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1 A OUTRA PERNA DO SACI

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AOUTRAPERNA

DOSACI

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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser re-produzida ou transmitida por quaisquer formas ou meios, eletrônicosou mecânicos, incluindo fotocópias, gravações ou qualquer outro tipode arquivamento de informações,sem autorização por escrito do autor.

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A OUTRA PERNADO SACI

2009

Aparecido Raimundo de Souza

São Paulo - SPEd. Sucesso

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Organização editorialDenise Barros

RevisãoJussára C. Godinho

Projeto gráfico e Diagramação eletrônicaDenise Barros

CapaClaus Ritter

Impressão digital e acabamentoDocuprint

Índice para catálogo sistemático:1. Histórias curtas CDU 82-322. Sexo - Ficção CDU 82-311.2

© 2009 Celeiro de Escritoreswww.celeirodeescritores.org

SOUZA, Aparecido Raimundo deA outra perna do saci / Aparecido Raimundo de Souza -

São Paulo, SP: Ed. Sucesso, 2009.120 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-89091-1

1. Histórias curtas. 2. Sexo-Ficção. I. Souza, AparecidoRaimundo de. II. Título.

CDU 82-32CDU 82-311.2

© 2009 Aparecido Raimundo de SouzaBrasil

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Prefácio............................................................. 009Sinfonia escarlate............................................... 011Celulares........................................................... 021Pentelho............................................................ 027Segundas intenções............................................ 033Olhos sobre tela................................................ 039Missão quase impossível.................................... 043Um intruso no formigueiro.................................. 049Persuasão.......................................................... 055Nó na garganta.................................................. 063Anjo noturno..................................................... 073Demônios eternos.............................................. 077Zona de impacto................................................ 081Foi tudo culpa da pia......................................... 085Gêmeas............................................................. 089Doutor Boris...................................................... 097Radical.............................................................. 103Lâmpada milagrosa............................................ 109Fofoqueiras....................................................... 115Camisa de onze varas........................................ 125Iniciação............................................................ 133Para bom entendedor uma cerveja basta............ 141Xeque-mate....................................................... 147Mico................................................................. 151Código de honra................................................ 155Reação em cadeia.............................................. 161

Sumário

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O escritor Aparecido Raimundo de Souza nos presen-teia, mais uma vez, com uma série de textos inéditos. Ele con-tinua a esmiuçar o dia-a-dia, sem cair no cotidiano. Zombe-teiro, irreverente, sarcástico e gozador, faz questão de trazer àbaila as questiúnculas comuns que nos cercam, como bem sepode ver no texto que encabeça o livro.

O drama da jovem Aruca, como descrito em “Sinfoniaescarlate”, pode estar sendo vivido agora por uma de nossasfilhas, debaixo de nossos olhos e, pior, sem que nada possa-mos fazer a respeito. Não devemos esquecer que, em torno denós, existem milhares de elementos com a personalidade do-entia de Zanzonho, a espera, apenas, de uma brecha, de umaoportunidade para atacar, objetivando, a satisfação pessoal,ainda que às custas das lágrimas de inocentes e incautasdonzelas.

“Sinfonia escarlate” revela, pois, com maestria, numalinguagem simples e sem rebusques, o trágico a que estamosexpostos, seja em famílias pobres ou abastadas. AparecidoRaimundo de Souza, entretanto, não lida somente com asmazelas e as enfermidades que nos afligem. Ele se envereda,igualmente, por caminhos onde discute as questões surgidascom a evolução desenfreada da modernidade dos tempos atu-ais, aí embutidas as intempéries da globalização, que, por suavez, nos transformam em bobos da corte de um consumismoconturbado. O texto “Mico” reflete muito claramente o graude imbecilidade que tomou conta da nossa personalidade efez de nós, seres humanos, meros fantoches movidos por ma-rionetes.

Prefácio

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É o caso, por exemplo, dos “Celulares”, onde as pesso-as perdem a sua identidade e se expõem ao escárnio e ao ridí-culo. Já em “Segundas intenções” prova que somos um ban-do de bufões girando em torno de uma sociedade de hipócri-tas. Estamos perfilados em torno de um enorme picadeiro,gracejando, desordenadamente, para agradar a banda con-taminada dessa burguesia podre que nos pisoteia os sonhos eas esperanças de horizontes mais abastados. Dessa forma, sejaatravés do nom sense, vivido pelo engraçado médico Dr. Boris,formado pela Sorbonne, de Paris, ou na voz de personagenspitorescos, como Pantolfo, em “Nó na garganta”, BilicoTanajura em “Gêmeas”, e Tangerino Chupado em “Lâmpa-da milagrosa”, que, Aparecido Raimundo de Souza,obcecadamente, nos coloca, sem máscaras, diante de um imen-so espelho. Mostra que, o pouco da dignidade que nos resta,fazemos questão de deixar ser levada, arrebatada, lite-ralmente, como água corrente, pelos ralos da imbecilidade quecriaram vida e forma dentro de nossas almas.

“A OUTRA PERNA DO SACI” com os 25 textos que ocompõem, é uma espécie de tapa direto no rosto de cada umde nós. E, como tal, age como se fosse uma bordoada de aler-ta nos nossos brios; uma pancada de sobreaviso na nossa mo-ral; uma cacetada na desatenção que mantemos viva epulsante dentro de nossa vidinha medíocre e sem sentido; umaespécie de direcionamento. Enfim, Aparecido nos convida aparar e a meditar na tênue luz que ainda pode ser vista no fimdo imenso túnel.

(*) Zeca Camargo

*Jornalista

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Sinfonia escarlate

A CAMPAINHA TOCOU. Uma, duas, dez vezes. Zanzonholevantou da privada, deu descarga, se enrolou numa toalha amarelae acorreu abrir a porta. Na sua frente, apareceu Aruca, a vizinhaque morava de parede meia, com os pais e seis irmãos. Tinhadezessete anos a beldade. Era uma loirinha alta e curvilínea, donade um encanto de fazer inveja em qualquer barbado. No belorosto, mesmo ao natural e sem os artifícios da maquiagem, algomisterioso realçava seus dotes de princesa. Antes que o rapazfizesse o convite para que entrasse, ela se adiantou e passoucorrendo por debaixo do braço dele e se empoleirou no sofá.

- O que houve com seu telefone? Desde ontem venhotentando falar com você e nada. Que dificuldade!

  - O aparelho que comprei pegou dengue.

  - O quê?

- Isso que acabou de ouvir. Está com dengue.

- Deixa de papo furado. Ligo aqui no seu fixo e nada. Seucelular, idem, só dá caixa postal. Que droga!

- Sabe o que é? Ele se apaixonou por essa tal de caixapostal. Vão até se casar...

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

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- Engraçadinho. Se não gosta de telefones, por que pediuà companhia telefônica que instalasse um aqui? E por que, quandosai pra rua, leva outro pendurado no pescoço? Precisava falarcom você, urgente. Entendeu? Urgente! Caso de vida ou morte...

- Ainda bem que a pressa acabou. Ia entrar no banhoquando você tocou. Tenho um compromisso inadiável e estouatrasado. Até logo.

- Ei, vem cá. É sério.

- Você disse precisava. No sentido como se expressoume cheira a queria. Portanto...

- Está legal, seu certinho. Necessito.

- Qual é a urgência? Não me diga que está pensando emempenhar a tela plana que ganhou da sua tia, no dia do seuaniversário, e me fazer uma proposta para ficar com a tranqueiraem troca de mais um empréstimo?

- Zanzonho, por favor, não brinque. Todas as vezes quepedi dinheiro a você eu paguei bonitinho. Nada lhe devo. Estamosquites.

- Quanto a isso não tenho o que reclamar. Sei que cumprecom suas obrigações. Diga, pois, em que confusão se meteu destavez?      Aruca, embora aparentasse descomedida inquietação, nãoperdia os traços de feminilidade. Os loiros cabelos longos, bemcuidados, caíam em cascata, cobrindo um par de brinquinhosdiscretos nas orelhas. Da pele macia como o veludo, exalava umtoque sutil de perfume de alfazema. As maçãs do rosto sobressaíam,salientes, com a boca rasgada, deixando à mostra uma arcadadentaria perfeita, com dentes muito brancos. O corte firme doqueixo, os seios fartos e cheios, a cintura fina e sólida, os quadrisgenerosos e redondos, as coxas fortes, um par de pernas longas e

A outra perna do saci

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bem feitas. Sem falar no sorriso, na voz suave, nos gestosdelicados, havia um conjunto de pequenos atrativos que dava aela um sex-appeal, que exalava inocência, contrastando com umoutro, bem mais adulto, mais sofrido e, ao mesmo tempo,ligeiramente maroto. Para Zanzonho, tudo nela lembrava o pecado.Numa das mãos, a graciosa segurava fortemente uma granada debrinquedo. Aquilo deveria representar uma espécie de válvula deescape. Talvez, intimamente, alimentasse a idéia de que bastavaalgo dar errado e o que tinha a fazer era arrancar o pininho paraque o mecanismo explodisse e voasse com tudo pelos ares.De repente, todo seu corpo começou a tremer com tanta violênciaque mal conseguia manter a postura de moça comportada.

- O que está acontecendo? Quer um copo de refrigeranteou uma taça de vinho?

- Nem uma coisa, nem outra. Apenas que me dê atençãoe me leve a sério.

- Prometo que assim farei. Agora me conta o que se passa.Sou todo ouvidos.

     Zanzonho sentou ao lado dela e, ao fazê-lo, capturou, não aqueleolhar infantil, de alguns minutos atrás, mas um olhar perdido, deprofundo medo estampado. Parecia que a sua vizinha abrira umacratera enorme em seu rosto brejeiro.

- Preciso que me empreste um dinheiro.

- Já percebeu que é só para isso que vem atrás de mim?

- Só conto com você.

- E o Barão, seu namorado?

- Sumiu, escafedeu, virou pó.

- Pra que a grana dessa vez?

  

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

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- Psiu! Fale baixo. Estou grávida.

  - Legal. E o que eu tenho a ver com a sua trepada maldada? 

- Você é a única pessoa em quem confio.

- Quem é o pai? O Barão?

- Antes fosse!

- Caraca, se não é o almofadinha, quem conseguiu acertara sua veia?

- Importa?

- Quero saber.

- Vai descolar a mixaria?

- Corrija se eu estiver errado. Pretende fazer aborto?

     Aruca tampou com a mão direita a boca de Zanzonho. O rapaztomou um baita susto com esse gesto inesperado.

- Quer um megafone? Meus pais estão ai ao lado e podemnos ouvir.

- Com seis praguinhas gritando? Ouça os berros. Achopouco provável!

- Meus irmãozinhos não são praguinhas.

- Diabinhos seria uma colocação apropriada.

- E aí? Vai me safar dessa enrascada?

  - Totalmente fora dos meus princípios. Sou contra essetipo de solução. Acho uma desumanidade. Tô fora!

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- Zanzonho - implorou Aruca com uma voz cheia de tensão,o coração batendo violentamente - Pelo amor de Deus. Se vocême deixar na esquina...

- Procure o pai da criança e exponha os fatos. Afinal decontas, quem pariu Mateus que o embale.

     Ela fitou seu vizinho com os olhos gelados.

- O cafajeste rachou no trecho.

- Te deixou na mão, não é?

- Botou no meu cu com força e deu linha.

     Zanzonho aproveitou a deixa e atacou. 

- No cu também?

- Porra, meu amigo. É jeito de falar. Qual é! Nunca deimeu traseiro.

- Quer me convencer de que o Barão não enfiou o parafusona rosquinha aí atrás e mandou você rebolar?

- Não. Agora, quer, por favor, me escutar? Não foi o Barão.Ta legal. Vou abrir pra você. Me envolvi com um sujeito e descobrique ele é casado. Mas isso não tem a menor importância agora.Não desvirtue o assunto. Vamos voltar ao que interessa. Respondacom sinceridade. Acaso me acha com cara de piranha?     Zanzonho esteve a ponto de dizer que sim com todas as letras.A gravidez indesejada era prova mais que suficiente para corro-borar uma verdade que logo viria à tona. Contudo, isso poria suaschances de conseguir alguma coisa rio abaixo.

- Longe de pensar numa barbaridade dessas a seu respeito.

- Então?

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- Então o quê? A propósito, já que estamos aqui, nós dois,sem testemunhas, mata uma curiosidade que me persegue?

- Que curiosidade?

- Que diabo de tatuagem mandou fazer na... Na perereca?

     Aruca emitiu um tipo de som que mais se assemelhava ao deuma gata assustada sendo expulsa, de surpresa, de cima de umamesa cheia de petiscos de ratos. Ficou pasma, paralisada, estática,a impressão de querer sumir debaixo do tapete a seus pés.Zanzonho não ouviu quando ela soltou um “como sabe disso, seufilho da puta?” porque o ventilador de teto que ele se levantoupara ligar passou a ronronar, a toda velocidade, sobre suas cabeças.Ela ficou furiosa. Possessa. Quando ele voltou a se sentar ao seulado, aplicou em seu braço um beliscão violento. Esse gesto, melhorque mil palavras, demonstrou a fúria interior que lhe subiu às ventas.

- Como descobriu? Não falei pra ninguém. Nem a meuspais, ou a melhor amiga eu...

     Zanzonho pegou a garota pelo braço e a conduziu até o banheiro.Introduziu–a num reservado onde deveria existir um boxe decente.Ao invés disso, uma cortina suja e rasgada se esparramava.No lugar do chuveiro, um cano enferrujado escorria água pelaparede. Ao lado da torneira e do suporte para colocar sabonetes,um pequeno orifício aparecia, tímido, como um elefante dentro deum ônibus.

- Espie.

- Credo, Zanzonho. Que mau cheiro! Estava cagando?

- Espie de uma vez.

     Aruca se abaixou e meteu o olho. Por ele viu o vaso sanitárioda sua casa, a banheira, o cesto de roupas sujas, os irmãoscorrendo e tudo mais que lá existia.

A outra perna do saci

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- Tarado. Filho da puta!

- Chiiii! Abaixe a voz. Podem nos ouvir.

- Então, você me espia daqui? Cretino!

- Todo os dias. Desde cedo, quando vem mijar ou fazercocô. Ouço seus peidinhos... Vejo você escovar os dentes, lavaras partes... Foi numa dessas peregrinações que deparei com a taltatuagem.

- Desgraçado, safado, veado.

- Veado, não. Quando te vejo como veio ao mundo, osangue sobe. Perco o controle...

- Vomite de uma vez.

- Deixa baixo. Vamos por etapas. Que tatuagem é aquela?

- É o desenho de um homem pré-histórico fazendo amorcom sua amada.

- Ficou legal. A segunda coisa é o que realmente nosinteressa a ambos. E em cima dela, proponho um trato.

- Um trato? Que trato?

- De quanto você precisa?

- Cinco mil reais.

- Raios me partam. Quantos bebês pretende arrancar destabarriga?

- Faço o que você quiser. E só pedir.

- Está melhorando. Sendo assim, as conversas podemtomar outro rumo. Esqueça a tela plana. Como deve ter notado,

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tenho uma na sala. Vou ser direto e reto. Bom pra nós dois. Comovocê acabou de falar que faz o que eu quiser, aí vai...

- Você quer o meu computador? Fechado!

- Tenha calma. Não quero seu computador.

- Então, o quê?

- Faz realmente o que eu quiser pela grana?

- Faço.

- Pois, então, transe comigo, aqui, agora, e eu libero odinheiro.

     Aruca  começou  a  sentir  nojo  pelo  seu  vizinho,  um ascointolerante que, aos poucos, se transformou em ódio e desprezo.Não esperava aquilo de Zanzonho. Não numa hora amarga comoaquela. Num momento tão íntimo, quando lhe abria a alma inteirae pedia ajuda.

- Jamais. Não sou prostituta, não vendo meu corpo.Vá procurar uma dessas vadias de...

- É pegar ou largar. Quem precisa da bufunfa não sou eu.

  - Você é desprezível.

- Não, não sou, mas confesso que quando estou com meussentidos grudados em você, no seu corpo, principalmente, na suabundinha maravilhosa, a minha emoção aqui no meio das pernasnão consegue ficar em estado letárgico. Isto é ser desprezível?

     Tudo começou a rodopiar em volta de Aruca, como se alguémtivesse tirado a tampa daquele ralo imundo e um redemoinhogigantesco puxasse seu corpo para dentro.

A outra perna do saci

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- Por favor, Zanzonho... Não faça isso...

- Me dá o que eu quero e o cascalho vai pra sua mão.

     O rosto do rapaz perdeu completamente a cor como se umaartéria importante houvesse se arrebentado e ele começasse aperder sangue rapidamente.

- Não, Zanzonho, não... Não... Não...

     Por um momento, o ar ficou tão parado e pesado que Arucaparecia andar embaixo d’água.

- Solta o fiofozinho. Só quero entrar no seu rabicó.A parada fica aqui, entre nós. Prometo ser discreto e carinhoso.Vamos, Aruca, me faça presente de seu cuzinho. Eu não mereço?Pense, cinco mil reais, cinco mil, por um buraco fedido...

     No que falava, Zanzonho deixou cair, propositalmente, a toalha.Apareceu diante dela uma avantajada arma de artilharia, prontapara entrar em ação. Aruca levou a mão à boca, horrorizada.Embora não fosse virgem, e tivesse tido experiências sexuais comvários namoradinhos, nunca vira um pau tão grosso e compridocomo aquele. Zanzonho captou essa fraqueza no ar e não esperoupor uma decisão definitiva. Sem dar tempo à jovem de se refazerdo susto, enlaçou-a pela cintura, ajeitou-a como pode, de quatro,as mãos agarradas na bacia da privada.

- Sugiro que seja boazinha e aceite como uma coisa natural. Acho que será pior pra você, lutar contra. Não vai doer. Sereigeneroso. Penetrarei sua cauda bem devagar, com todo cuidado. Enquanto eu desfruto do seu figo, pense na grana, na grana. Aproveite, minha linda, aproveite para relaxar... E... Claro, gozar...

- Pelo amor de Deus, Zanzonho, não pode fazer isso... É estu...

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     Enlouquecido pelo desejo, Zanzonho pouco se lixava para oque a garota balbuciava em meio a uma crise convulsiva de choroe soluço que lhe acometeu. Naquele momento, o desnaturado sóqueria saber de dar cabo da sua pretensão. Suspendeu a saia atéa altura das costas e, pausadamente, arriou a calcinha.O excitamento sexual levou sua afoiteza a rápidas reaçõesmultiorgásticas. Então, mandou brasa. Gritos abafados de dor semisturaram a urros e deleites, como o de um animal em fúria. Dessaforma humilhante e, pior que isso, se prevalecendo da necessidadeda pobre garota, Zanzonho entrou nela, penetrou-a violentamentecom tudo o que achava ter direito. Um filete de sangue verteusilencioso de Aruca, como lava escorrendo ligeira dos lábios deum vulcão. Foi nessa hora que ela puxou o pininho da granada debrinquedo e ...

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NO ÔNIBUS LOTADO, O CELULAR do passageiro, sentadoao lado da porta da saída, entoa a 9ª Sinfonia de Beethoven.No terceiro toque o sujeito decide.

- Alô? Alô? Alô?...

     Diante  da  mudez  do  aparelho,  o  cidadão  espia,  meiodesconcertado, para um lado e outro, a fim de averiguar se alguémolha para ele. Ninguém parece preocupado, embora todas asatenções estejam discretamente voltadas para sua pessoa. Novachamada. Dessa vez, espera uns segundos. Atende, ansioso.

- Alô? Alô? Merda! Alôooa?...

     Nada.

     Uma moça  trajando conjunto verde  - parece um abacateamarrado pelo meio - viaja logo atrás. O telefone dela, com o“Vamos fugir” também resolve se fazer presente. Ao atender, seurosto se ilumina num sorriso mágico.

- Tô chegando, amor...

Celulares

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     Há uma pequena pausa.

- Você já está no ponto? Devo pintar aí dentro de unscinco ou seis minutos...

     Novo intervalo. 

- Te amo. Beijos.

     Um terceiro celular começa a encher o saco com a PanteraCor de Rosa. A colegial com o rosto abarrotado de espinhas emiteuns gritinhos estridentes antes de iniciar a conversação.

- Rodriguinho, seu veado. Isso lá é hora de ligar?

     A 9ª Sinfonia de Beethoven volta à baila e se mistura com avoz da adolescente.

- Alô? Alô? Alô?

     Desta vez a ligação se completa. O passageiro ao lado da portada saída consegue, finalmente, manter o diálogo com seuinterlocutor.

- Legal, cara. Parabéns!

     Gesticula e fala alto o suficiente para irritar um defunto. Semum pingo de decência, age como se perto dele não houvesse umaleva de pessoas que merecesse, ao menos, respeito e educação.

- Até que enfim. Então você está indo pra Portugal? Façauma boa viagem, meu amigo. O Pedro te manda um abraço.A Luíza um beijo, o Carlos um puxão de orelhas...

     “Vamos fugir” volta a disparar no telefone da moça de verde.Ela prontamente atende:

- Amor, tenha um pouco de paciência. Que loucura!O quê? Fala mais alto...

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     De repente, a coisa toma proporções descomunais. A colegialpisa em ovos de tão indignada e irritada.

- Vá pra merda, Rodriguinho. Não me racha a cara!

     O sujeito no banco ao lado da porta parece um lunático.

- Seu avião sai a que horas? As 19? De onde? Eu...O quê?

     Lado esquerdo do coletivo, um casal assiste a tudo com osolhos arregalados. A certa altura, o rapaz comenta, num cochicho:

- É mole ou quer mais?

- As pessoas – observa a moça igualmente aos murmúrios- perderam o senso do ridículo. A sensatez foi pro brejo. Ninguémrespeita mais a individualidade.

- Virou febre esse negócio. Todo mundo agora tem celular.Li, ontem, no jornal, que estão à venda, no mercado, aparelhoscelulares de última geração para cachorros.

     Risos.

- Fala sério? Qual o quê! Isso é piada!

- Não é não. Agora, além de hospitais, hotéis erestaurantes, os cachorros poderão contar com mais essa vantagem.Celular para cães e gatos.

- Se for verdade o que está me dizendo, minha nossa.Será o cúmulo do absurdo. A que ponto chegamos. Olhe só paraessa gente. Parece um bando de alucinados. Ninguém se entende.

     Um homenzarrão puxa a campainha. Pessoas se levantam.Outras tantas tomam posição para apear.

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

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- Vá se lixar, Ro...

- Olhe, se lá em Portugal não tiver mulher que sirva, voltae leva uma brasileira. As mais bonitas do mundo estão aqui, meuchapa...

- Rodriguinho, eu pensava, até agora, que você fosse doconceito. Me enganei redondamente. Vá pro inferno, ta ligado?

     A moça de verde pula do banco ao ver o rapaz que a espera,na calçada defronte à porta de acesso de uma loja dedepartamentos. Passa a mão no telefone e disca um número damemória.

- Ei, amor, olha euzinha aqui. Cheguei. Já me enxergou?Estou te vendo. Me dê adeusinho!

     Nessa hora, então...

- A mãe te manda um abraço. Vá com Deus. Chegandoem Lisboa, ligue... Entendeu? Ligue, ligue, ligue, cacete!...

     No mesmo clima.

- Rodriguinho, ô, sem noção, o bagulho por aqui tá tenso.Meu namorado não vai gostar. Com certeza levará um “lero”contigo, e, depois, com certeza, te comerá na porrada, meu...

     A moça de verde, afoita:

- Com licença, meu senhor... Com licença...

- Calma, senhorita. Vou ficar aqui também. Deixe ao menoso motorista parar e liberar a traseira.

-... De Lisboa? Puta que pariu!

-... Ro, Ro, cuidado com a tribo, malandro. Quer saber?Estou injuriada. Vá se foder de verde e amarelo...

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-... Amor, amor, estou descendo...

     Sobra o casal acomodado no lado esquerdo, rindo da galera amais não poder.

- Odeio celular – pondera a jovem, depois que todos saem- parece que esses trocinhos controlam nossa vida. Aliás, dominam,vivem no nosso pé. Jogaram, definitivamente, para o ralo a nossaintimidade. 

- Estou com você – completa o rapaz – O negocio é bom,mas, em certas horas, se torna deselegante, cai no vulgar. Tira aprivacidade. Imagine, daqui a algum tempo, como lhe falei, aindaa pouco, a gente cruzando na rua, com essas madames, metidas àbesta, atendendo ao telefone. “É pra você, Fifizinha!”. E o animal,posudo: “- Agora não posso, estou ocupada, lendo Os MelhoresContos de Cães e Gatos do meu amigo Flavio Moreira da Costa.Peça para me ligar mais tarde”.

     A jovem se abre num sorriso contagiante. Pensa em responderalguma coisa. Entretanto, seu celular estronda Tchaikovsky.

- Desculpe. Meu marido...

     Pede licença, baixa a cabeça. Sem tirar o aparelho do ouvidose acomoda num banco lá na frente, ao lado do cobrador.

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Pentelho

O SUJEITO PEGA O TELEFONE E ENQUANTO LIGAPARA O AMIGO vai se desfazendo dos sapatos e das meiaspelo meio do corredor a caminho da cozinha. Fala:

     “Alô? Luiz, seu bobalhão, sou eu, o Carlos. Acabei de chegarem casa, vindo do prédio onde funciona seu escritório. Toquei acampainha uma porrada de vezes e ninguém atendeu. Sua secretárianão veio trabalhar, ou não quis abrir, sei lá. A garota da sala aolado, de nome Bethânia, chegou às oito horas e dez minutos e, mevendo impaciente, andando para lá e para cá, feito coro de pica, eàquela hora da manhã, ofereceu água gelada e um cafezinho quefez na hora e, depois, caneta e papel para que eu pudesse, antesde virar as costas, lhe escrever um bilhete e enfiar por baixo daporta. O negócio é o seguinte: procurei feito um imbecil o nomeque você me passou, ontem, por telefone. Fui em todas as livrariasda cidade (são quase vinte) e não encontrei nenhum livro de JuliaPetit”.

