as características dos quatro personagens,

numa variação de tema, num duplo das experiências vividas (1984, p.57-58).

As quatro figuras elaboradas por Jung são aplicadas por Canevacci em 31

narrativas fílmicas, nas quais identifica a “cruz das quatro figuras”, postas em

confronto: Filius se contrapondo ao Diabolus, na horizontal, e Pater ao Spiritus, na

vertical, buscando sempre esta oposição na caracterização dada aos quatro elementos,

que se reproduzem numa variedade de gêneros, épocas e estabelecem a permanência

dos arquétipos dentro da narrativa filmica.

Aplicando o método quaternário de Canevacci aos personagens do filme A

Canga, podemos identificar o Pater no velho Ascenço Teixeira que representa, antes de

tudo, o poder condutor das ações dos outros personagens, mantendo-os sob a canga e,

mesmo sendo velho, é a sua potência genital que se confronta com a sexualidade do

filho ao emprenhar a nora. O seu sofrimento, ao arar a terra, conecta o grupo às origens

bíblicas ou mesmo mitológicas do culto à terra, numa relação de estreita simbiose entre

homem e natureza.

O personagem Zé, filho de Ascenço, o Filius, caracteriza-se como herói,

argumenta contra o pai sobre a necessidade de deixar essa terra e essa forma

Page 96: Cinema Nordeste

86

improdutiva de sobrevivência. Seu discurso busca uma afirmação de individualidade e

competição pelo poder do pai. Pela consciência do sofrimento e das angústias do grupo,

expressa na cena do filme que retrata seu delírio sonoro e visual, constrói o seu

conhecimento. Essa percepção da extensão impiedosa do poder liberta-o e o impele a

executar a ação que destrona o pai.

Cipriano, o outro filho de Ascenço, o Diabolus, é o contraponto de Zé,

representa a individualidade negada, transformado num animal de carga, o anti–herói

que se comporta como louco, incorporando sons e trejeitos do próprio boi que ele

substituía puxando a canga. Sua postura é incontrolada e pulsante, configurada na busca

do prazer sem censura nem respeito às normas preestabelecidas, o que fica patente na

cena em que o personagem se masturba diante de todos, sob a canga.

O Spiritus é representado por Zefa, que impulsiona Zé contra o pai, acusado por

ela de abuso sexual, provocando a fúria do marido e o parricídio. É a aliada do filho

para negar o poder do pai provocando, porém, com a sua sexualidade feminina, a ação

violenta libertária d’a canga.

Sinhá Nana é, também, representante do Spiritus por sua essência feminina, que

por ser submetida à potência do marido, não se rebela como Zefa, mas a apóia em sua

dor, posicionando-se sempre ao seu lado quando geme ou cai. Observa-se, ainda, o fato

de não questionar o ato do filho quando mata o pai, como podemos constatar na

descrição a seguir:

O velho escuta alguém chamar seu nome. Olha para trás, arregala os olhos e

fica inerte. Um silêncio toma conta do lugar. Num movimento lento, a câmara

sai do cano do trabuco e vai até o gatilho. Enquanto ouve-se o som do tiro, o

rosto de Sinhá Nana se traduz em espanto, seguido de alívio66.

A análise antropológica do cinema proposta por Canevacci, aplicada à ação

trágica do filme, contribuiu fundamentalmente para a compreensão da dimensão

humana contida na tragédia como sua repetição mimética.

A força do cinema − que, independentemente do gênero, apresenta, sempre as

quatro figuras reconhecidas por Canevacci − está em ser capaz de estabelecer afinidades

culturais com qualquer receptor por se basear, segundo esse autor, em uma herança

biológica e cultural própria de toda a espécie humana, que “põe em forma de cruz

66 Trecho do Roteiro que descreve a seqüência 09 – Morte do pai.

Page 97: Cinema Nordeste

87

quaternária as simbólicas de uma concepção de mundo profundamente reacionária, co-

presente em nosso esquema de civilização” (1984, p.73).

As análises de Canevacci nos possibilitam a interpretação dos arquétipos

universais na obra fílmica A Canga. No entanto, sua maior contribuição está no enfoque

dado ao rito que o cinema oferece por força da repetição de arquétipos, esteriótipos nos

variados gêneros, trazendo símbolos − não dissociados da cultura, do tempo e do espaço

− representantes dos pontos de identificação que podem se tornar fator de submissão

pelo caráter místico que o rito imprime (1984, p. 69-71).

Page 98: Cinema Nordeste

88

CAPÍTULO III

AUTORIA E IDENTIDADES EM A CANGA

3.1 - As dimensões da autoria

3.1.1 - A análise sobre o conceito de autoria

Nosso objetivo, neste terceiro capítulo, é discutir a questão da autoria, que

entendemos ser, no cinema, sempre gerada com a contribuição de vários atores sociais.

Centraremos nossa análise naquele que elegemos como núcleo autoral − direção, roteiro

e direção de fotografia − baseada nas experiências individuais desses autores assim

como na articulação e na diversidade dos seus papéis no processo criativo d’A Canga.

As obras artísticas estão intimamente relacionadas aos seus autores, nem sempre

de forma direta, às vezes, subentendida, mas sempre, de algum modo, revelando suas

vivências, pois a interiorização das formas de organização social produz pensamentos e

ações que marcam a autoria e que identificam pessoas ou grupos como seres sociais. A

importância da interação dos autores com o mundo social torna-se evidente para os

historiadores, na medida em que possibilita a identificação da interdependência da

autoria com a sociedade. A análise das articulações entre as particularidades do sujeito

autor e a concretude do produto possibilitam o desvendamento das experiências vividas

em coletividade e, portanto, são mais uma mediação para a compreensão da relação

indivíduo/ sociedade.

Constatamos, em nosso estudo do processo de produção do filme A Canga, a

forte presença de elementos da tradição do cinema brasileiro, como a caracterização do

território Nordeste, o legado do Cinema Novo e o viés antropológico que lhe confere

sua condição de tributário de valores da universalidade. Nossa busca, neste capítulo, é

pela especificidade da autoria, apesar das influências e interferências que a ela se

misturam, na obra fílmica elaborada, e também através do conhecimento dos

componentes do núcleo autoral, Marcus Vilar, W.J.Solha e Walter Carvalho, cujas

escolhas resultaram no filme. Consideramos, que certamente, os caminhos que trilharam

Page 99: Cinema Nordeste

89

e suas seleções para a execução do filme passaram por filtros que delimitam aspectos e

interesses negociados até que se harmonizassem gerando a obra em questão.

Consideramos a impossibilidade, dentro do contexto sócio-cultural

contemporâneo, de dissociarmos a autoria da existência da obra. Tampouco se pode

dissociar o núcleo autoral de todos aqueles que atuam na sua realização e,

conseqüentemente, das forças, das práticas e das relações sociais que cercam os autores

no mundo social.

A análise da autoria nos permite leituras do contexto sócio-cultural em que a

obra fílmica está inserida, como bem o diz Chartier referindo-se à representação como

forma de percepção dos diferentes grupos sociais na compreensão do mundo real,

através de “uma organização conceptual ao mundo social ou natural, construindo assim

a sua realidade apreendida e comunicada” (1990, p.18- 19).

3.1.1.1 - Chartier e Bourdieu e a autoria como percepção simbólica da realidade

social

O caminho teórico a ser trilhado tem como base a obra de Chartier na qual

conceitua as representações sociais como formas de conhecimento das “classificações,

divisões e delimitações” promovidas pelos grupos sociais em conflitos estabelecidos em

torno à concepção da realidade que cada grupo quer impor ao conjunto da sociedade. As

representações, como ressalta Chartier, traduzem a forma pela qual se organizam as

percepções da realidade social a partir das classificações e divisões dos grupos que

julgam e agem no mundo social.

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar para os próprios indivíduos, as suas escolhas e conduta (1990, p.17).

A compreensão das representações, das posições e dos interesses, por sua vez,

permite-nos uma leitura mais rica das percepções simbólicas do mundo social que têm

os autores. Suas criações são apreensões do mundo social, reapropriadas pela sociedade

na qual foram produzidas. São re-elaboradas, resignificadas, muitas vezes, e é esse

Page 100: Cinema Nordeste

90

processo que constitui a autoria propriamente dita, mas conhecer a configuração social

de onde emanam contribui para que se compreenda a obra em profundidade.

Adotamos a postura de Chartier (1990, p. 21-23) para entender a distinção entre a

representação e o universo representado. Consideramos, pois, que a representação não é

o simples espelho da realidade, mas sim uma imagem do funcionamento da sociedade

filtrada pelos interesses decorrentes das diferentes configurações e práticas dos muitos

grupos em confronto, marcando visivelmente a existência de grupos antagônicos dentro

do mundo social.

É no processo de longa duração, de erradicação da violência, que é necessário inscrever a importância crescente adquirida pelas lutas de representações, onde o que está em jogo é a ordenação, logo a hierarquização da própria estrutura social (1990, p. 23).

Em nossa análise as posições de Chartier se coadunam com as argumentações de

Bourdieu, quando reflete sobre a hierarquização do mundo social, formada na luta das

representações que atribui a cada grupo determinadas posições e relações que

constituirão a sua identidade. Sua contribuição permite melhor compreender o

funcionamento da sociedade ao articular três modalidades de representações, através das

quais se pode apreender o mundo social:

Em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contrariamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns representantes (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade

(CHARTIER, 1990, p.21).

As representações, conforme as considerações de Chartier são “matrizes de

discursos e práticas diferenciadas”, que só têm existência no momento em que

comandam ações e, portanto, podemos perceber as posições e os interesses reais dos

grupos em confronto através das descrições que fornecem sobre sociedade que eles

pensam e desejam (CHARTIER, 1990 p. 18-19).

O lugar de origem das pessoas e grupos, tomados como marca de diferença, é um

dos critérios de classificação que pode produzir divisão dos grupos e, por isso mesmo,

campo de luta para fazer superar ou reconhecer como legítima essa divisão, conforme

Bourdieu:

Page 101: Cinema Nordeste

91

Esta forma particular de luta entre classificações que vem a ser a luta pela definição da identidade “regional” ou “étnica” (...) O móvel de todas essas lutas é o poder de impor uma visão do mundo através dos princípios de divisão que, tão logo se impõe ao conjunto de um grupo, estabelecem o sentido e o consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade e a unidade do grupo, que está na raiz de realidade da unidade do grupo (1998, p. 108).

Reforçando esse pensamento, encontramos em Bourdieu a noção de campo

como lugar onde forças sociais estabelecem embates cujo desfecho depende da posição

social dos agentes ou dos grupos, determinada pelo “capital social e simbólico” de cada

um e por sua possibilidade de abertura para a dinâmica do campo aos quais pertencem.

Ora, podemos compreender o âmbito do cinema como um campo social com as

características que lhe atribui Bourdieu. Trata-se, portanto, de campo conflitivo e

dinâmico, ainda que revestido de tradição tendente inicialmente à conservação de uma

situação, mas que acaba por trazer uma releitura da organização do mundo social

através da intervenção e da tensão dos vários grupos de interesse que atuam no campo

ou se relacionam com ele, intervindo, de algum modo, no processo de criação da obra.

A contemporaneidade traz à tona, no campo do cinema, vários novos atores

sociais ─ inexistentes na cinematografia anterior e cuja aparição resulta do avanço não

só tecnológico como também mercadológico ─ ampliando-o com a função publicitária

do cinema. O campo cinematográfico vai se tornando, rapidamente, muito mais

complexo do que sua configuração dos primórdios, como veremos a seguir.

Evoluindo para a publicidade, o cinema acabou por conceder aos espectadores

uma fatia de poder como uma entre as forças sociais cujos interesses conflitantes

confrontam-se no processo da produção fílmica. Trata-se do poder do público, porém,

seu detentor não tem consciência dele. O cinema, como representação da luta desses

interesses que organizam o campo cinematográfico e distribuem papéis no mecanismo

da produção, só atinge o espectador quando este absorve a visão fílmica como

naturalizada, sem a percepção dos embates que definiram as escolhas na sua produção.

Neste ponto, destaca-se, no caso do cinema nacional, a gradativa aparição de

toda uma variedade de personagens não originários da atividade propriamente

cinematográfica, como o empresário do cinema, a empresa estatal, através do Ministério

da Cultura, suas comissões responsáveis pela aprovação de projetos cinematográficos

para o mecenato privado, que permitem a renúncia fiscal e a alocação, na produção

cinematográfica, de até 5% do imposto de renda dos investidores. Chega-se, assim, à

participação do empresário doador, que seleciona projetos e contribui, porém, segundo

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92

seus próprios interesses e as orientações da publicidade, observadora da opinião do

público, ambos novos importantes atores a complexificar o campo cinematográfico e

intervir na produção do filme (LEITE, 2005, p.123).

A luta de interesses no campo cinematográfico atual requeriria, portanto, ampla

pesquisa para compreender o nível de intervenção desses grupos, a lógica de sua

inserção no processo cinematográfico. Tal pesquisa certamente geraria novos exercícios

de reflexão e novas questões para a abrangência do tema, mas ultrapassaria de muito os

limites deste trabalho de dissertação.

Assim sendo, tais questões servem-nos apenas para indicar os novos elementos

que condicionavam, no caso do cinema, a autoria.

3.1.1.2 - A questão da autoria e da representação

A questão da autoria na representação, no mundo contemporâneo, por sua

complexidade de elementos requerendo diferentes funções, leva-nos ao encontro de

pensamentos que nos permitam pensar a autoria coletiva quando a obra cultural com

práticas heterogêneas combina imagem, sons, textos escritos e montagem, como é o

caso das obras cinematográficas. Acataremos, pois, a noção de função para a discussão

da autoria no caso do filme A Canga.

A função de autor ocupa o lugar da autoria, pois é através desta função que se

caracteriza como propriedade, como especificidade e como autoridade, “pois, na

institucionalização das relações com o mercado; na aceitação e na obediência aos

contratos éticos e jurídicos pertinentes”, é que a obra é identificada com o autor, como

ressalta Irati Antônio ao fundamentar a autoria como direito centrado na

individualização (1998, p.190).