     “Aliás, Luiz, ninguém conhece Julia Petit por aqui. E ela nuncaesteve na lista dos mais vendidos. Liguei para sua casa e conseguifalar com a sua filha. Ela confirmou o nome da criatura: realmenteJulia Petit, com o t mudo no final. Argumentei que na pressa, talvezvocê tivesse me passado o nome errado. Quem sabe, não fosse

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Julia, mas Rulia, Nulia, Sulia, Vulia, ou qualquer coisa parecida.Sua filha garantiu que era Julia, até soletrou, jota de jaca, u, deuva, ele, de laranja, i de indelicadeza e a de amendoim. Parti, então,para o Petit. Não seria, Petite, com e, ou Petitte, com dois tes?Consegui tirar a sua simpática mocinha do sério. Nas ligaçõesseguintes, a jovem só não me chamou de santo, mas percebi, pelaalteração da voz, que meu papo se tornara chato e incômodo.Insisti em continuar a conversa, mas ela, com a grosseria e oatropelo que rondam a cabeça da juventude, acabou me mandandotomar naquele lugar por onde expelimos nossas fezes, ou seja, ocu. Não contente, meu amigo, pá, desligou na minha cara. Fiqueicomo um abestalhado, a boca aberta, as palavras entrecortadasna garganta, o telefone no ouvido e o troço: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

     “Você sabe muito bem, amigo Luiz, que odeio quando alguéminterrompe a ligação, sem mais nem menos, e eu fico boquiaberto,feito um panaca, sem saber o que fazer com o auscultador namão. Pior é o tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

     “Só por vingança disquei de novo. Decidi soltar meia dúzia decobras e lagartos no escutador de novelas daquela patricinha deBeverly Hills. Perdão, meu amigo, não por raiva, só para que elaaprendesse a respeitar os mais velhos. Contudo, na primeiratentativa, a porcaria deu ocupado e o “tu, tu, tu, tu, tu, tu” se fezouvir, logo que terminei de riscar o quarto número. Insisti por maisumas quinze vezes. Todas infrutíferas. Resolvi dar um espaço. Cincominutos. Findo esse tempo, voltei à carga. Nada! De novo, uma,duas, dez, vinte vezes, Luiz, acredite, vinte vezes e a mer... Digo, aporcaria, insistente: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.

  “Com certeza, sua filha está de marcação serrada. Não é possívelficasse pendurada por tanto tempo, sem dar folga. Bem, pode ser,também, que tenha deixado o fone fora do gancho, por descuido.Para matar as horas, Luiz, optei por um novo rolé. Tomei umcafé,comi um pão com manteiga e, após isso, voltei à peleja. Gastei,meu amigo, duas horas e meia refazendo as livrarias. Uma por

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uma. As respostas das atendentes eram sempre as mesmas. Teveuma que resolveu me alugar pra valer. Chato quando alguém lhetorra as medidas, não é verdade? Tentarei reproduzir o diálogoque tivemos”:

- Senhor, não temos nenhum livro de Julia Petit, nem deJulia Petite ou similar. Por acaso o senhor saberia dizer qual onome da obra que ela escreveu? É romance? Livro de autoajuda?Esotérico? Já procurou em casas que vendem produtos espíritas?O senhor não levaria, em substituição, o último de Paulo Coelho,ou o mais recente de Lya Luft?

- Obrigado.

- Não gosta de Zíbia Gasparetto? Ah! Temos também “PorQue os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor”.

- E por quê?

- Desculpe, ainda não li o livro, mas dizem que é bom.Minha supervisora devorou de cabo a rabo e achou massa.

- Massa?

- É. Legal!...

- Minha filha, você já leu Kafka?

- Não, senhor.

- E Roberto Shinyashiki?

- Nunca ouvi falar.

- Nem eu. Prefiro Fernando Sabino.

  “Esse foi, Luiz, na íntegra, o bate-papo que trocamos, eu e avendedora, em uma das livrarias. Para você ver que não estou

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mentindo, trouxe o nome dela, o número do CPF, identidade,carteira de trabalho e o telefone, caso o amigo queira ligar econfirmar realmente minha presença lá. Mudando de pau paracavaco, uma gracinha, a guria. Roldana, o nome da tetéia. Lembraa Margarete. Já sei, você vai me questionar: quem é Margarete?Deixa refrescar sua memória. Margarete, aquela do cabelovermelho, bem curtinho, que você se engraçou, na lanchonete e,depois – me escangalho de rir quando penso nisso – eu flagreivocês dois, mais tarde, lá na quitinete, na hora exata em que agulosa lhe “pagava um boquete”.

“Para terminar, deixei um lembrete debaixo da porta do seuescritório com os dizeres: “Ligue-me, ligue-me, ligue-me, peloamor de Deus, ou vou acabar louco. Assinado, seu amigo Carlos”.Em tempo: peça desculpas a Senhorita Bethânia. Na pressa, nacorreria, acabei trazendo a caneta dela.”

                                       ***

     Quando Luiz chega em casa, a secretária eletrônica sinalizaque há ligações não atendidas. Aperta o play. Quarenta. Todas,sem exceção, do Carlos. Retorna:“Carlos, sou eu, Luiz, atenda essa merda de telefone. Caralho!Eu sei que está aí. Recebi seus recados. “Trocentos”, ao todo.Não precisava ligar tantas vezes, mané. Achei seu bilhete, pi, pi,pi, pi, pi, pi (Nessa hora, a secretária eletrônica de Carlos começaa apresentar problemas. Luiz encontra dificuldade para gravar aresposta aos insistentes apelos do amigo)... Julia Petit, pi, pi, pi,pi, pi, pi é Ju... Pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia. Escreve-se, J, u, l, i, a ,

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pi, pi, pi, pi, pi, pi, - e Petit se soletra pi, pi, pi, pi, pi, pi... P, E, T,I, T. O t é mudo, o t é mudo, no final, pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia, pi,pi, pi, pi, pi, pi, Petit... Seu Zé babaca, pi, pi, pi, pi, pi, pi, é pro...Pi, du, pi, pi, to, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi... Mu, pi, pi, pi, pi, pi,si,cal, pi, pi, pi, pi, pi, pi ... Não,pi, pi, pi, pi, pi, pi, é, pi, pi, pi, pi,pi, pi, es, pi, pi, pi, pi, pi, pi, cri, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi,pi, pi, ra. Ela... Pi, pi, pi, pi, pi, pi, está, pi, pi, pi, pi, pi, pi, na lis, pi,pi, pi, pi, pi, pi, ta, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, pi, pi, pi, mais,pi, pi, pi, pi, pi, pi, bem pi, pi, pi, pi, pi, pi, vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi,dos, pi, pi, pi... Não, pi, dos pi, mais, pi, bem, pi, vendi, pi, pi, pi,pi, pi, pi, dos... Pi, pi, pi, pi, pi. Eu disse... Pi, pi, pi, pi, pi, pi...Vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos pi, pi, pi, pi, pi, pi, Não, pi, pi, pi, pi,pi, pi, vendidos. E, por fa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vor, pi, pi, pi, pi, pi,pi, não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, me, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tor, pi, pi, pi, pi,pi, pi, re, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tan, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi,pi, pi, a por pi, pi, pi, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi, pi, pi, do pi, pi, pi,pi, pi, pi, sa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, co. Pi, pi, pi, pi, pi, pi. Vá, pi, pi,pi, pi, pi, pi, para, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, puta,pi, pi, pi, pi, pi, pi, que... Pa... Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...”.

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Segundas intenções

BASTOU ENTRAR NA LOJA DE CALÇADOS A MOÇAPROVOCOU um suave burburinho nos quatro atendentes queestavam próximos da porta. Impensadamente, todos de uma sóvez se precipitaram em direção a ela.

- Bom-dia! – disse um.

- Pois não? – gritou outro.

- Em que posso ajudá-la? – acorreu o terceiro.

- Preferência por alguma marca em particular?

     Diante de tantos rapazes bonitos, charmosos e elegantementevestidos, a jovem composta por uma simetria corporal perfeita euma luminosidade vital, que transbordava alegria e sensualidade aum só tempo, optou pelo mais tímido que se limitou a um “Bom-dia”.

- Gostaria que me mostrasse alguma coisa diferente doque venho usando.

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     O atendente esticou o braço direito, indicando um dos muitosbancos existentes.

- Por favor, me acompanhe.

     Antes de se acomodar, a jovem deu uma caminhada básicapelo salão, como se procurasse nos milhares de produtos expostos,alguma coisa que lhe chamasse a atenção. Na verdade, ela sóqueria mostrar seus dotes de princesa, envoltos por debaixodaquele vestido azul- marinho, bem curto e esvoaçante, sabendo,de antemão, que deixava todos os marmanjos ali presentes(inclusive o que a seguia de perto), dissimuladamente estupefatos.Para os que sobraram garimpassem mais acentuadamente seuvisual impecável, levantou um pouco o tecido que cobria os joelhosde maneira insinuante. Finalmente, sentou no local indicado,cruzando as pernas devagar.

- Qual seu número?

- 34.

- Aguarde só um minutinho. Trarei as últimas novidadesque acabamos de receber.

     Sumiu, atrás de uma porta vai-vém, que ficava perto da seçãode abertura de créditos. Ao lado, uma fila aguardava vez parapagamentos de carnês.     Os vendedores, que ficaram a ver navios, começaram a trançarde um lado para outro. Passavam na frente da jovem, balançavama cabeça em sinal de cumprimento ou simplesmente sorriam edesviavam os olhos para suas lindas pernas. E que pernas! Elapercebeu que deixara a todos extasiados, naturalmente, emdecorrência do panorama que exibia. Apimentou um pouco a visãoda galera, tornando a coisa bem mais quente e lúbrica. Propositalmente derrubou o celular. No que se abaixou entre aspoltronas, para reaver o aparelho, permitiu, ao se curvar, pudessemos engraçadinhos bisbilhotar um pouquinho além do que deviam.

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Nessas alturas, literalmente, todos os vendedores ficaram semação, boquiabertos, como se estivessem embasbacados. Houveum silêncio solene, colossal e abrupto. Também, diante de umacoisa maravilhosa como aquela, e levando-se em conta o queestava à mostra, faria qualquer homem normal arregalar os olhos ebabar. Foi o que aconteceu. Devido à movimentação exageradados vendedores, o gerente caiu em si e pescou no ar o lance.Arranjou um jeito discreto de sair de trás do balcão, estendendo aconversa com uma cliente. A intenção dele era levar a senhora quefora pagar uma prestação até a porta. Na verdade, tencionavapassar perto daquela deusa e desfrutar, como os demaisfuncionários, do que ela oferecia, de graça, para o deleite dosolhos esbugalhados de todos.

     Com uma dezena de caixas coloridas em cada uma das mãos,eis que surge, de volta, o vendedor escolhido. Caminhava devagar,para não deixar que nada fosse ao chão. Nesse instante, semexceção, a loja inteira parou, inclusive alguns clientes quevasculhavam as vitrines. Todas as cabeças se voltaram para aquelepobre que se aproximava, cambaleante, pé ante pé, solícito, omesmo sorriso de sempre nos lábios. A linda, ao vê-lo, levantou-se, e o ajudou a se livrar daquela carga, colocando um pouco dascaixas sobre uma das poltronas.

- Nossa, você caprichou.

- Trouxe tudo que encontrei em nosso estoque e esperoque alguma coisa venha a lhe agradar.

- Com certeza.

- Posso dar uma sugestão?

- Claro.

 Tirou de dentro de uma das caixas um belo par de sapatos e oexibiu a jovem.

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- Experimente. É a sua cara.

     Ela voltou a se sentar e ele se pôs de cócoras, para calçar opezinho que ela lhe indicava. Foi aí que aconteceu. No instanteem que abotoava o fecho da sandália. A graciosa fez de propósito.Premeditou tudo. Abriu as pernas. Era como um auto de fé.Uma obsessão, um vício. Não conseguia domar a criatura selvagemque morava dentro de seu ego medieval. Queria ver a reação,sentir de perto e na pele, como cada um se comportava diante deuma provocação inesperada como aquela.

     Num primeiro momento, o atendente, entretido em cuidar dosdetalhes, não só para agradar, como para não perder a venda, seesqueceu de espiar para um pormenor maior do que o seu limitede contenção permitia. Ela estava sem calcinha. Contudo, ao dar-se conta do que desfilava diante de si, o coração disparou.O sangue ferveu. Seu rosto perdeu a cor natural. Por segundos,pisou em brasa viva, se viu no meio de uma fogueira sem ter comoescapar. Nessa quase loucura, abriu trilhas numa selva que atéentão vivia adormecida dentro de seu corpo. Teve a impressão demorder cabeças de cobras venenosas e arrancar o couro de tatuse porcos-espinhos. As batidas de seu coração se espalharam portodos os cantos como tambores. Chegaram a provocar um ecoretumbante naquele outro coração que dormia, quieto, logo abaixo,dentro da cueca de algodão. Olhou ao seu redor, assustado, semsaber o que fazer, ou que atitude tomar. Uma sensação gostosa eatemporal se alastrou por sua mente.     Continuava atarantado, fora de si, sem ação e perdido. Percebeuque um entusiasmo erótico instantâneo mexeu com seus nervos.Enquanto isso, a estonteante cliente, mordiscava os lábios e sorriamaliciosamente. Sabia que alcançara seus objetivos. Podia se verem seu rosto maquiavélico, que aquela cena mexia com seu interior.Havia uma estranha combinação de magia e poder feminino sobrea presa, a essa altura, transformado num duende completamenteestabanado, segurando, fortemente, um de seus pés.

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Resolveu levar adiante a estripulia. Descerrou, por completo, seutriângulo do prazer, seu esconderijo secreto, e o fez sem meios-termos, sem pudor, sem nenhum sentimento de vergonha. O pobrerapaz tremeu na base. Diante dele, a doce cavidade do deleite emcompleto repouso e a espera de ser atingida.

     Nessa visão  colossal,  ele viu  um  jasmineiro  florido, compassarinhos cantando uma melodia suave. Sentiu como se ummilhão de luzes houvessem se acendido e, no minuto seguinte, tevea impressão de mergulhar, de cabeça, do alto de uma cachoeira.O cheiro da maçã entrou em suas narinas. Pressentiu o pecado seagigantando, tomando conta da sua vontade. Seus olhos nãomentiam. Não via coisas, nem sonhava acordado. A jovem erareal, tudo ali tinha forma física e podia ser tocado. Com as mãos,a linda moveu um pouco o vestido, permitindo que o desvairadoficasse mais perto do calor e da tentação e, nesse clima, o infelizse fascinasse com todas as transgressões que pudessem ser criadaspor sua imaginação.

     Para os intrusos, a facécia cobria o essencial. Especialmentepara o vendedor sortudo, a safadinha mostrava a cobiça, o apetite,a vontade exacerbada se agigantando, no meio de suas coxas.Um ponto, dentro dela, de repente, explodiu em líquido puro.A poção do universo veio abaixo, a ponto de molhar o assento dacadeira. Diante da incredulidade do vendedor, ela começou aesfregar a bunda, cadenciadamente, no assento até que alcançouo epítome do que buscava. Gozou.

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Olhos sobre tela

UM GRUPO DE AMIGOS resolveu parar no centro da cidadee almoçar num ambiente diferente daquele a que estavamacostumados. Depois de algum tempo de procura, optaram porum self-service, que oferecia preços módicos no quilo, comchurrasco, além de um copo com suco de laranja grátis,acompanhado de uma sobremesa a escolher. O restaurante nãotinha nenhuma sofisticação chamativa. Bastante simples, asseadoe acolhedor, mantinha as mesas no espaçoso salão a uma distânciaregular, de maneira que a clientela, por mais que se acotovelasse,na hora de movimento intenso, não se sentisse espremida,esbarrando uma sobre as outras. De moderno, uma porta de vidrofumê, aparelho de ar condicionado central e música ambiente degosto apurado.      A turma elegeu, por unanimidade, uma espécie de reservado,onde juntaram mesas e cadeiras, formando um círculo sobre oqual todos se veriam de frente sem correrem o risco de ficaremfora do bate papo durante a refeição. Numa das paredes quefundeava a peça, sobressaía uma enorme tela que ocupava toda a

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parede, consumindo-a de um extremo a outro, onde se via, pintadoem alto relevo, o Jardim do Éden, bem como o primeiro homem ea primeira mulher; os animais em derredor, vivendo em disposiçãobem ordenada e, em sintonia com a natureza; além de árvoresfrondosas e copadas. Destacava, ao alto, um céu límpido e muitoazul, com ralas nuvens brancas e, ao longe, um riacho de águascristalinas descendo por entre um emaranhado de árvores e pedras.

     O painel de cores fortes conciliava a perfeição e a destreza doautor, realçando seu espírito criativo em grau máximo, ao mesmotempo em que sobrelevava sua simplicidade a patamares profundos,tornando a obra praticamente uma coisa quase irreal dentro doreal. Dava a impressão de que a pintura se solidificava com oresto do refeitório, tamanha a beleza, a calma e a tranquilidadeque emanavam de todo o conjunto, declarando a suaengenhosidade ausente de qualquer defeito de criação.

     Ambrósio, o mais velho do grupo, de descendência alemã, malcomeçou a comer, estancou o garfo no ar. Olhando fixamentepara o quadro comentou:

- Parem um pouco e observem aquela gravura. Olhembem para o Adão. O corpo atlético, físico ricamente trabalhadorecorda - ainda que ligeiramente – um deus grego, as facesvermelhas, ruborizadas, talvez, pelo sangue que lhe corre nas veias.E a Eva? Que doçura, que candura! Contemplem as pernas, osseios, os olhos. Divinamente angelicais. Lembra-me Afrodite adeusa da beleza e do amor. Adão e Eva, com certeza, eram alemães.

- Discordo plenamente – interrompeu Narciso com arengraçado – Se vocês atentarem mais apuradamente para o Adãoe fixarem a ferramenta de trabalho (olhem o tamanho) e,consequentemente, perderem uns bons segundos no vasto ecabeludo triângulo de amor da Eva, no meio das pernas, verãoque, de ambos, desprende uma espécie de erotismo nato, quasetribal, com pinceladas, eu acrescentaria, animalescas. Adão devetirar umas ótimas bombadas e deixar a Eva em frangalhos.

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Quando falo em frangalhos, me refiro às partes pudentes que, nes-sa hora, costumam ficar em brasa viva. Sem medo de errar digo avocês, aqui, agora: estamos diante de um belo casal de franceses.Não asseguro isso só porque morei na França, quatro anos.Nada a ver.

     Baldaraque, um loiro vesgo que nunca tirava os óculos escurosda testa, contestou os amigos acrescentando:

- Pelo amor de Deus, não falem besteiras! Ambrósio eNarciso, vocês estão complemente equivocados. Prestem atençãonas mãos de Adão. Vejam, que mãos. São de homem macho.Fixem o semblante da Eva. Reparem os cabelos de princesa, afronte de rainha, o nariz de gente fina, a pele tratada a rigores deervas, os seios delicados. Devo lembrar, ainda, que Adão e Eva,segundo estudos de pesquisadores recentes, têm, nas veias, sanguenobre, sangue inglês. Você não está de pleno acordo comigo, amigoTomaz?

     Tomaz comia quieto, em profundo silêncio. Ouvia o papofurado, mandando para dentro um suculento filé ao molho pardocom batatinhas fritas. Não se ligava na conversa e, para ele, aqueleassunto não importava:

- Tomaz, está dormindo, cara?

- Desculpem, andava longe! O que foi que disse

- Estou afirmando para nossos caríssimos que Adão e Eva,como estão postos naquela pintura, eram ingleses. Queria fecharminha tese com suas considerações. Pode ser?

     Tomaz levantou os olhos por breves segundos, capturando overde que escorria deles na pintura gigantesca. Depois deprolongada contemplação, muito sério e senhor absoluto do quediria para os companheiros, expôs:

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- Os prezados não perceberam alguns detalhezinhos, ameu ver, importantíssimos. O Adão está nu. A Eva, pelada. Ambosdescalços, os pés feridos. Não há casa ou barraco por perto.Parecem viver sem teto, ao relento, à mercê de chuvas e ventos.Não vislumbro sinais de abrigo, sequer uma barraca dessasvagabundas, para passarem a noite. Vejo mais: apenas uma maçã,uma única maçã, na mão da Eva. Já nem quero falar da cobra aolado. Estão vendo a cobra? Magra, raquítica, como se esperasseo momento certo para dar o bote e roubar a fruta. Pois bem, numaescala ascendente, tentando ser um pouquinho melífluo, Adãotransmite um ar de babaca, de bobo. Pois então, a Eva com aquelepar de peitos prontos para serem sugados, mamados, um traseirodescomunal e uma boce... Desculpem, uma periquita maior ainda,livre e desimpedida para entrar no ferro e, levando-se em conta osorriso sacana e ligeiramente enrubescido, recorda, vagamente, aMadame Josefina, dançando numa boate vagabunda e soltando afranga sem medo de ser feliz. O Adão não tem bunda, só pau.A Eva parece doida de pedra para liberar o traseiro e esconder atrosoba de seu homem. Esses dois, meus prezados, finalizandominha humilde observação, largados às agressividades dasobrevivência, fodidos e mal-pagos e, ainda, sonhando com oparaíso, só podiam ser brasileiros.

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Missão quase impossível

A EMÍLIA TINHA NA CABEÇA, além dos cabelos literalmenteloiros e compridos, uma fantasia excêntrica: fazer amor ao vivo eem cores com o namorado, em seu local de trabalho. Fábio erachaveiro e passava os dias numa espécie de mini trailer 24 horasinstalado numa avenida movimentadíssima do centro. Para piorar,funcionava, contíguo, um shopping centter recém inaugurado.O troço fervia como feira livre, de segunda a domingo. Mal davaoito horas, começava a chegar gente vinda de todos os lados.Nessa correria desenfreada, o rapaz sequer respirava.

     Na sua peregrinação, vezes sem conta, Emília  rondava opedaço, na expectativa de tornar seu sonho realidade. Todavia,sempre na horinha agá, pintava um serviço urgente e a vontadedela acabava ficando presa, engasgada como um nó incomodandona garganta. Nervosa, ou melhor, furiosa, a coisa mexia com seuspensamentos, remoía de tal forma que, em pouco tempo, se nãoconseguisse praticar, viraria uma tremenda paranoia. Não colocasseem prática as loucuras que se formavam em sua mente, certamenteacabaria lelé da cuca.     À noite, não dormia direito. Mal se recolhia, estranhos pesadelosse formavam e invadiam seu pequeno mundo, que não ia além deum quarto muito amplo e ricamente mobiliado com pôsteres gigantes

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de artistas famosos, espalhados pelas paredes. Seus pais lhedavam de tudo e, nesse tudo, incluía o que havia de melhor: umespaço só seu, cheio de bonecas, um guarda-roupa abarrotadode saias de grife, jeans, blusas, meias, e sapatos de marcas famosas.Na garagem, ao lado da Mercedes do pai e do Jaguar da mãe, umPeugeot zero bala para ir e voltar da faculdade de comunicaçãosem precisar enfrentar ônibus lotados. Não contando que moravanuma suntuosa mansão incrustada num bairro nobre, onde circulavaa mais alta nata da sociedade.

     Em paralelo, seus genitores viviam ligados à moda fashion -quase sempre a mídia especializada nessa área marcava presença- jantares e reuniões de negócios em busca de novidades e fofocas.     Embora tivesse tudo a tempo e hora, Emília não estava satisfeitacom sua vidinha pacata. Recém hospedada na esteira dos vinte,fazia dois meses que conhecera o Fábio e começara a namorarsério, escondida dos pais, mas sério. Foi amor à primeira aberturade um cadeado que ele nem se lembrou de cobrar. Logo que viu o“pedaço de mau caminho”, seu coração de mulher se abriu comoum paraquedas. Daí em diante, passou a quebrar as chaves nasfechaduras e a cegar os alicates de unha da mãe e de uma tiasolteirona que morava junto, só para as duas, obrigatoriamente,passarem de carro, no trailer do saradão e encomendar seuspréstimos, e, claro, pedir, depois, que ela fosse buscar e pagarpelos serviços. O encontro inaugural aconteceu meio sem graça.Mas rendeu.

- Oi!

- Oi...

- Você abre este cadeado para mim? Perdi as chaves.

- Claro. É pra já.

          Fábio, vinte e dois anos, o que tinha de bonito, carregavade tímido. Caladão e sério, não ia além de um sorriso maroto.Contudo, diante de Emília, como num passe de mágica, a vergonha,de repente, deu lugar à ousadia.

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- Que livro é esse?

- Capitu Sou Eu, de Dalton Trevisan.

- Já li alguma coisa.

- Você também é chegado em leituras?

- Bastante.

- O que está lendo?

- Zero Absoluto de Chuck Logan. Como meu tempo écurto e as horas corridas, levo quase um mês para chegar ao final.Antes de Logan, consegui terminar Harold Robbins.

- Maneiro. Recém terminei 79 Park Avenue, dele.

- O cara é irado.

- Tô ligada.

          Emília realmente se ligou. A tal ponto que no encontroposterior rolou uns beijinhos, mãozinhas bobas aqui, mãozinhasbobas ali, até que a moça encasquetou de se entregar inteira, corpoe a alma, de lambuja. Afinal de contas vivia seu primeiro caso,curtia o primeiro namorado, o primeiro homem, seu primeiro amorde verdade. Decidiu que a doce aventura seria no trailler apertadinhoentre chaves, alicates, tesouras, cadeados, facas, gente chegandoe saindo.         O roça-roça passava de um mês. Na verdade, um mês equinze dias. Ela estava pra lá de seca, ele igualmente doido,descontrolado, subindo pelas paredes, trepando de costas. Maso bem-bom, o bem- bom, nada.

- Vou ser dele. E vai ser no chão daquela bosta.

          A primeira investida, entretanto, falhou. Como a segunda, asexta, a nona. Parecia que algo lutava contra. Surgia uma brecha,

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eles não perdiam tempo: se engalfinhavam um no outro. Todavia,no momento de partirem para os “finalmente”, pintava sujeira.Emília teve uma ideia. Trancar a porta pelo lado de dentro e ficarde cócoras. Quem chegasse, só veria o Fábio da cintura paracima. Jamais alguém, em sã consciência, desconfiaria que, pordebaixo do minúsculo balcão, uma marinheira de primeira viagem,se preparava para dar uma festa de arromba e deixar seu bemamado de queixo caído. Ou seria de saco vazio? O que importavaera a festa, aliás, prometia ser inesquecível.

     Aconteceu no sábado. Emília  se posicionou no diminutocompartimento, disposta a se entregar aos prazeres do sexo e àfogosidade da carne fraca que lhe faziam tremer todas as partesdo corpo. Havia nela um fanatismo instilado que a empurrava parafrente, numa ansiedade descomedidamente irrefreável de perder avirgindade com aquele deus grego. Nesse prazer escrachadamentedoido, faria o Fábio viajar até as nuvens, embalado e montadonuma potranca de fogo, como vira num filme pornô que trouxeraemprestado da casa de uma amiga da escola. Chegou uma freguesa. Emília, porém, não se fez de rogada.Ao diabo esperar mais. Abriu o zíper da calça do namorado.A peça foi descendo até formar um amontoado de pano amassado.Fábio começou a trabalhar no alicate da madame. Emília, derepente, se viu frente a frente com a arma do crime colada em seurosto. E bem perto de seus lábios ressequidos pelo prazer. Fábiotinha um tremendo de um volume grosso que pulsava, irrequieto,dentro da cueca. Parecia a ponto de pular fora e se aninhar emmeio às mãos da gulosa. Na verdade, o troço saltou mesmo.E esquentou. E o bicho pegou.

- Ai, ai...

         A senhora que aguardava, recostada no parapeito do balcão,por um momento imaginou que o rapaz estivesse às portas de umpiripaque.

- Você está se sentindo bem, meu filho?

- Sim... Estou... Estou quase...

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- Quer que eu chame um médico? Nossa, meu querido,você está suando em bicas!... Ficou branco... Não, amarelo, Credoem cruz!

         - Ai, ai, engole... Sua vaca... Sua puta...

        Sem entender o que se passava, ao ouvir essas palavras,ditas assim, sem mais nem menos, na lata, na bucha, a madamerodou a baiana.

- Pelo amor de Deus, meu amigo, que modos são esses?– gritou a posuda mulher – cenho franzido - nunca fui tratada dessaforma. Que falta de respeito! Acaso me chamou de vaca, de puta?E quer que eu engula... Engula o quê? Escuta aqui, seu pilantra.Não volto mais aqui. Nem eu nem minhas amigas. Passa pra cámeu alicate. Suspenda o serviço. Eu deveria chamar a polícia, seumal-educado, vagabundo, tarado!

- Não, senhora. Por favor, não é nada disso que estápensando. Eu estou falando com a... Ai, ai, aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

       Emília se despojou de todos os preconceitos e talantes clericais,nos quais se criara desde pequena e mandou bala.Àquela altura, não mais volveria à lucidez. Num delirar sem conta,enfiou, na boca, numa só estocada, a chave grossa e compridapendurada no meio das pernas de Fábio e a fez dar uma série degiros numa fechadura inimaginável. Engoliu de forma tresloucadao pau quente do namorado, sorveu os centímetros que pulsavamcom vontade e determinação. O troço parecia ter aumentado deintensidade, principalmente, depois que fora colocado goela abaixo.De certa forma, esse gesto inesperado atiçou a gula, despertou afome e a libido. Afinal, ela estava no êmulo de sua fraqueza. Talvezo ineditismo da cena, o local, a posição, a forma como tudoacontecia ajudava a criar um clima novo. Emília literalmenteagarrada, feito uma possessa, no talo do rapaz, e depois de tê-lolevado às nuvens, não parava de friccionar o pênis num vai-vémincessante. Em busca do “quero de novo”, voltou com a pica naposição inicial e começou a lambê-la, primeiro com a ponta da

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língua, depois enfiando inteira, sem pestanejar, a uma velocidadeincontrolável.      O patrão de Fábio, um tal de Miguel das Mil Utilidades, chegouno exato minuto em que a dona do alicate, furiosa, voltava comdois policiais em meio a uma pequena multidão de curiosos.Gesticulava, muito braba, apontando o trailer.

- O Senhor é o dono dessa espelunca? Seufuncionariozinho aí...

     Emília conseguira de novo. Fábio gozava pela segunda vez. Da sua máquina, ainda quente e turbinada, acabava de jorrar umjato branco muito forte, fazendo com que urrassedescontroladamente. Agora de joelhos, Emília terminava desaborear o final do boquete, a substância viciadora do pecado,escorrendo pelas maçãs do rosto e parte da boca. Acabara desaciar seu desejo aprisionado. Tudo como havia sonhado, ao fazera sua escolha. Foi legal, ainda que ralando os joelhos numasuperabundância de chaves velhas e alicates imprestáveis. O aríetede Fábio, aos poucos, entrou em estado de repouso. Parecia umpequeno botão de rosa, pendendo para a esquerda e chorandouma reluzente lágrima de orvalho. A mão de Emília, contudo,continuava dentro da calcinha. Ela teimava em continuar fustigandoos pequenos lábios. Enquanto engolia o sêmen quente do seumacho, gemia, gemia num crescendo, gemia com seguidas ondasde êxtase, assemelhada a uma cadela no cio, tal como se estivessefora de suas faculdades normais. De fato, estava!     O embasbacado patrão, sem saber o que acontecia, tantodentro, como fora, destrancou a porta e entrou esbaforidamente.Atrás dele, a galera pedia providências. O casal, surpreendido noflagra, foi posto no olho da rua. Não fossem os policiais, ambosteriam sido linchados. Uma semana após o acontecido, Miguel das Mil Utilidadesajustou, para ocupar a vaga de Fábio, um rapazola loirinho, muitoalegre e simpático, que sorria como uma hiena e, claro, nas horasde folga, entre o intervalo de um alicate e a feitura de uma chave,quebrava os galhos chupando a vara do patrão.  

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Um intruso no formigueiro“Era uma vez um louco: Eu”

Pachá 

OLHAR PARA AS GATINHAS QUE PASSAM todas asmanhãs embaixo da minha janela, com destino à escola pública,quase em frente a minha casa, instiga a minha libido terrorista. Seme fixar em seus traseiros mais afogueadamente, com certeza, tereiuma ereção nos moldes das derrubadas das torres gêmeas doWorld Trade Center, em New York. Geralmente essas inocentesespiadelas terminam ali mesmo, ocultas por detrás das cortinas,ou trancafiadas no banheiro, diante de um pôster gigante da BrunaOndinha, num pecaminoso cinco contra um, o que redunda,invariavelmente, num verdadeiro entulho de 250 mil toneladas deespermatozóides sendo ejaculados ao “deus dará”. Recentementedescasquei uma banana prolongada para a Vivi, nua em pêlo, numarevista feminina que roubei do meu vizinho, que tem assinatura e,às vezes, demora para visitar a caixinha do correio. Me imagineina pele do Gozadão, com todo aquele material de primeira, ao  

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alcance das mãos, esparramado numa cama redonda, com tetosolar, piscina de água quente e outras diversões, longe dos curiosos,num desses flets espalhados por lugares deslumbrantementeexóticos.

    Gosto, como todos os rapazes da minha idade, de apreciar asrevistas de mulheres peladas. Devoro todas as publicações queme caem nas mãos. Faz um bem enorme avaliar as curvas perfeitasdas modelos mais cobiçadas deste país. Nessas horas, sinto comose estivesse dentro do carro, o pé até embaixo, no acelerador,voando perigosamente em alta velocidade, por uma estrada sinuosa,margeando uma serra cheia de curvas fatais. Ao meu lado, ajudandoa dar vazão a esse quadro irreal, uma colegial (dessas que todosos dias passam rebolando na calçada da minha janela) com orostinho de princesa, lembrando, não a Vivi do Gozadão, mas aAnita Caxinha de Fósforo, com os cabelos longos e soltos à modada Maria Nasci Rica. Enquanto seguro o volante, com a outramão, atolo o dedo no pequeno triângulo que ela carrega escondidocomo um brilhante valioso no meio das pernas, onde, bem sei,existe um caminho secreto, encoberto por um invólucro minúsculode nylon, levando meus devaneios às loucuras irascíveis do prazer.     Semanas  atrás  quase  aconteceu  um milagre.  Só  não  foicompleto... Acho melhor contar desde o começo para que a coisafique bem clara e não reste dúvidas a respeito da minha sanidademental. 

Aconteceu assim: voltava do trabalho, quando à altura doViaduto Maria Paula, tropecei com uma velha amiga, a Santi,conhecida de longa data. Não encontrava pela frente essa figurafazia bom tempo. Conversa vai, conversa vem, consegui arrastara moleca para um quarto de motel, na Praça da Sé. Por sorte,nesse dia, havia sobrado uns trocados no bolso. Mixaria, masquebrava o galho. Entre um suco de manga e uns biscoitos quecompramos, ela resolveu ceder aos meus impulsos. Como a umtelefone, me tirou, ou melhor, me arrancou do gancho.

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Tomamos um banho demorado com ervas e sais afrodisíacos,misturados a espumas aromáticas. A magia da sua presençainebriava o ambiente. Seu corpo, abrigo de vinte e cincoprimaveras, tinha a sutileza de uma rima. Uma flagrância envolventenos cabelos lhe corria pelos cachos dourados e terminava à alturaexata onde a calcinha cor da pele encobria os dois lados do pecado.Cheguei a sentir o cheiro forte que ligava seus ciclos menstruais àlua. Ao deslizar a língua em seu traseiro, saboreei o doce gosto demel estagnado que emanava da sua bundinha avantajada.Por breves minutos, me senti na pele de um rei poderoso,desfrutando de toda sua majestade intocável. Os móveis quecompunham o quarto onde estávamos, embora humildes e antigos,pareciam pequenos súditos reverenciando nossa felicidade.Na verdade, naquele momento mágico, me imaginava comautoridade absoluta diante daquele corpo escultural todinhoentregue a minha disposição. Uma verdadeira visão hipnótica,disfarçada em meiga candura.     Depois do banho, partimos para a cama. Santi tirou de dentroda bolsa uma Sexy onde se via estampada às formas impecáveisda Sandroca Beleza. Virando o rosto para meu lado e empinandoo traseiro, segredou que gostaria de ser como a Pati Boneca, suaatriz preferida. Revelou que igual às colegiais americanas écheerleader de um time de basquete do colégio, onde cursa osexto período da faculdade de comunicação e que, vez em quando,para ganhar uns trocadinhos, trabalha como acompanhante de umcasal de idosos, no Tatuapé.

Por fim, anunciou que seu namorado – um negrão recém-chegado do Senegal – disse para seguir a carreira de modelo.Jamais desperdiçar seu belo par de olhos azuis. Seria uma penairreparável se isso acontecesse. Concordo plenamente com osujeito. Não é todo mundo que enquadra um visual tão propíciopara a arte das passarelas: 1,67m de altura, 48 quilos, 86centímetros de busto, 6l cm de cintura e 86 cm de quadris. Santi,porém, está vivendo uma dúvida cruel. Ultimamente, para ajudar

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nas despesas do apartamento que divide com algumas amigas, noLargo do Arouche, vem ganhando a vida como garota de programa(o quê???) numa movimentadíssima boate, na Marquês de SãoVicente, na Barra Funda. Garota de programa? Puta que pariu! Na minha santa ignorância achei que levara uma eternidade enormepara arrastá-la comigo, até aquele cubículo imundo, de frente paraas escadarias da Estação Sé do metrô.

- E aí, vamos partir para os finalmente? – disse ela numdado momento da conversa - Tenho outros encontros, vocêsabe como é, né mesmo!      Olhar para as gatinhas que passam na rua em direção à escolaaqui perto de casa, agita, a olhos vistos, o meu lado animal. Foiassim quando revi a Santi, depois de muitos anos, não seiexatamente quantos, mas isso não importa agora. Estar numa camade hotel com ela ao alcance das mãos e de outras coisas me fezsenhor absoluto de mim. Juro que, por breves instantes, me senticomo Príapo, filho de Baco e Vênus, que nasceu, segundo ahistória, com um pênis desproporcionalmente imenso.

     Contudo, a revelação dela, de cara limpa (garota de programa?)- olhando bem dentro de meu coração desafortunado - caiu comoum balde de água fria - misturado com cubos de gelo recém saídosde um imenso congelador. A ferramenta, símbolo da masculinidadedeste pobre ser mortal, se tornou flácida, encolheu de medo eperdeu a pose do tamanho. Na verdade, o troço fugiu correndopara o esconderijo, ante a revelação nua e crua, mais crua que nuade Santi. Então, a desgranhenta safada, ordinária, se transformaranuma prostitutazinha barata?! Meu Deus, quem diria, uma vulgarque ganhava a vida em troca de um punhado de moedas, a durasflexões em camas barulhentas de espeluncas baratas. Pintou, namoleira, uma série de pequenos fragmentos que redundou noesfriamento completo do apetite bestial. O estágio intermediárioda babaquice deu lugar a uma realidade gritante que, num momentode lucidez, passei a enxergar.

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    De repente, percebi que o espelho tinha duas faces distintas.Através de uma delas, me vi enfiado numa espécie de almofadapegajosa, onde os bichanos dormem e sonham com gorduchosratos de esgoto. Foi para os cambaus, meu milagre. Daí o quase. Claro, não teve clima. Santi sentiu primeiro que eu - os propósitosde uma bela foda haviam perdido a gana - e, de roldão, todo oritual da intensidade pela posse da Besta Primeva.

     A outra face refletiu o momento exato em que vestimos nossasroupas em meio a um silêncio constrangedor. Saímos cabisbaixos,como se tivéssemos medo ou vergonha um do outro. Deixei avadia em frente ao prédio do Fórum Cívil, onde acenou para umtáxi. Na despedida, trocamos um beijo ríspido e vazio, sem sabor,um beijo maquinal. Ela cheirava a sexo barato. Só fui perceberdepois que revelou ser uma tremenda vagabunda!

O melhor que tenho a fazer nesse “chove não molha” é vigiar arevista pornô deste mês, que chega na caixinha do correio do meuvizinho. Os colegas de trabalho lá da empresa comentaram que afilha do Margarina, a Marina, vai pintar mostrando tudo, nuazinha,nuazinha, em carne e osso, como saiu da barriga da mãe.Lembrando desse incidente com Santi, e vendo uma leva de gatinhasindo e vindo em direção à escola, vou partir em busca do esquisitopendurado no meio das pernas. Coitado! Ele que seja macho, queme endureça as feições e aguente a turminha de dedos que cairáem seus costados. Só espero, sinceramente, que na hora agá, meuscolhões não empaquem e resolvam, junto com o caralho, fazergreve de porra!   

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Persuasão

O RAPAZ CHEGA PARA A NAMORADA E PROPÕE:- Lígia, minha linda, estamos aqui sentados no interior deste

carro, desde as oito horas da noite. São quase duas da manhã.Como pode ver, ninguém na rua. Que tal aquela chance?

- Qual Julinho?

- De lhe fazer feliz por inteira.

- Mas sou completamente feliz, amor. Você me preenchetodos os vazios.

- Ficaria mais satisfeito e realizado interiormente sefizéssemos amor.

- Não estou preparada. Namoramos há seis meses, masnão estou pronta. Entende o que eu digo? Não chegou o momento...

     Julinho finge uma mágoa ensaiada. Bruscamente pede a Lígiaque levante de seu colo e passe para o banco do carona.

 - Você não gosta de mim como eu de você.

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- Claro que gosto, amor. Eu te amo. E muito. Você sabe.Dou minha vida por nosso amor.

 - Mas não dá o que realmente nos uniria de uma vez parasempre.

- Julinho, você só pensa em sexo. Seu negócio é transar,transar, transar. Quantas coisas bonitas tivemos a oportunidadede dizer um para o outro. Você tem se saído um verdadeiro poeta.Recita versos lindos, me enche de frases românticas... Sem falarnas cartas maravilhosas que escreve. Vamos dar mais um tempo.Nosso momento chegará. Pode ser amanhã, depois, ou...

-  ...Ou nunca, Lígia. Para mim, chega. Tô fora.

- Julinho, eu te amo. Não seja tão radical. Já dei váriasdemonstrações de que você é o cara com quem quero me casar,ter filhos, construir uma vida, envelhecer.

- Faltou a principal.

- É tão importante essa prova?

- É.

- O que você quer?

- Preciso dizer?

- Meus pais...

     Julinho abre a janela e aponta para a varanda enorme um poucoacima deles.

- Seus velhos estão numa boa. Quem sabe até, peloadiantado das horas, em promoção de temporada.

- Promoção de temporada?

- Isso mesmo. Devem estar trabalhando na fabricação daraspa do tacho.

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- Raspa do tacho? De onde você tirou essa maluquice,Julinho?

- Como você é ingênua. Raspa do tacho é o mesmo quebebê temporão, ou seja, aquele irmãozinho inesperado que chegapara aumentar o clã familiar quando menos se espera. Risos.

- Papai a estas alturas do campeonato ronca a sono solto.Mamãe, coitada, deve andar pra lá de Bagdá.

- Sentiu o drama? Ambos, dormindo, perdendo um tempoprecioso, como nós, aqui, agora.

- Amor, amanhã a gente continua o papo. Preciso subir.

- É cedo, gatinha.

- Amanhã eu...

- Amanhã é outro dia, depois de hoje... E hoje é o nossoagora.

- Sofia, minha irmã, subiu passava um pouco das dez. Meuirmão, Marco Aurélio, idem. Só eu estou aqui.

     O rapaz continua firme na sua determinação e parece que nadao demove a deixar a coisa para a noite seguinte.

- Escute o que vou dizer: entramos ali na garagem, só poralguns minutos. Juro que levo você às estrelas.

- Não vejo estrelas. O céu está escuro demais.

     Julinho deixa a aparente mágoa de lado e volta a abraçar anamorada. Beija-lhe carinhosamente a nuca e os seios.

- Deixa lhe mostrar essas estrelas.

     Enquanto tenta quebrar as últimas resistências de Lígia, abre oporta- luvas do carro e, de lá, retira uma caixinha.

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

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- O que é?

- Abra e descubra.

     Lígia, curiosa, obedece.

- Dois dadinhos?

- Na batata. Dois dadinhos.

- Para que servem? O que estão escritos neles?

- Calma princesa. Por etapas. Vamos até a garagem?

     Enquanto fala, Julinho sobe vagarosamente a mão pelas pernasde Lígia. Seu coração bate descompassadamente. O dela poucofalta para saltar do peito numa erupção desenfreada de desejossendo despertados. A mão do rapaz segue adiante. Continua firmee determinada, subindo, subindo, galgando centímetro apóscentímetro. Lígia, quase sem fôlego, está sem ar. O corpo treme.Sua pele sua. Entrementes, os dedos de Julinho bolinam na calcinhae, afoitos roçam a...

     Lígia enlouquece. Explode a vontade da posse contrabandeadapelo desejo da entrega total. A tentação chega ao ápice, despertade seu sono, acorda furiosa.

- Está bem. Venha comigo.

     O casal sai do carro e entra no escuro da garagem.

- Que volume é esse no seu bolso?

- Uma lanterna.

- Para que você quer uma lanterna, Julinho?

- Vamos jogar dadinhos. É assim. Deixa eu te explicar. Naface que cair você deverá praticar ou fazer o que estiver escrito.

- E o que é que estará escrito?

A outra perna do saci

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  - Como vou saber? Você terá que jogar.

     Os dois se acomodam num canto bem no fundo ao lado doCITRÖEN dos pais de Lígia. Julinho tira a lanterna do bolso eprocura, com o foco, um espaço livre, no chão.

- Aqui está legal. Chacoalhe os dados com uma das mãose jogue, devagar.

     A garota aquiesce.

- Leia.

- Neste aqui, NA MESA. No outro, COM A PORTAABERTA. 

- Não valeu. De novo.

- Lígia faz a segunda tentativa.

- E agora?- No primeiro, AO AR LIVRE, no segundo, SEXO ORAL

NELE.

- Ótimo. Vá em frente.

- O que? Eu!...

- Amor prove que me ama de verdade. São seis meses.Olhe só como estou por sua causa. Me dá aqui a sua mão. Sinta ovolume. Veja como você me deixa. Vamos, gatinha, aposto quevai gostar. E pedirá bis. Não dói.

     Desce rapidamente as calças. Num piscar de olhos está desunga, a camisa aberta.

- Tire fora. Olhe o que vou fazer.Do bolso da camisa puxa um vidrinho pequeno.

- Nossa Senhora, Julinho, o que tem nesse trocinho?

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

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- Calma, Lígia, isso aqui é Jelly Well.

- Jelly o quê?

- Gel corporal.

- Qual é a serventia?

- Vou passar na pontinha do... Do Juninho.

- Credo! Não vou aguentar esse negócio comprido egrosso dentro de mim. Acaso esqueceu que sou virgem? Vocêsabe que nunca transei.

- E estou muito feliz por nós dois. Escute, minha linda: nãovou introduzir o “Juninho” dentro de você. Inicialmente pretendocolocar o nenenzinho na sua boquinha. Obedeça aos dados. SEXOORAL NELE. Experimente. Ainda estou te dando a chance deser aqui dentro. Lembre-se que no outro dadinho saiu AO ARLIVRE. 

- Eu, eu...

- Deixa de conversa fiada. Sinta o sabor do gel na pontada sua língua.

- Tenho nojo. Nunca fiz antes...

     Todavia, diante de tamanha e acirrada insistência (embora nãosuportasse mais esperar para ver como funcionava a coisa) Lígia,meio sem jeito e ressabiada, começa a praticar sexo oral nonamorado. À medida que sorve o espesso membro, a emergênciadefinidora da vontade imperiosa de se subjugar às vontades dorapaz, como por encanto, vai se soltando dentro de seu corpo,aos poucos, até que, completamente relaxada, sente seu organismointeiro se descontrair. Num instante mágico, se desprende de todasas amarras impostas pelos recatos da sua formação moral e segueem frente. O brinquedo armado pulsa febril entre seus dentes, lhedá total sensação de liberdade, uma liberdade jamais sentida. Pelaprimeira vez ela se sente mulher de verdade. Entrementes fingeuma vergonha inexistente.

A outra perna do saci

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- Chega... Que gosto horrível... Vou... Vou...

- Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Por que parou? Merda, eu estava quase...

     A donzela, desvairada, corre e vomita para todas as direçõese, pior, deixa o namorado a ver navios com bolinhas coloridas nomeio do aposento escuro, quase às três da manhã.

Dia seguinte, mesmo horário e lugar, a cena se repete.

- Jogue os dadinhos.

- Hoje é sua vez, gatinho. À vontade.

O rapaz não espera uma segunda ordem.

- Saiu EM FRENTE AO ESPELHO e SEXO ANAL.

- Tudo bem. Vamos nos contentar só com o que temos.Não vou lá em cima buscar um espelho, a menos que você façaabsoluta questão.

- Para mim, tudo bem. Faremos sem o espelho.

- Afinal de contas, amor, qual a função do espelho?

- Desfrutar melhor dos movimentos... Você adoraria ver oJuninho entrando no seu... Na sua bundinha. Dá uma sensação...

     Risos.

- Pense que não faltará oportunidade. Talvez na próxima.A gente vem pra cá preparado e traz tudo que tem direito.A propósito, ia esquecendo: deixa te mostrar o que minha irmãSofia me deu de presente, antes de ir hoje cedo para o trabalho.Cadê a lanterna?

     Lígia levanta o vestido. De dentro da calcinha retira umapequena latinha.

- Posso saber o que tem dentro desse recipiente?

    

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- Calma. Dentro de alguns minutos matará a suacuriosidade. Agora senta aqui a meu lado e deixa te falar umacoisa. Contei tudo o que fizemos ontem a Sofia, ou melhor, o quetentamos e não conseguimos.

- Pô, você abriu pra sua irmã?

- Sim. Qual o problema?

- Jesus Cristo, estamos fritos.

- Relaxe, meu príncipe. Fique frio. Ela é sangue bom. Aliás,me deu altos conselhos. Deixou bem clara a nossa situação.“Maninha, vá em frente. Para segurar a onda e manter um homemembaixo dos seus pés, não espere, dê. Solte a franga. Mostrelogo do que é capaz. Detalhe: ele vai chegar junto e te pedir umacomida básica no traseiro. A primeira vez dói pra caramba.Parece que as pregas estão sendo arrombadas e arrancadas aomesmo tempo, por um estilete. Por mais carinhoso que o cara sejaenfiando a piroca com jeitinho e usando de toda delicadeza, vocêsubirá ao topo da Torre Eiffel e voltará ao chão umas “trocentas”vezes. Não se assuste. O corpo sede, tudo sede, você sem seaperceber dará gritinhos de prazer, além do que a bunda tem umaelasticidade medonha para se amoldar ao ferro entrando. Nasmetidas que se seguirem depois, aposto, você estará enfiando deprimeira e rebolando em cima do pau dele, tão carente, mas tãocarente, quanto uma criança recém saída do gueto”. Me deu isto epediu que passasse antes de você me chamar no saco.

- E o que é?

- Unta cu.

- Unta o quê?

- Deixe de conversa fiada. Você jogou os dadinhos,lembra? Tirando a história do espelho, ponha em prática o quesaiu escrito no outro.

A outra perna do saci

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Nó na garganta

MAL E PORCAMENTE PANTOLFO CHEGOU DA RUAE SE ACOMODOU no sofá da sala para tirar os sapatos, o pe-queno Luan, que assistia desenhos na TV, desligou o aparelho eencarou o pai, muito sério.

- O senhor saberia me esclarecer quem nasceu primeiro?O homem ou a mulher?

- O homem.

- E a mulher?

- Veio de uma costela de Adão.

- E quem é Adão?

- O primeiro homem.     O garoto sentou ao lado do pai e cruzou as pernas como sefosse adulto.

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- Foi?

- Isso.

- E onde ele está agora?

- Morto.

- Se ele está morto, como é que a mulher nasceu da costeladele?

- Obra de Deus, meu filho. Obra de Deus. Cadê sua mãe?

- Saiu com a Maria. Foram ao supermercado fazer com-pras.

- Seu irmãozinho?

- No parquinho com a babá. Pai, tem um negócio que estáme causando um monte de dúvidas? Será que o senhor...

- ...Se estiver ao meu alcance.

- Voltando a esse tal de Adão. O senhor falou que a mulherveio da costela dele. Se a mulher veio da costela desse tal deAdão, a mamãe saiu da sua costela?

- Não, filho. Mamãe e papai são diferentes.

- Diferentes? Como?- Mamãe nasceu na casa de seu avô Tonico e de sua avó

Simone.- E o senhor?

- Eu vim da casa de vovô Anacleto e de vovó Custódia.

O moleque caminhava absorto em pensamentos distantes.

- Pai, onde é que o vovô Tonico e a vovó Simone

   A outra perna do saci

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nasceram? E o vovô Anacleto mais a vovó Custódia, vieram domesmo lugar?

Boquiaberto, Pantolfo não sabia o que responder. Precisavapensar rápido, inventar uma desculpa qualquer que satisfizesse acuriosidade do filho e o retornasse aos desenhos.

- Todos eles vieram lá do céu, no bico de uma cegonhaenorme. 

- O senhor também veio no bico dessa cegonha?

- Como todo mundo...

- Pai, essa cegonha traz gente grande igual todo adulto ousó carrega criança do meu tamanho?

- Só criança do seu tamanho.

- No bico?

- No bico.

- E a criança não cai?

- Não, não cai. A cegonha é muito cuidadosa.

     Luan estalava os dedos das mãos, como fazia seu avô Anacleto.Parecia nervoso e preocupado. Aliás, estava. E muito.

- Pai, meu irmão Lucas veio no bico da cegonha?

- Veio. E pousou bem aí nos fundos do quintal.

- Que troço mais esquisito!

- O que é esquisito, filho?

- Se for mesmo a cegonha quem traz as crianças, como éque o Lucas saiu da barriga da mamãe e nasceu na maternidade? Será que a cegonha errou de endereço?

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     Pantolfo abriu a boca e franziu o cenho diante dessas revelações.Para ele, até então, o guri não passava de uma criança com oespírito embebido na aventura da idade, só querendo conhecerum pouco mais da vida dos adultos. Todavia, a história da barrigae da maternidade mexeu fundo com sua cabeça.