Foucault aponta critérios estabelecidos pela literatura moderna para essa

institucionalização da obra formalizada por um autor:

O autor é aquilo que permite explicar tanto a presença de certos acontecimentos numa obra como as suas transformações, as suas deformações, as suas modificações diversas (e isto através da biografia do autor, da delimitação da sua perspectiva individual, da análise da sua origem social ou da sua posição de classe, da revelação do seu fundamental). O autor é igualmente o princípio de certa unidade de escrita, pelo que todas as diferenças são reduzidas pelo princípio da evolução, da maturação ou da influência. O autor é ainda aquilo que permite ultrapassar as contradições que podem manifestar-

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93

se numa série de textos: deve haver certo nível do pensamento e do seu desejo, da sua consciência ou do seu inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os elementos incompatíveis encaixam finalmente uns nos outros ou se organizam em torno de uma contradição fundamental ou originária (FOUCAULT, 1992, p. 53).

O que a literatura moderna denomina de autoria é, segundo Foucault, uma

função, que já não pode ser atribuída a um “locutor real”, um indivíduo, pois essa

função é mais complexa, estabelece um distanciamento e provoca a cisão entre autor e

obra. Foucault baseia essa afirmação no fato de que, no exercício da produção e na

manifestação da sua exterioridade, “as obras comportam pluralidades de eus”, não

havendo sobreposição de um eu sobres os demais, porque todos se fundem na obra final

(1992, p.56).

Irati Antônio nota que esse modo de pensar é relativo à própria forma como se

processa a atividade autoral na contemporaneidade:

É possível observar essas mudanças especialmente no cinema, no hipertexto e nas redes de comunicação eletrônica, nas quais as obras são resultados do trabalho de grupos de criadores, escritores, produtores, artistas, músicos, fotógrafos, todos autores de um filme, de textos eletrônicos, de conexões entre discursos. E mais: nessas formas de expressão, nem a produção, nem a leitura dessas obras ocorrem de maneira linear, um aspecto que se evidencia mais claramente na produção cultural contemporânea (1998, p. 190).

A função de autor não aparece uniformemente na classificação das produções

culturais, estabelecendo-se as designações segundo a época e a civilização em que

circulam. A função de autor é, para Foucault, portanto, determinada dentro de certo

universo discursivo, conforme as instituições e normas jurídicas que regem a sociedade

na qual se inserem as obras selecionadas para a atribuição de função de autor. A

atribuição da função de autor ocorre “através de uma série de operações específicas e

complexas; não reenvia pura e simplesmente para um individuo real, podendo dar lugar

a vários “eus” em simultâneo, a várias posições − sujeitos que classes diferentes de

indivíduos podem ocupar” (FOUCAULT, 1992, p. 56-57).

Em que pese a tese foucaultiana que estabelecendo a autoria como função à

autoria clássica sabemos que argumenta a favor do descentramento do sujeito e da

pluralidade de “eus” na autoria ─ não a vemos categoricamente negada, pois também é

ele próprio que cunha o conceito de função de autor e aponta para a possibilidade de se

designar, dentro daquelas características do sujeito, a existência de alguém que instituiu

discursos apropriados e legitimados por regras institucionais e jurídicas, expressos nas

práticas sociais e nos produtos culturais que se tornam geradores de outras obras,

Page 104: Cinema Nordeste

94

estabelecendo diálogos que dinamizam o campo abordado pela obra originária, no

retorno recriador.

Essa característica imputada à função de autor leva-nos a correlacioná-la, neste

trabalho, com a busca da origem, que funda a tradição de uma cinematografia que elege

o lugar Nordeste e relações de trabalho e poder arcaico como representação da fundação

da nação brasileira. Podemos considerar esse movimento, expresso n’A Canga, como

responsável por uma discursividade instauradora, ainda que se proponha revolucionar a

discursividade primeira, tradicional, da qual se origina. Foucault considera que obras

dialogam com a discursividade instaurada e reconhecida, ou a contestam.

Reconhecendo que todo texto dialoga com discursos prévios, com tradições

estabelecidas, ainda assim os realizadores do filme que analisamos, ao ocuparem a

funcão de autores, em nosso entendimento, realizam plenamente a autoria.

A compreensão da existência de grupos, dentro do mundo social, que absorvem

as representações decorrentes das lutas internas de acordo com a concepção que têm

sobre si próprios, dando o aval a determinadas obras com as quais se identificam,

estabelece o papel do autor dentro do emaranhado de relações estabelecidas no decorrer

do processo produtivo. E essas relações, articuladas com as que emergem das vivências

anteriores dos sujeitos envolvidos na realização da obra, são necessariamente

mobilizadas para produzir aquilo que, ao se exteriorizar, circula e é apropriado,

permitindo a compreensão do mundo interior do autor (autores) e as suas relações com a

exterioridade, as características dessa exterioridade social em que navega já fundidas.

A nosso ver, a apropriação da obra (sua autoria) vai além da institucionalização

proposta por Foucault, pois concede leituras, interpretações múltiplas que dão sentido

ao mundo dos que dela se apropriam, pois as obras selecionadas são também

classificadas como representação de identidade de um grupo que a institucionaliza.

Tomaremos, assim, Chartier como aporte para buscar na obra cultural as

representações e sua pertença aos grupos onde os autores estão inseridos e, portanto,

vinculados às práticas e relações que se inscrevem no produto durante o processo

produtivo. Assim sendo, as formas diferenciadas de interpretações podem

institucionalizar-se porque são perpassadas por embates e divisões dentro de específicos

quadros espaço-temporais e das práticas dos grupos que constroem a representação

(1990, p. 26-28).

Page 105: Cinema Nordeste

95

Foucault sugere que a dissociação entre significado e significante, pelo processo

das várias interpretações possíveis da obra, estabelece cisões entre a obra e o autor, mas

Chartier, embora faça a diferença entre o representado e o representante, não os

desassocia, pelo contrário os relaciona, na medida em que a representação traz a

imagem do que está ausente e a exibe publicamente (1990, p.20-21). Em outros termos, a

obra traz o que o grupo quer que seja fixado como sua marca, remetendo para suas

posições e interesses conflitantes para descrever a sociedade como “gostariam que ela

fosse”. Portanto, as representações são mais que sistemas instituídos acima das práticas

e relações, uma vez que demandam a organização do mundo social, pois comandam

atos expressando identidades dentro do processo societário.

Para Foucault (1992, p.65), o preenchimento da ausência através do retorno da

obra originária da discursividade faz parte do próprio universo do discurso, já que

dinamiza a instauração desta discursividade. Chartier (1990, p.21) fala da ausência que

exige a presença através de imagens convencionais, que são formas para a apreensão do

real, do qual não se descola, mesmo com o processo de “teatralização do mundo social”,

ou seja, as aparências que as representações querem exibir, o específico que o grupo

toma como identidade é o instrumento para revê-lo e o lugar do autor dentro mundo

social. Ao revelar o grupo expõe seus componentes, trazendo implícitos no processo de

criação da representação e no seu produto final o próprio autor ou autores.

Desde modo, a proposta de Foucault da autoria como função nos interessa na

medida em que aponta para a possibilidade de diversos “eus” dentro da discursividade

que compõe o complexo mundo cultural contemporâneo, mas as configurações

intelectuais pensadas por Chartier, nos permitem a compreensão da autoria coletiva

como produto de reflexão da sociedade, pois define as posições dos grupos sociais de

cada indivíduo na estrutura social, pois as representações tanto escritas como visuais ou

intertextuais são construções para estabelecer uma posição no mundo e marcar, de

forma visível, uma identidade que segundo Chartier (1990) expressam nos discursos

uma refiguração da existência do autor e do contexto no qual se insere.

O entendimento de Chartier norteia, portanto, a nossa análise para a

compreensão do universo da discursividade como expressão cultural de uma

complexidade autoral, com funções que podem ser ocupadas por diferentes “eus”, mas

fundamentadas nas relações sociais, institucionais e culturais vivenciadas nas práticas

Page 106: Cinema Nordeste

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sociais, políticas e discursivas dos autores, pois o universo das produções culturais está,

inevitavelmente, preso às trajetórias vividas por eles (Chartier, 1990).

O texto individual ou coletivo estabelece uma relação com as condições da produção,

com as estratégias de sua escritura e com a realidade visada, assim como com a realidade

vivenciada pela autoria, segundo Chartier (2002), pois a representação é um instrumento que

através de signos escolhidos e institucionalizados para marcar a presença do grupo no mundo

social identidades por meio de estratégias que determinam posições e relações específicas dos

autores, nas quais residem a tensão entre o individual e o social, portanto a obra de arte não

pode ser dissociada do criador e das instituições e das práticas sociais.

3.1.1.3 - Breve histórico do cinema e a trajetória da autoria dentro do seu processo

de constituição

Recordemos ─ apoiando-nos em boa parte no trabalho de Antonio da Costa,

Compreender o Cinema (1989) ─ um breve histórico da constituição do que hoje é o

campo de produção do cinema, dos seus primórdios até a constituição das empresas

financeiras que dominam esse campo no Brasil, centralizando, porém, nossa análise no

caminho percorrido pela autoria e o lugar a ela destinado durante o processo de

formação do cinema.

A origem do cinema pode ser abordada a partir do desenvolvimento tecnológico

específico das últimas décadas do século XIX. Destacaremos a projeção de imagens

fotográficas em movimento realizada pelo cinematógrafo Lumiére, que registrava cenas

do cotidiano (COSTA, 1989, p.49). Consideramos já, na produção da imagem, a existência

de autoria de quem manuseava a câmara. Vale lembrar, no entanto, que como o cinema

ainda não tinha sido instituído, a autoria, como a compreendemos aqui, também ainda

não era buscada e valorizada, como na década de 1950, foi pensada pelos críticos da

cinematografia francesa, vinculados ao Cahiers du Cinéma 67.

O surgimento do cinema como espetáculo liga-se à figura de Méliès, cuja

narrativa fílmica, apesar da falta de uma articulação das imagens, introduziu a trucagem

na produção e na edição. Teve seguidores e, portanto, podemos atribuir-lhe a autoria de

67 Cahieres du Cinéma revista francesa, fundada em 1951, que promoveu debates teóricos ao permitir ao permitir a veiculação de idéias de várias correntes da crítica cinematográfica. Foi o espaço para os cineastas defensores da “política dos autores,” defenderem a atribuição da responsabilidade da criação do filme a direção (AUMONT e MARIE, 2003, p. 39).

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expressões imagéticas que evoluíram para a forma de cinema. Costa entendeu que,

nesse período, a autoria estava vinculada à edição que montava a narrativa,

desenvolvida em sua plenitude com Griffith, com as combinações de planos para

expressar o que o enredo exigia; sendo ele o diretor, conduzia a cena, mas, como fundou

uma companhia, a autoria permanecia indefinida dentro de um processo ainda em

constituição a partir das inovações tecnológicas (COSTA, 1989, p. 60-62).

A sonoridade, introduzida no cinema em 1927, requeria vultosos investimentos

e, portanto, empresas mais poderosas, proporcionando grandes lucros. As empresas que

conseguiram articular a “produção, a distribuição e a exibição”, dominaram o mercado

cinematográfico. Assim, é instalada a supremacia de Hollywood a nível internacional, a

partir da década de 1920 (COSTA, 1989, p. 65).

A supremacia hollywoodiana fundamenta-se no Studio System e no star

system68. O domínio da indústria cinematográfica na produção e na distribuição,

“representa a organização do trabalho destinado para a maximização dos lucros”,

conferindo aos estúdios e aos grandes produtores total domínio sobre o processo da

produção fílmica. “Isto comporta uma rígida divisão de trabalho e uma total

subordinação de todos os componentes da produção (diretores, atores, roteirista)”

(COSTA, 1989, p. 66).

Assim, a figura do produtor ganha status de autor. A política dos grandes

estúdios durou quase vinte anos, e no final da década de quarenta, entra em decadência,

em decorrência da necessidade de investimentos mais altos e arriscados, só possíveis

através dos monopólios, julgados ilegais pela Corte Suprema dos Estados Unidos, em

1948 (COSTA, 1989, p. 65-66).

No espaço vazio deixado pelo fim da supremacia dos produtores, principalmente

dos ditames do modelo hollywoodiano e, ainda, por certas brechas dentro do mercado,

surgem novas experiências, principalmente na França. Na mostra de Cannes, em 1959,

68 Studio System e star system são expressões relacionadas com o período da cinematografia hollywoodiana, iniciado na década de 1920, que se estendeu até o final da década de 1940. Marcado pelo controle das grandes companhias de produção, distribuição e exibição, numa integração vertical, que permitia, também, um rígido controle sobre todos os integrantes da produção formando os Studio System, que utilizaram um esquema de publicidade e promoção dos estúdios de seus atores, conhecido como star system. COSTA, Antonio. Compreender o Cinema. Tradução Nilson Moulin Louzada. 2ª ed. São Paulo: Globo, 1989. O star system se caracterizava pela idolatria dos fãs, que cultuavam as estrelas, estimulados pela publicidade de revistas cartazes e fotografias e pela constituição dos fãs-clube. Esse processo de idolatria transformou as estrelas em mercadoria, pois a imagem consumida pelos fãs extrapolava os filmes e se incorporava a todos os “produtos” vinculados à estrela/astro. MORIN, Edgar. As estrelas mitos e sedução no cinema. Tradução Luciano Trigo. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p.74-76.

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98

os cineastas franceses apresentaram uma nova forma de fazer cinema, onde imprimiam

fortemente suas características pessoais. Os baixos custos de produção e a busca pelo

realismo eram características marcantes da nouvelle vague francesa (COSTA, 1989, p.116-

117).

A revista francesa Cahiers du Cinéma, por sua vez, consagra no campo

cinematográfico uma nova figura, a do crítico de cinema. A revista contava com uma

equipe de jovens críticos que se tornariam depois, eles mesmos, cineastas ligados à

nouvelle vague. Os redatores que se lançaram na crítica cinematográfica da política dos

autores, foram Jean- Luc Godart, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer,

Jacques Rivette, Jean Doniol-Valcroze (BERNARDET, 1994, p.9).

A política dos autores valorizaria o diretor como autor. Bernardet faz notar que

a expressão autoria/autor já circulava na cinematografia francesa havia longa data, mas

carregada de ambigüidade pela dificuldade de discernir a quem caberia esse atributo

dentro da produção fílmica, diante da diversidade de funções que ela requisitava.