- Quem falou que o Lucas saiu da barriga da mamãe enasceu na maternidade?

- O padre.

- Padre? Que padre?

- Padre Gregório.

- Quem levou você a esse tal de padre Gregório?

- Tia Elaine.

- Quando?

- Não sei.

- Não sabe?

  - Acho que “era” ontem.

     Risos.

- Sua mãe acompanhou vocês?

- Não. Mamãe parou na padaria.

- Na padaria?

- É pai. Ela disse à tia Elaine que iria comprar unstrecos:ovos, pão de forma, manteiga, não sei mais o que e fermento.

- Fermento? Para que sua mãe precisa de fermento?

- Acho que é para pôr na torta que vai fazer para tia Vânia.

A outra perna do saci

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- Torta para tia Vânia?

- Ela vai fazer aniversário, esqueceu? Mamãe está pre-parando uma torta de surpresa. Eu e tia Elaine fomos até a paróquiaconvidar o padre.

- Hummm!...

- Pai, o padre Gregório é mulher?

- Não conheço pessoalmente o padre Gregório, filho, maspor tudo quanto é mais sagrado, de onde você tirou essa idéia?

  - Ele não usa uma saia preta e comprida?

- Todos os padres se vestem assim. Aquilo não é saia.É batina.

- Mamãe usa batina?

- Sua mãe usa saia.

- E tia Elaine usa batina?

- Saia.

- E tia Vânia?

- Saia. Todas as mulheres usam saia. A Maria, a babá deseu irmão, sua avó...

- Por que os padres usam batina e não vestem calça? O senhor não acha que tia Elaine e tia Vânia ficariam mais bonitasse usassem uma batina igual a do padre Gregório? Ou vice-versa?O senhor teria coragem de usar batina, ou uma saia bem curtaigual a da Maria, nossa empregada?

     Pantolfo começou a mostrar sinais de irritação e impaciência.O moleque queria saber demais, e a uma velocidade vertiginosa.Torrava a paciência. Principalmente, depois de um dia estafante echeio de encrencas no escritório da companhia. Teve uma ideia.

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- Filho, você não quer chupar um sorvete?

- De morango ou de abacaxi?

- Você escolhe o sabor que melhor lhe aprouver.

- Melhor o quê?

- Agradar. Melhor lhe der satisfação.

     Luan, contudo, não se fez de rogado. Voltou à bateria deperguntas.

- Pai, como é o nome da primeira mulher?

- Eva.

- Eva?

- Eva.

- Gozado! O senhor não vai acreditar. Ela mora aliembaixo, depois da pracinha, perto do açougue. É a mãe doFunchal.

- Mãe... Mãe de quem?

- Do Funchal, um colega meu. Estuda comigo. A gentesenta um ao lado do outro.

- Filho, essa Eva é outra. Não é a que saiu da costela deAdão.

- Como é que essa outra Eva conseguiu sair da costeladesse tal de Adão?

- Já disse: ela não saiu...

- O senhor não acabou de falar que a Eva saiu da costelade Adão?

- Sim.

A outra perna do saci

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- Então?

     Pantolfo colocou as mãos em concha no rosto miúdo do garotoe tentou parecer calmo. Por dentro, entretanto, uma pilha.

 - Lembro  que  estávamos  comentando  a  respeito  daprimeira mulher, não da mãe de seu amiguinho aí... Como é mesmoo nome?

- Funchal.

- Claro, Funchal. Que nome.

     Luan  seguia disposto a não dar tréguas.

- Pai, o que é costela?

     Em resposta o pobre e cansado pai arrancou do bolso umacarteira e, dela, uma nota de dez reais. Balançou no ar.

- Olha só. Vamos gastar tudo em sorvete?

- O senhor não respondeu: costela, o que é costela?

- Está bem. Você ganhou. Costela, ou melhor, costelas,são esses ossos que temos aqui nas costas.

     No que falava, Pantolfo se posicionou de lado e, com o braçoesquerdo, tentou indicar as vértebras à linha média no ventral dotronco.

- Está vendo?

- Não senhor.

- Tudo bem. Vamos voltar ao sorvete? Você falou emmorango e abacaxi...

     O menino, porém, andava longe.

- Droga! Agora acho que “pirei”...

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      Pela segunda vez, Pantolfo voltou a arregalar os olhos. Fixouo rosto do filho como nunca havia feito até então. Não queriaacreditar no que acabara de ouvir.

- Acha que o quê?

- Pirei...

- Explique o que é “pirei”.

- Todos os meus amiguinhos da escola falam “pirei quandovi a professora levantando a calcinha no banheiro, pirei quandominha madrasta chegou e me pegou batendo uma punheta. Pireiquando o diretor me pegou mijando de pau duro, na parede dasecretaria...”

- E, no seu caso, como é que você acha que pirou?

- Tio Léo veio dormir aqui em casa quando o senhor viajou.

- E daí?

- Trouxe com ele a tia Berenice. Eu escutei os doisconversando lá no quarto da Maria. Tio Léo disse e mamãe tambémouviu quando ele falou que a tia Berenice era a costela dele.Tia Berenice saiu da costela do tio Léo, pai?

     O telefone tocou. Pantolfo, quase à beira de um ataque denervos (não tinha mais saída para tantas perguntas e, sobretudo,empombado com a sagacidade e a inteligência do primogênito),deu um pulo do sofá e correu atender. Graças a Deus havia sidosalvo pelo gongo. Mais um bloco de perguntas e entraria em pânico.Do outro lado da linha, alguém procurava pelo Luan.

- É seu amigo navio.

     O pequeno franziu o cenho.

- Meu amigo navio? Eu não tenho nenhum amigo navio,pai.

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    O infeliz levou as mãos à cabeça. Não sabia mais o que fazer,ou dizer. Na verdade, sua vontade se constituía numa só: arrancaros poucos fios de cabelo e sair correndo feito um louco pelo meioda rua. Optou por gritar o nome do coleguinha e pronto. Assuntoencerrado.

- Funchal, Funchal. É o Funchal...

- E por que o senhor chamou meu amigo Funchal de navio?

     Teve vontade de explicar que Funchal era um transatlânticoque ele vira atracado no porto, quando voltava para casa.E, coincidentemente, seu amiguinho tinha o mesmo nome dessaembarcação. Conteve o ímpeto a tempo. Sabia, de antemão, quequalquer observação que fizesse não ficaria restrita só a pequenospormenores. O guri iria querer detalhes:

- Escuta aqui, seu espertinho. Atenda ao telefone e deixede conversa fiada. Vou lá fora comprar cigarros.

- Cigarros? Para quem? O senhor não fuma! E o meusorvete? Cadê o dinheiro que o senhor tirou do bolso e ia me darpara comprar sorvete?

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PACU DA CABEÇA VERMELHA SABIA QUANDO a gostosura da vizinha do 301 estava em casa. Morava no 201, oque lhe proporcionava, na pacífica contemplação dos sonsproduzidos por ela, uma viagem ao faz de conta, em que meditaçõesbucólicas embaraçavam sua alma de homem solitário. De repente,se via no meio da cena, como se estivesse lá em cima, ao ladodela, igual um poeta sentado e embevecido com o sussurro dasárvores docemente agitadas pelo calmo sibilar do vento.

     A misteriosa moradora - dona de um corpo escultural e perfeito- reunia todos os encantos do ser ideal com os quais qualquersujeito normal sonharia. Em razão disso, Pacu se tornouperdidamente apaixonado. Uma paixão delirante, inconsequente,desenfreada e inexplicável, que impregnava nas paredes pequenasnuances de senilidade, misturados com momentos de furor e deciúme mesclados com pitadas de reviravoltas de ternura elágrimas.     A linda chegava sempre por volta das cinco horas damanhã. Estivesse dormindo ou não, acordava com o barulho dossapatos dela nos degraus. Moravam, ambos, num prédio antigo,de três andares onde se acessava as residências por uma escadade corrimão amarelo. Logo que entrava em casa a jovem ia aobanheiro. Ouvia a tampa da privada sendo abaixada às pressas e,

Anjo noturno

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depois, a descarga acionada. Em seguida, ela se dirigia para oquarto. Livrava os pés dos sapatos altos e os toc, toc, toc, toc,contra o piso de cerâmica cessavam. Movia a porta de algum tipode guarda-roupas ou algo semelhante, o que produzia um diálogorústico entre o ato de ser aberta e o ranger das dobradiças, comoa de uma gata assustada soltando um miado fora de tom.

     Pacu da Cabeça Vermelha imaginava, a partir desse instante,que ela se despia completamente das roupas usuais. Tinha iníciouma série de andanças calmas e suaves como o de um desabrocharde flores. Naturalmente, a catita circulava nua, ou só de calcinha.Tudo não passava de simples deduções devido à convivência, oapuro dos ouvidos e a meticulosidade nas observações. Do quartoela entrava no banho. Abria a torneira. Sobressaíam, então, osruídos da porta do boxe sendo acionada, do chuveiro quente ligadoe da água escorrendo pelo ralo. O fragor desse asseio corporaldurava meia hora, quarenta minutos, às vezes mais. Outros estalidosde menor importância vinham em auxílio às repetições desses sons,até que, inesperadamente, se tornavam fracos como se a donzelasumisse em pleno ar. Mas não. Em meio ao curto silêncio, ela logodava sinais de que estava lá, bem viva e esvoaçante. Ligava atelevisão. Vozes e tiros, gemidos e berros substituíam a calmariareinante. A bela surfava nos canais à procura de algo quepreenchesse vazios ou espantasse a solidão.     O passeio durava um segundo. Logo esquecia o controle e seatinha ao reprodutor de CDs. A voz adocicada de Ana Carolina(elaa adorava) tomava conta do ar, se misturava à magia da quasemanhã, perdia a timidez e saía pela janela, como leve brisabalouçando ao acaso. “Eu quero te roubar pra mim, eu que nãosei pedir nada, meu caminho é meio perdido, mas que perder sejao melhor destino”. Pacu, embalado por essa tranquilidade inabituale, inebriado pela voz da intérprete, dava a seus devaneios uma corrisonha, saía literalmente do chão, como se flutuasse. Voltava àvida quando os ponteiros do relógio passavam das onze e meia damanhã.

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     Uma bela madrugada, por volta das quatro da matina, despertoucom passos diferentes no corredor. Não os dela, mas de alguémoposto aos hábitos e costumes a que se acostumara. Apurou ossentidos. Ouviu, então, a voz grave de um homem e tal constataçãobastou para lhe fazer mergulhar em horríveis visões. Seu mundocaiu. Desmoronou, veio a baixo. A sedutora moradora do 301,realmente, trouxera, consigo, um “estranja” a tira-colo. Estavapatente a sua presença no pedaço e, por mais que quisesse, nãopoderia simplesmente fazer de conta que não se importava. Deixara coisa pra lá, meter o travesseiro sobre o rosto e tentar conciliaro sono, bem sabia, seria humanamente impossível.

     Afinal, de onde vinha esse cuidado sem razão? Por que essapreocupação descomedida com aquela jovem? Não era nada sua,nem um simples laço de amizade mantinha com ela. Que ganhariase metendo em sua vida? Sabia que a ocupante do apartamentoacima do seu se assemelhava a uma dessas deusas hollywoodeanas,só vista nos cinemas, mas e daí? Vezes sem conta forçaraencontros. Chegou ao cúmulo de mandar flores e bombons comnome trocado. Quando se esbarravam, fosse saindo ou chegando,trocavam apenas ligeiros acenos de cabeça ou “olás” insossos.Num desses tropeços fugidios, certa vez, ela lhe dirigiu um sorrisoseco e sem a indicação de que pretendia manter uma amizadeduradoura ou qualquer coisa equivalente.      Entretanto, a ida daquela graciosa para a cama com o tal sujeitoque viera de contrapeso, avançou para seus tímpanos como umcortejo melodramático aos toques de uma música sombria e brutal.Não a de Ana Carolina, “Eu vou contar pra todo mundo, eu voupichar sua rua, vou bater na sua porta de noite, completamentenua, quem sabe, então, assim, você repara em mim”, mas umbatidão simultaneamente duro e solene, no qual se misturava opensamento fixo enroscado nos dois abraçados, atarracados, quemsabe, num beijo de língua, rolando, por certo, sobre os lençóis eos gritos de prazer daquela fêmea estupenda, durante o ato e,após, saciada pelo apogeu do gozo supremo, o descanso merecido.

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Essa loucura aparentemente infantil fez com que os pensamentosdesordenados explodissem em ondas de um frenesi impetuoso.     Pacu da Cabeça Vermelha se viu, de repente, em meio a umamultidão horrorosa de fantasmas circulando em volta de si. Comose tivesse sido atirado, sabe-se lá por quem. A esse quadro lúgubre,se juntaram barulhos ensurdecedores, gemidos, gargalhadas, gritose urros distantes que outros tantos, vindos, talvez das profundezasde prédios vizinhos, pareciam responder. Uma coisa, porém, restouclara. A formosa do 301, a partir daquele momento, perdera, paraele, seu caráter de nobreza. Deixou de ser a princesa que moravaem um castelo de mimos dentro de seu coração desafortunado evazio para se transformar numa figura ignóbil e grotesca.     Decidiu que, a partir daquele instante, era chegado o tempo deesquecer a moça de uma vez. Para sempre. Dar um basta. Deixarde sofrer por quem nem sabia da sua existência. Colocar umapedra enorme em cima. Faria isso ou acabaria louco, vivendo umafantasia que não levaria a nada, nem a lugar nenhum. Caminhouaté o freezer. Abriu uma cerveja bem gelada. Fritou uns tira-gostos.“Eu quero uma lua plena, eu quero sentir a noite, eu quero olhar asluzes, que teus olhos não me têm deixado ver, agora eu vou viver”. De volta ao quarto, escolheu um pornô e botou pra rolar.Repetiu a cerveja, depois outra e mais outra. Diante do aparelhode DVD, fartou os desejos incontidos num cinco contra um emhomenagem à musa graciosa que brilhantemente coadjuvava nofilme. A campainha tocou. “Quem poderia ser, àquela hora?” Pelado,as mãos sujas da recente punheta, não se preocupou em pegaruma toalha e se cobrir. Estava grogue, a cabeça em pandarecos.“Que se foda! – pensou – Seja quem for, isso não é hora de baterna casa de ninguém”. Destrancou a chave, assoviando AnaCarolina. “Eu não vim aqui pra entender ou explicar, nem pedirnada pra mim, eu vim pelo que sei, e pelo que sei, você gosta demim, é por isso que eu vim”. Escancarou a porta até o canto.Espanto total. Diante dele, a gostosura da vizinha do 301.

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QUANDO EU ERA PEQUENO, TINHA UM MEDO terrível, que me pelava todo, da Cuca, que vovô João, dizia, atoda hora, viria me pegar, se eu fizesse alguma coisa errada, e melevaria dentro de um saco preto para um lugar distante. E eu faziamuita coisa errada, porque era criança e criança não tem odiscernimento das pessoas adultas, de saber distinguir o que écerto e o que é errado, de diferenciar entre o feio e o ridículo, oude separar o bem e o mal, como o joio do trigo. E fazendo coisaserradas, entrava na “bainha do facão”, uma espécie de protetorde couro duro onde vovô João guardava um facão enorme, usadopara cortar cana na vendinha, onde comercializava pastéis, quibes,coxinhas e caldo de cana. Essa bainha de facão odiosa entrava emcena quando eu o tirava do sério. Se transformava, de repente,numa espécie de cinto que comia, sem dó nem piedade, por cimado lombo.

Demônios eternos

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     Lembro que vovó Marta acordava muito cedo para fritar umaporção de salgados (já preparados na véspera) para, às sete horasem ponto, a pequena portinha de ferro estar escancarada ao públicoe vovô João aumentar o volume dos seus trocados nos bolsos.

     Morávamos em frente a um grupo escolar, onde, aliás, eutambém estudava, na parte da tarde. Na hora do recreio, o velhoAirão abria a porta de madeira. Um bando de meninos e meninas,entre afoitos e alegres, corria a atravessar a rua movimentada parapegar um lugarzinho melhor na vendinha de meus avós. A maioriada garotada ficava do lado de fora comendo, sentada na calçada,porque não cabia todo mundo lá dentro. À noite, na hora quefechavam, os dois velhinhos faziam a festa, e antes de ser servidoo jantar, ficavam num canto do quarto contando um amontoadode moedinhas. Depois, separavam cada uma pelo seu valorcorrespondente e depositavam em pequenas latas de leite em pó.Só, então, depois de cumprido esse ritual, os dois se separavam.Vovô ia esconder o dinheiro atrás de uma velha estante que haviano quarto do casal, e vovó Marta seguia para a cozinha parapreparar o jantar. Geralmente, a última refeição se constituía numasuculenta panela de sopa com os mais variados tipos de legumes.     Mas a tal da Cuca, meu Deus, essa praga povoava meus diasde manhã à noite. Seguia meu rastro pelos corredores, se faziapresente na sala de aula, me vigiava pelas esquinas e estava semprepor perto, prestes a dar o bote e me matar. O Orlando, umamiguinho meu, que estudava na sala ao lado, era paralítico, semovimentava com a ajuda de dois paus de arrimo e, praticamente,todos os dias, quando tocava a campainha para o intervalo,costumávamos trocar o lanche das nossas lancheiras. Ele falava,com o rosto tomado pelo pavor, que na sua casa havia um bicho“danado de medonho”, que seus pais diziam que se não estudassedireito e repetisse o ano, ele seria entregue tão logo soubessem danotícia pelo boletim. Era o Saci Pererê, um menino mal encarado,

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filho do demônio, que andava pulando numa perna só e fumavaum cachimbo comprido cheirando a enxofre. Com a Aninha, umaoutra coleguinha de classe (que sentava ao meu lado direito) nãoacontecia diferente. Aninha morava com uma tia feia e chata, decabelos avermelhados, duas casas abaixo da minha. Não tinhamãe, nem pai. Eles morreram quando atravessavam o leito da viaférrea, num acidente horrível, envolvendo o carro de passeio, emque viajavam e o Litorânea, um trem expresso, de passageiros,que cruzava a cidade, tarde da noite, vindo da capital, com destinoao interior. O bicho da Aninha era o Boi da Cara Preta. A simplesmenção desse troço a deixava em pânico, aos prantos e em estadode choque.

     Porém, o tempo passou. A infância cedeu lugar ao mundo adulto.Cresci, virei gente grande. Casei. Arranjei um monte de filhos.Hoje, olhando para eles, percebo que a mesma história dos temposdos meus avós, das tias e dos pais dos meus amiguinhos de infânciacontinuam se repetindo, indefinidamente. E com certeza, serãoeternos, movidos pelo medo e pelo ressentimento que cada umcarrega dentro de si. Serão imortais esses malnascidos,alimentados pelas línguas dos nossos entes queridos e amados,que ainda conseguem ressuscitar e fazer desses demônios, bichosde aparências indescritíveis, com sete cabeças e mil braços,invencíveis e indestrutíveis como os fantasmas iracundos que estãodentro de nossos corações.

     A Cuca não pega, o Boi da Cara Preta não assusta, nem levaninguém para lugar algum. Tampouco o Saci Pererê, e tantos mais...     Nada  disso  existe.  Esses  seres  inexpressivos  são  figurasmitológicas, sem alma, frutos de mentes doentias que lhes davamvida e forma, movidos por uma imaginação tacanha. O nosso medobobo, por eles todos, está bem aqui dentro do peito, escondido,inoculado, como uma vacina de horrores, pronto para entrar em

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cena a qualquer momento. Eu sou a Cuca, o Orlando o Boi daCara Preta, a Aninha o Saci, ou vice-versa. Nós próprios criamosum receio que não existe e vivemos com ele, como se fosse umadoença incurável, para o resto de nossas vidas. A Cuca,definitivamente não estará, jamais, espreitando quem quer que seja,no final do corredor, nem o Saci Pererê entrará por uma janelaque ficou aberta, como igualmente o Boi da Cara Preta não correrá,desembestado, em volta da casa, intencionado em levar, com ele,preso aos chifres, uma menininha linda que não quis dormir de luzapagada. A escuridão sombria é o pavor medonho do nosso quarto.Somos nós mesmos, idiotas petrificados, refletidos no espelho donosso terror. Como a luz benigna que se acende, também vem dedentro de nós e se espalha como o sol bonito lá fora, por todo oinfinito que o Criador nos deu de presente. Esses demônios têm avida que lhes damos e respiram o ar que colocamos em suasnarinas. Como fazia vovô João. Por isso, essas criaturas semovimentam, segundo nossas vontades. Esses bichos-papões queandam, à solta, pelos becos e guetos de nosso dia a dia, aamedrontar, hoje, nossos filhos, e amanhã, e certamente depois,tirarão o sossego e o fôlego de nossos netos e bisnetos, estão eestarão vivos dentro de cada um que os queira alimentar. Estão eestarão presentes em nosso caminho, como aquela gigantescaárvore do mal, fazendo uma sombra escura cair, pesada, por sobrenosso futuro. Precisamos, pois, cortá-la, para que não tenha maisvida plena. Arrancar, de uma vez, a raiz maligna que nasce docentro da nossa alma e brota, como se tivesse mil tendões.Precisamos exorcizar esses demônios, banalizar a barbárie, demaneira que só restem deles, uma lembrança longínqua, esquecida,apagada, atenuada para sempre, num canto ermo da nossamemória.

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O MENINO ENGRAXAVA SAPATOS NO CENTRO DAcidade e, naquele momento, cruzava a ponte, voltando para casacom sua caixinha debaixo do braço. De repente, seus olhos argutose muito vivos avistaram a peça que descia rio abaixo, ao sabor dovento morno da tarde ensolarada. Como um doido danou a corrergritando para o pessoal que bebia cerveja na birosca do Waldemar,em torno de um outro grupinho que tocava cavaco, surdo, reco-reco e pandeiro:

- O sofá, o sofá! Venham ver, o sofá!     A rapaziada se pôs de pé e acorreu para onde o molequeapontava o precioso achado. Em pouco tempo, uma multidão demoradores da Favela do Elefante, ao ouvir a gritaria e perceber ocorre-corre, engrossou a massa dos curiosos. Era assim, qualquernovidade mudava o quadro daquelas famílias humildes. Num abrire fechar de olhos, o cotidiano de cada um saía do marasmo eexplodia para uma espécie de alvoroço inusitado. A miséria seescondia num canto e em seu lugar nascia o momento mágico doirreal e do ilógico. Saídos de ruelas e becos os mais diversos,homens de bicicleta e sem camisa, mulheres com crianças no colo

Zona de impacto

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e agarradas às barras de seus vestidos imundos, paravam osafazeres. Os comerciantes cerravam as portas de suas vendas elojinhas para se juntarem à raia miúda que, em polvorosa, seacotovelava em fila tripla, espalhada por toda a extensão ribeirinhacom a finalidade de bisbilhotar o que o rio trazia em seu leito.     Misturado em meio a tubos de óleo, pedaços de sacolas, sacosplásticos, latas de cerveja e refrigerante, garrafas descartáveis,restos de acampamentos e piqueniques, lá vinha, boiando, meiocapenga, o enorme sofá vermelho de curvim. Nessas alturas,alguém lembrou de chamar o Rubião Mathias, líder comunitário,que, junto a um vereador local e um representante do prefeito,faziam um trabalho voluntário exatamente no sentido deconscientizar os cidadãos da periferia a não jogarem dejetos novelho rio que, às vezes, dava a impressão de estar morrendo emlenta agonia. Mas não estava. Quando chovia a favela virava uminferno. Se o temporal perdurasse por muitas horas, as águas subiamacima do nível normal, atravessavam o asfalto, engarrafavam otrânsito, invadiam os barracos e, muitas vezes, deixavam famíliasinteiras ao desabrigo. Afora o desespero de perderem o poucoque possuíam, a tragédia, nessas ocasiões, não vinha sozinha. Traziaconsigo a desgraça e a incerteza de um amanhã cheio de dores. A maioria das cabeças de porcos que ocupava, praticamente,todo o terreno, no qual se fundava o vilarejo dos casebres, eraconstruída com caixas de papelão, depois envolta em plástico ecoberta com folhas de zinco. Muitas vezes, essas construçõesprecárias não resistiam ao temporal e, em consequência, vinhamabaixo e, com eles, a desgraça de alguém aparecer morto - tentandoresgatar um aparelho de TV, roupas de cama e até comida - nahora precisa, não atinava com o bom senso de largar tudo e escapara tempo de salvar a pele. Mas nesse dia não havia chovido. O diatranscorrera calmo e sossegado. O rio apresentava um cursocoberto por uma película oleosa, em que uma variedade de micro-organismos perigosos proliferava a céu aberto. Sem contar noscinco milhões de metros cúbicos de sedimento, lixos e afluentesde esgotos industriais e domésticos. Bem, ainda, coliformes fecais

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e descargas de outros afluentes que terminavam se juntando a ele,a rotina seguia sua sequência normal.

     Não fosse, igualmente, o pestinha ter dado o alarme, a favelafindaria o resto da tarde em clima de total tranquilidade:

- O Sofá, o sofá. Venham ver!

     O que  teria  de  tão  extraordinário naquele  cacareco mal-ajambrado para movimentar uma centena de desocupados e vadiosem torno de sua presença? Por que a favela em peso se levantounum salto gigantesco para lhe colocar os olhos em cima? Não eraapenas um velho móvel vermelho de curvim? Que estranho mistérioo envolvia?    As respostas estavam condensadas num fato acontecido háalgumas semanas. Um traficante conhecido como “ChiquinhoFumaça” havia sido preso junto ao seu bando num arrastão que apolícia fizera, sem aviso, em sua brejada. Os representantes da lei,contudo, não encontraram nada do que procuravam, ou seja,cocaína, pedras de craque e maconha. O “Chiquinho” comandavauma boca de fumo da pesada no coração da favela, mas na horado “pega pra capar”, não havia nada que o incriminasse.     O sujeito parecia ter trato com o Coisa Ruim. Algumas horasantes de ser levado para a carceragem, como que adivinhando eantevendo os acontecimentos, operou um processo de“engravidamento” no sofá, ou seja, acondicionou tudo que serelacionava ao seu comércio ilegal numa espécie de fundo falso,bem camuflado. Contratou um carroceiro de fora da favela etransportou o “material”, incluindo dinheiro, joias e uma vultuosaquantia de dólares para a casa de uma de suas amantes que moravanuma outra favela, não muito distante, também, por coincidência,à beira do mesmo rio e, cujo endereço até o próprio diabodesconhecia. O interessante, nessa história, é que a moça quereceberia o sofá sabia que o companheiro vivia às margens da lei,contudo, não atinava com o segredo valioso que ele escondiadentro de si.