A idéia do diretor como autor já tinha sido apresentada no campo

cinematográfico francês, desde a década de 1920. Bernardet sugere que a autoria filmica

nasce associada à valorização da autoria na narrativa literária, já que havia uma ampla

argumentação a favor do conceito de autoria na cultura francesa. Essa relação da

narrativa filmica com a literária motivou novos questionamentos sobre a atribuição da

autoria ao diretor do filme, sendo o status de autor muitas vezes atribuído aos roteiristas

ou aos argumentistas, por realizarem a forma escrita do filme, portanto, propriamente

literária, segundo seus defensores (1994, p.10-11 e 14).

A existência da autoria advogada pelos diretores da novelle vague é explicada,

por Robert Stam, segundo estes argumentos:

Os diretores da Novelle Vague eram particularmente adeptos da metáfora escritural - o que não surpreende, visto que muitos iniciaram suas carreiras como jornalistas que compreendiam os artigos e os filmes simplesmente como duas formas possíveis de expressão. “Estamos sempre sós,” escreve Godard (1958) algo melodramaticamente, “seja no estúdio ou diante da página em branco” (2003, p.105).

A atribuição da autoria é analisada por Stam como um conjunto de posições dos

diretores da novelle vague em relação à literatura, assim indicadas:

Como produto da conjunção entre cinefilia (celluphagie) e uma veia romântica do existencialismo, o autorismo deve ser visto em parte como uma reposta a (1) o menosprezo elitista do cinema por

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99

intelectuais do campo literário; (2) o preconceito iconofóbico contra o cinema como “meio visual;” (3) o debate em torno à cultura de massa que identificava o cinema como um agente de alienação política; (4) o tradicional antiamericanismo da elite literária francesa (2003, p.106).

O reconhecimento do diretor como autor, proposta da política dos autores, de

origem francesa, apesar da inspiração no campo da literatura69, desejava a valorização

da encenação, assumindo a seqüência de imagens e a cadência da narrativa como

linguagem própria do cinema e expressão pessoal do diretor, usando a imagem como

seu instrumento. É ela, a imagem seqüenciada e cadenciada de uma determinada

maneira, que compõe o filme como obra artística unitária, independentemente do fato de

que haja diretores que conjugam as funções de direção, roteiro e produção, o que não

era, porém, considerado o requisito principal para a política dos autores (BERNARDET,

1994, p 23).

A afirmação do diretor como autor, segundo a posição da política dos autores,

estava na manifestação de uma matriz, uma idéia-mãe que conduzia a sua direção.

Mesmo quando não elaborava o roteiro do filme, o diretor terminaria por impor a ele os

seus próprios traços. “A construção da matriz passa obrigatoriamente pela análise do

conjunto de filmes de um autor, é um trabalho sobre a redundância: peça essencial do

método crítico” (BERNARDET, 1994, p.31). Compreende-se, assim, que o trabalho de

decantação da crítica em busca da matriz da obra de um determinado diretor ou de uma

escola cinematográfica, é construído ao longo da carreira dos cineastas, descoberto à

medida que exercem a função de diretor.

A descoberta de sua “matriz pelo cineasta e pelo crítico se dá por caminhos

paralelos. O autor vai buscando sua matriz até o momento da cristalização; o crítico

segue as pegadas do autor, chegando depois dele à percepção dessa cristalização”

(BERNARDET, 1994, p.34). Quando a matriz torna-se clara, explica Bernardet, pode passar

a ter um efeito retroativo para o crítico que reinterpretará as obras filmicas através deste

método (1994, p.34). Porém, essa leitura de todas as obras do autor, em busca de algo

latente a ser descoberto, é questionada por Bernardet, alertando-nos para o fato de que:

“Esse efeito retrospectivo da matriz acabada faz da obra um sistema fechado, reino da

redundância em que os filmes precedentes prenunciam os posteriores” (1994, p.35).

69 Bernadert estabelece a relação da autoria fílmica com a da literatura ao afirmar “como diz o dicionário autor significa escritor”, e é desta forma que, segundo ele, os defensores da política dos autores a empregam: como visão do “cineasta como um escritor “do “filme como um livro”, concepção de autoria impregnada pela cultura francesa em que o próprio cineasta se designa escritor e não realizador (BERNARDET, 1994, p. 14-15).

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100

Assim sendo, a política dos autores confere uma unidade autoral ao diretor, que

concebe e comanda a “costura” da obra com quem mais participa de sua produção. Ao

crítico caberia articular a produção filmica de um cineasta com sua matriz, o que,

porém, segundo Bernardet, exporia a unidade real da obra a uma constante ameaça pelo

método de análise crítica cuja interpretação explicita, a seguir: “evidentemente uma

seleção de material com valorizações e rejeições, que visa a alcançar o alvo, isto é, a

matriz e a unidade da obra” (BERNARDET, 1994, p.41).

Concordamos em parte com o questionamento de Bernardet a essa posição da

crítica, pela carga de subjetividade que a interpretação contém. No entanto, não há como

desconsiderar sua importância, pois interessa-nos o fato de esta característica da

interpretação crítica se coaduna com o que se valoriza na autoria: a subjetivação, a

personalização da obra, muito embora de acordo com os críticos não seja atingida pelo

autor quando foge do seu eixo matricial, descaracterizando suas marcas autorais.

Outro fator que questiona a unidade da autoria, apontado por Bernardet, são os

produtores que, muitas vezes, inviabilizam a concretização do que era a característica do

cineasta (1994 p.43-47). Os interesses da produção comercial por um modelo que

corresponda àquilo que possa ser bem sucedido no mercado confrontam-se com a idéia

almejada pelos diretores.

As críticas a teoria do autor ganha dimensões práticas de acordo com o que

enfatiza Robert Stam a propósito do tema:

O cineasta não é um artista desimpedido; encontra-se inserido em uma rede de contingências materiais, cercado pelo aparato babélico de técnicos, câmaras e luzes do happening que normalmente é uma filmagem. Se o poeta pode escrever seus poemas em guardanapos na prisão, o cineasta precisa de dinheiro, câmara e película. O autorismo foi ainda acusado de menosprezar a natureza coletiva da produção cinematográfica (2003, p. 109).

A unidade também é questionada por cineastas integrantes da política dos

autores, que reivindicam o direito de se contrapor a si próprios em suas obras,

advogando a favor da fecundidade da contradição, que assusta aos críticos da política. A

crítica não pode, porém, negar a presença de rompimento com a unidade no próprio

corpo das obras de alguns cineastas.

Na opinião de Bernardet, a matriz da obra de um cineasta pode e deve ser

pensada como “uma abstração que não se concretiza nunca, mas projeta-se com maior

ou menor nitidez sobre realizações concretas” (1994, p.54). A força motriz geradora das

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101

produções fílmicas estaria presente na idéia mãe e não em uma única obra do cineasta,

porém se ocultaria na diversidade de sua obra.

A afirmação da exclusividade da autoria como própria da função da direção da

encenação, do metteur em scène, como diziam os franceses, pressupõe a preponderância

da linguagem imagética como essência da obra cinematográfica, concepção defendida

pela política dos autores. Bernardet, porém, nota que as críticas construídas por eles

centram-se “quase exclusivamente nas análises dos enredos, das situações dramáticas,

dos personagens e de suas relações, isto é, uma análise temática” (1994, p. 59). A

encenação, entretanto, transcende a temática assim como os meros recursos plásticos e

tecnológicos ao estabelecer a dinâmica nas seqüências de planos, a iluminação, a

sonoridade, todas responsáveis pela unidade da narrativa fílmica, constituindo, portanto,

marcas de uma autoria.

No Brasil, o aparecimento das primeiras máquinas que projetavam a fotografia

em movimento ocorreu, quase simultaneamente, com o surgimento dos primeiros

projetores na América. A indústria do cinema brasileiro, porém, caminharia a passos

lentos e com percalços, o que a diferenciou da instalada nos Estados Unidos. A partir de

1927, o cinema americano tornou-se o grande controlador da produção, distribuição e da

exibição de seus filmes para o mercado internacional, passando o público brasileiro a

consumir sua cinematografia, imposta como modelo para as incipientes experiências de

produção fílmica no Brasil.

A Vera Cruz, criada em 1948, foi a experiência que, em menores proporções,

mais se assemelhou ao Studio System. Glauber Rocha comenta sua participação na

cinematografia brasileira, vinculando-a ao estúdio americano Columbia, distribuidora

no mercado brasileiro, além dos seus próprios filmes, da produção da demais empresas

norte-americanas. A ligação do capital de particulares, como Cavalcanti e Matarazzo,

com investimentos estatais, conforme Rocha (1981, 286-291), permitiria a criação da Vera

Cruz, que importou tecnologia e artistas.

Desde aí, é a produção que, sob o controle de Alberto Cavalcanti, marca a

autoria na cinematografia brasileira. Na Vera Cruz, filmes feitos com diversos diretores

são relacionados como “filmes de Cavalcanti”, pois, segundo Glauber Rocha, ele foi

responsável pela “qualificação dos temas tratados, pelo academicismo da iluminação e

cenografia, beleza, charme, cultura e cor de classe dos atores, montagem narrativa, som

folclórico e outras virtudes inéditas no cinema mundial” (ROCHA, 1981, p.286). Porém, na

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102

visão complexa de Glauber sobre esse estúdio e sua política importada de manipulação

das exigências do público, aí também se gera, em contraponto, a “(...) vulgaridade

escrota, escrachada, subdesenvolvida, canalha, democrática, nacionalista, anárquica e

libertária da chanchada” (1981, p.288).

Com a falência da Vera Cruz aprofunda-se, em alguns setores da cinematografia

brasileira, a oposição à penetração cultural estrangeira, enfatizando a articulação dos

movimentos culturais com as perspectivas de mudança social, preconizadas por várias

forças sociais, deslocando o debate político para o campo cultural incluindo,

logicamente, a cinematografia brasileira. No debate sobre a cultura, o cinema em geral,

e o cinema brasileiro em particular, a questão da autoria viria necessariamente à baila.

Na verdade, nem o conceito de autoria aplicado ao cinema e nem o acordo sobre

a quem se deveria atribuí-lo foram dados de imediato com o aparecimento dessa forma

de expressão, e sim motivaram longos debates e posições muito diferentes, frutos da

própria evolução tecnológica que, ao aperfeiçoar e complexificar os meios técnicos de

sua realização, multiplicaram necessariamente funções e pessoas envolvidas na

realização da obra, justificando questionamentos e discussões.

No início dos anos 1950, a palavra autor era pouco mencionada pelos críticos e

raramente utilizada para designar a função da direção, conforme explana Bernardet

(1994, p. 69-70), mas já havia posições da crítica que atribuíam a criação da obra ao

diretor. Percebemos, porém, que a articulação do trabalho de direção, produção e

estúdio tornaram indeterminável a autoria em termos individuais. A crítica desse

período, da qual se destaca Rubem Biáfora, não se interessava na determinação da

autoria, mas muito mais classificar o que era ou não cinema, preocupando-se com o

filme e com critérios que o tornasse obra de arte (Bernardet, 1994, p. 71-73).

Um dos críticos de cinema estudados por Bernardet, Muniz Viana, é apontado

como exemplo da pouca relação estabelecida entre autoria e direção, pois ao falar em

autor refere-se à escrita, portanto aos roteiristas e argumentistas. Mas esse crítico traz a

expressão ‘estilo’ para as preocupações com a identificação do cineasta; admite, porém

variações de estilo, mas considera necessária a permanência de um grau de coerência,

de certa homogeneidade das obras para que se possa reconhecer um estilo e a autoria

(BERNARDET, 1994, p.79-82).

Page 113: Cinema Nordeste

103

Também a personalidade do cineasta, reconhecida em seu estilo, lhe confere a

autoria, segundo Muniz, por consistir na força de resistência do diretor frente à

autoridade da produção. A personalização leva à valorização da subjetividade,

marcando a obra com uma fidelidade estilística, mesmo que crie filmes com diferentes

gêneros ou temáticas.

O uso da palavra ‘estilo’ para designar o trabalho da direção imprime-lhe valor

como “determinante no processo criativo”, pois nele se evidencia a coerência de sua

posição frente às questões de seu tempo, mesmo o cineasta optando por temas e gêneros

diferentes (BERNARDET, 1994, p.89-95).

O crítico Almeida Salles destinava o atributo de autoria aos roteiristas e

argumentistas, consoante com outros críticos da década de 1950, mas depois incluirá o

diretor e, às vezes, o montador como co-criadores do filme.

O cineasta e crítico Walter Hugo Khoury, estudioso da obra de Bergman,70 vê na

permanência da temática e na direção a essência da autoria, virtude que também atribui

à produção quando detecta uma unidade ao longo do trabalho de um produtor. A

preocupação com o conceito de ‘estilo’ também está presente em Khoury, para quem

“Este é componente da unidade e expressão da personalidade do cineasta, daí uma

oposição aos exercícios de estilo”, ressalta Bernardet (1994, p. 101 e 109), ao comentar o

conceito de estilo de Khoury.

Analisando a crítica dos filmes de Khoury enquanto diretor, Bernardet conclui

que suas exigências para estabelecer a existência da autoria na função de direção

cinematográfica (estilo, personalidade, fidelidade temática ou estilística), são

encontradas em suas obras por alguns críticos (1994, p.114).

Paulo Emilio Salles Gomes em sua contribuição sobre a autoria não a confere a

uma função específica. Utiliza, porém, o método retrospectivo para estabelecer a

unidade da obra de um cineasta, como faz a política dos autores, embora nunca tenha

aderido a ela, e também usa o conceito de estilo. Encontramos esse, na sua análise,

freqüentemente aplicado a um diretor: “o estilo criado por Tati”, mas também pode

70 Bergman, dramaturgo e cineasta sueco, com uma vasta produção fílmica caracterizada por temas introspectivos, iniciada a partir de 1945, com o filme Crise. O seu último filme foi realizado em 1986, Le Visage de Karin, feito para tevê. Dentre suas obras se destacam: Morangos Silvestres (1957); Cenas de um Casamento (1974); Gritos e Sussurros (1975); Fanny e Alexandre (1982). Fontes:< http:// www terra.com.br/cinema/favoritos/ bergman. htm> e <http//wikipedia, org/ wiki/ Ingmar Bergman> Acesso em 14/06/2007.

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104

remeter a um filme ou a procedimentos de linguagem, já que fala em ‘estilo das

composições’ de Une partie de campagne, ou utiliza o termo para referir-se a um

movimento: ‘estilo italiano do pós-guerra” (BERNARDET, 1994, p. 120 e 121).

As oposições entre Paulo Emílio e a política terminam se acentuando, conforme

esclarece Bernardet:

Dessa atitude, Paulo vai evoluir para um questionamento mais radical da política, do método, e até do cinema do autor, como se verifica no artigo “Artesões e autores” (1961), onde recusa a relação maniqueísta autor versus artesão/produtor (1994, p. 127).

Ele concede o termo autor ao diretor, na medida em que este imprima um estilo

próprio no produto da coletividade. Busca a unidade na relação da vivência do diretor

com sua produção filmica, sem necessariamente exigir uma homogeneidade.

Salles Gomes é posto, por Bernardet em diálogo com outros críticos, pelo seu

vasto conhecimento sobre a política dos autores, da qual utiliza alguns termos e

conceitos que se assemelham. Discorda, porém, da concepção de autoria proposta pelos

jovens críticos franceses que questionam a sua existência verdadeira dentro de um

sistema de produção, ao vincular sua marca ao caráter de independência da direção.

Paulo Emílio, ao contrário não atribui só à direção o refinado acabamento da obra,

considerando que esse pode ser resultado de vigilante execução do produtor, concluindo

pela existência da autoria dos produtores das obras fílmicas, quando uma expressão

pessoal é impressa no produto (1994, p. 130-132).

Na década de 1960, caracterizada pela efervescência política e cultural, surge o

movimento Cinema Novo, com propostas próprias, mas com idéias que dialogam com

as dos redatores do Cahiers du Cinema e sua política dos autores. Gustavo Dahl,

analisado por Bernardet, componente do movimento cinemanovista, próximo à

mencionada revista francesa, não vê a autoria coletiva na produção fílmica e, para ele,

apesar das várias funções específicas que comporta, o filme é uma expressão de

individualidade, marca final da direção que se apresenta desde a escolha dos

argumentos, condicionando toda a narrativa (1994, p. 134-139). Sua preocupação com a

situação brasileira, porém, termina por separá-lo da política dos autores (franceses),

pois como lembra Bernardet:

Desponta aí toda uma ideologia da época (1966) que nos interessa porque ela provavelmente manifesta o tratamento original que alguns críticos e cineastas brasileiros deram à questão da autoria. Embora se retome grande parte do aparato francês, a conexão da política com a

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105

responsabilidade histórica e uma utopia social é impensável no quadro dos Cahiers (1994, p. 139).

Glauber Rocha, o mais destacado representante do movimento do Cinema Novo,

concebe o autor como revolucionário, pois expressa o contexto histórico com

construções cênicas nas quais explode a violência e a rebeldia, posicionando-o contra a

indústria e as convenções dos estúdios, e estabelecendo o que Bernardet (1994, p.144)

destaca:

Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução. A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje, nem é mesmo necessário adjetivar um autor como revolucionário, porque a condição de autor é um substantivo totalizante (ROCHA apud BERNADERT, 1994, p.139).

A preocupação de Glauber em delimitar uma tradição que desse espaço à

ruptura que levará ao Cinema Novo foi constituída a partir da dignificação de Humberto

Mauro para alçá-lo à categoria dos grandes nomes da cultura brasileira e do cinema

internacional. Recorria-se, assim, a uma figura capaz de pôr a cinematografia dentro do

campo cultural brasileiro e de conferir aos cineastas legitimidade como autores. Ao

tributar a Mauro o título de patrono do Cinema Novo, instala a ruptura na tradição da

filmografia de Mauro. Portanto, Glauber utiliza a autoria para afirmar uma posição

ideológica, como registra Bernardet:

“A tradição de Mauro não é apenas estética e cultural, mas também uma tradição de produtor”: ele trabalha com baixos orçamentos, com “recursos mínimos”, o que é essencial para o cinema dito independente. Outro ponto que coaduna Mauro com um dos conceitos importantes da política dos autores: Ganga Bruta não pode ser decomposta em termos de “argumento” e “direção” (BERNARDET, 1994, p.146-147).

Percebemos o caminho feito pelo Cinema Novo em busca de uma tradição de

autoria tipicamente brasileira ─ que historiamos no primeiro capítulo ─ percurso esse

que contribuiu para a dinâmica do próprio campo cinematográfico, perceptível ainda em

alguns filmes herdeiros do Cinema Novo ou que, pelo menos, com ele dialogam.

Exemplificamos este pensamento com o nosso objeto de estudo, A Canga, que percorre

a tradição instaurada pelo Cinema Novo, reelaborando-a na forma e na temática,

introduzindo valores universais que dialogam com formas e representações locais.

É importante notar que Glauber Rocha, após a sua inserção no mundo da

produção, reviu seu posicionamento contra a figura do produtor, concebendo-o como

um “co-autor” que contribuía para a realização e o êxito dos filmes, assim como

reavaliou seu desprezo pela indústria, passando a advogar uma indústria

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cinematográfica na qual a “liberdade de criação” norteasse os posicionamentos

administrativos do produtor (BERNARDET, 1994, p.150-152).

A atribuição da autoria ao produtor, por outro lado, é um dos fatores que leva à

decadência do chamado cinema de autor dentro do quadro da cinematografia:

Não colabora para a renovação do público que parece tomar menos riscos, volta-se para valores seguros e para os charmes dos polpudos orçamentos hollywoodianos. As grandes marcas (um Truffaut, um Fellini) ganham as salas dos Champs Elysée, as pequenas e os novos autores que eventualmente despontam estão cada vez mais submetidos a um processo de guetificação (...) (BERNARDET, 1994, p.154).

Outras contribuições para a discussão da autoria, segundo Bernardet, vêm do

aparecimento do cinema militante e da sua compreensão como mercadoria cultural,

provocando ambos uma atenção às aspirações coletivas e aos interesses dos

desfavorecidos. Essas tendências, entretanto, não negam a autoria quando a trama

fílmica não perde a sua concepção artística, mesmo estando ligada às lutas sociais ou a

intenções comerciais (1994, p. 167-169).

Outro tipo de pensamento que vai intervir nessa discussão sobre o conceito de

autoria será a do anti-humanismo questionando-a profundamente, uma vez que nega ao

sujeito o poder decisório sobre suas ações, linguagens e discursos. Segundo Bernardet,

ao afirmar a dissociação entre o sujeito e as representações que constrói de si e do

mundo, essa linha de pensamento levaria ao desaparecimento do autor, esvaziando-o de

sua condição de eu no processo de criação da obra que se torna apenas representação da

sua exclusão (1994, p.166-169).

Para Robert Stam a postura anti-humanista introduz no meio da cinematografia

a redefinição do autor como “produto da escrita,” conforme o pensamento de Barthes

(1968), como também, o de Foucault. Segundo Stam a autoria se constituiria em:

(...) uma instituição efêmera e circunscrita no tempo, que logo cederia lugar a um futuro ‘anonimato generalizado do discurso’. Como conseqüência da investida pós-estruturalista sobre o sujeito originário, o autor cinematográfico passou de fonte geradora de texto a um simples termo no processo da leitura e da espectatorialidade, um espaço de interseção de discursos, uma instável configuração produzida pela interseção de um grupo de filmes com formas historicamente constituídas de leitura e espectatorialidade (2003, p. 146).

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107

3.1.2 - A memória como construção social

Na contramão dos anti-humanistas acreditamos que o papel do autor é

importante pela forte individualização que carrega, pois suas lembranças impregnam as

representações contidas em suas obras, produtos das relações e das práticas vivenciadas

dentro de seu grupo social.

Usaremos a concepção da memória como elemento que se entrelaça na

construção das obras em que se misturam vários atores sociais para a constituição final

do produto. Ecléa Bosi, em sua análise do pensamento de Halbwachs, será a nossa

referência para entendermos as representações sociais, apresentadas nas obras culturais,

como construções feitas no interior do grupo social ao qual pertence o autor, já que toda

sua vivência se emaranha no processo de elaboração, pois o passado é passado a partir

de sua posição dentro do grupo no presente. “A memória do indivíduo depende do seu

relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a

profissão; enfim com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse

indivíduo” (BOSI, 1994, p. 17).

As representações, hábitos, práticas e relações são construções sociais que ficam

na memória da sociedade, guardadas nas tradições e transmitidas oralmente, de forma

que: “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,

repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado”, ‘trabalho’, que

inclui a seleção e a classificação de imagens feitas no interior do grupo social (BOSI,

1994, p.17).

A força da linguagem é decisiva para a criação das representações, pois como

ressalta Bosi, é instrumento da memória, por ser fator de convenções construídas dentro

do mundo social. Portanto, as representações e as obras culturais, linguagens mais

complexas, são produtos atualizados das vivências e dos diálogos e práticas para a

reconstrução do passado que nos fornecem a imagem do que acreditamos ser (1994, p.18).

A representação do Nordeste enquanto lugar seco, árido e arcaico é também uma

reconstituição da imagem que as secas de 1877 a 1879 deixaram na memória coletiva.

Como tal, pode ser entendida a partir de um dos sentidos que Chartier atribui às

representações: elas podem ser a exibição pública da imagem que é reconhecida por

meio das convenções, que regulam a relação entre o objeto exibido e o que representa.

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“Uma relação compreensível é, então, postulada entre o signo visível e o referente por

ele significado – o que não quer dizer que seja necessariamente estável e unívoca” (1990,

p.20 -21).

As lembranças têm correlações com as redes e convenções verbais

institucionalizadas que moldam as situações evocadas, articulando-se nas elaborações

de um universo discursivo. Portanto, o passado e suas experiências são trabalhados na

autoria, como forma apropriada de apreensão do mundo e de se ver dentro deste mundo,

que podem ser mudados de acordo com valores dinamizados no presente frente às

forças sociais internas à sociedade.

3.1.3 - Os perfis dos componentes do grupo autoral

A opção pela trajetória de Vilar, para começar os perfis, deve-se ao fato dele

concentrar a função que determina as escolhas − mesmo considerando todas as

influências do núcleo autoral e dos demais membros da equipe técnica, aqui

arbitrariamente excluídos. Não deixamos de reconhecer, desse modo, a persistência da

marca autoral vinculada ao diretor, ainda que busquemos debater sua inadequação,

frente à complexidade da criação das obras fílmicas.

Marcus Antônio de Oliveira Vilar, nascido a 5 de julho de 1959, em Campina

Grande, é filho de Estevão Vilar de Carvalho e Ruth de Oliveira Vilar, tendo seis

irmãos: Mirtes, Expedito, Bernadete, Maria Augusta, Estevão e Denise. Teve uma

infância tranqüila de brincadeiras e amizades.

Ingressou na Universidade Federal da Paraíba, em 1979, para cursar Educação

Física. No mesmo ano é criado NUDOC71 (Núcleo de Documentação Cinematográfica,

na UFPB), que começa a funcionar em 1982, quando se inicia o convênio com a França

que trouxe os professores de cinema, importante iniciativa na formação técnica e teórica

dos cineastas. A princípio, Vilar envolvido com o seu curso e já trabalhando, soube do

NUDOC. Após sua graduação, foi para o núcleo, construindo sua formação de cineasta

através de cursos feitos ali e na França. Estes lhes permitiram exercícios com Super 8 e

71 O NUDOC foi criado durante o evento da Jornada de Cinema, em 1979, que se realizou na Paraíba com o apoio da UFPB, no qual firmando convênio com a França para implantação de curso de cinema direto, segundo Marcus Vilar, em entrevista a nos concedida em 27 de outubro de 2005, na Coex (Coordenação de Extensão e Cultura da UFPB).

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109

filmes de 16 mm. Suas primeiras experiências práticas foram feitas como operador de

câmara.

Sua produção72 tem sido reconhecida e premiada em diversos festivais no Brasil

e no exterior. A Árvore da Miséria, produção de 1998, seu primeiro filme em 35 mm, no

Festival de Recife em 1998 ganhou 5 prêmios: melhor filme, melhor direção, melhor

fotografia; A Canga, produção de 2001 realizado com recursos oriundos de fontes

diversas como Projeto Viva Cultura e empresas privadas com apoio da UFPB, do

governo do Estado e da Prefeitura de Monteiro, obteve 25 prêmios nos festivais e

jornadas dos quais participou; O Meio do Mundo realização de 2005 com recursos do

Fundo de Incentivo à Cultura (FIC), do Governo do Estado da Paraíba. Teve o apoio da

Coordenação de Extensão e Cultura da Universidade Federal da Paraíba - COEX e de

Paraíwa - Coletivo de Assessoria e Documentação. Ganhou os prêmios de Melhor

Fotografia, no Festival de Brasília em 2005, Melhor Diretor de Cinema e Vídeo de

Cuiabá, em 2006. Seu filme mais recente é o documentário O Senhor do Castelo, um

longa-metragem sobre a trajetória de Ariano Suassuna, apresentado à imprensa em abril

de 2007.

Waldemar José Solha, nascido em Sorocaba, São Paulo, em 1941, é filho de

Fortunato e Ermínia. Tem três irmãos que vivem em Sorocaba. Teve uma vida simples.

O pai era carpinteiro, gostava de ler a Bíblia em voz alta de forma empolgante, o que

deslumbrava o filho. Quando descobriu em Solha a qualidade de desenhista, deu-lhe um

livro sobre pintura e o levou a São Paulo para ver o Museu de Artes e Ofícios.