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     Na segunda noite, contudo, o inesperado aconteceu:O “Chiquinho” apareceu enforcado misteriosamente em sua cela.Sua morte foi comentada em todos os jornais e programas detelevisão. A amante, logo que soube dos fatos, e, temerosa de sever envolvida com a Federal, resolveu ir embora da cidade. Fezas malas e, antes de abandonar, de vez, o barraco achou por bem“dispensar” o sofá, atirando-o ao rio.     Quando a notícia da morte de “Chiquinho” se espalhou pelafavela do Elefante muita gente, na calada da noite, resolveu tomarposse dos bens do falecido. Todos sabiam que o camarada tinhaculpa no cartório. Só não sabiam como os homens da lei não oflagraram com a boca na botija. Em meio a tanto disse-me-disse,a vizinhança e os próprios colegas de infortúnio, por unanimidade,concluíram que o espertalhão havia “enxertado”, de alguma forma,o velho sofá vermelho de curvim e sumido com ele sabe Deuspara onde. A prova disso é que a polícia ficou de mãos abanando,a ver navios...      Depois de alguns dias, caso passado, outros investigadoresretornaram à favela a fazer perguntas. Claro que uma pá de gentelembrou-se do carroceiro e da carroça fretada. Claro que uma páde gente chegou a ver, realmente, o sofá vermelho saindo, numaboa. Porém, nesses lugares, ainda impera a lei do silêncio.Conclusão: mesmo que algum idiota tivesse visto ou presenciadoqualquer tipo de manobra estranha, faria, com certeza, vistasgrossas, ou colocaria um zíper na língua para não ser assassinadoe amanhecer com a boca cheia de formigas.

     Mas, na tarde daquele dia, a porra do menino voltava da cidade,onde trabalhava engraxando sapatos. De repente, no meio da ponte,seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia rioabaixo, ao sabor do vento morno da tarde ensolarada:

- O sofá! Venham ver! O sofá do Chiquinho está vindo ali,venham, venham depressa! Tanta gente se fez ao rio que, em menos de cinco minutos, ovelho sofá, como por encanto, desapareceu.

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TENHO UM AMIGO COMUM, O PEDRA NA VESÍCULAque, impreterivelmente, nos finais de semana, não deixa de bebera sua cachaça. Chova ou faça sol, haja algo ou não para comemorar,lá está ele, fiel a sua companheira.

     Outro dia, ao socorrer uma jovem que fora atropelada notrânsito, fui parar, quase às duas da madrugada, num pronto-socorro desta cidade. Para surpresa minha, quem não encontrona recepção, com a cara toda arrebentada preenchendo uma fichapara ser atendido? Ele mesmo, Pedra na Vesícula. Entre espantadoe boquiaberto (ou mais boquiaberto e desesperado pelo fato deter me visto) lhe perguntei, de chofre, o que havia acontecido.Meio estonteado e titubeante, na verdade, mais para lá do quepara cá, o coitado explicou com uma voz bastante rouca:

- Foi a pia. Se estou aqui, agora, neste estado lastimávelque você está presenciando, agradeço a ela. Unicamente a ela.

- A pia? Mas que pia?

- Pelo amor de Deus, Barbosinha. Você não sabe o que éuma pia?

Foi tudo culpa da pia

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- Claro que sei o que é uma pia. Mas que relação podehaver entre uma pia e esse seu estado deplorável?

- Vou tentar ser objetivo. Como sempre faço, depois doserviço, passo na birosca do Aleijadinho. Tomo umas geladinhascom alguns amigos de copo para calibrar o organismo debilitado.Depois de algumas boas rodadas, acabo de chegar no lar docelar. Entro direto para o banho, janto, vejo um pouco de novela natelevisão e, então, vou para um quartinho que tenho nos fundos.Não sei se você sabe, mas eu construí um cômodo nos fundos láde casa. Na verdade, fiz uma puxadinha para a Narcisa, minhafilha, que vai casar até o final deste ano. Lembra da Narcisinha?

- Mais ou menos. Quero saber da tal história da pia.Não enrola e conta logo.

- Calma, homem, eu chego lá. Como estava dizendo, medirigi para o quartinho. Sempre que resolvo “embriagar” os ossos,encharcar a alma, me desligar dos problemas, me tranco nesseaposento e “meto bronca”. Bebo até o copo fazer bico e a garrafapedir arrego. Minha mulher, a Rita, que você já conhece, nãoaprova a ideia. Aliás, ela odeia quando bebo alguma coisa, mesmoque seja uma xícara de café. Acredito até que pretendia “tirar uma”e eu não estava muito a fim. Não é todo dia que você está comvontade de “dar no coro” e esquentar aquelas partes secretas,não é mesmo? Conclusão: a filha da mãe me pegou de porrada ea coisa acabou nesse quadro que o companheiro está vendo comos próprios olhos.

- Mas espera lá. Você não falou que não foi a Ritinha?

- De fato.

- Então?

- As “cacetadas” que a Ritinha me deu, você sabe, nãofizeram nem cosquinha. De mais a mais, tapinhas de amor não

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doem. A culpa realmente foi da droga da pia.

- Está bem. Sou todo ouvidos.

- Na verdade, tenho sempre em casa dez ou doze garrafasde aguardente, da “boa”. Coisa de primeira. Acontece que a Ritinhabateu na porta do quartinho e me chamou para ir deitar. Iniciamosuma pequena discussão. Entre tapas e beijos ela resolveu medir asforças e avançou resoluta para cima de mim, de cabo de vassourae me obrigou a jogar as garrafas fora. Imagine!

- Você não obedeceu, não é mesmo?

- Nem poderia. Como já estava grogue, ou para lá deBagdá, peguei a primeira garrafa, bebi um copo e joguei o restona pia.

- Continue.

- Peguei a segunda garrafa, bebi outro copo e joguei,também, o que havia sobrado dela, na pia. Parti para a terceiragarrafa e aí fiz o seguinte: mandei para dentro o resto da água queos passarinhos não bebem e joguei o copo na pia. Voou vidropara tudo quanto foi lado. Com a quarta garrafa não foi diferente.Bebi na pia e joguei o resto no copo.

- Como é que é?

- Você já vai entender: na quinta garrafa, eu peguei umatigela cheia de tira-gosto e atirei para o cachorro.

- Para o cachorro?

- É. Mas ele não estava a fim. Deu uma cheirada básica efoi embora. Meu cachorro não se dá bem com nada que tenhapimenta do reino. Depois disso eu joguei uma tampinha de garrafanos cornos da Ritinha. Ela fica fula da vida quando eu atiro umatampinha de garrafa em seu rosto. Não sei o que tem contra astampinhas.

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Acredito que seja trauma de infância. O pai dela, que já morreu,meu sogro, que Deus o tenha, trabalhava numa fábrica de rolhas etampinhas de garrafas. Pois então. Enquanto ela se desvencilhavada tampinha, aproveitei e ingeri, de uma só vez, toda a bagaceira.Depois, passei a mão na sexta garrafa, meu chapa. Corri para apia, corri com vontade e, antes de chegar nela, bebi seu conteúdo.Bebi na moral, sem ao menos respirar. Ato contínuo joguei o copono resto.

- O quê?

- O copo no resto, cara. Joguei o copo no resto. É difícilentender o meu papo?

- Vá em frente...

- A sétima, meu prezado, peguei no resto, enfiei o dedonos olhos da nossa empregada, a Lucrecinha, que veio correndo,quando se apercebeu do bafafá comendo solto e, antes dela mexingar todinho, bebi a pia.

- Bebeu... Bebeu a pia?

- Isso mesmo. Na seguinte, nem lhe conto! Que loucura!Passei a mão no copo, arranquei a pia do lugar e a arremesseicom tudo, contra a nona garrafa. O troço caiu no chão e explodiucomo uma bomba, dessas caseiras.

- Você ficou louco? Pirou de vez?

- Calma, deixa eu acabar de concluir.

- Ta legal. Prometo não interromper mais.

- Pois bem. Por derradeiro, joguei a décima garrafa nocopo, tropecei na décima primeira e me atirei, incontinente(enquanto segurava a décima segunda garrafa debaixo dos braços)de cabeça, na pia.

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Gêmeas

BILICO TANAJURA INVENTOU DE PEGAR UMDESSES COFRINHOS DE plástico que essas financeirasdistribuem nas ruas, a título de chamarisco, para angariar clientesnovos. Caiu na besteira de levá-lo para casa. Um fiasco. Logoque meteu a cara dentro do apartamento, topou, na sala, comCrístiam, uma das suas filhas. A pequena correu em sua direção,para beijá-lo e, ao fazê-lo, descobriu o cofrinho num dos bolsosdo paletó.

     - É meu, papai, é meu?

     - Sim, trouxe para você.

     - Oba! oba!

     Lembrou, então, da Cristiane, gêmea da Crístiam. Coçou acabeça. Acabara de criar um problema muito sério. Tentandoremediar a situação, saiu correndo atrás da filha, mas a pequenasapeca já havia sumido pela porta da cozinha. Certamente irialevar a novidade para a amiguinha de escola que, coincidentemente,também era vizinha e morava dois andares acima. Tarde demais.O que estava feito, não tinha como desfazer ou remediar.

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     Pediu  uma  cerveja  à  empregada  e,  enquanto  a  Lurdinhapreparava a bebida, foi ao quarto e se livrou das coisas queincomodavam . Odiava sapatos sociais. Terno e gravata, então,representavam a morte. Meteu os pés num chinelo, vestiu umabermuda meio surrada e pegou uma camiseta na gaveta dacômoda. Retornou à sala. Ligou a televisão. Passeou pelos canais.Nada de bom. Lembrou que comprara um DVD e havia um filmena estante que ainda não assistira. “Vai ser agora”.

     Lurdinha chegou com a cerveja e um potinho de porcelanacom azeitonas verdes, seu tira-gosto preferido. A serviçal estendeuuma toalhinha e acomodou tudo numa mesinha de centro.

- Mais alguma coisa, doutor?

- Minha mulher ligou?

- Chegará às oito. Hoje é quarta-feira e o senhor sabe, elatem dentista.

- Cadê minha outra filha? A Crístiam eu sei que está nacasa da Samara. E a Cristiane?

- Foi ao shopping com dona Esther, sua sogra.

     Bilico apertou o play. Acomodou as costas numas almofadas ebotou as pernas para cima. Depois de um longo dia, alguns minutosde relaxamento no conforto aconchegante do velho lar. Sem mulher,sem as crianças, sem a sogra vigiando cada gesto seu...Que maravilha, ele sozinho, como um rei, só com a empregada aseu serviço. Bastava estalar os dedos e lá vinha a coitada correndo,solícita, atenciosa, um amor de pessoa. O filme começou.     Bilico Tanajura gritou à Lurdinha que lhe renovasse as azeitonase trouxesse mais uma geladinha. O filme estava na sua melhor parte. De repente, entra na salaa Crístiam agarrada nos cabelos da Cristiane e a avó na cola,fazendo mais barulho que as duas, na tentativa de acalmar osânimos entre as briguentas.

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- Parem com isso, meninas, parem, pelo amor de Deus!

     Crístiam não arredou pé. Continuou mantendo a irmã submissaàs suas garras, presa pelos cabelos. Cristiane, sem saída,praticamente sendo arrastada, gritava e choravadesesperadamente. Bilico deu um salto do sofá e olhou feio paraas duas.

- Alguém pode me dizer o que é que está acontecendopor aqui?

- Ela pegou meu cofrinho.

- Ele é meu. Eu não peguei.

- Papai trouxe e deu pra mim.

- Mentira. Esse aqui é meu.

- Sua louca. Fui eu quem achou no bolso de papai.

     E tome puxada de cabelo pra cá, beliscada pra lá, chutes etapas.

Bilico deu um berro.

- Calmaaaaaaaaaaaaaaa! Querem, por favor, me escutar,as duas?

     Ambas se aproximaram. A sogra de Bilico aproveitou o ensejoe veio na onda. Botou o dedo no rosto do genro.

- Você não tinha nada que ter dado essa porcaria a Crístiam.Olha só a confusão.

- Dona Esther, as filhas são minhas.

- Mas eu sou a avó.

- E eu o pai, esqueceu?

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- Vá à merda...

- Se a senhora for comigo, cheiraremos juntos!

     A velha partiu para cima do genro. Foi contida pela filhajuntamente com a Lurdinha que milagrosamente apareceram emcena e trataram de apartar os contendores na hora em que o circocomeçava a pegar fogo.

- Mãe, por favor. Lico tenha modos. Por que toda essaceleuma?

Antes de responder a velha retirou de dentro de uma sacolade supermercado um pequeno cofrinho em formato de porco.

- Por conta desta bosta que esse energúmeno trouxe darua e deu a Crístiam. Esqueceu que tem duas crias. Esse negóciode preferência é um caso sério!

- Não tenho preferência, ô velha jararaca, caninana. Gostodas duas com a mesma intensidade. Vai ver se estou na esquina...

- Me arranja um cabresto. Se você estiver por lá, euaproveito e lhe trago preso nele. Evita que perca a caminhada.

- Chega. Silêncio, os dois. Mãe, para o quarto.

     Dona Esther não se deixou amedrontar. Mandou bala:

- Burra...

- Mãe!

     A velha saiu furiosa, indignada, soltando marimbondos pelaboca.

- Você não acha que já está bem grandinho para ficarimplicando com minha mãe? Olha a idade dela.

- Querida, foi ela quem começou. Eu estava quieto, no

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meu canto, tomando minha cerveja, vendo meu filme. Pergunte àLurdinha.

     A esposa de Bilico ia retrucar, mas Crístiam interrompeu adiscussão.

- Pai, quem é que vai ficar, afinal, com essa droga decofrinho?

     Bilico fez uma cara de ternura e contemplou a jovenzinha queolhava para ele muito séria.

- Você, quem é?

- Sou Crístiam, pai.

- Mentira. Ela é a Cristiane. Eu sou a Crístiam.

- Pai, não vê que ela só está tentando confundir a gente?A Crístiam sou eu.

- Vamos fazer o seguinte. Primeiro provem pra mim, quemé quem. Estou vendo, na minha frente, duas meninas como setivessem saído de uma máquina xerox. A mesma aparência umada outra, cabelos semelhantes, olhos inconfundíveis, penetrantes,sem falar que estão vestidas identicamente. Até os rostinhos nãodiferem em nada. Nenhum traço, nenhuma manchinha ou pintinhapara distinguir e afirmar, categoricamente esta sou eu, e, esta nãosou eu. Querem ver. Crístiam, quantos anos você tem?

- Cinco.

- E você Cristiane?

- Também.

- Qual é a cor dos seus sapatos, Crístiam?

- Pretos.

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- E os seus, Cristiane?

- Pretos.

- Muito bem. Você é a Crístiam e ela a Cristiane.

- Lógico que não, pai. Eu sou a Crístiam.

   - Eu é que sou.

- Tenham calma. A confusão perdura. Farei uma perguntabásica. Quem acertar leva o cofrinho: onde é que ele estava quandoeu botei os pés aqui em casa? Quero saber exatamente de qualdos meus bolsos ele saiu. Esquerdo ou direito?

- Esquerdo pai.

- Sua tonta, você errou. O cofrinho estava no bolso direito.

- Esquerdo, pai

- Direito.

Bilico rodava as duas irmãs em volta de si e começavauma brincadeira que dava gosto presenciar. Homem de paciênciachegou ali parou.

- Agora que embaralhei as duas, quero saber uma coisa:afinal, quem é você?

- Eu sou a Crístiam pai e ela a Cristiane.

- Eu é que sou a Crístiam. Pensa que papai é bobo.

Bilico voltou a se sentar no sofá. Sorveu um gole da cervejae, em seguida, se voltou para as irrequietas princesinhas:

- Estamos, realmente, diante de um impasse.

- Que impasse, pai?

 

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     - De saber no meio dessa confusão toda, quem é a Crístiame quem é a Cristiane. Vamos tentar de novo: Quem é você?

- Eu sou a Crístiam, já cansei de falar.

- E ela?

- A Cristiane, quem mais poderia ser?

- Eu sou a Crístiam.

- Vamos fazer de conta que estamos numa audiência notribunal. Eu sou o juiz. Darei, agora, o veredicto. Como ninguémaqui me provou quem é quem, de verdade, e, ainda, levando emconta o fato que, nenhuma das duas lembra em qual dos bolsos domeu paletó estava o pivô desta balbúrdia, e como até eu mesmo,como pai, não saberia dizer quem é a Crístiam e quem não é aCristiane, e, sobretudo, levando em conta, que se eu devolver ocofrinho à suposta Crístiam, a Cristiane, sua irmã, ficaria emdesvantagem e vice versa... Se pensarmos nessa hipótese simples,no fundo, eu, indiretamente beneficiaria uma filha e deixaria a outradescontente. Por todas essas razões, eu informo às lindasmademoiselles, que o simpático cofrinho acaba de ser confiscado.A partir deste momento ele é meu. Agora, minhas bonequinhas,lindas do papai, com licença. Vou me preparar para o jantar.

Seguiu, sorrindo em direção ao quarto levando o bendito cofrinho.

- Viu só. Você mentiu para o papai. Eu sou a Crístiam.

- Chata, burra, nojenta. Você é a Cristiane. Eu é que sou aCrístiam.

A mãe fez cara feia, ralhou, deixando claro que, enquantoestivessem sentadas na mesa, comendo, não queria ouvir nem umpio. Obedeceram prontamente. Todavia, continuaram a trocarfarpas com os olhares carregados de insatisfação. Se ódio matasse,certamente morreriam ambas, em conseqüência dele.

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BORIS TORQUATO PIMENTA DE ARAGÃO YARAGÃO, com ipsilom, doutor em medicina pela Sorbonne, deParis, cuja profissão exercera por quase cinquenta anosininterruptos, tornara-se conhecido no tout paulista da feminilidadegraças a sua dedicação ímpar às clientes, seguida de umademonstração de carinho e dedicação incondicionais. Amava osacerdócio médico e vivia feliz envolvido nos dramas de cadapaciente fazendo deles, não um cliente, mas um amigo em potencial,cujo sentimento ficava para sempre.     Profissional competente alçou às culminâncias do sucesso, dafama e da glória e se tornou, com o passar dos tempos, um beauvivent. Só não chegou a se aposentar como tal, tendo em vistauma internação quase que às pressas, num sanatório desta cidade.Os motivos? Estresse, depressão, loucura, sabe-se lá. Algum malsúbito, todavia, lhe penetrou lentamente às faculdades mentais qualse fora um unguento tresloucado, acompanhado de um bálsamoque espatifou seu cérebro lhe fazendo experimentar as sensaçõesda imprudência e os descaminhos das tropelias.

Doutor Boris

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Segundo o diagnóstico do psiquiatra que o atendeu, o DoutorBoris passou a acrescentar no final das frases, e em tudo mais quedizia, aquele trocinho que toda mulher traz no meio das pernas.Isso mesmo. A perseguida, a vulva, a vagina ou como épopularmente conhecida, pela alcunha de boceta. Dessa forma,ele não mais senhor de si, alcançou um aflitivo tumulto espiritual e,em vista disso, parecia débil e vencido pela enfermidade dainsensatez.  Nessa agonia sem precedentes, jungida à canga dainsanidade que o finava consideravelmente, precisaram afastá-lodos consultórios e dos hospitais onde dava plantões diários, bemainda do convívio familiar.

     Contam,  os mais  chegados,  que  tudo  começou  ha  duassemanas, ou mais precisamente num domingo, em meio a umchurrasco entre companheiros e funcionários da sua clínicaparticular, amigos, respectivas esposas e filhas no aconchego desua suntuosa mansão, aberta nos finais de semana às reuniões dafrivolidade social. A certa altura, teria o vistoso anfitrião passado acomentar sobre filmes assistidos. Doutor Boris falava comentonação de quem sabia o que queria expressar.

- Ontem, Matias passou, num desses canais pagos,“A Sociedade das vaginas mortas” e, logo depois, o clássico infantil“Alice no país das vaginas”. Mas o que mais me chamou a atençãofoi o que tive o prazer de acompanhar, logo a seguir, em outrocanal, se não me engano naquela da Seção Pipoca, quase já nofinalzinho, “A Insustentável leveza da vagina”. Fantástico! Nasequência, exibiram “Os caçadores da vagina perdida” e...

     Dizem que um amigo tentou intervir mudando o rumo da prosa:

- Boris, você teve oportunidade de ver “O Exterminadordo futuro”?

- Não, meu prezado, mas em compensação, assisti, porcinco vezes seguidas “Apertem os cintos, a vagina sumiu” e “Osfilhos de vagina”, seguido de “Corra que a vagina vem aí”.

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- Credo, que é isso?

- A propósito: qual de vocês aqui teve o desprazer de ver“Loucademia de vaginas” e o “Massacre da vagina elétrica”?

- Boris, pelo amor de Deus, pare com isso. Olhe assenhoras...

     O velho médico não estava nem aí para as madames presentesque conversavam num canto, animadamente.

- Pretendo ver amanhã “2001 Uma vagina no espaço” e“As vaginas do senhor reitor”.

     Um outro do grupo tomou a frente:

- Boris, vamos ver como estão as panelas lá na cozinha?Estou com uma fome!

- Antes deixa acabar de concluir aqui para o nosso colegacardiologista os filmes que loquei final de semana retrasada: “Vaginaem fuga, A última vagina do resto de nossas vidas, Eu sei o que asvaginas fizeram no verão passado, Romeu e Vagina e Uma lindavagina, com Richard Pau e a Julia Vagina”.

     O tal cardiologista tentou levar na esportiva sem perder aserenidade:

- Boris, chegou a assistir “O Morro das bocetas uivantes”?- Infelizmente um sujeito chegou antes de mim. Mas não

me fiz de rogado. No lugar dele eu trouxe “Doze homens e umavagina, Sociedade das vaginas mortas, A vagina do diabo e Aespera de uma vagina”. Para meus netinhos escolhi “Vagina aranhaI e II e A Ilha da vagina cortada”. Ainda ganhei de brinde “A vaginade Brair e O rapto da vagina dourada”.

     Diante da insistência do amigo, achou melhor desconversar:

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- Que tipo de literatura você aprecia, Boris?

- A boa, a impecável. Para seu governo, tenho lido muitode uns tempos para cá.

     Parecia estar dando resultado. Todos aplaudiram em silêncio.

- Qual seu autor preferido?

- Poderia enumerar vários deles. Minha nossa...

- Diga alguns nomes.

- Bem, acabei de ler o Luiz Vagina e Carlos Vagina. Apreciotambém os clássicos como José Vagina, Jorge Vagina, Érico Vagina,Clari Vagina, Maria Vagina e, claro, Antonio Vagina de SantaCopacabana

     O que convidara o Doutor Boris para ir até a cozinha não podedeixar de soltar uma estrondosa gargalhada.

- Vamos falar de música.

- Aproveitem e coloquem o CD que eu trouxe da Lizete.

- Que me dizem, antes da Lizete, o Jorge Plutão?

     Doutor Boris arrancou o copo de cerveja da mão de um deseus convidados e mandou bala:

- Nada de Jorge Plutão. Minha filha me deu de aniversárioo último do rei Vagina e Chico Vagina. Independentemente dessesque acabei de citar, tenho, lá na estante - caso alguém queira variaro repertório - Vagininha preta, Mel Vagina, Banda Eucaliptovaginae Pobre e Vagina.

     Dois outros inventaram de acomodar o Doutor Boris numarede armada entre duas grossas pilastras em frente aos banheiros

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que serviam a piscina. Talvez o álcool ingerido o fizesse pegar nosono.

- Deita um pouco e relaxa, amigão!

- Não estou cansado.

- Quer ver televisão? Alguém sabe onde está o controle?

- Televisão? A essa hora?

- Sim, estamos todos querendo ver o jogo. Não é galera?

     A turma gritou um sim alto e uníssono.

- Meus queridos, neste exato momento está começando oFeriadão do Vaginão. Não seria melhor mudar para o canalportuguês?

- Tem algum filme lá?

- Vai começar, daqui a pouco, um filme que considerosensacional.

- Qual?

- Se não me engano, Efeito borboleta.

- Acertou em cheio. Se for esse, não devemos perdernenhuma cena.

     Doutor Boris se serviu de um gole de vinho e voltou à carga.

- Todos aqui estão por fora. O que vai passar na tv, dentrode quinze minutos, é Vagina Indecente com Robert Redvaginfor eDemeu Vagimoore.

- Que tal darmos uma olhada no canal de esportes?

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    Doutor Boris  não  estava  nem  um pouco bêbado  como  aprincípio dera a entender ao seleto grupo de cirurgiões, reunidosnos jardins da sua acolhedora residência. Ao contrário, ele havia,realmente, entrado num tormento indimensional e, por conta dele,pirado mesmo, talvez, quem sabe, pelo excesso de trabalho e anosde dedicação à gloriosa arte de praticar, com zelo e presteza, aprofissão que escolhera. Na frente do sisudo psiquiatra não foidiferente a conduta de comportamento.

- E aí, Boris, tudo na santa paz?

- Tudo.

- Quer me contar o que está acontecendo? Parece umpouco exausto e abatido...

- Estranho! Você me lembra aquele sujeito da “Volta àvagina em 80 dias”... Ou seria o de “Uma vagina de mestre”?Ah, lembrei. O guarda que foi morto dentro da cela naquele filmefamoso o...

-...Dragão vermelho?

- Não, Silêncio das vaginas.

     O psiquiatra opinou, sem maiores circunlóquios, pelo imediatointernamento de Doutor Boris.

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- EU ME CONSIDERAVA FEIO, CARA, MUITO FEIO, disse Leon Ildebrando à Monsueto - um negrão de quase um metroe noventa, seu amigo, desde os tempos de infância - até o dia emque, Mãe Santíssima, não quero nem lembrar! Chega a me dararrepios...

- Continue, disse Monsueto, enquanto ajudava a sorver agelada que comprara para recepcionar o companheiro que vieravisitá-lo.

- A mulher chegou lá em casa, conversamos uma meiahora, na sala, sobre os assuntos mais triviais, tomamos umascervejas, comemos uns tira-gostos e depois começou a pintar umclima. Fomos para o quarto.

- Então, valeu a pena?

Radical

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- Não tenho nada a reclamar. Correu tudo às mil maravilhas.Porém, na hora em que ela se dirigiu ao banheiro, para lavar aspartes pudentes, e voltou sem roupa, enrolada numa toalha...

- Espere aí. Deixa ver se entendi direito. Vocês transaramvestidos?

- Mais ou menos.

- Como, mais ou menos?

- Na verdade, eu fiquei logo peladão. Estava em meuterritório e, em nosso território, ou bem ou mal, somos o rei, omandachuva. Quanto a ela, logo que se deitou a meu lado todafogosa e doida para soltar a franga, pedi que arriasse a calcinha...

- Arriasse?

- É. Solicitei gentilmente que só tirasse a calcinha. Queficasse de saia, blusa e sutiã.

- E ela?

- Achou estranho transar de roupa e tudo, só tirando apeça íntima.