Solha impressionava-se com as histórias de livros e de revistas em quadrinhos

com temáticas históricas e abordagens clássicas. Era incentivado pela mãe a ouvir

óperas no rádio e estudou pintura na infância, o que lhe propiciou um ambiente voltado

para as artes. Soube aproveitar as leituras, as músicas e a pintura, para transformar-se no

72 Produção em super 8 e 16 mm: 1983 - Do oprimido ao encarcerado (Super 8); 1983 - Jaguaribe: quando o bairro não se cala (Super 8); 1984 - Abril (Super 8), sobre a greve de professores e funcionários da UFPB. Esse e os dois primeiros foram exercícios do curso do NUDOC, em sua fase paraibana; 1985 - K.O no Sena (Super 8), realizado na França, na segunda fase do curso do NUDOC; 1987 - 24 horas (16 mm), filme sobre o alcoolismo; 1991 - Casa Tomada, projeto de adaptação de Júlio Cortazar, feito pelo NUDOC; 1994 - Paraíwa, vídeo sobre a descaracterização do centro histórico, para a oficina escola, coordenada na época por Náhya Caju; 1994 - Sertão Mar, participou do Festival do Rio, ganhando prêmio especial do júri1995 - O Som do Barro;1996 - À Margem da Luz; 1996 - Seu Rei Mandou Dizer. Fonte:<http// www.paraiwa.org.br/acanga/entrevista-marcusvilar.htm> Acesso em 29/10/2006. As informações sobre as premiações foram obtidas em: <http://www.kinoforum.org.br/ curtas/2006/index.pt.php> Acesso em12/03/2006.

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artista plástico, poeta, romancista, roteirista e ator, que é hoje, tornando-se conhecido,

nacionalmente, através de vários prêmios.

Solha chegou à Paraíba, em 1962, para assumir, em Pombal, a função de chefe

da Carteira Agrícola do Banco do Brasil. Logo de início, impressionou-se com a miséria

do povo do campo, mas, principalmente, com a efervescência cultural da cidade, que lhe

forneceu vasta coleção literária e discussões nas calçadas.

Sob influência do colega de banco, José Bezerra Filho, começou a escrever

romances e contos, mas ao ter contato com outro colega, Ariosvaldo Coqueijo, aceitou

montar um espetáculo sobre a morte de Edson Luís, em 1968. Solha aceitou a proposta,

escrevendo, em uma noite, a peça o Vermelho e Branco onde estréia como ator. A peça

foi logo censurada.

A Canga foi escrita, em 1969, na forma de texto teatral montado em Pombal e o

próprio Solha interpretava o velho Ascenço. Produziu, junto com José Bezerra, seu

primeiro roteiro de filme, O Salário da Morte, em 1970, com recursos levantados na

cidade. No mesmo ano, foi transferido pelo banco para João Pessoa, passando a dedicar-

se à produção literária.73

73As informações sobre Solha foram obtidas através de entrevista a nos concedida, em 08/01/2007 e 22/01/2007 em sua na residência entre 15 e 16h30min. De suas obras citamos: 1975 - Israel Rêmora, publicado pela Editora Record- SP, ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia de 1974; 1978 - A Canga ganhou menção honrosa no Prêmio Fernando Chinaglia e 2º lugar no Prêmio Caixa Econômica de Goiás em 1975. Foi publicada pela Editora Moderna, SP em 1978 e pela Editora Mercado Aberto, RS, em 1984; 1979- A Verdadeira História de Jesus, publicada pela editora Ática- SP; 1984- Zé Américo Foi Princeso no Trono da Monarquia, publicado pela Editora Codecri; 1989- A Batalha de Oliveiros, foi premiado pelo Instituto Nacional do Livro em 1988, sendo publicado pela Editora Itatiaia- MG, em 1989; 1997- Sheke-up, publicada pela Editora da UFPB; 2004- Trigal com Corvos, premiado como melhor livro de poesia de 2005 pelo Prêmio João Cabral de Melo Neto; 2006- A História Universal da Angústia, publicada pela Editora Bertrand Brasil, sendo ganhadora do Prêmio Graciliano Ramos 2006 e finalista do Prêmio Jabuti 2006. A obra literária e artística de Waldemar Solha não se esgota aí. Em 1970 produziu com José Bezerra Filho, o longa-metragem “O Salário da Morte”; 1980 – Fez os textos para “Cantata Pra Alagamar”, música de José Alberto Kaplan, gravado por Marcus Pereira; 1982 – Escreveu “A Bagaceira”, montada por Fernando Teixeira; 1984 – Escreveu “Papa-Rabo”, montada por Fernando Teixeira; 1986 – Escreveu e produziu “A Bátalha de OL contra o Gígante FERR"; 1988 – Escreveu e produziu “A Verdadeira Estória de Jesus”; 1988 – Escreveu “Burgueses ou Meliantes”, montada por Ubiratan de Assis; 1991 – Escreveu “A Batalha de Oliveiros contra o Gigante Ferrabrás”, montada por Ricardo Torres,1992 – "Os Indispensáveis", para música de Eli-Eri Moura, apresentada em João Pessoa em 1992. Fez ainda: 1999 o “storyboard” de “Passadouro”, direção de Torquato Joel; 2001 – Fez o “storyboard” de “A Canga”, direção de Marcus Vilar; 2005 – Fez o “storyboard” de “Meio do Mundo”, direção de Marcus Vilar. Como ator de cinema, Waldemar Solha esteve ligado às seguintes produções: 1969 – “O Salário da Morte”, direção Linduarte Noronha (1º Longa paraibano, em 35 mm); 1975 – “Fogo Morto”, baseado no livro A Bagaceira, direção Marcus Farias; 1975 – “Soledade”, direção Paulo Thiago; 2001 – “A Canga”, direção Marcus Vilar; 2002 – “Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio”, direção Rosenberg Cariry 2001; Em 2004, Solha interpretou Pilatos, no “Auto de Deus” (João Pessoa). Pintou painéis, como: 1989 - "A Ceia" (1,60 x 3,60m), no Sindicato dos Bancários da Paraíba; 1994 - Exposição e vendas quadros para a Campanha Contra a Fome, promovida pelo sociólogo Betinho juntamente ao Banco do Brasil; 1997 - "Homenagem a Shakespeare" (3,20 x 7,20m, acrílico sobre tela). Exposição permanente no auditório da

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A formação erudita e a bagagem literária de Waldemar Solha o tornam uma

referência cultural e é indiscutível sua influência nos rumos do filme de Marcus Vilar,

do qual participou também como ator, no papel de Ascenço Ferreira.

Walter Carvalho, paraibano de Itabaiana, foi para o Rio de Janeiro, em 1968,

cursar Designer na Escola Superior de Desenho Industrial. Foi aluno de renomados

professores como Aloísio Magalhães, Zuenir Ventura, Renina Katz e Décio Pignatari.

Iniciou sua vida profissional como Programador Visual. Exercendo a atividade de

fotógrafo participou de várias exposições de desenhos e de fotografias. Ganhou prêmios

que o levaram a ser destaque internacional, como mais tarde ocorreu com seu trabalho

de diretor fotográfico. No cinema, iniciou como assistente dos diretores de fotografia

José Medeiros, Dib Ludfi e Fernando Duarte. Tornou-se diretor de fotografia. Realizou

vários trabalhos para a televisão como o documentário Krajcberg – o poeta dos

vestígios, as séries América e Blues e a direção de fotografia dos primeiros capítulos das

novelas Renascer e O Rei do Gado.

Trabalhou como diretor fotográfico, entre curta, média e longas-metragens

com Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Jr., Sandra Werneck,

Geraldo Moraes, Arthur Omar, Vladimir Carvalho, Silvio Back, Lui Farias, Walter

Salles Jr., Marcelo Dantas, João Jardim, Luiz Fernando Carvalho, Murilo Salles,

Eduardo Escorel, Washington Novaes, Fernando Meirelles, João Moreira Salles, Tânia

Lamarca, Tetê Moraes, Zelito Vianna, Tizuka Yamazaki, Karin Aïnouz, Cláudio Assis,

Hector Babenco, Ruy Guerra, Beto Brant, Julio Bressane e João Falcão.

Atuou como diretor de fotografia de obras-primas do cinema nacional, como

Terra para Rosa (1987), Que Bom Te Ver Viva (1989), Terra Estrangeira (1995),

Pequeno Dicionário Amoroso (1997), Central do Brasil (1998), Villa Lobos (2000),

Lavoura Arcaica (2001), Abril Despedaçado (2001), Amarelo Manga (2002), Madame

Satã (2002) e Carandiru (2003). Co-dirigiu o filme Cazuza (2004) com Sandra

Werneck e produziu, em parceria com o diretor João Jardim, o documentário Janela da

Alma (2001) 74.

reitoria da UFPB 2004 – Festival Centro em Cena. Exposição “Retrospectiva”, no Casarão dos Arquitetos, Centro Histórico da Capital. Fonte:< http://www. eltheatro.com> Acesso em 04/11/2006. 74Em sua lista de prêmios destacamos: Prêmio do Júri e Prêmio do Público em São Paulo Melhor Documentário Janela da Alma (2001); Mostra Internacional de Cinema São Paulo, Melhor Fotografia Abril Despedaçado (2001); Melhor Fotografia Lavoura Arcaica, Festival del Nuevo Cine Latinoamericano - Colon de Plata, Cuba, 2001; Melhor Fotografia Madame Satã Festival de Cine Iberoamericano de Huelva, Espanha (2002). Fontes: <http:// www festecinemaringa com.br/homenageado.php#1>Acesso em 04/11/2006.

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3.1.4 - A dimensão coletiva da autoria: Vilar, Solha e Carvalho

A autoria no cinema, assegurada até o final dos anos 1960 a um indivíduo, o

diretor, segundo a política dos autores, aceita ou não pelos críticos brasileiros, tornou a

autoria integrada aos termos usuais e usualmente assinalada dentro do campo do cinema

brasileiro.

Entretanto, essa quase unanimidade sobre a autoria pessoal ou individual do

diretor não se sustentou pacificamente por muito tempo, pela própria diversificação de

competências técnicas e especialidades profissionais introduzidas no cinema e a partir

das discussões sobre a autoria, que impuseram questionamentos à própria unidade do

sujeito, desdobrado em vários “eus”, fruto da complexidade social. O cinema deixa de

ser possível como obra de um só; a própria gênese da idéia do filme, por exemplo, pode

vir de um livro, de um roteiro elaborado ou não pelo diretor, provocando mais

indagações sobre a autoria.

A posição adotada nesta análise é a de que existe uma autoria, por que é

nomeada, ressaltada em festivais e em premiações de academias, portanto

institucionalizada e representada na exibição da mídia, sob a forma de uma função de

autor não individual, composta de três ou mais sub-funções principais sem as quais o

filme não existiria e que chamamos núcleo autoral.

Para formularmos a noção do núcleo autoral presente no texto, nos baseamos nas

argumentações de Aumont e Marie (2003) sobre autoria, que propõem as seguintes

reflexões:

O cinema é uma arte coletiva e nele a criação estritamente individual é rara (caso de alguns filmes experimentais nos quais o cineasta exerce todas as funções, do produtor ao projecionista). O filme é um meio de expressão heterogêneo que combina várias matérias: imagem, os diálogos, a música, a montagem, etc. Privilegiar apenas a direção é, portanto, uma decisão discutível. Em muitos casos, o diretor atém-se a uma simples execução e não tem responsabilidade nem iniciativa alguma na escolha do roteiro, dos diálogos, dos atores, da montagem, da musica, etc. (2003, p. 26-27).

No caso do filme A Canga, classificamos como núcleo autoral a direção,

propriamente dita, o roteirista e a direção de fotografia.

<http://www.imdb.com/name/nm0142504/> Acesso em 04//11/2006. <http://www.mapafilmes.com.br/villa/Equipe/walter/direita.htm> Acesso em 04/11/2006. <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT363061-1655,00.html>Acesso m 04/11/2006.

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Marcus Vilar seria, pela política dos autores do período inicial, o autor por

conjugar as funções de direção, de roteirista e produção executiva. Mas, mesmo hoje,

com a questionada autoria sobre uma única individualidade, não podemos deixar de lhe

atribuir as qualidades de controlar a cena, os atores, as fases da filmagem e a edição, o

que lhe rendeu o seguintes prêmios nos festivais de cinema: melhor curta no Cine -

Ceará (2001), Prêmio do Público no Festival de Gramado (2001), sendo, ainda,

agraciado com mais premiações em festivais e jornadas nacionais e internacionais.

Quanto ao diálogo com os componentes técnicos, segundo comenta em entrevista

concedida ao site Paraíwa75, afirma que gostaria de ter tido mais tempo de ensaio com

os atores, conversado mais tempo com o fotógrafo do filme, Walter Carvalho e ressalta:

“Eu gosto muito de fazer isso, porque assim é envolver as outras pessoas, eu acho

legal,” parece contribuir para o pensamento de uma autoria coletiva. Porém, ressalta a

sua autoria quando afirma:

A Canga, eu cheguei em casa, eu, com um amigo meu no computador dele, fizemos um a pré- edição do eu queria já, a seqüência mais ou menos todinha pelo roteiro. Quando eu filmei, filmei: a primeira seqüência é aquela ali, a segunda é aquela ali. Aquilo ali eu filmei como uma edição já, aí eu mandei pro Rio 76.

No universo coletivo do processo de filmagem, como mostra o making off, um

acampamento com uma quantidade grande de técnicos e assistentes, percebemos

claramente a complexidade da produção de uma obra fílmica. Assistimos ao depoimento

do engenheiro de som que controla os sons externos, como de vento e poeira, além de

sons de animais e carros. Ele deixa na película só os diálogos e os ruídos que compõem

a encenação.

Sabemos que o making off é o registro do trabalho, porém selecionado, recortado

e editado conforme o desejo do grupo autoral. Portanto, também é representação, mas

dela podemos perceber o que foi trazido como contribuição individual e o que indica a

identificação com o conjunto de membros que forma a equipe de filmografia e,

especificamente, d’A Canga.

A direção é o centro do comando das ações que produzem a encenação na sua

plenitude e resulta no filme pronto e acabado. No campo de forças da constituição do

filme, no confronto de visões sobre as cenas, é o diretor que faz convergirem todos os

75 Fonte: <http// www.paraiwa.org.br/ acanga/ entrevista- marcusvilar.htm>Acesso em 29/10 2006. 76 Os depoimentos e falas aspeadas ou em destaque, foram obtidos em entrevistas concedidas por Marcus Vilar, em 27/10/2005 e 25/01/2007, a autora desta dissertação.

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interesses orientando para que a obra termine no tempo previsto e com a concepção

estética que traçara no início das filmagens expressa na edição.