- Chegaram aos finalmentes?

- Sem sombra de dúvidas. Ela, na cama, é divina,maravilhosa.  Faz gato e sapato com uma pica ereta e dura. Senão tivesse acontecido comigo, eu mesmo não acreditaria. Apoderosa tem o dom de colocar o indivíduo para ir e voltar ao céuumas trezentas vezes. Confesso que fiquei de quatro, queixo caído.

- Conta a história da calcinha. Estou intrigado com essaparte. Ela tirou e vocês mandaram brasa?

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  - Sim, nos engalfinhamos até que ela deu uns gritos de feraenjaulada.

- Seriam de prazer?

- Acho que sim. Em seguida gemeu, botou as duas mãosna cabeça e quase arrancou os cabelos, sem contar que se mexiamais que cobra em areia quente.

- Como?

- Cobra em areia quente.

- E cobra se mexe em areia quente?

- Se mexe ou não, meu prezado Monsueto, não posso lheassegurar com precisão. Vovô Gob, já falecido - que Deus o tenhaem sua Glória - dizia que sim e comentava com os amigos dele,quando o assunto girava em torno de mulheres.

- E depois da trepada?

- Como te falei, ela foi tomar banho. Ficou uma hora nochuveiro quente. Pensei na minha conta de luz. Voltou enroladanuma toalha.

- E esfregou de novo o brinquedo na sua cara?

- Pior que isso. Cismou de ficar pelada na minha frente.Não se contentou só de mostrar aquele corpo feio e gordo, maspassou a dançar uma dança esquisita. Você precisava estar lá parapresenciar tudo. Parecia uma avariada maluca.

     Risos

- Diante disso, você caiu em cima dela de novo?- Qual o quê! Tive vontade sair em desabalada carreira.

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A potranca tinha, além do corpo feio, umas pernas horríveis, cheiasde veias verdes. A bunda, meu Deus, horrorosa, descomunal,repleta de estrias. Sem falar na pança enorme, derramando banhapura e, finalmente, o troço...

- Troço? Que troço?

- O sexo dela. A xoxota no meio das pernas. Meu caroamigo, que desatino!

- O que havia com o sexo dela?

- Parecia um filho de cruz-credo desmamado.

- Filho de cruz-credo desmamado? Explique.

- Não tenho como. Pretendia até tirar uma segunda, masao ver o material ali, às claras, bem diante de meu nariz...

- Caiu matando?

- Ao contrário. Apaguei. Brochei!

- E quanto a ela, com relação a você?

- Adorou, disso eu tenho plena certeza. O tempo todoamou estar por baixo de mim. Suava em bicas. A vagabunda estavano seco, no cio, acho que não via um... Acho que não via umavara há tempos.

- Acabou a festa com você de pau murcho?

- Para mim, sim, para ela, não. Tentou, ao seu modo, umasegunda seção.

- O que foi que ela fez?- Caiu de boca. Agarrou no ferro pelo talo e mamou co-

mo nunca vi mulher nenhuma mamar. Saiu de beiço inchado, os

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maxilares doendo. E olha que em matéria de mulher não sou nenhummarinheiro de primeira viagem.

- E como ele se comportou?

- Ele quem?

- O seu... O seu... Pinto, Leon Ildebrando?

- Me sacaneou bonito. Permaneceu de cabeça baixa otempo todo: flácido e mole. Acho que nem assoprando decolaria.Não quis nada com o trabalho. Mas a filha da mãe mostrou quetem talento, garra, determinação, força de vontade. Foi em frente.Não desistiu...

- E o que ela fez? Conta, conta, conta de uma vez.

- Me fez um belo de um fio terra.

- Um o quê?

- Fio terra, cara, fio terra.

- E o que é fio terra?

- Não tenho como explicar. Espere um pouco. Se vocêvirar a bunda eu mostro.

- Virar o quê? A bunda?

- É. A bunda. Sua bunda. Vira ela pra mim, fica de quatro.

- E por que eu faria tal coisa?

- Não quer saber como é o fio terra?

- Querer é claro que eu quero, Leon, mas daí virar o rabopra você...

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     - Não somos amigos, Monsueto?

     - Claro que sim, Leon!

     - Então. Arria um pouco a calça, abaixa a cueca que lhe mostroem um minuto.

     – Vou trancar a porta. Pode, por azar, chegar alguém e atéexplicar o porquê de estar de bunda virada para seu lado... Enessa posição esquisita!

     Monsueto se levanta e chaveia a porta. Ao voltar desafivela ocinto e desce a calça. Em seguida, arria a cueca.

     - Então, me mostra como é esse tal de fio terra.

     - Feche os olhos.

     - Se eu fechar os olhos, como verei você fazer a porcaria dofio terra?

     - Não vai ver, vai sentir. Agora vira a bunda e faça o que mandei.

     - Pronto.

Monsueto, o negrão de quase um metro e noventa, soltou umgrito medonho, um brado de dor e agonia que ecoou por toda acasa. Acabara de levar de Leon Ildebrando uma tremenda de umadedada bem no centro do olho do cu.     

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TANGERINO CHUPADO DA SILVA TRABALHAVANUMA SEÇÃO onde mexia com uma série de arquivos mortos.Por causa deles, passava o dia procurando velhos papéis depensionistas e aposentados que requeriam benefícios ao INSS.O problema é que muitas dessas criaturas já haviam passado destapara melhor, mas alguém, em nome dos falecidos “defuntos”,pretendia uma revisão disso, ou daquilo, enfim, havia uma máfia láfora mamando às custas dos “de cujos” e, claro, dos parentesque, desconhecendo a verdadeira pretensão dos cabeças dagangue, entregavam documentos sem pensar duas vezes nasconsequências de tal ato.

     A  função de Tangerino:  desarquivar  esses  processos  eencaminhar ao chefe da seção que, por sua vez, mandava tudopara o pessoal da perícia. Num desses arquivos, Tangerinoencontrou uma lâmpada tipo a do Aladim. Satisfeito com o achado,pensou num jeito de levar a raridade embora. Talvez a coisa fossemágica. Como todo ser normal, acreditava piamente em sonhos, epor acreditar neles, quem sabe...

Lâmpada milagrosa

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     Na hora do almoço saiu mais cedo e disse ao encarregado queiria atrás de um par de sapatos novos, tendo em vista que os seusestavam, a muito, furados. E realmente isso era verdade. Assim,comprou um modelito vagabundo na primeira loja que avistou. Jogou o velho no lixo e voltou contente para a repartição com acaixa vazia debaixo do braço. Se alguém perguntasse sobre oembrulho diria que ali dentro estava o pisante antigo, que levariade volta para usar nos finais de semana. A ideia era economizar onovo. Continuar surrando o velho. No fundo, a função da caixaera outra: meter dentro dela a lâmpada misteriosa. Assim fez.Orgulhoso da sua vivacidade se gabou do plano que arquitetara.Ninguém desconfiara de nada e ele saiu da sala, passou peladiretoria, pegou o elevador e para não levantar suspeitas, antes deganhar a rua, tomou um cafezinho requentado com o porteiro efumou um cigarrinho com o vigia.

     O trajeto até sua casa demorou uma eternidade enervante.Nunca o trem empacara tanto, da estação Luz até PrefeitoSaladino, onde morava com a mulher, um casal de filhos e umasogra rabugenta. No aconchego do lar, beijou a esposa na cadeirade rodas e o casal de filhos que brincava com Ritinha, a empregada.Só então se predispôs a esconder o pacote num lugar seguro.Pensou em um que seria inquestionável. Havia entre o guarda-roupas e a parede um desvão. Ali Tangerino depositou a caixa.Para despistar a turba de curiosos, pegou uma cadeira quebrada eentulhou com umas roupas que estavam sobre a cama. Essa atitudeajudaria a afastar as crianças.

     Em seguida, se livrou dos sapatos e da camisa. Pegou umatoalha limpa no armário, levou uma bronca da sogra chata, queapareceu de repente reclamando das coisas deixadas no meio docaminho, da camisa suada sobre a cama e da toalha limpa, que elahavia acabado de recolher do varal, para guardar.

     - Por que não usa mais uns dias a que está lá no banheiro?

A outra perna do saci

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     Fazendo ouvidos de mercador Tangerino fingiu não ter escutadouma palavra. Assobiando “Quero que vá tudo para o inferno”, deRoberto Carlos, encostou a porta do banheiro (nunca trancava aporta, tinha essa mania), ligou o chuveiro e mandou a sogra para acasa do Carvalho. Do Carvalho mesmo, melhor não confundircom aquilo que alguns homens costumam não carregar no meiodas pernas.

     O Carvalho, sujeito bom, pacato e humilde. Da mesma idadeda sogra. Vivia paquerando a jararaca. Por azar de Tangerino, amaldita não dava chance para o infeliz levá-la, de vez, para dividiras escovas de dente com ele. O elemento nutria sentimentos nobrescom relação à setentona, todavia, a megera não abaixava a guarda.O fato é que seu Carvalho, duro, e Tangerino, mole, debaixo dochuveiro, quando via água quente jorrando sobre a cabeça,esquecia da vida. Levava horas para voltar a si. Ao menos parapensar na conta de luz e no rombo que sofreria seu bolso, no finaldo mês, quando viesse o talão. Nesse interregno, a velha resolveuir ao quarto do genro e preparar uma muda de roupas. Estavaquase na hora do banho da filha, que por infelicidade, num desastrede automóvel fraturara as duas pernas e estava toda engessada,sem poder se locomover para as necessidades mais prementes.

     Lá chegando, estranhou, de cara, deparar com uma cadeiraencostada no canto com algumas das peças de roupas que ela, hápouco, havia passado. Faltava guardar nas gavetascorrespondentes. Quem as colocara ali? As crianças? Com certeza!

     Sem pensar duas vezes, passou a mão na cadeira. Ao passar amão na cadeira, uma blusa foi ao chão. No que apanha, a velhaenxerida avista a caixa de sapatos acondicionada detrás do roupeiro.

     - Danadinho. Isso é arte do Marcelinho mais a Francisquinha.

Pegou a caixa de qualquer jeito. A caixa se abriu, sem querer,e ao abrir, caiu no chão a estranha lâmpada fazendo um barulho

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seco contra o assoalho. Os olhos da velha se alvoroçaram numacobiça só. Ao ver a joia, seus pensamentos trouxeram à bailatempos passados.

- Meu Deus parece àquela lâmpada do... Como é mesmoo nome do personagem? Ah! Lembrei. Aladim!... Mas espere,pior que é!

     Correu à porta, espiou o corredor. A filha, coitada, estava comos olhos pregados na novela. As crianças brincavam.

- Será que se eu fizer alguns pedidos e esfregar, esse trecofunciona?

     Trancou-se, por dentro, silenciosamente.  Ansiosa e meiotrêmula, não esperou mais. Não custava tentar. Experimentou.Na primeira esfregada, uma grande luz branca começou a surgirdo bico da lâmpada, enquanto uma imensa forma humanamasculina ia se projetando no espaço. Num piscar de olhos pintouna frente dela um gênio com cara de Brad Pitt, esbanjandomúsculos bem trabalhados. Até a voz lembrava o astro, embora atradução do inglês para o português fosse de péssima qualidade.

- Diga, minha ama e senhora. Estou aqui para lhe servir.Peça e a atenderei. Devo informá-la que tem direito a três pedidos.

- Só três?

- Que realizarei imediatamente. Então, madame, o que vaiser?

     A velha estava um pouco atordoada e desconcertada com tudoo que acontecia, mas não se fez de rogada. Pensou por um instantee decidiu.

- Quero minha filha fora daquela cadeira de rodas eandando normalmente.

A outra perna do saci

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- Seu pedido é uma ordem.

     Puf!

     No minuto seguinte, a sogra de Tangerino Chupado ouviu gritosvindos da sala e fortes batidas na porta. Complemente atordoada,correu abrir. Deparou com a filha andando. Marcelinho,Francisquinha e Ritinha, logo atrás, na maior algazarra.

- Vó, a mãe voltou a andar. Cadê o pai?

     Enquanto Francisquinha dava meia volta com Ritinha e ia embusca do pai para lhe contar a novidade, a velha agarrou a mão dafilha e do neto. Praticamente arrastou os dois para dentro do quarto,voltando a passar a chave na porta.

- Mãe, quem é esse cara e de onde ele saiu? Não me digaque a senhora...

- Calma, filha, não é nada do que está pensando. Deixaque depois explico com mais calma. Seu gênio, por favor, vamosem frente: quero ter muito dinheiro para poder viajar e conhecer omundo com minha filha aqui e meus lindos netos.

     E o gênio, solícito.

- Como disse há pouco, madame, seu pedido é umaordem.

     Puf!

     Uma avalanche de dinheiro caiu de um buraco que se abriu noteto. Em menos de um minuto, metade da peça estava abarrotadade notas de cem.

- Meu Deus, Meu Deus, não acredito. Minha filha, estamosricas.

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     O gênio interrompeu a velhota e observou.

- Falta o terceiro, minha ama e senhora. Por favor?

     A velha parou de rir e ficou séria. A filha abraçou Marcelinho eencarou o gênio. A velha olhou para a filha, depois para Marcelinhoe se voltou para o gênio.

- Chega o ouvido aqui, meu bom amigo. Vou mandar oterceiro pedido.

     O encantado, com suas maneiras estudadas e extremamentecorteses, chegou o ouvido perto da velha. Realmente um homembonito, sem falar no porte elegante que lhe emprestava ares de umdaqueles antigos reis que viviam em castelos medievais à beira delagos eternos. Uma pena que vivesse recluso e literalmente“enlampado”.    Tradução de enlampado: mesma coisa que engarrafado.

- Meu terceiro pedido é o seguinte: quero...

     Completou baixinho, sussurrando o restante da frase de maneiraque só o iluminado a escutasse.

- Perfeitamente, madame. Seu pedido é uma ordem.

     Puf!

     Vem lá de dentro, correndo, a Francisquinha com Ritinha atiracolo, segurando, com as duas mãos, um porquinho todomolhado, pingando água pelo chão.

     Praticamente esmurram a porta. Quando a mesma é aberta...

 - Mainhê, olhe só o que achei no banheiro, debaixo dochuveiro!

A outra perna do saci

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                                                                                                                                       AS DUAS FAXINEIRAS SE ENCONTRAM NO corredorde um dos andares do edifício onde trabalham.

      Marli- Biloca, estou pasma! Hoje cedo fiquei sabendo uma da

Lurdinha que me deixou de queixo caído.

     Biloca- A pirua do 301?

     Marli- É.

     Biloca- O que te contaram, Marli?

     Marli- Que ela está saindo com o cara do 403.

     Biloca- O Etevaldo?

  

Fofoqueiras

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       Marli -  Esse  mesmo.  Parrudão,  olhos  verdes,  cabelos

compridos, presos por um elástico de amarrar dinheiro...

Biloca - Tem uma Mitsubishi prata?

     Marli - Tem!

     Biloca- O próprio.

     Marli - Pensei que tivesse caso só com o seu... Deixa pra lá...

As aparências enganam.

     Biloca- Começou fala. Odeio quando as pessoas fazem esse

tipo de sacanagem.

     Marli- Sabe o que é? Depois a bomba estoura nas minhas mãos.

    Biloca - Fala, droga.

     Marli- Esquece.

     Biloca - Ora, vamos. Não confia em mim?

     Marli - Não se trata de confiar, ou não. Acho melhor ficar de

boca fechada.

     Biloca- Ta bom. Não te conto o que fiquei sabendo da Ritinha

do 805.

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     Marli- Você vai falar. Ah, se vai. Que diabo de amiga fui arranjar

que não compartilha os segredos?

     Biloca- Chumbos trocados não doem. Você não quer me dar a

ficha do Etevaldo do 403!

     Marli- Não é que não queira. Já tenho fama de leva e traz por

aqui. Se alguma coisa vem à tona e descobrem que fui eu quembateu com a língua nos dentes, acabo parando no olho da rua.Tenho duas boquinhas para dar de comer, o marido e a sograchata. 

     Biloca- Não seja por isso. Eu também tenho um casal de filhos,

o marido e, graças a Deus, a sogra chata mora sozinha e bemlonge lá de casa.

     Marli- Vamos fazer um trato?

    Biloca- Que trato?

     Marli- Vomite os podres da Ritinha do 805 que eu canto a pedra

do Etevaldo. Tenho certeza de que você vai cair de quatro.

     Biloca - Fechado.

     Marli- Vai guardar segredo?

     Biloca- Sou um túmulo

   

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   Marli- Jure!

   Biloca- Pela minha mãe.

     Marli- Qual delas?

     Biloca - Como qual delas? Só tenho uma. A outra é minha

madrasta, quero dizer, a companheira do meu pai.

     Marli- Então?

     Biloca- Tá. Juro pela minha mãe.

     Marli - Quer ver ela mortinha da silva?

     Biloca- Credo!

     Marli- Sim ou não?

     Biloca- Que seja. E aí?

     Marli- Esse Etevaldo da Mitsubishi está comendo a Lurdinha

do 301 e pulando a cerca com...

     Biloca- Pera ai! Que cerca?

     Marli- Você é mesmo uma burra de pai e mãe. Parece saber

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tudo, mas olha só. Pular a cerca significa que ele está tendo umcaso... Um galho entendeu?

     Biloca - Um caso? Um galho? Com quem? Pelo amor de Deus!

Não é só com a Lurdinha?

     Marli- Não. E Você não faz ideia de quem seja o galho dele?

     Biloca- Gente aqui do prédio?

     Marli- Não exatamente. De fora.

     Biloca- Vamos por eliminação: a gata que vem sempre no 901?

     Marli - Tá frio.

     Biloca- A bunduda que faz as unhas do velhote do 1007?

     Marli - Gelou mais ainda. Última chance.

     Biloca- Me liguei. Caiu a ficha. É a Marieta. Só pode ser a

Marieta. A sem-vergonha quando morava aqui abriu as pernaspra todos os machos do pedaço. E mesmo depois de ter semudado, continua aprontando. Dia desses esteve aqui e deu parao vigia da noite, e depois para o paralítico do 202.

     Marli- Seu Piteco?

    Biloca - Em carne e osso. Ela encarou a muleta dele, numa boa.

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Bem, voltando ao Etevaldo, só falta agora o saradão papar aceguinha do 107 e... E você.

     Marli- Me erra, Biloca. Acha que sou assim tão fácil como

apanhar mosca com mel? Pensa que vou para a cama com qualquerborra-botas? Ainda mais em se tratando do galinha do Etevaldo.E agora, pior, depois do que eu soube. Ainda que assim não fosse.Tenho meu marido, sou bem casada, adoro meus filhos e até asogra chata que é um porre!

     Biloca- Pode até ser, mas soube que andaram te dando uns

presentinhos, apesar de ser bem casada, ter filhos e pá e bola,caixinha de fósforos. O que me diz dos perfumes e das calcinhasexóticas?

     Marli - Tudo mentira. Inveja pura. Olho grande dos brabos.

Quem falou deve estar morrendo de raiva e doido para estar emmeu lugar. Afinal, embora não passe de uma serviçal, não sou dejogar fora. Você mesma já presenciou quando estamos vindo ouindo para o trabalho - que estou arrumada - fica “assim” de carinhasassoviando e jogando piadinhas. É ou não é?

     Biloca- Não mude de assunto. Quem é a nova Felizarda?

     Marli - Que nova felizarda? 

     Biloca- Ora, de quem estamos falando? Do Etevaldo do 403,

que tem um caso com a Lurdinha do 301. Agora você me deixoucuriosa, dizendo que, além da Lurdinha, o Etevaldo estábombeando mais uma. Quem é, afinal, a dita cuja?

     Marli - Preparada?

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     Biloca- Sim

     Marli - Acho melhor sentar.

     Biloca - Estou bem em pé.

     Marli- Senta.

     Biloca- O rodo e o balde de água me seguram. Pelo amor de

Deus, fala de uma vez. Que diabo!

     Marli- Não é felizarda. É felizardo. O Etevaldo joga nos dois

times, amiga. É gilete. Bomba e é bombado.

     Biloca- O quê?

     Marli- Isso mesmo que ouviu. Ele dá o caneco. Gosta de

empurrar o quibe. Come e... Não é preciso falar...

     Biloca - Aquele pedaço de mau caminho, de olhos verdes e

cabelos compridos? Não, não pode ser... Deve ser intriga da galera.Tem muita colega nossa querendo reganhar pra ele.

     Marli     - Todos no prédio estão comentando a nova conquista.

Eu, particularmente, acho uma pouca vergonha, uma indecência.Me admiro a Lurdinha se submeter a sair com ele. Se pega umadoença, babau. E pior é o cara que enraba ele. Casado, dois filhos,esposa carinhosa, os cambaus.

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     Biloca- Tá, deixa de frescura. Quem é o sujeito que manda brasa

nele?

     Marli- Trato é trato. Quero saber da Ritinha, do 805.

     Biloca- Ela está de flerte com Romeu, o porteiro da noite.

Pilharam os dois no maior amasso.

     Marli- Minha nossa. Quem diria. Romeu com aquela cara de

santo...  

     Biloca- Deixa o Romeu pra lá. Já falei o que sabia. Agora quem

é o sujeito que come o cu... Que manda brasa no Etevaldo?

     Marli- É o seu...

     Biloca -...Seu Augusto, o síndico?

    Marli- Psiu! Fale baixo. Quer parar no olho da rua? Não é o

seu Augusto.

     Biloca- Então, quem é? Solta logo essa língua...

     Marli - Acho melhor você ir lá embaixo e pedir a Balduína um

copo de água com açúcar.

     Biloca- Deixa de ser nojenta. Não preciso dessas besteiras. Fale

de uma vez.

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     Marli- Tem certeza de que não vai passar mal?

     Biloca- Fala ou deixo de ser sua amiga. Por tudo quanto é mais

sagrado, não podemos ficar aqui o dia inteiro.

     Marli- Tá bom. Se você faz tanta questão de saber, lá vai a

bomba: o Etevaldo está transando com seu marido.

     Biloca- O quê? O que foi que disse? Repita que não ouvi direito...

Transando com quem? Repita, sua filha da...

     O elevador, de repente, abre a porta e alguém desce. Ambasse dispersam. Sai cada uma para um lado esfregando o chão.

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O REPÓRTER PEGOU TONINHO BAIACU NESTEINÍCIO DE SEMANA, bem no meio da praça, de surpresa.Atrás do repórter, um cara com uma câmara ligada gravava cadapalavra que saía de sua boca, enquanto outro, com uma luz forte,acesa acima da cabeça, suspensa por uma espécie de mastro,tentava jogar o foco diretamente na direção do seu rosto. Em redordos quatro, uma pequena multidão de pessoas começou a formaruma rodinha, até que o cordão humano se tornou coeso e atento,não só às perguntas que eram formuladas, como também àsrespostas do entrevistado. Não se ouvia a respiração de ninguém.Na verdade, todos estavam ávidos para saber o que o jornalistaqueria com Toninho Baiacu (até aquele momento um ilustredesconhecido) e como ele se sairia daquela batelada de perguntas.

- Você me disse que se chama Antônio. E me disse tambémque tem um apelido engraçado. Poderia dizer qual é esse apelido?

- Eu? Pois não: Toninho Baiacu.

Camisa de onze varas

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- E por que Toninho Baiacu?

- Porque desde pequeno aprecio esse tipo de peixe. Baiacué um peixe. Não como outro, por melhor que seja. Daí o pessoallá de casa, meu pai, meus irmãos, minhas irmãs, me chamarem deBaiacu. E pegou...

- Toninho, você vai participar, ao vivo, do programa doFernandinho Cuca Fresca, da Rede Vem que é Mole. Pode ser ?

- Claro.

- Olhando para esta câmera, quando eu falar três. Podemoscomeçar? Um, dois, três. Fernandinho, estou aqui com o Toninho,conhecido na intimidade, como Toninho Baiacu. Por favor, digaum olá para o Fernandinho.

- Olá, Fernandinho, tudo bem? É um prazer muito grandeparticipar do seu programa.

- Toninho, vou lhe fazer algumas perguntas. Aliás, asmesmas que já fiz anteriormente para os dois caras da pesada queestão concorrendo com você. O Marcos e o Cláudio. Presteatenção. Não pode pensar muito, tem de falar o que vier na cabeça,certo? Volto a repetir. O candidato que fizer o menor tempo e dera resposta mais criativa ganhará um final de semana, com tudopago, para curtir, com a namorada, amiga, ou quem ele quiserlevar como acompanhante, para a suíte presidencial do Motel Fomedos Prazeres, do nosso amigo Leo, para quem eu mando um forteabraço e, o mais importante, leva, igualmente, de lambuja, um carroGOL FLEX, zero bala, completo, oferecimento da CorcovadoAutomóveis, do Jorginho Brucutu, que também está ligado no nossoprograma. Preparado?

- Eu? Positivo.

- Você é casado?

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- Eu? Não, sou solteiro.

- Bem, sendo solteiro, fica um pouco complicado. Mas,tudo bem, vamos lá. Saberia dizer para o público aqui presente epara todos os demais telespectadores qual é o maior e o melhortruque feminino?

- Bem, embora seja solteiro, como já lhe falei, tenho, graçasa Deus, um punhado de mulheres aos meus pés. Você me perguntouqual é o maior e o melhor truque feminino. Pois bem: o maior équando a mulher, na cama, nos leva ao delírio, ou a loucura. Omelhor é quando alcançamos, juntos, os finalmente e gritamos:Mengo, Mengo...

- Vejo que o amigo é um flamenguista doente.

- Eu? Com certeza.

- Pois muito bem, quem você levaria para uma ilha deserta?

- Eu? Deixa ver... A Karina Mal Me Quer? Não, muitonova! A Gorduxa? Acho que a Gorduxa não faz o meu tipo. Já sei,a Margarida da quitanda..

- Sentiu o lance aí, ô Fernandinho? Nosso amigo aqui tembom gosto. Mandou bem.

- E por que a Margarida?

- Ela é gostosa demais. Tem um traseiro...

- Três coisas que você pediria, caso ela chegasse aqui,agora.

- Eu? Três coisas? A Margarida?

- Claro.

- Me leva ao céu, beleza. Joga minha cara no chão, e,

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depois pisa com força. Pra me deixar de queixo caído, gamadoem você, espezinha meu coração, amassa até sangrar.

- Companheira ideal?

- Pra mim? Bem, eu... A Monique. Isso mesmo, Monique,uma vizinha do arco da velha, que mora de frente para minha casa.Ai! Me arrepio todo, só de pensar nela...

- Toninho, como você se define?

  - Eu? Bem: gostoso, machudo, bom de cama...

- Consegue marcar quantos gols numa só noite?

- Eu? Bem. Tenho que responder a isso?

- Claro, você está ao vivo, para todo o Brasil.