O making off77 apresenta o diretor, Marcus Vilar, coordenando a montagem da

cenografia, acompanhando todas as tomadas ou, junto ao câmera e diretor fotográfico,

verificando como a imagem está sendo captada pela câmara. Podemos vê-lo observando

a edição das seqüências das tomadas diárias. Os atores só se movem sob o seu grito de

comando: “ação”!

A consciência de sua autoria está na imagem que projeta de diretor ao dizer: “eu

não vou falar nada, assistam o filme”, portanto o filme é a sua expressão.

Marcus Vilar, apesar de iniciar sua vida acadêmica no curso de Educação Física,

da Universidade Federal da Paraíba e, ao entrar em contato com grupos de amigos

universitário ligados à música e outras e formas de expressão artística, tomou a decisão

de procurar o NUDOC, abrindo-se o caminho para o cinema. Sua consolidada carreira

foi iniciada como assistente do diretor de fotografia Manuel Clemente, e hoje professor

do Departamento de Comunicação da UFPB.

A criação do NUDOC, em 1979, após a Jornada de Cinema, aqui na Paraíba,

que era realizada anteriormente, em Salvador, requisitava pessoas para o seu

funcionamento. Marcus Vilar solicitou, então, à Universidade ocupar uma função no

NUDOC, e lá, faz o curso de Cinema Direto, possibilitando-lhe passar por todas as

etapas da realização de um filme, como relata em entrevista:

[...] foi ali que começou tudo, aliás, o primeiro curso que eu fiz exatamente em 83, eu me lembro muito bem... Foi exatamente com Pedro Santos, que era uma grande cabeça na época, era o coordenador do NUDOC, era músico... Já faleceu também, era músico, cineasta, diretor também e fez algumas músicas pros principais filmes do cinema paraibano: Romeiros da Guia, o próprio O Salário da Morte, de Solha e Zé Bezerra, mas Manfredo Caldas que tava voltando... é um paraibano que mora em Brasília hoje, mas ele tava voltando pra fazer um filme sobre o cinema paraibano, chamado Cinema Paraibano 20 Anos. Então, Manfredo Caldas, Manuel Clemente, Umbelino Brasil - paraibano que hoje vive em Salvador - Manuel Clemente, que foi o meu grande mestre da fotografia. Então esse pessoal todo foi fundamental para mina formação. A partir dali, eu comecei a prestar atenção em cinema com outros olhos, procurar outras coisas no cinema que, até então, eu via como um simples espectador. Comecei a ver as partes mais técnicas, me preocupando como aspectos do cinema, o diretor, quais eram os diretores mais

77 O making off d’A Canga participou da X Fenart em 2004 e foi premiado como melhor documentário paraibano.

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importantes na filmografia mundial, e todos eles me orientaram para isso. 78

Destaca Marcus Vilar sua experiência na França, em 1985 − que mantinha

convênio com o recém criado NUDOC − quando foi completar o curso de Cinema

Direto:

[...] Então, eu fiz o curso e no final fiz um filme em Super 8, chamado K.O em Cena no Sena, e KO era baiano. A gente tinha que fazer um filme lá, um documentário, um curta, no final do curso. (...) Só depois veio um curso em 16 mm, que era o curso que eu queria fazer. Esse curso que fiz acabava em agosto e o outro começava no final de setembro, ou seja, acabou minha bolsa, acabou tudo.79

Tornou - se parte de uma geração que a Universidade formou e incentivou a

realização de projetos de extensão. Como funcionário do Núcleo de Documentação

Cinematográfica, começa como câmara, evoluindo para a produção de documentários e,

depois, para a direção de curtas.

Sua identificação com o campo cinematográfico, como um dos representantes na

Paraíba, vai além dessas fronteiras, atingindo destaque nacional e internacional pelos

prêmios que tem acumulado em festivais e jornadas de cinema. Seus filmes têm sido

assuntos de debates e questionamentos na academia e fora dela, em torno das questões

temáticas que escolhe e pela forma como as apresenta, buscando o diálogo com o

público, pois atribuí ao cinema a “função de social” de “percepção da realidade”, que a

nosso ver, segundo o contexto social das leituras das representações, extrapolam a

própria obra. Como o próprio Vilar nos conta: “A Canga fazia parte do projeto da

prefeitura, “Cinema Volante”, que passava filmes paraibanos na periferia. Uma mulher

fez uma leitura do filme que ninguém tinha feito até hoje ”80.

A certeza do que faz e a participação no processo da criação do NUDOC,

leva-o a evocar a seguinte lembrança:

Só um parêntese aqui, é às vezes eu me lembro dessa história até com Denise, minha irmã. É que eu desde pequeno gostava muito de futebol, aí eu me lembro que eu estava começando a fazer os primeiros trabalhos de edição (risos). Então, eu com dez anos de idade eu pegava um desses gravadorzinhos desses que você está me gravando agora e começava a narrar o jogo e gritava o “gol” e gritava bem alto até perder o fôlego. Nisso eu dava uma pausa no gravador, tomava fôlego novamente, soltava a pausa do gravador e gritava gol

78 Trecho da entrevista concedida por Vilar à autora desta dissertação, em 25/01/2007. 79 Trecho da entrevista de Vilar concedida à autora desta dissertação realizada em 27/10/2005 80Trecho da entrevista do cineasta Marcus Vilar realizada em 30/03/2006, a João Batista B Barroa e Terry Mulhall, para a Revista Política & Trabalho, ano 22, n. 24. João Pessoa: PPGS. UFPB, 2006, p.189.

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de novo e aí ficava um gol imenso... (risos). Ou seja, estava começando a editar81.

A consciência de seu papel no campo cinematográfico paraibano aparece em três

de suas obras em 35 mm − a ligação com o seu lugar de origem, pelo caráter de

identidade que estabelece com o seu mundo social, cuja representação lhe permite ser

reconhecido, em que mostrar é fazer valer sua existência, segundo a concepção de que é

impossível desassociar-se a experiência pessoal do(s) autor(es) da produção cultural ou

científica que explicita a divisão do mundo social onde ele(s) está inserido (BOURDIEU,

1998, p.111-113).

Não podemos deixar de reconhecer o caráter universal das temáticas abordadas

por Marcus Vilar como ele mesmo advoga, quando indagado, no festival de cinema de

Gramado, por um repórter sobre a temática do filme A Canga, ainda que, em nossa

concepção, as marcas do discurso que ele secundariza estejam fortemente impressas no

filme.

[...] Primeiro eu não acho que A Canga tenha uma temática nordestina. A Canga, que é um a adaptação do romance homônimo de W.J.Solha sobre uma família em que o pai coloca nos filhos uma canga de boi (a canga é uma peça de madeira colocada no boi para arar terra), e, com um chicote na mão, obriga os filhos a trabalhar. Mas o filme trata de poder, de autoritarismo, de resignação, de conformismo, e esses são temas universais. Em qualquer lugar do mundo tem isso. Eu filmei na Paraíba porque moro lá. Podia ter filmado em São Paulo. O discurso sobre o regionalismo termina virando alguns estereótipos. Tudo o que vem do Sertão, tudo que vem do Nordeste, tem seca, tem flagelado. Teve uma época que todo filme do Nordeste tinha isso. O último, filme que eu fiz, chamado O Meio do Mundo (2005), é sobre a primeira experiência sexual de um menino e se passa no interior. É um tema universal. Em qualquer lugar do mundo tem isso. É verdade que aqui no Brasil existe uma tendência para ter um determinado filme de uma determinada região

82.

A produção de Vilar, ao longo de vinte anos, só não é mais extensa pela

exigência de grandes investimentos em recursos tecnológicos e falta de mercado para os

curtas, mas podemos ver que permanece sempre “antenado” como mundo que o cerca e

com o homem, suas práticas e relações, vendo-o em seu lugar, com seus códigos de

valores e em sua produção material, social e simbólica.

Solha começou a trabalhar cedo, em Sorocaba, em lojas e bancos particulares.

Como já visto, vem para Pombal, assumir a gestão da Carteira Agrícola do Banco do

Brasil. E, como ele mesmo afirma: “que nada se perde nesta vida”, traz para sua vida

81 Trecho da entrevista de Vilar concedida `a autora desta dissertação em 27/10/2005. 82 Entrevista do cineasta Marcus Vilar realizada em 30/03/2006, por João Batista B. Brito e Terry Mulhall, para a Revista Política & Trabalho, ano 22, n. 24. João Pessoa: PPGS. UFPB, 2006.

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profissional a destreza com os pincéis e com a escrita. Tornou-se voraz consumidor dos

livros oferecidos pelo riquíssimo universo cultural de Pombal,

Eu era subgerente, depois passei a gerente, o gerente tinha todos os clássicos na casa dele, e eu li. Quando comecei a ler foi uma loucura! Eu li todos: Shakespeare, li todos de Dostoievisk, li Homero, a Ilíada e Odisséia, li Eneida, de Virgílio, A Divina Comedia de Dante, o Fausto (...) lá em Pombal, tanto é que tô fazendo um romance, agora eu exagero nisso. Ficou de forma expressionista a cultura do pessoal (...) 83.

A obra literária de Solha, já citada, é vasta e não está dissociada de sua vivência

profissional, uma vez que no interior do banco encontrou seus pares para discussão de

obras por ele escritas, para montagem de peças e o filme O Salário da Morte, com a

participação de boa parte da população da cidade de Pombal.

De suas andanças pelas propriedades rurais trazia ricas imagens da vida no

campo, em Pombal, na década de 1960, como relata em depoimento: “Se eu não tivesse

trabalhado numa carteira agrícola, que eu ia para aquelas propriedades, aquelas coisas

todo dia, via o modo de vida deles, o linguajar todinho (...)”.

O livro A Canga, foi o ponto de partida para o roteiro do filme. Em sua

entrevista, Solha esclarece suas motivações no processo de elaboração dessa obra,

vinculada às suas vivências no Sertão da Paraíba. A luta dos sertanejos pela

sobrevivência cotidiana impressionara o autor e deixara marcas na obra. Solha fala

sobre a vida dos trabalhadores rurais “(...) a caatinga é como o diabo, então é um

negócio rude demais. (...) esse detalhe que a gente olha para as mãos das pessoas para os

pés massacrados”.

A violência é também visível, por exemplo, quando Solha expõe a experiência

de saber-se ‘jurado de morte’ por ter questionado a falta de pagamento a um

carregamento feito por um caminhão, que ele havia comprado para ter uma renda extra.

Relata os termos em que foi “advertido” pelo capataz do contratante: “(...) porque eu

sou o capataz dela. Olha aqui, se você se meter naquele negócio lá, (...) sua caçamba vai

ser emborcada na estrada”.

Solha, através de suas vivências e leituras, fornece-nos a imagem sobre o que

ressalta Foucault, o emaranhado de vivências que forjam a obra. Em entrevista, assim

refere-se a Cipriano, personagem d’A Canga:

83 Trecho da entrevista concedida à autora desta dissertação por Solha, em 08/01/2007.

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O Cipriano, (...) lá em Pombal, tinha havido bem antes de a gente chegar lá um movimento religioso, um tal de Miguel lá, isso antes d’eu chegar lá, eu não vi isso não. E esse Miguel tinha um filho que era retardado mental, aí era interessante porque ele andava segurando a calça sem o cinturão, a calça bem frouxa, ele andava segurando o tempo todo. Aí ele chegava e cumprimentava a gente: Bon jour, bon sueur ( risos). Aí eu fui botar o personagem no livro. Falei: rapaz, se eu botar no livro, ninguém vai acreditar (risos)... Bon jour, bon sueur, só falava assim com todo mundo, aquela alegria. Ali foi o modelo do Cipriano84.

Marcus Vilar destaca no filme A Canga a abordagem do autoritarismo e do pater

poder articulados à visão da sociedade nas décadas de 1960/1970, período de elaboração

da peça teatral e, depois, da novela que resultaram no roteiro do filme.

Solha fala do seu confronto com o Exército, quando vai denunciar a situação dos

donos de caçamba em Pombal, pois o serviço do asfalto era da competência dessa

Instituição. Procurou, a princípio, o capitão responsável, em Pombal, que lhe respondeu:

“Se o senhor não tiver satisfeito, tire seu caminhão do serviço”. Depois de ser

ameaçado, em frente ao banco, resolve ir ao Grupamento de Engenharia do Exército, em

João Pessoa. O episódio foi resolvido dessa forma:

[...] fiz a denúncia e houve um bafafá lá, aquele negócio todo de apuração. E vem um rapaz que eu tinha cortado a briga que tava tendo com outro cara lá, e ele falou: “vou agradecer agora aquele favor que você me fez. Eu trabalho no almoxarifado do Exército, e eu ouvi eles furiosos, porque o pistoleiro que eles tinham pago foi preso no Ceará, mas do mesmo jeito que pagou um paga outro rapaz.85

O filme Meu ódio será tua herança de Sam Peckinpah, emaranha-se na criação

d’ A Canga, pois esse cineasta “usou a câmara lenta nas cenas de violência, que causou

um impacto muito grande”, violência que emerge também em seu livro. Mas Solha

afirma que: “quando eu vi o filme o livro já estava estruturado”. Contudo, a versão que

ele enviou para o Concurso, recebeu o título de Uma História para Sam Peckinpah.

Entretanto, a editora sugeriu a sua mudança e o titulo inicial passou a ser um subtítulo.

Todavia, as lembranças mais remotas da força simbólica de um pai misturam-se

às vivências do presente, evocando o poder do discurso e da condução da família.

Quando fala do pai lendo a Bíblia, W.J.Solha o descreve assim:

Ele sabia quando tava lendo uma frase muito bem feita, então lia os Salmos deslumbrado, tem uma série de trechos do Êxodo, do livro do Êxodo, que ele lia o discurso, aquele negócio todo, notando a beleza das coisas. E desde menino, eu sentia a força daquelas palavras das traduções bíblicas.