- Bem, duas, três, sei lá. Depende do pedaço de maucaminho que estiver comigo. Se fosse a minha vizinha Monique,por exemplo, acredito que conseguiria alcançar o clímax umas cincovezes, sem tirar de dentro e sem deixar ela ir ao banheiro fazerxixi.

- Garoto esperto, Fernandinho. Esse aqui bota nós doisno bolso. Só gosta do que é bom. Agora, a última, concorrendocom o menor tempo e a resposta mais criativa. Se for você, e voutorcer para que seja, um final de semana com tudo pago, na suítepresidencial do Motel Fome dos Prazeres, do nosso grande amigoLeo; e um carro GOL FLEX, zero bala, completinho, gentileza daCorcovado Automóveis, do Jorginho Brucutu. Boa sorte! Toninho,se você chegasse em sua casa agora e recebesse o recado de queessa sua vizinha, como é mesmo o nome dela?

- Monique.

- Se você recebesse a notícia de que a Monique pediu

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para que você fosse até a residência dela para prestar um pequenofavor e, quando você chegasse lá, ela viesse abrir a porta só decalcinha e sutiã e, para apimentar o lance, estivesse segurando, emuma das mãos, uma lâmpada, e, na outra, uma escada para vocêsubir e fazer a troca da nova pela queimada, o que é que faria,exatamente? Um segundo. Tempo.

- Quem? Eu? Minha nossa, o que eu faria? Engolia alâmpada e me acendia, depois, todinho, dentro dela, como umcurto circuito, trepando, ligeiro pela escada.

- Bravo! Resposta inteligente e criativa. Fica aqui ao meulado. Vamos a mais um candidato. Temos o Marcos, o Cláudio eo Toninho. Deixa eu ver quem vai ser. Ok, você aí, atrás da moçade amarelo, o baixinho de blusa azul. É, você mesmo. Vem prá cá,correndo. Fernandinho diretamente dos nossos estúdios, aprodução com o cronômetro nas mãos, marcando o melhor tempo.Quem será o vencedor? Toninho Baiacu, Marcos, Cláudio ou...Muito boa tarde, como é o seu nome?

     O domingo, finalmente, chegou. Nesse dia, por coincidência,acontecia o aniversário da sogra de Toninho. Estava, pois, porconta desse evento, reunida a família, em peso, bem como parentese amigos. No quintal imenso rolava um churrasco no capricho,refrigerante para a garotada, a dar com o pau, e para os marmanjos,muita cerveja gelada. Por volta de oito da noite, a galera resolveu sentar na sala eficar de olho grudado na televisão. Para aumentar o impasse ecriar expectativa e audiência, o canal de tevê, que exibia o programado Fernandinho Cuca Fresca, não revelava o nome do vencedor.Mandava para o ar, especificamente, o bairro que havia sidocontemplado, mais nada. Santo Antão, por sua vez, quandoconfirmou a novidade, abriu as veias fervilhantes da curiosidade.Sem exceção, todos queriam saber quem era o felizardo, para,evidentemente, dar-lhe os cumprimentos e os parabéns. De repente, eis quem se transforma em celebridade: Toninho

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Baiacu . Os filhos quando viram o pai, se arrebentaram em aplausos,promoveram uma algazarra sem tamanho. Um dos garotosgrudou no seu pescoço, o outro pulou em seu colo. O menorzinho,mais afoito, disparou à cata da empregada da casa, que conversava,nada mais, nada menos, com a Monique, a mocetona da frente,autora dos caprichos e das comedias louçãs de Baiacu. Vieram as duas, em desabalada carreira, juntamente com outrosvizinhos e se barafustaram na sala apertada que, aquelas alturas,não cabia mais ninguém. A esposa, animada, berrava saltitante:

- Silêncio, pelo amor de Deus, vamos assistir!

A sogra, surda de um ouvido, deu um jeito de se acomodarperto do aparelho:

- Meu genro, você daria para ser artista. Fica um gatodiante de uma câmera e um microfone. Minha filha é uma sortudapor ter casado com você.

O sogro foi nas águas da mulher e completou:

- Lembra um pouco meus tempos de rapaz, esse sanhudo.

     Toninho Baiacu,  todavia,  parecia mordido  por  um bichocarpinteiro. Sua impaciência andava à mil. Não demoraria muito,teria um piripaque, um faniquito ou algo parecido. A poder demuito custo e sacrifício conseguiu pegar o controle e mudar decanal.

- Sogrão, ei, sogrão, tem um jogaço na Band. Seu timeacaba de entrar em campo.

- Ficou maluco? Volta pra Rede Vem Que É Mole. Nãoperco você no Fernandinho Cuca Fresca por nada neste mundo.

A esposa deu um chega pra lá no companheiro.

- Senta ai e abaixa o facho, seu filho de uma égua. Deixade conversar pabulagem..

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Toninho Baiacu entrou em pânico. O desespero se fazia visível,e não havia mais coesão em seus atos. O infeliz suava em bicas.Sem falar na tremedeira pelo corpo inteiro. O programa doFernandinho começava e, aquela altura, a comunidade, em peso,sabia que ele havia se sagrado vencedor. Santo Antão virara umpalco de festa, com pula-pula para a criançada, carrinhos depipoca, algodão doce, e soltura de fogos na praça da matriz. Tinhaaté um grupo de pagode na porta da casa. E a galaria em peso,numa bulha encarnada, balançando o esqueleto, como se fossecarnaval fora de época.

- Pessoal vamos ver outra coisa. Essa porcaria doFernandinho só exibe o que não presta.

Quase apanhou. Faltou pouco. A massa compacta queriaassistir, na íntegra, a entrevista na praça e, saber das respostasque ele dera às indagações do entrevistador. A esposa, coitada,não cabia em si de contentamento, naturalmente levada pela alegriaintensa de estar vendo o marido, pela primeira vez, ao vivo, numprograma de televisão, em rede nacional.

O desditoso e desastrado, diante da sua impotência, da suaestupidez e insignificância, olhou desalentadamente ao redor.Primeiro, encarou a sogra e o sogro, em segundo, se deteve nosfilhos, e na companheira de tantos e tantos anos. Por fim, fixou osolhos na multidão que viera até sua residência, passando pelosmais chegados, e, no meio deles, a cunhada, e os sobrinhos.Terminou sua rápida peregrinação ao topar com Monique, o rostosem cor, sem a vivacidade de sempre, entristecido e estremunhado,na angustia da vergonha, como se transformasse cada escárnioque receberia a “depois”, numa bofetada profundamente sentida.Com certeza, naquela noite, tudo que construíra anos a fio, rolariaágua abaixo: sua vida, seu lar, seus filhos, seus sonhos; a amizadedos amigos. Era o fim, o fim de tudo, sem a menor sombra dedúvidas. Naquela noite, tudo deitaria por terra.

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Dito e feito. Quando a entrevista acabou, suas tralhas estavamtodas - não empilhadas ordenadamente na calçada, à saída doportão – ao contrário, dava a impressão de terem sido jogadas,atiradas, de qualquer jeito, pela janela, e, de fato foramarremessadas com a fúria e o menosprezo de seus familiares,notadamente a indignação da esposa, a maior ultrajada em suahonra e moral.

Foi chegando gente – sempre nessas horas aparecem osretardatários - juntando aqui e ali, por sobre muros e carros, rostosde feições sombrias e assustadas, uns para apertar as mãos deToninho, a maioria, porém, para chafurdar nas bisbilhotices doinusitado das desgraças alheias.

Toninho Baiacu, rabo entre as pernas, humilhado, acabado evencido, mal teve tempo de pegar os documentos pessoais.Praticamente fora expulso de casa, a poder de toques de caixa.No bar onde se reunia com a rapaziada dos copos de cerveja,implorou choroso, por uma pequena migalha a fim de inteirar apassagem e tomar o ônibus até o terminal.

Para completar seu quadro desolador, quando pegava acondução, chegava, no bairro, sob forte alarido, a caravana, coma produção do programa do Fernandinho Cuca Fresca, seguidapor uma baita carreta, em cima da qual, uma dezena de meninassumariamente vestidas, dançava freneticamente, ao som de umamúsica esquisita, em volta de um elegante GOL FLEX zero balacompleto. Na verdade, o automóvel que havia ganho pelavivacidade do menor tempo e a originalidade da resposta maiscriativa.

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“Ah! Essas mulheres... Sempre tive uma, amando quatrode cada vez...” (Fernandinho Saraiva).

     

A PRIMEIRA, DE UMA SÉRIE DE MUITAS QUE TIVEO PRAZER DE colecionar, ao longo da vida, foi umaempregadinha doméstica que veio trabalhar em casa, logo quemudamos para o apartamento novo. Elizabete. Loirinha, de olhosverdes, dezenove anos. Uma gracinha de menina, um amor depessoa. Personalidade acima de qualquer suspeita. Monumental.Quando a vi pela primeira vez, meus olhos se encheram deminúsculos coraçõezinhos apaixonados. O tal cupido que o Lilico,meu irmão de vinte e sete, vivia falando toda hora, finalmente,havia atirado seu dardo envenenado e acertado em cheio o meucoração de garoto que começava a descobrir as coisas boas domundo. Logo que veio morar com a gente, Elizabete não trouxemuitas coisas. Sua bagagem, se bem recordo, não passava deuma bolsa de nylon, bastante surrada e de um verde desbotado,meia dúzia de sacolas de supermercados com sapatos, discos euma outra, com uma caixa cheia de produtos de beleza.

     Mamãe a ajudou a se instalar. Deu-lhe um cobertor, lençóis,fronhas, uma colcha e um travesseiro. Não havia cama. Nosprimeiros dias, Elizabete dormiu no chão, de frente para a porta,numa espécie de estrado improvisado por papai. Os meses forampassando...

Iniciação

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       Durante  o  dia, Elizabete  cuidava  de  todos  os  afazeresdomésticos oriundos de uma casa de família: lavava, passava,vigiava um irmão recém-nascido (raspa de tacho, como apregoavameu velho), fazia feira aos domingos e, ainda, ajudava mamãe aservir o café, o almoço, o lanche da tarde e, à noite, o jantar.Depois de cumpridas todas essas tarefas, ela se retirava para seuquarto e ficava por horas a fio ouvindo discos numa velharadiovitrola.

     Um ano após sua chegada, as coisas para ela melhoraramconsideravelmente. Havia, agora, num canto, uma penteadeira, comum espelho oval, um banquinho e uma cômoda, onde colocava,bem arrumadinho, um monte de LPs de Roberto Carlos, JerryAdriani, Wanderley Cardoso, Gilliard, Odair José, Diana, Jessé,Cely Campello, Guilherme Arantes, Adilson Ramos, Carlos Albertoe tantos mais. Naquele tempo, não existiam os CDs. Os bolachões,ou discos de vinil, com suas capa duras cobertas por um plásticofaziam a festa e invadiam as lojas de discos. Elizabete seguia umaespécie de ritual: entrava no quarto, encostava a porta, não passavaa chave, apagava a luz e acendia um pequeno abajur em forma deelefante. Despia-se, esparramando as roupas a caminho dobanheiro. Tomava uma ducha longa e demorada, de meia hora,talvez um pouco mais. Vinha, então, a melhor parte. Saía dochuveiro só de calcinha e estirava o corpo na cama de solteiro quemeu irmão doara para ela, logo depois do seu casamento com aLiliane.     Meu posto de observação ficava num lugar bastante engraçado.Para as sessões de espionagem, lembro que precisava trepar numaespécie de baú repleto de livros e cadernos atirados às traças.Essa peça jazia, jogada à sorte, perto da máquina de lavar roupase do tanque, na varandinha, ao lado da porta da cozinha. Era dalique espreitava, às escondidas, a Elizabete, depois do seu retiropara a intimidade. Uma báscula que nunca fechava, servia maiscomo passagem de ar para resfriar o ambiente. Uma espécie

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de cortina caía, por sobre os vidros, lisos, e, devido a isso, setornava difícil, ou quase impossível, alguém, do outro lado, darcomigo espionando. Ademais, tomava um cuidado medonho paraque ninguém me pegasse no flagra, principalmente, o Nelsinho,outro irmão, ainda solteiro, que costumava trazer a namorada paradar “uns amasso” numa espécie de dispensa, onde guardavam,além das ferramentas de papai, mantimentos em estoque, latas deóleo, garrafas de cerveja, produtos de limpeza, botijões de gás eoutras quinquilharias.

      O fato é que, a cada nova manhã, Elizabete ficava mais radiante.Simplesmente abafava. O salário que ganhava aplicava em coisasde uso pessoal. Tinha um excelente bom gosto, a danada. Gostavade usar roupas curtas e justinhas à pele (estava em moda a minissaia)e, geralmente, as garotas imitavam as cantoras da moda. Por assim,quando colocava um daqueles minúsculos “xortinhos”, realçandoo bumbum, ou uma minissaia, deixando à mostra a calcinha, eu“viajava na maionese”, “pirava na batatinha”. À noite, os aresficavam mais densos. Elizabete saía do banho, enfiada numacamisola branca, muito curta e transparente, que mostrava, emtodo o esplendor, seu corpo de mulher. As formas perfeitas, abarriguinha, o umbiguinho, com destaque para o biquíni minúsculocom enfeites de gatinhos, cobrindo carinhosamente o triângulo doamor. Para mim, tudo aquilo dava a impressão de estarespremidinho, pedindo socorro. Nessas horas, voava empensamentos distantes, ao tempo que roia, desesperadamente, asunhas.     Um dia, Elizabete pulou fora do banho sem nada cobrindo anudez, sem a calcinha, sem a toalha, sem qualquer recato ao pudor,a água quente escorrendo, macia por sobre seus cabelos formandouma poça nos azulejos brancos do chão. Caminhou até o aparelhode som e colocou cuidadosamente um disco no prato. Ajustou ovolume de maneira que somente seus ouvidos pudessem curtir amelodia. Era o Odair José e as músicas desse artista faziam umsucesso danado, na época, e ela, fã de carteirinha, sempre que

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podia, botava alguma coisa dele para rodar. Tinha, inclusive, umpôster tamanho gigante, pregado na parede, ao lado da janela,que dava vista para o prédio contíguo:

“... As minhas coisasDe repente estão tristesCompreenderam que não existeNada mais entre nósMeu violãoCaiu de cima do armárioSuas cordas rebentaramDando adeus a minha voz...”

     A graciosa parecia absorta. Sem ao menos se enxugar ou secobrir com a toalha, deitou de barriga para baixo, deixando àmostra, para meu deslumbramento, um senhor par de pernas bemtorneadas, que terminavam numa montanha de ancas bemproporcionadas, dessas de deixar qualquer homem maluco, comvisões sinistras do paraíso. Vendo aquilo o instinto falava alto. Aliás,isso sempre acontecia. Bastava fixar os olhos em Elizabete, algoanormal como um fogo interior transformava meu ser. Cuidadoso,olhava para a porta da cozinha. Ninguém por ali. Corria os olhospara o lado da dispensa. Nada, também. Então, relaxava, davaasas à imaginação. Abaixava o calção até a altura dos joelhos ecolocava para fora o membro enrijecido pelo tesão que sentia poraquela deusa maravilhosa, que me deixava completamente loucoe fora de qualquer controle. Do meu posto, acomodado na pontados pés e por sobre o baú de livros, chegava até mim uma visãoprivilegiada da cama e, em cima dela, o pecado em todas as suasformas, exposto sobre o lençol de algodão e, ao fundo, parte daentrada do banheiro onde ela refrescava o cansaço estafante dodia a dia.     Enlouquecido, sonhava acordado.  Imaginava mil coisas como,por exemplo, estar deitado ao lado dela, entrelaçado em seus

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braços, o sangue fervendo nas veias, o suor escorrendo, os sentidostodos em alerta. O meu deslumbramento, entretanto, não ia alémde um momento de pura felicidade, um momento fugaz, muitorápido. Elizabete desconhecia os meus anseios secretos e tampoucoimaginava que a comia, que a devorava, literalmente, da cabeçaaos pés, centímetro por centímetro, sorrateiro, como um bichoacuado, enquanto ela, na tranquilidade de seu retiro pessoal, sabe-se lá, pensava em algum namoradinho distante. Nesse chove nãomolha - enquanto descontraída ela cuidava de si, ora pintando asunhas, ora escovando os cabelos, que lhe caíam até a cintura - eufriccionava o pau, com força, movido por uma ânsia descontrolada.A música rolava. De cima do baú, só restava a satisfação de mecontentar com um querer enorme, mas frustrado.     Nervoso, com os neurônios em alerta geral, agarrava o nervoduro e irrequieto no meio das pernas. Chegava à exaustão, devidoà cadência empregada com as mãos, para atingir o clímax,chacoalhando, sem parar o órgão genital. Essa brincadeira de maugosto (de mau gosto porque somente eu participava), perduroupor muitos e muitos meses, até que numa noite, também já prestesa gozar, eis que, de repente, o Nelsinho, como surgido dos quintosdo inferno, assomou no umbral da porta da dispensa, com a drogada namorada a tiracolo. Os dois me pegaram de calção arriado,na hora agá, no instante derradeiro, justamente quando meu corpo,voltado para os prazeres da carne, uma vez mais, liberava umaporrada de espermatozóides em homenagem àquela deusaencantada, que recostada sobre a cama e ao som do Odair José,seguia indiferente aos meus problemas de menino adolescentebatendo às portas dos dezesseis.

- Bonito, seu moço. Descascando banana em plena oitohoras da noite! E ainda por cima importunando a Bete. Deixa opai saber disso.

     Não contente, completou a frase: - Mãe, ô mãe, venha até aqui na cozinha ver um negócio!

 

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    Exatamente o que temia acabou acontecendo. Deu uma encrencados diabos. Para mim, evidentemente. Mamãe acorreu, com umavizinha de apartamento, chata, que não saía lá de casa, o cenhofranzido, os olhos dilacerados pela fúria. Enquanto meu irmãome puxava o braço, aos beliscões, me arrancando emcontrapartida, pelado, de cima do baú, em vão tentava escondero pinto da namorada dele, como da mamãe e da vizinha. Aliás,essa maldita destrambelhada, me olhava como se estivesseencarando um maníaco. O engraçado, o cômico, no meio dessepovo todo que apareceu, uma vergonha infinita veio vindo lá dofundo e queimou, por inteiro, meu rosto pálido. Se fosse a Elizabete,com certeza, o vexame não atingiria graus tão altos.     Em meio à confusão que tomou forma, Elizabete saltou da cama,apagou a luz, desligou o som e meteu o bedelho. Pegou-me numbeco sem saída, numa situação caótica que não desejaria ao piorinimigo. Levei, na frente de todos, uns belos tabefes no meio dasventas. Quando papai chegou, a cinta comeu firme no lombo.Apanhei feito cachorro magro e sem dono. Aquele incidente, no qual me deixei ser pilhado, era tão gravequanto fazer rolar escada abaixo a cadeira de rodas com umavelhinha paralítica a bordo.

Depois desse mico, optei por ficar de molho, quase um mês,confinado dentro do quarto, com vergonha de aparecer paraElizabete, embora soubesse, de antemão, que a namorada de meuirmão Nelsinho, havia contado a ela, com riquezas de detalhes, oincidente, desde o instante em que me pegaram com as mãos namassa. Pronto, estava na boca de todos o meu segredo,desvendado, exposto, com direito até a apelido: “tarado da bundabranca”. Em parte, a alcunha ajudou muito. De tanto falarem domeu traseiro branco, Elizabete, por fim, aquiesceu. Veio chegando,aos poucos, de mansinho, devagar. Parecia não ter pressa. Traziao café, o almoço, o lanche, conversava muito sobre tudo, sentavaa meu lado para ver televisão... 

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    Rolou o clima num final de semana. Ninguém em casa. Do seujeito, como só ela sabia. Aconteceu. Perdi a virgindade e, junto,os medos bobos que povoavam minha adolescência. Passei aconhecer, a partir de então, um mundo diferente e, dentro dele,um sonho obscuro, onde um universo imensurável se abriu.Elizabete me fez ver o outro lado da moeda, ou seja, o reverso daclausura, na qual vivia enfurnado. Conheci mais, senti oprazer,  conheci o amor, a felicidade se fez plena, e a alegria deviver que todos buscam veio ao meu encontro, como um solgostoso batendo no rosto.

Elizabete ficou com a gente por quase oito anos. Nesse tempo,me ensinou tudo o que hoje sei, tudo o que um homem deve saberpara fazer uma mulher se sentir plenamente realizada. Nosso casode amor, que deu até aborto, infelizmente terminou de forma trágica.Estraguei tudo. Ela me pegou, na cama dos meus pais, com a filhade um pessoal novo, que ocupara, recentemente, o apartamentovago, porta com porta, no andar em que morávamos.

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                                            Ao meu amigo SIVUCA (in memoriam).

   

ONTEM FOI UM DIA MISERAVELMENTE MASSADOR.Chato pra cachorro. Pra cachorro não, particularmente pra mim.Se eu tivesse o dom de adivinhar, ou de prever os acontecimentosfuturos, como a espertalhona da Mãe Dinada, certamente não teriasaído de casa. Verdadeiro desastre. Logo ao pôr a cara para fora do apartamento,tropecei nas escadas do prédio. Quase quebro o pé.

     Até a parada, para tomar a condução, uma chuva intermitenteme deu um banho daqueles de gelar até os cabelos da alma. Nãosei se alma tem cabelo, mas vá lá, isso é de somenos importância.Geralmente ensopo os ossos nos dias de aguaceiro. Não usoguarda-chuvas, aliás, nunca uso guarda-chuvas. Tenho verdadeiraojeriza a esse tipo de objeto, ando com a cabeça nas nuvens eacabo esquecendo a porcaria em qualquer lugar. O último que melembro ficou espetado num sorvete.

Para bom entendedor,uma cerveja basta.

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     No ônibus, acomodei o traseiro ao lado de uma mulher gordona.E bota gordona nisso. A balofa parecia um piano de caudadesafinado, desses de segunda mão, recém saído de um antiquário.Ocupava o assento da janela e boa parte do meu. Aliás, mais omeu do que o espaço a ela reservado. Tive que viajar até o pontoonde pretendia descer, espremido, apertado, agoniado, feito umasardinha raquítica dentro de uma latinha hermeticamente fechada.Uma droga! Nessas horas é que a gente aprende a dar valor àliberdade e, mais, ter consciência, de como se sente uma miserávelsardinha numa latinha hermeticamente fechada. Imagine, sem ar,sem poder se mexer, ou virar o braço para coçar a bunda.E a bendita adiposa me olhava de soslaio, me comia de mansinhopelas beiradas, o rosto fechado, cenho franzido, como se merecriminasse por estar prostrado exatamente naquela cadeira.

     Ao deixar o coletivo, ainda embaixo de fortes pancadas deSão Pedro, tomei outra ducha ao atravessar a rua para galgar acalçada que dava nos escritórios da firma onde exerço as funçõesde especialista em marketing impresso. Trocado em miúdos, boyde xerox. Um automóvel, vindo não sei de onde, parecia fugir daputa que pariu, passou feito um furacão. Deu aquela espirradelade água suja de lama, ao bater os pneus num buraco. Dessa vez,tive sorte. Ensopei um pouco mais a camisa branca que titia Anabelahavia passado com tanto carinho e esmero.      Outros passantes também foram atingidos. Só ouvi gentexingando a mãe do infeliz. Não sei por que as pessoas pensamdistribuir impropérios afrontosos, direcionados principalmente àsmães. Existem umas figuras de línguas afiadas, que, nessas horas,perdem a linha, a estribeira, o bom senso. Apelam. Mandam omotorista deseducado e barbeiro enfiar o carro naquele lugar, ouseja, no cu da mãe, como se no cu da mãe coubesse um carrocom motor e todos os acessórios e tranqueiras que o acompanham.Segui meu caminho. Parei na banca de revistas do Epitáfio, paracorrer os olhos nos jornais pendurados. Virou rotina. Sempre façoisso.  O dia que passo direto, o sujeito corre no meu  encalço

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e questiona se estou com raiva dele.

     “CACHORRO FAZ MAL À MOÇA” – estampava um emletras garrafais – enquanto outro proclamava “O NOVOSALÁRIO MÍNIMO CONTINUARÁ MINGUADO”.

     Uma vergonha esse negócio de salário mínimo. Por mais que opovo brigue por um regime de rendimentos melhores, ou condiçõesigualitárias justas, não consegue, ou melhor, nunca consegue, ogoverno ganha os tubos com as roubalheiras e põe a culpa naPrevidência. Não sei por que a população não se une de formacoesa e se insurge, de uma vez, pra cima dos responsáveis poressa situação caótica, e não põe um basta definitivo no que julgaerrado e, de lambuja, leva junto, a tal da Previdência. Chamouminha atenção um terceiro jornaleco. A manchete com letrasdestacadas anunciava: “MARIDO MATA A ESPOSA COM BIFEQUE LHE FOI FRITO”.

     Epitáfio,  o  dono  da  banca,  como  sempre,  não  perdia  aoportunidade. Bastava me ver encostado, se abria num sorrisolargo e perguntava se eu levaria alguma publicação, um gibi quefosse, ou uma revista de mulher pelada. Epitáfio só queria mesmotorrar a paciência, conversar, passar o tempo. Sabia, de antemão,que eu ganhava pouco e jamais gastaria um centavo com besteiras.Segui adiante.     A próxima parada, antes de entrar no edifício onde ficava aempresa que eu trabalhava, era a loja de discos do André da“motoleta”. Tinha verdadeira adoração por esse local. Não subiaantes de dar uma espiada nas novidades. E sempre havia coisasnovas nas prateleiras. Bem, deixa falar um bocadinho do Andréda “motoleta”. Colocaram esse apelido nele, porque perdeu umadas pernas num acidente de motocicleta.      Apesar dessa fatalidade, o rapaz é um cara feliz. Está semprede bem com a vida. Costuma dizer que amputou uma parteimportante de seu corpo, mas, em compensação, ganhou

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um par de muletas e, com elas, não se sente tão só. Pior aconteceucom o motoqueiro. Com o impacto, o indivíduo bateu com a cabeçano meio-fio e acabou partindo desta para melhor. O cômico nessahistória do André é que ele nunca chegou a montar, nem de carona.Desde pequeno, até de bicicleta passava longe. A família do cidadãocausador do atropelamento, para evitar uma demanda judicial,presenteou o André com a bendita moto, e o felizardo, entre aspas,colocou a dita numa vitrina com um monte de capas de CDsespalhadas. Ficou massa. A galera da vizinhança soube do caso e,claro, teve um engraçadinho que surgiu com uma piadinha. Logo acoisa se propagou e, no fim, acabou se tornando uma referência.De André da moto para André da “motoleta”, um pulo. Contei ahistória do desditoso mancebo para um amigo meu, o Canterbury. Na lata, ele me chamou a atenção dizendo que é feio colocarcognome nas pessoas. Segundo ele, mancebo é um cabide parapendurar roupas, formado por uma haste nos braços. A bem daverdade, nunca estive interessado no verdadeiro significado dessadroga de palavra. Mandei o Canterbury chupar prego velho atédesenferrujar a cabeça. De mais a mais, a alcunha do André não émancebo, mas “motoleta”.