84 Trecho de entrevista de Solha concedida à autora da dissertação em 22/01/2007. 85 Trecho da entrevista de Solha concedida à autora da dissertação em 22/01/2007

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A força do patriarcalismo está tão bem captada e compreendida na sua vida, que

ele a transmite na força de Ascenço, papel desempenhado no filme, no seu poder de

imobilizar a família e de impor-lhe a canga. Assim, o observamos neste testemunho de

Solha sobre o pai e seu poder de aglutinar a família em torno de sua figura, pois sabia

carregar o ‘cetro’:

Essa coisa de meu pai é muito forte. Eu me lembro que eu fiz..., eu fazia também uns bustos de argila, umas estátuas, assim. Aí eu fiz o retrato de meu pai em argila, eu fiz um Júlio César. Aí eu fiz um retrato do meu pai como Moisés, ele com as Tábuas da Lei. (...) Não é medo, eu respeitava, (...) eu tinha uma certa fixação pelo velho.86

Na construção da autoria da obra cultural, pode ser percebido o traço autoral. Ao

analisarmos o roteiro d’A Canga, mesmo com participação de Marcus Vilar em sua

elaboração, não podemos ser indiferentes à percepção que “o texto traz sempre um certo

número de signos que reenviam ao autor” (FOUCAULT, 1992, p.54-55). Contudo, não

reenviam para uma unidade, como se o autor só comportasse um único eu, mas para a

“pluralidade de eus”.

Chama-nos a atenção que, de forma indireta, através da representação que

constroem para o páter-poder, os autores apropriam-se da compreensão do mundo social

e mostram-nos através da seleção, de recortes e da classificação a organização social de

seus mundos e de suas épocas, pois como indica Chartier (1990, p.17), há caminhos para a

apreensão da construção do mundo social.

A instituição da autoria “é a imposição de um nome, isto é, de uma essência

social. Instituir, atribuir uma essência, uma competência, é o mesmo que impor um

direto de ser que é também um dever ser (ou um dever de ser)” (BOURDIEU, 1998, p. 100).

A função de ‘dever ser’ dos autores dá-lhes a possibilidade da representação das

formas discursivas de suas épocas e sociedades, permitindo-nos a compreensão da

historicidade da articulação obra-autoria.

Waldemar José Solha, autor da novela A Canga (1979) 87, seria, dentro da

concepção de autoria desenvolvida por alguns críticos brasileiros do período 1950/

1960, também autor do filme, pois participa como roteirista, dividindo sua elaboração

com Marcus Vilar. Ambos optaram por concentrar o drama relatado no primeiro

86 Trecho da entrevista de Solha, realizada em 22/01/2007, concedida à autora desta dissertação. 87 Pela qual recebeu menção especial no Prêmio Fernando Chinaglia (1974) e 2º lugar Prêmio Caixa Econômica de Goiás (1975). Ao nos referirmos à novela, usaremos o destaque em negrito, e, referindo-nos ao filme, como já temos feito, em itálico.

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capítulo do livro, do qual foram suprimidas outras personagens, centrando o roteiro no

núcleo familiar.

Solha já tinha feito uma filmagem do primeiro capítulo d’A Canga, em Super 8,

mas com personagens retiradas durante o trabalho de roteirização feito em conjunto com

Vilar. Solha ressalta a parceria na construção do roteiro, que tem por base a peça que ele

escreveu, em Pombal, já existente em conto, e que, depois de ter costuradas suas

narrativas, resultou no livro A Canga:

[...] Foi tranqüilo. Pra começar, tem o seguinte: eu já tinha a coisa muito mastigada, tinha feito o conto, aí fiz a peça, aí filmei em super 8. O Marcus Vilar viu o Super 8, então, quando a gente foi fazer... No Super 8, ele tinha um personagem que já tá no livro, que é um deputado [...] Isso no meu tinha, na minha versão tinha, aí justamente eu falei pro Marcus: Marcus, eu acho que essa figura do deputado devia ser tirada e deixar o problema só com a família. Por que é que não volta a peça que fiz lá em Pombal? Sem aquela história do Candomblé, porque aquela eu fiz em cima do Candomblé. Então, só a família. Então pronto, ele topou. Peguei, descobri o texto da peça, a gente fez a limpeza, aí foi feito o roteiro em cima dessa peça sem o Candomblé, só ficou a família mesmo. Aí lá vai, né? Eu mandava, ele discutia certas coisas, assim trechos.88

Marcus Vilar ao comentar a sua participação no roteiro, reforça a cumplicidade

com Solha:

Eu começava a ler o livro e como eu só queria o núcleo mesmo, que é a história da família com a canga, tudo que tinha isso aí eu ia colocando, o que tava em imagem eu ia passando pro computador na forma de roteiro. Aí eu fiz o primeiro tratamento do roteiro, é o tratamento que a gente chama e entreguei a ele, aí ele olhava e o bom de trabalhar com Solha é isso. Na hora, ele olhava, a gente sentava na mesa e “deguedeguedegue”, ele ganha de mim.89

Solha expressa sua autoria, no making off, contando que o argumento lhe

persegue desde a década de 1960, em Pombal. Parte de um dos contos que escrevera na

época, é uma homenagem violenta ao homem do campo. No letreiro posto sob sua

imagem, está escrito ator e autor. Além da força, do entusiasmo e da intimidade que a

câmara capta quando está posando para este registro, o Solha-ator-personagem,

manuseando o chicote, o símbolo de seu poder, está escrevendo nos seus estalidos a sua

autoria, afirmando o Solha-autor.

A autoria de Solha é complexa porque tanto se reporta ao livro que deu origem

ao filme como à construção do roteiro em parceria com Vilar. Aqui, autoria

compartilhada, é assumida como dimensão importante na constituição das obras

88 Trecho da entrevista de Solha, realizada em 22/01/2007, concedida à autora desta dissertação. 89 Trecho da entrevista de Vilar, realizada em 25/01/2007, concedida à autora desta dissertação.

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fílmicas. Os roteiristas são peças fundamentais nas tramas, principalmente por criarem

os diálogos, e indicarem a situação dos personagens nas cenas a partir das seqüências de

planos que compõem o filme. Em A Canga, a contribuição de Solha no processo criador

antecede às imagens, na medida em que estas partem de um argumento escrito, baseado

num texto literário, mas se consolidam na transposição que ele próprio fez para a

composição do roteiro e do “storyboard” que constituiu a obra imagética.

O diretor de fotografia, Walter Carvalho, construiu sua careira, ao longo de

quarenta anos, emaranhando sua formação à própria constituição do que hoje é o cinema

brasileiro. Foi introduzido no meio cinematográfico pela mão do irmão Vladimir

Carvalho, e daí em diante, misturando as cores das tintas da palheta, criou imagens

belíssimas, em que luz e sombras falam junto com as personagens.

A experiência iniciada com o irmão é alargada ao trabalhar como assistente de

renomados diretores fotográficos e, mais tarde, como diretor de fotografia de diretores

que transformaram a cinematografia brasileira. Ele assume seu ‘vício por cinema’,

confirmado por Marcus Vilar ao afirmar: “Walter, come e dorme cinema”, quando fala

de seu acúmulo de filmes. O diretor fotográfico realizou não só o uso da tecnologia, que

ele diz abandonar quando seu excesso atrapalha, mas cumpriu a intenção em ver com

nitidez, através de toda forma de percepção, o país em que vive. O diretor de fotografia,

Walter Carvalho90, com vasta carreira de diretor fotográfico e diretor de filmes

independentes, ganhador de prêmios por sua técnica de fotografia, criou as imagens que

se coadunam com a trama na costura perfeita entre narrativa e fotografia, como

almejava a direção.

A importância do seu trabalho, n’A Canga, é reafirmada por Vilar quando fala

da tensão e dos gastos com a película, destacando sua experiência no campo da

fotografia.

[...] O Walter, por exemplo, é muito ligeiro, então quando termina um filme aqui já tem outro. Eu por exemplo, passei 5 anos para filmar enquanto eu fiz um, ele fez 12 ou mais, acabou um filme começa outro. Ele é rápido, é ligeiro, tem soluções rápidas, se ele não souber o que quero mesmo vai e passa na minha frente e isso pro diretor é perigoso. [...] Então, a primeira cena do filme, por exemplo, foi sugestão de Walter e eu não vou ser idiota de não ouvir as pessoas.91

90 Walter Carvalho foi diversas vezes contatado por telefone e por e-mail, mais não foi possível acordamos a forma e o horário para uma entrevista devido aos seus compromissos. Apesar de sua atenção, ficamos impossibilitadas de estender os prazos para a realização da mesma pelo limites de prazo do trabalho desta dissertação. 91 Trecho da entrevista de Vilar concedida á autora desta dissertação em 27/10/2005

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O compromisso com as questões brasileiras está em sua forma singular de

construção das imagens, preocupado em não perder o que seu tempo e o seu mundo

trazem para frente da câmara, ferramenta com a qual colhe emoções, traduzindo as

idéias do roteirista e do diretor que, segundo ele, é o “maestro” que ‘orquestriza’ a

produção do filme.

Sua compreensão da emoção que o cinema provoca no espectador tornou-o

internacionalmente conhecido. Sua capacidade de usar o espectro de luz e a seleção das

cores monta verdadeiras pinturas dentro da cena, que interagem com as lembranças e as

vivências dos espectadores, numa linguagem imagética que valoriza a concepção de

encenação do diretor.

Walter Carvalho manuseou a câmara em quase todas as tomadas, colado a ela

como se fosse parte de sua anatomia, e em sintonia com a direção.

No making off, dirige uma cena, dizendo: “Vá rodando comigo. Olhe este

sertão”, e, diz a quem homenageia, a qual tradição cinematográfica está ligado, colando

seu discurso aos precursores do cinema paraibano e nacional, que estão historicamente

vinculados às origens do Cinema Novo como Linduarte Noronha e Glauber Rocha, a

quem fundamentalmente evoca como inspirador de suas imagens do Sertão.

Carvalho imprime sua identidade autoral ao filme por meio das escolhas que

constituem o padrão de cor e luminosidade, do uso de filtros exacerbando o vermelho da

película e das angulações dos planos numa recriação da paisagem que, mesmo

evocando Glauber ultrapassa-o na releitura das cores majestosas do Sertão em A Canga.

A imagem se constitui na especificidade cinematográfica, nesse sentido a autoria

do diretor de fotografia é peça importante na construção da narrativa fílmica. Podemos

dizer que a autoria de Walter Carvalho em A Canga reveste-se da marca do artesão,

aquele que elabora as imagens a partir das idéias do diretor, mas também participa das

escolhas e transforma a paisagem real em hiper-realidade, como o fez. Ele conferiu,

também, com sua autoria, a respeitabilidade de um fotógrafo de cinema consagrado pela

crítica por sua extensa participação na produção nacional.

Portanto, Walter Carvalho, integrante do núcleo autoral, deixou sua marca para

que A Canga, como obra acabada, fosse como é. Teve a clara percepção de que o roteiro

e a articulação de encenação do diretor é que dão o norte para as imagens, pensadas em

planos, seqüências e que do diálogo e da interação emergem as luzes e as cores.

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A parceria Carvalho-Vilar expressa boa sintonia. Apesar de poucas

oportunidades para discutir a produção do filme mais profundamente − a atuação de

Walter Carvalho n’A Canga foi no intervalo entre Abril Despedaçado e Lavoura

Arcaica − segundo Vilar, as questões foram afinadas com Carvalho que com seu estilo

e sua experiência é “muito ligeiro, com soluções rápidas”, sempre permitindo que o

“desse jeito que eu quero” do diretor, explodisse em cor e luz.

A autoria coletiva resultou em produto homogêneo sem dissonância pela

relativa, mas importante vivência de cada componente da autoria com a tradição do

homem sertanejo como referência para a construção das imagens que se tornaram

bandeira de projetos cinematográficos do Cinema Novo do qual Walter Carvalho é

herdeiro e que teve contato no início de sua carreira profissional. Portanto, sua saudação

a “São Glauber” demonstra bem sua filiação a uma tradição cinematográfica em que a

estética é instrumento de reflexão política e social.

O roteiro de Solha, em parceria com Vilar, é que pode despertar maior

perplexidade quando sabemos de sua origem paulista. Mas quando, através de sua

entrevista, tomamos conhecimento de que Sorocaba, seu local de nascimento, infância e

adolescência possui semelhança com a paisagem do sertão nordestino, explica-se sua

identificação com a região. Em sua descrição da terra natal, Solha aponta aspectos de

aproximação entre as duas paisagens: “(...) cheio de pedras, seco, aquele ambiente

mesmo assim. Tanto que o cinema Vera Cruz, de S. Paulo, filmou O Cangaceiro lá” 92.

Marcus Vilar, que teve sua infância povoada de brincadeiras em Campina

Grande e em Recife, passa a se relacionar com grupos musicais e de outras artes quando

vem morar em João Pessoa. Teve sua formação em cinema conduzida por profissionais

nordestinos e, posteriormente, franceses, através de convênio, via NUDOC. Assim, suas

vivências pessoais e profissionais estão impregnadas de fenômenos típicos dos grupos

sociais aos quais pertence. Minha memória fotográfica é melhor que minha memória oral, entendeu? De tá lembrando de estórias. Por exemplo, eu ia pro sítio do avô de meu primo, no Massapé, perto de Queimadas, mais precisamente. Então, eu passava a infância muito lá, então, eu era mesmo ligado a essa coisa de sítio, de ir pra fazenda... eu lembro de buscar umas coisas que minha mãe pedia...ir buscar galinha. Então, assim... essa imagem de ver o gado, de ir tirar leite de vaca...eu tenho forte em mim. Tanto que é essa polêmica de filme paraibano ser mais rural do que urbano.... então,o povo pega no meu pé porque vou muito pra zona rural, eu filmo o que emociona, o que mexe comigo93.

92 Trecho de entrevista de Solha concedida à autora do trabalho em 08/01/2007. 93 Trecho de entrevista de Vilar dada à autora da dissertação em 25/01/2007.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interpretação que nós historiadores pretendemos efetuar, do ponto de vista

da história cultural, diante de um objeto de estudo imagético ─ no nosso caso o filme A

Canga ─ requer a observação da narrativa fílmica não como uma simples descrição do

real, mas como expressão do modo pelo quais os agentes sociais, autores da obra

cultural, compreendem a realidade em que vivem e atuam. O cinema ─ e o filme de

Vilar-Solha-Carvalho ─ têm sua própria historicidade, de modo que, para compreendê-

lo como representação, temos de desvelar sua a relação, nem sempre direta, com a

forma de apreensão do mundo e do tempo de quem o produziu. Cremos que a análise

que realizamos d’A Canga confirmou satisfatoriamente a hipótese de que essa visão dos

autores se revela claramente através da forma simbólica que reveste a obra cultural, e a

articula com o seu contexto sócio-político-cultural, ao revelar os traços escolhidos e

selecionados pela autoria para a concepção fílmica

Parece-nos que foi possível esclarecer, ainda, através deste caso concreto que, de

fato, ao construir seu produto, que é sem dúvida tributário da já longa história do

cinema brasileiro, os autores não apenas reproduzem, mas interagem no presente com a

realidade social. De seu contexto social recebem constantes influxos que marcam a obra

e, por sua vez, contribuem para a diversidade de leituras, práticas e relações sociais em

jogo. O caso d’A Canga é mais um exemplo de como a autoria artística é uma forma de

intervenção direta no jogo das forças sociais presentes no próprio campo histórico que

os autores intervêm com sua obra.

A luta das forças sociais para configurar e consolidar a cinematografia brasileira

esteve sempre vinculada ao contexto sócio–político do país e, portanto, através do

panorama dessa historiografia delineia-se também o quadro da política cultural das

décadas de 1950/60. Nossa análise do filme A Canga, feito no ano de 2001, confirma-

nos que as marcas da realidade social e as opções temáticas e estéticas permaneceram

sensíveis na retomada do cinema brasileiro pós 1990, compondo um quadro igualmente

importante para a compreensão de como a sociedade brasileira se vê e de como o

Nordeste continua a ser a representação de uma regionalidade que se amplia como

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marco da instituição da nação. O cinema brasileiro e nordestino mais recente, portanto,

continuam a expressar, em longa medida ─ nas escolhas, projeções e classificações que

operam quanto ao lugar Nordeste, quanto aos personagens, as falas, as posturas, as

tradições e aos dramas que narram ─ a luta de identidades presentes nas representações,

refletindo as contradições persistentes no tecido social.

As tradições, às quais o filme A Canga se refere, continuam a deter poder

simbólico, por serem vistas e ditas para determinados grupos sociais como sinais das

origens em que se firmam suas identidades, encontrando, ainda, ressonância no

conjunto da sociedade pela força das imagens que projetam e que as instituem como

“verdade”. As imagens são, então, ao mesmo tempo instituídas (pela tradição e pelas

práticas sociais) e instituintes, através da autoria, porque sobre elas podem produzir-se,

no presente, novas idéias, práticas e relações.

A representação do Nordeste, exibidas no filme que analisamos, a partir das

imagens da seca, ainda reconhecida como marca identitária dos nordestinos, são,

portanto, uma construção sociocultural com ressonâncias míticas e função política

exercida de forma simbólica.

Na perspectiva da história cultural imbricam-se elementos na análise do filme

que a própria complexidade do mundo social aponta, pois as imagens passam a ser

vistas como produto sócio-cultural, por sua associação com a realidade que representam

(FERRO, 1992, p.87). Assim, o filme pode ser lido como testemunho, como pensado

por Burke ao afirmar que: “O testemunho das imagens necessita ser colocado no

contexto, ou melhor, em uma série de contextos no plural (cultural, político, material e

assim por diante) (...)” e pela forma como os contextos interagiram na concepção da

representação (2004, p.237).

O diálogo de A Canga com os outros filmes sobre o Nordeste reforça os

elementos que caracterizam a memória social desse espaço. Na estranha combinação de

saudade e denúncia, Albuquerque Jr. explica a saudade como “um sentimento coletivo,

pode afetar toda uma comunidade que perdeu suas referências espaciais e temporais,

toda uma classe social que perdeu historicamente a sua posição (...)” (2001, p. 65) e a

denúncia por apontar “como território da revolta contra a miséria e as injustiças” (2001,

p. 183) − compõe-se, assim, o referencial que provoca identificação nas classes que

originaram essas imagens e nas classes desfavorecidas, porque vivenciam realidades da

estiagem. A seca serve de alerta e de reivindicação, mas nunca foi capaz de engendrar

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126

soluções que retirassem desse clima e desses solos o seu caráter problemático, sob pena

de verem as elites o esgotamento de um filão de sua acumulação improdutiva: as verbas

públicas destinadas ao problema.

A Canga é um passo a mais na busca do passado incessantemente re-elaborado,

ou inventado, segundo a concepção de Hobsbawn, que possibilita a sua apreensão por

diversos grupos sociais, até mesmo conflitantes. Insere-se claramente na tradição

cinematográfica instaurada por um grupo dos anos 1950/60, em uma busca romântico-

revolucionária do homem brasileiro e suas raízes. Demonstra a capacidade de

permanência dessa tradição, para além de seu ápice, nos anos 1960/70, impregnada nos

diversos setores culturais da sociedade brasileira, como elemento de resistência

democrática e utópica no processo político contra o regime militar e nas lutas atuais pela

conquista da democracia plena, não apenas formal, mas social, econômica e cultural.

Avançamos na compreensão das razões pelas quais a visão que veio do Cinema

Novo, e se manifesta fortemente em A Canga, encontra ainda seu lugar e adquire novas

conotações no contexto atual de mundo fragmentado, do sujeito descentralizado, em que

muitas formas de ação política tornaram-se frustrantes. Segundo a posição de seus

autores, que lemos através da obra fílmica, faz sentido, neste contexto, uma releitura das

obras culturais de resistência, através da apropriação de tradições, reinventadas ou

buscadas nos mais remotos mitos, que comportem uma simbologia na qual os grupos

sociais se reconheçam e se unifiquem como herdeiros de uma mesma ancestralidade e

possíveis criadores de um futuro esperançoso.

A permanência da imagem de um Nordeste seco, arcaico e improdutivo ─ apesar

da diversidade do que realmente vive a sociedade nordestina ─ é uma escolha de forças

sociais que compõe esse universo, entre elas os autores da obra cinematográfica

estudada por nós, também por evocar dialeticamente a imagem complementar da chuva,

do dilúvio redentor, que leva tudo a brotar de novo, da mudança radical da realidade de

opressão e pobreza pela qual ainda se espera.

O que interessa à investigação do historiador é a compreensão dessa

permanência das imagens, mesmo com significados transformados, segundo o tempo e a

composição social em que se configurou o trabalho da autoria. Por isso A Canga é

analisado em diálogo com um ramo da cinematografia brasileira do qual, a nosso ver, é

herdeiro, aquele que elegeu o Nordeste como lugar de origem e o seu povo como o mito

da fortaleza para, fundamentalmente, compreender porque se manteve mesmo depois

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127

das mudanças na configuração sócio–cultural pós 1960, quando surgiu o Cinema Novo.

Perece-nos que a força da representação construída na cinematografia nesse período

encontra eco porque diferentes setores sociais se identificam com esta imagem como

fonte de manutenção de valores universais como: como solidariedade, comunidade,

indispensáveis diante da acelerada fragmentação provocada pela globalização do mundo

contemporâneo.

Ficou claro que relação entre a autoria e o contexto histórico em que ocorre

criação da obra filmica estava impregnada da instituição do Nordeste, ligado ao mito da

origem, como simulacro das vivências das lutas que as forças sociais travaram para a

configuração do mundo em que a obra se insere. A volta reafirmadora do rito dessa

institucionalização, permite trilhar o caminho da sacralização de práticas e relações

arcaicas de longa duração, como emblema de origem de nação que permite o

reconhecimento do grupo, porém com ganhos simbólicos e maior poder de negociação

frente às outras forças sociais no mundo em que atuam.

Assim nos debruçamos, sobre a sua produção e os elementos de seu contexto,

mas também sobre a discursividade herdeira de valores universais e de arquétipos

tradicionais, que lhe imputam a força simbólica, na qual reside o poder das tradições,

sendo lidas como narrativas trágicas, portanto, não perdendo a força do conflito que a

tragédia carrega, movida por embates em busca da mudança ou mesmo da radical

transformação das relações de dominação.

A imagem inaugurada na literatura de Euclides da Cunha, em que o nordestino é

visto como herói diante das condições adversas, é reelaborada pelas luzes do Cinema

Novo e é retomada, quase como uma pintura, com céu de azul intenso e um chão

avermelhado n’ A Canga, para a re-exibição da seca, como força mimética que se

sacralizou nas práticas e nas relações que inspirou.

A autoria, conforme Foucault, comporta vários “eus”, porém, pela incorporação

no universo cultural concreto e presente, a função de autor é nomeada e

institucionalizada ─ explicitamente, listada na página de créditos da obra ─ o que não se

dá pacificamente, mas através de relações conflitivas sempre testemunhando as formas

de luta para organização do mundo social do qual os autores são sujeitos com força

social no campo artístico a que pertencem. Assim sendo, a permanência desta imagem

de Nordeste revela escolhas de sujeitos sociais na constituição do artefato cultural

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128

imagético intitulado A Canga. Nesta representação bem como em sua autoria podem ser

reconhecidas as perspectivas sócio-culturais às quais se filiam.

A identidade construída na luta das forças sociais está subjacente na obra

fílmica e pode ser revelada por uma análise suficientemente aprofundada ─ apesar de

sua ambigüidade e da multiplicidade de elementos em que tradições universais e

tradições inventadas se renovam ─ para constantemente voltarmos a nos perguntar

quem somos, de forma dinâmica, sintonizados com o conhecimento do passado e

vivência do presente.

O jogo de representação e poder é que estabelece as identidades impostas,

porque elas significam a visibilidade do grupo frente a sociedade, inclusive a seus

adversários. O processo de sua construção é tenso, portanto, já que a seleção, a

classificação do que queremos como caracterização é muitas vezes contraditória no

interior do próprio grupo. Assim sendo, é variável, de acordo com a situação sócio-

cultural dos membros do grupo, porque as representações identitárias são produtos

culturais, com significações, ao mesmo tempo, historicamente transmissíveis, mas em

constante reelaboração.

As atitudes que movem o reconhecimento de um grupo como tal estão

relacionadas com o poder, frente à fragmentação e a divisão em que as próprias

identidades se estabelecem, já que cada grupo se reconhece como tal na medida em que

percebe outros que não lhe são semelhantes e, por outro lado, reconhece as semelhanças

entre seus próprios membros como base de identidade e unidade frente a si mesmo e

aos outros. É esse poder da representação do Nordeste que até hoje permanece, porque

o nomeia e o institui, fazendo valer, através do efeito simbólico, os interesses de grupos

reais para mantê-lo com componente ativo do mundo social.

A manipulação das imagens do Nordeste como representação interessada de

determinadas forças sociais nunca é definitiva, pois passa pela constante re-

interpretação do passado, em função das disputas presentes, e termina por impor uma

dinâmica ao universo social, decorrente de circunstâncias políticas, frente às constantes

ameaças sociais que advêm das condições de seca, dos atrasos ou desvios dos recursos

destinados a minorar seus efeitos, e dos choques de interesses que tudo isso produz em

diferentes áreas da realidade nordestina. Portanto, ao estudarmos A Canga ─ como

herdeira da vertente de imagens que denunciam o perigo nessa região ─ através da

busca do processo de naturalização da concepção de região, das tradições que a

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129

cristalizam como arcaica e pelas análises dos arquétipos universais, tentamos

decodificar suas imagens, identificar sua filiação, analisar os diversos aspectos de sua

narrativa, buscando compreendê-la como objeto cultural contemporâneo, vinculado

historicamente a forças sociais e vertentes culturais que produziram um nordeste

cinematográfico.

O filme A Canga possibilita percorrermos um caminho de re-interpretação do

passado que nos sirva de matéria de reflexão sobre a identidade como campo de disputa,

em meio aos diferentes e mesmo contraditórios interesses das forças sociais.

Não pretendemos, porém, neste trabalho, ter esgotado a compreensão da relação

representação–identidade; ao contrário, a questão continua em aberto, mas esperamos

ter contribuído para a percepção de outros caminhos de investigação que podem ser

trilhados, entre os quais destacamos a possibilidade de estabelecer um diálogo ou

confronto com outra ou outras representações do Nordeste, como aquela centrada no

litoral, apresentado como paraíso ou como oásis erotizado, difundido na mídia para

“vender” o Nordeste turístico e, portanto, imagem também simbolizada e

mercantilizada.

Isto nos levaria a outra linha de aprofundamento que fica por ser feito: o da

compreensão das forças sociais que compõe o campo cinematográfico, assim como suas

práticas e relações com o mundo publicitário.

Seria, ainda, muito fecunda uma análise mais detalhada do making off do filme,

outro prisma que não a autoria e sim mais centrada na questão da “ilusão” como

máscara da representação.

Por fim, seria útil pesquisar a recepção da obra em determinados setores da

sociedade, para avançar no conhecimento da questão da identidade relacionada com as

representações, questão a que nos propomos no projeto, mas que não foi possível, por

limitações dos prazos acadêmicos, desenvolver.

Todas as questões acima, entre outras, se examinadas mais a fundo, trariam

maior abrangência para o nosso trabalho, porém pelos limites pessoais e estruturais do

próprio programa de mestrado, ficamos impossibilitados de contemplá-los nesta etapa

de nossas pesquisas.

Entretanto, com o estudo realizado e aqui apresentado, pudemos compreender

melhor como as representações do Nordeste, através da exibição da imagem da seca, no

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filme A Canga, ao retomar uma tradição que ainda marca a mentalidade da região e

sobre ela, não traduzem uma realidade estática, mas sim a luta persistente pela

identificação desse espaço, neste tempo, em que ainda imperam o autoritarismo, a falta

de recursos materiais, a escassez de afetos e de justiça. A Canga deve ser vista,

portanto, não como fruto tardio de um momento já passado do cinema brasileiro, mas

como intervenção cultural e política no presente, que provoca releituras e

posicionamentos, incitando a se pensarem formas mais democráticas e justas de

organização, a repensar a divisão desigual do mundo social, da qual está imbuída a

narrativa. A Canga é, certamente, uma representação imagética que, interpretada e

desconstruída, pode contribuir para identificarem-se forças sociais hoje em tensão no

campo social, inclusive no campo cultural, e para compreendermos as representações

como lugar de disputas ideológicas, de afirmação, confirmação ou negação de visões de

mundo.

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