     Pois bem. No momento em que entrei na loja, o André botavaum CD para rodar. Adorei o balanço da música. Lembrava MestreSivuca, aquele do acordeom. Perguntei de quem era o disco, e oAndré, brincalhão, gritou: é do Severino Dias.

- E quem é Severino Dias?

- Você não conhece Severino Dias?

- Nunca ouvi falar.- Pois saiba que esse cidadão é reconhecido no mundo

inteiro. Brasileiro, natural de Itabaiana, na Paraíba, nasceu em 26de maio de 1930. Ah! esteve exilado no exterior, convencido damarginalização da música instrumental e do solista popularbrasileiro.

A outra perna do saci

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- Estou pasmo!

- Quer saber mais? O poderoso aí tem um currículo defazer inveja. Trabalhou com artistas internacionais famosos e fezvárias turnês. Tem três CDs individuais nos Estados Unidos e doisna Europa.

- Tudo bem. Apesar desses esclarecimentos interessantes,seu Severino Dias continua sendo para mim como um bife bemgostoso, porém malpassado.

     Lembro que havia um cliente nos fundos da loja. Escolhia algunsdiscos, mas, se via, se antenara na conversa. A certa altura, sedesculpou por estar ouvindo nosso bate-papo e pediu um aparte:

- Não pude deixar de ouvir vocês. Severino Dias, eu tenhoabsoluta certeza de que o prezado conhece muito bem.

- O amigo está enganado. Nunca ouvi falar.

- Vamos bater uma apostinha?

- Exatamente o que apostaríamos?

- Uma cerveja.

- Só?

- Para não passarmos em branco. Uma brincadeirinha, senão se importa, evidentemente. Estou lhe vendo agora, pela primeiravez. O André da “motoleta”, em compensação me conhece develhos carnavais.

- Tudo bem. Amigo dele é meu também.

- E então?

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- Está valendo a cerveja. Não conheço Severino Dias.

- Conhece.

- Eu passo.

- Puxe pela memória.

- Severino, Severino, Severino. Desisto.

- De pé a aposta?

- Sim! Nunca ouvi falar do tal Severino Dias.

- Severino Dias é o Mestre Sivuca, aquele do acordeom.

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O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE TERREMOTOreside possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampacinza e, no meio, um buraquinho redondo, com duas pernas defios soltas. Quando chega alguém à cata do morador (que nuncaninguém viu, nem mais gordo, nem mais magro, nem mesmoTerremoto), existe abaixo do olho mágico uma caixinha dessasmodernas, ou melhor, a campainha de verdade, para que sejacomprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que hágente a sua espera do lado de fora. Sempre que surge uma pessoano corredor, Terremoto logo fica sabendo, não porque bisbilhoteo tempo todo, mas, simplesmente, porque o alarme sonoro dosubir e descer do elevador disparava um “plim” e, corroborandocom a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas davelha porta da engenhoca começam a ranger desesperadamente.

Xeque-mate

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     Nessas ocasiões, Terremoto aproveita para espiar pelo olhomágico e ver quem é a visita que anda em busca do vizinho-fantasma. Curiosidade de quem já trabalhou muito na vida, seaposentou com um bom salário por mês e não tem, realmente, oque fazer, além de dormir e coçar o saco. Contudo, um excelenteexercício para matar o tempo ocioso, vez que se depara com assituações mais engraçadas e inusitadas possíveis. Dias atrás, umamoça com os cabelos vermelhos elegantemente vestida, procuravapela campainha. Como todos os demais, ela não viu, diante de si,a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou afutucar aqui e ali, na esperança de enfiar um dos dedos no orifícioda tampa cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada.Talvez fossem as unhas compridas ou os anéis que atrapalhassem.Quem sabe nem uma coisa nem outra, mas a cor dos cabelos. Emseguida, ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de,a qualquer custo, fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Umfaniquito repentino a fez sair furiosa, cuspindo marimbondos.

     Não foi diferente com um cidadão baixinho, de chapéu nacabeça e uma bolsa dessas 007. Possivelmente cobrador. O infelizchegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, metero nariz no olho mágico, objetivando ver se enxergava alguma coisano interior do apartamento. Também teve problemas com os fios.Quase certo, pelo ar desagradável que se fechou em seu rosto,tomou uma tremenda descarga. Desistiu, pois, da empreitada.Resmungando, deu meia volta e desapareceu.

     Terremoto chegou à conclusão de que as pessoas, de um modogeral, são levadas e expostas ao ridículo por pura comodidade.Ninguém para por alguns instantes com a intenção de analisar oque está posto e visível diante do óbvio. Pensar numa soluçãosimples que desencadeie algum resultado prático. Às vezes, umainsignificância, de solução clara, está logo ali, atropelando, mas apressa e o nervosismo juntos, de mãos dadas com a velha burricebotam tudo a perder.

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O cômico, na história do vizinho extravagante, se resumia numsó objetivo. Quem quer que pintasse no pedaço, se via logo àsvoltas com os fios da campainha. Talvez, no fundo, fosse essa averdadeira intenção do engraçadinho. Dar choque nos chatos quenão desistiam de vir até sua residência perturbar o sossego. Comcerteza, o canastrão deveria rir um bocado e se divertir àsexpensas dos apalermados. De qualquer forma, deixava claro quenão queria, decididamente, ser incomodado por ninguém. Pairavano ar uma dúvida cruel. E essa dúvida deixava Terremoto com apulga na orelha. Por que o cidadão divulgava aquele endereço, senão queria ser encontrado nele? E se espalhava com qual objetivo?Fazer pouco caso? Tirar sarro? Zombar dos seus semelhantes?Mais cômodo seria indicar um local público, um shopping, oumarcar um barzinho. Perto dali havia um café expresso espetacular,com garçonetes lindas de serem vistas. Tudo bem que as pessoasdevam preservar a sua individualidade, resguardar a sua privacidadecom unhas e dentes. Com fios desencapados, certamente, o cúmulodo absurdo.

     As duas pernas de fios soltas da suposta campainha, de certaforma, instigavam a atenção dos que acampavam diante da entrada,fossem quais fossem os motivos que os levassem a estar ali. Pelosim, pelo não, os que se aventuravam, esqueciam de atentar paraum detalhe insignificante, qual seja, fazer soar o botãozinhopoliticamente correto, e à vista de um cego, logo abaixo do talolho mágico.

Terremoto percebeu, nessas olhadelas, que cada ser humanoreagia de uma maneira diferente. Uns xingavam, outros faziamcaretas, alguns chutavam as paredes. A maioria olhava para oslados, desconfiada. Teve um visitante que se deu ao trabalho deencarar o olho mágico de Terremoto. Não se sabe com qualfinalidade.  Levou um baita susto. Ficou evidente que se descobriracom a boca na botija. As mulheres eram as mais interessantes deserem reparadas: puxavam a calcinha que entrava na bunda,

    

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penteavam os cabelos, retocavam a maquiagem do rosto, refaziamo batom dos lábios. Os homens, como sempre, menos exigentescom a aparência, limitavam-se a corrigir o nó da gravata, dar umaajeitadinha nos óculos, e uma batidinha discreta no paletó, paraafastar algum cisco por ventura deixado com o vento. Pensavamem tudo, esses ilustres visitantes, mas esqueciam do mais trivial:Premer com o indicador o botãozinho da segunda campainha, logoabaixo do olho mágico ou, por outra, de bater suavemente, comos nós dos dedos, produzindo um leve toc, toc, toc, no sisudo esilencioso portal do esquisito morador.

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A MERCEDES PRETA COM VIDROS FUMÊ encostousilenciosamente na única bomba que se encontrava vazia paraabastecimento. Cristiane, uma das moças veio atender, solícita.O motorista, um sujeito magro, abriu meio vidro, o bastante parapassar um molho de chaves:

- Completa o tanque, por favor.

     Cristiane, mais que depressa procurou despachar o homem nomenor tempo possível. As ordens do gerente, nesse sentido, giravamem torno do posto ter alguns diferenciais que precisavam serseguidos ao pé da letra: oferecer bom atendimento ao cliente, agircom rapidez e elegância na maneira de abordar, preservar adiscrição e, em hipótese alguma, sair de cara feia, ou xingar osengraçadinhos, caso levasse uma cantada. O segredo estavatambém na diplomacia, na perspicácia e no saber se livrar doselementos chatos, de mansinho, numa boa, com classe, sem lheofender a moral e o decoro.

Mico

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     Cristiane desde que admitida como frentista, agia nos conformes.Aliás, as demais colegas se espelhavam nela. Assim, naquela manhã,ao ver chegar a Mercedes preta, tratou de fazer o seu trabalhosem mais delongas. Contudo, não pode deixar de reparar no queacontecia no interior do veículo. Embora a janela não estivessetotalmente aberta, ela percebeu que a acompanhante do sujeitomagro – uma loirinha de cabelos compridos – praticava sexo oral.Em outras palavras, pagava um boquete. Talvez a garota estivessesendo forçada a fazer aquilo. Ninguém, em sã consciência, pormais depravado e sem-vergonha que seja, se submeteria a ummico daqueles. Por outro lado, se havia uma terceira pessoaameaçando (escondida, talvez, no banco de trás), por que nãogritou, nem tentou abrir a porta e sair para pedir ajuda?

     Dorinha, a colega de Cristiane, se aproximou para ofereceroutros serviços, entre eles, água gelada e cafezinho. Cristiane aindatentou desviar a atenção da amiga, mas era tarde. O sujeito magro,desta vez, não abriu o vidro, escancarou a porta. Dorinha, diantedisso, deu de cara com a cena patética. O cidadão, com o troçopara fora da bermuda e a moça do banco do carona (a loirinhados cabelos compridos), grudada nele, chupando, como se aqueleato fosse a coisa mais banal e corriqueira desse mundo. Dorinha,porém, seguiu à risca as instruções: não esquecia da história dostrês macaquinhos. Essa é a melhor filosofia para se trabalhar numposto de gasolina, ou em qualquer outro lugar.

     Sem perder a calma, e mostrando serenidade, dirigiu-se aocliente, desempenhando maravilhosamente a sua função e, por fim,propôs os brindes.

- O senhor aceita uma água gelada, ou um cafezinho?

- Por gentileza, um cafezinho.

- Sua companheira não gostaria de...

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     O rapaz se abriu num sorriso debochado:

- Como pode ver, ela está ocupada, de boca cheia.Acredito que não vai querer misturar café ao leite condensadoque logo deverá jorrar em abundância.

     Dorinha se afastou. Cristiane havia acabado de completar otanque. Foi sua vez de se aproximar do freguês.

- Suas chaves, senhor. Deu setenta e dois reais e cinquentacentavos. Vai querer o cupom fiscal?

- Não, belezura. Só estou à espera do cafezinho que aoutra atendente solicitamente me ofereceu. Como pode perceber,não posso me dar ao luxo de me levantar daqui, ou a minha gatinhateria que interromper a sua merenda. Como é seu nome?

- Cristiane, senhor.

- Aqui está o dinheiro, setenta e cinco reais. Pode ficarcom o troco. Gorjeta.

     Dorinha chegou trazendo um copinho de plástico cheio de cafédentro de uma bandejinha pequena.

- Senhor.

- Obrigado. E você, como se chama?

- Dorinha, senhor. Algo mais?

- Bonito. Gostei. Cristiane também. Legal. Vocês duas sãouns amores. Estou satisfeito. Recomendarei aos meus amigos olugar para abastecerem aqui.     A loirinha continuava na mesma posição, chupando, sem parar,imprimindo à cabeça um vaivém cadenciado. Enquanto sorvia

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o café, o sujeito magro segurava nos cabelos dela e ordenava:

- Mais rápido, mais rápido. Cuidado para não me lambuzarde café.

     Agradeceu a bebida, fechou a porta. Antes de ligar o motor,voltou a abrir o vidro. Olhou para as duas:

- Meninas, aqui está o copinho. Tenham um bom-dia.

     Saiu tão silenciosamente como chegou.

     Passado o primeiro impacto, as duas se reúnem num desabafo.

- Você viu o que eu vi?

- Estou pasma, colega! Olhe, minhas mãos estão tremendoaté agora. Meu Deus, que coisa horrível. Como é que uma garotasimpática, de boa aparência, não deve ter dezessete anos peloque pude perceber, se presta a fazer aquilo, em público?

- Dinheiro, amiga. O vil metal, como diz meu pai. O troçofaz das pessoas gato e sapato.

- Jamais passaria por um ridículo nessas proporções. Nemque a criatura fosse meu marido ou o príncipe mais bonito da faceda terra. É o fim da picada!

- Concordo plenamente, amiga. E que pica... Querodizer, que picada!  

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MARIA JULIETA TINHA TUDO A TEMPO E À HORA,do bom e do melhor. Não lhe faltava absolutamente nada. Essamordomia se estendia do fogão de cozinha à cama onde dormia,feita sob medida, em madeira de lei, passando pelo carro últimotipo estacionado na garagem e acabando nos vestidos de grifeencontrados em lojas grã-finas e sofisticadas. Em seu close, aolado do guarda-roupa, perfilados um ao lado do outro, elegantespares de sapatos para cada um dos dias do mês. Vestia umaelegância ímpar e jamais repetia um modelo. Madame de vitrina,praticamente, todas as tardes um convite lhe esperava para umchá de confraternização ou troca de gentilezas, nas residências deamigas – a maioria esposas de médicos que trabalhavam na clínicaTapajós&Tapajós, em plena Alphavile em Barueri. Há poucocompletara vinte e cinco anos, ao contrario do maridão, doutorCornélio Dias Tapajós, cirurgião plástico renomado, em tempospassados, assistente de Ivo Pitangui. Homem mais velho, passavados cinquenta. Todavia, não negava fogo. Mesmo nessa faixa deidade dava trabalho, não fazia feio ou deixava a desejar. Punha, namoral, como se costuma dizer por aí, muitos garotões no chinelo,tal o vigor e a disposição na hora de fazer gracinhas para a esposa,quando partia para o “vamos ver como é que fica”. E ficava mesmo.O casamento deles ia de vento em popa.

Código de honra

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     Maria  Julieta  não  completara  dezesseis  quando  viu,  pelaprimeira vez, no consultório da clínica, o cara que viria a ser, dentroem breve, o príncipe encantado da sua vida. Tudo aconteceu aoacompanhar a única tia com quem vivia desde os cinco anos, quese internara para se livrar de uns incômodos que ameaçavam suabeleza. A jovenzinha se acendeu por dentro como uma desatinada,diante do primeiro garoto que lhe deu uma piscadela de olhosmais demorada e falou meia dúzia de palavras bonitas, ao pé doouvido. Ele também não ficou atrás. Investiu nas olhadas e paqueras.Na verdade, ambos se corresponderam à altura, até que, umasemana depois, jantavam de mãozinhas dadas, como doispombinhos apaixonados. Houve um pedido formal de casamentoentre taças de champanhe e caviar e, nessa hora, ela, Maria Julieta,flutuou num espaço desconhecido que se descortinava a sua frente.     A princípio, a tia deu contra, afinal ela não passava de umamenina ingênua e ele, um coroa. Contudo, diante da devolução deum cheque pré-datado passado à clínica e uma série de outrasconveniências, acabou por concordar com o matrimônio. Em menosde duas semanas, Maria Julieta, agora senhora Cornélio Tapajós,se mudava de mala e cuia para a espetacular mansão do médicoem Aldeia da Serra, bairro nobre nas cercanias da grande SãoPaulo. Oito anos de felicidade plena e incondicional, regadas commuito amor, carinho, badalações, festas, encontros, simpósios,viagens, idas e vindas ao exterior. A garotinha do bairro doMorumbi, de certa forma, acertara na sorte grande. Não queprecisasse. Trazia o vento dos bons presságios soprando sobresua cabeça, ou mais precisamente, a partir da morte dos pais, numacidente ocorrido na Rodovia dos Imigrantes, em direção aSantos.  Passara a viver, desde esse fatídico dia, com a tal da tiaricaça, que lhe tratava como filha e a amava como ninguém. Joveme bonita, conquistara sua independência financeira. Conseguira,num curto espaço, galgar destaque na sociedade. Seu rosto deprincesa dos contos de fada não saía das colunas sociais. Comoesposa de um cirurgião plástico conhecido internacionalmente,

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sua ascendência às altas esferas da burguesia chegou num abrir efechar de olhos. Até aquele dia...

     A porta de uma das cristaleiras, que ajudavam a adornar a salaimensa e ricamente mobiliada, emperrou. Em conversa com umadas empregadas que compunham a ala das serviçais a seu dispor,Maria Julieta descobriu que Chiquinha, a copeira, tinha um irmãoentendido em assuntos relacionados a móveis finos e os consertavacom impecável precisão. Assim, Pedro Juliano teve acesso àresidência dos Tapajós. Num sábado, logo depois das nove horasda manhã, estava o moço com a irmã à disposição, assim que apatroa despachasse o maridão para se ater ao que o levara até ali.A espera não se fez muito delongada. Menos de meia hora depois,Pedro Juliano se viu diante de uma deusa nunca dantes imaginada.A beleza ímpar da rainha, a senhora Tapajós, não obedecia a limites.O destino, a partir desse encontro, mudou sistematicamente a vidade todos os envolvidos e acabou com a paz que reinava naqueledoce lar. Pedro não se deparara com ninguém tão especial, pelomenos a ponto de ficar embasbacado, queixo caído, feito umdoente mental.

- Me acompanhe, por favor. Mostrarei ao senhor o móvelque pretendo seja prontamente restabelecido à normalidade.

     Pedro Juliano se deixou levar pelo braço como um extasiadodiante de algo que, até então, só vira nas telas dos cinemas.Uma hora depois, o serviço ficava pronto. Mandou a irmã avisarque tudo estava nos conformes. A dona da casa voltou à cena.Desta feita, entrou na sala mais elegante que antes. Pedro sentiuum tremor. Começou a suar. Sua camisa colou nas costas.

- Senhora, me permite lavar as mãos?     Maria Julieta fez que sim, pediu um suco à Chiquinha que seafastou prontamente em direção à cozinha. A sós, ela e o rapaz,ao invés de conduzi-lo para os banheiros destinados aos empre-gados, apontou o seu, que ficava dentro do quarto da suíte do

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casal. Pedro Juliano, ao entrar naquele ambiente chiquérrimo, quaseteve um ataque. Primeiro, porque nunca havia visto nem estadonum ambiente tão luxuoso e, segundo, ao lado do sanitário e dabanheira de hidromassagem, havia uma parede, ou melhor, a paredese constituía num quadro enorme de Maria Julieta, de corpo inteiro,nua em pelo, comendo uvas e fazendo uma pose tremendamenteprovocante e sensual. Seus brios de macho entraram em estadode alerta. Houve uma dificuldade enorme para abrir o zíper e tiraro grosso volume que latejava dentro da cueca apertada. Sentiuvontade de se acabar numa série de ejaculações em homenagemàquela formosura, que se oferecia, como uma gata selvagem,querendo ser possuída e amada.

     Ao urinar, o jato escorreu para fora do vaso formando umapoça em torno de um tapete com desenhos do Piu-Piu. PedroJuliano esquecera de mirar o fundo da bacia da privada, tamanhaa tensão que fragilizava seu estado emocional.

     Sem saber que estava sendo observado, Maria Julieta encostoua porta de acesso a seu quarto e se achegou do banheiro. Espiouentão o rapaz, ou melhor, sua atenção, nesse momento, se desvioupara o que ele segurava em uma das mãos. Ao deparar-se com“aquilo” enorme e descomunal entre os dedos, arregalou os olhose soltou um gritinho de espanto. Surpreso Pedro girou sobre simesmo e, ao fazê-lo, se viu de calças curtas, diante de Maria Julietaem carne e osso.     A partir daquele momento, nenhum dos dois conseguiu tirar ooutro da cabeça. Até que a coisa acabou tendo que ser resolvidana cama. Pedro Juliano passou, então, a quebra-galho oficial damansão, ou seja, a fazer pequenos retoques aqui e acolá. Cadadia pintava algum objeto para ser consertado ou restaurado. Alémde quebra-galho, o sortudo ganhou, igualmente, o posto de amanteoficial da bela e apetitosa patroa de sua irmã Chiquinha e, comotal, a desfrutar não só dos prazeres que o corpo da amada lheproporcionava, mas dos presentes caros que ela comprava e

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oferecia em troca das mijadas que, como a presença dele, na casa,passaram a ser uma constante no banheiro da suíte do quarto decasal.

     O  ilustre Cornélio Tapajós,  cirurgião  plástico  renomado,exatamente dois anos depois, sem querer, sem esperar, sem seravisado e sem planejar nada, acabou dando um flagra. Voltou, derepente, para buscar o estetoscópio que esquecera sobre o criado-mudo. Maldita hora. Topou com a jovem esposa no banheiro,encostada no próprio retrato, aos gemidos de “vai, meu gato, meencha as entranhas com sua porra quente” sendo possuída porPedro Juliano. Cornélio Tapajós enlouqueceu. Perdeu a cabeça.Primeira reação: passou a mão numa arma que mantinha dentrodo cofre e atirou na despudorada. Uma bala só. Certeira,suficiente.  Meio da testa. Os miolos dela mancharam a parede eseu corpo escultural se coloriu de sangue. Em seguida, o médicomirou os colhões do amante, sem se importar com aquela fraseconhecida que surge na boca dos envolvidos, nas horas maiserradas possíveis. “Amigo, me escute, não é nada disso que estápensando”. Sem escapatória. Apertou cinco vezes o gatilho.

     Aldeia da Serra virou um inferno. Em meio aos gritos de “seentregue que é melhor, jogue a arma pela janela e saia de mãospara cima” da polícia, que cercou a mansão e do desespero dosempregados, vizinhos e curiosos Cornélio Tapajós da ClínicaTapajós&Tapajós, pôs em prática a terceira de suas funestasreações: encostou a arma no ouvido e... Não havia mais nenhumabala disponível no tambor do revólver.

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O AQUILEU ERA REALMENTE UM HOMEM com agámaiúsculo. Macho até debaixo d’água. Como delegado titular dahomicídios um exemplo de policial linha dura. Queria tudo certinhoe dentro dos conformes. Seus subordinados sabiam da fama, poressa razão, quando sentado em sua cadeira, no amplo gabinete,ninguém brincava. Até advogado de porta de cadeia receava visitarpreso nessas ocasiões. Final de semana, depois do expediente,decidiu pescar com amigos, numa cidadezinha fora do seu Estado.Geralmente, nessas pescarias rolavam muita carne no espeto,cerveja e mulheres bonitas. Até aí, tudo bem, o Aquileu não estavade serviço, nem perto de sua jurisdição, ao contrário, mais deseiscentos quilômetros o separavam da pacata Santa Gertrudes.Ademais, que mal havia sair da rotina e distrair um pouco as ideias?Filho de Deus gozava direitos iguais como todo ser humano mortal.

     Passou a mão nas tralhas. Tirou da garagem uma BMW preta,adquirida recentemente. Ainda sem placas, os plásticos nosbancos. Ganhou mundo.

     Na  roda  de  amigos  e  garotas,  a  algazarra  corria  às milmaravilhas. Depois de pescar num riozinho de águas límpidas ebeber todas, se embrenhou para caçar mato adentro, com algunsdos muitos rapazes que haviam sido convidados. No decorrer da

Reação em cadeia

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farra, contudo, e no alvoroço que se seguiu, deixou cair, pordescuido, numa espécie de clareira, todos os documentos. Daí emdiante, nada restou nos bolsos que o identificasse. Pior, na históriatoda, é que ninguém viu a carteira rolar, nem ele próprio se deuconta. Aliás, estava como os demais, fora de si e bêbado feitouma mula, mal conseguia parar em pé.

     No domingo à noite, apesar dos companheiros insistirem paraque não voltasse sozinho (afinal, passara todo o dia misturandocerveja, vinho e cachaça), Aquileu, teimoso, não deu ouvidos. Alémde precisar estar na delegacia na segunda-feira, às primeiras horasda tarde, havia outros problemas a serem resolvidos antes deencarar o batente. Tomou um demorado banho de cachoeira,mandou para dentro um prato de arroz com feijão e carne deporco.  Em seguida, despediu-se da galera e encarou a longaestrada de volta. Quilômetros à frente, uma blitz o fez interrompera viagem. Tinha nego espalhado e armado até os dentes, por todosos lados. Uma gangue vinda de Belo Horizonte saqueara umsupermercado e levara todo o dinheiro da féria. Coincidentementeum dos carros envolvidos era uma BMW preta. A Civil e aRodoviária fecharam o cerco. Não passava nem agulha. O sujeitoque interceptou Aquileu chegou gritando:

- Pula fora, devagarzinho, não faça nenhum gesto suspeitoe mantenha as mãos onde eu possa vê-las.

- Sou da casa...

- Identificação?     Procura daqui, procura dali, nada. Somente nessa hora, Aquileu,efetivamente foi se dar conta de que deixara, ou perdera, todos osdocumentos. Não existia absolutamente nenhuma prova que fizessedele um cidadão honesto e decente. Menos ainda os documentosde delegado. Ainda assim, procura daqui, mexe dali, vira de umlado, futuca de outro, qual o quê. Nem os do carro, no porta-luvas para salvar a pátria.

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- O bafômetro. Tragam o bafômetro.

- Meu amigo sou delegado de polícia.

- Identificação?

     Fizeram uma vistoria minuciosa. Arrancaram tudo de dentroda BMW, inclusive uma pistola sete-meia-cinco, uma escopeta,duas caixas de munição e cartuchos deflagrados. Diante de tantasevidências, partiram para uma geral. Aí a cobra entrou em cena ecomeçou a fumar de verdade.

     Aquileu era bom de briga. Lutava caratê, kung-fu e capoeira,além de conhecer a fundo outros esportes violentos. Por terrecusado a assoprar o bafômetro, e por não poder provar otransporte das armas e das balas, levou um tapa no meio das ventas.Furioso, não deixou por menos, revidou. Partiu para a desforradevolvendo o tabefe. Um esquisitão que segurava um revolvertrinta e oito, perdeu a arma e dois dentes. Outro beijou o asfaltocom a testa esfolada. Um terceiro voou longe e caiu, de quatro,dentro de uma valeta perto do acostamento. A confusão, derepente, criou formas gigantescas. Cada um que tentava pegar aunha o Aquileu, ou ajudar os companheiros, saía com a fuçavermelha e os olhos inchados. Vendo que perdiam terreno, umdos presentes solicitou reforço pelo rádio.     Pintou na área, reforçando o que já existia, meia dúzia de viaturasvindas de todas as direções, sirenes ligadas, as luzes intermitentesrodopiando numa confusão desenfreada. Um barulho infernal.Acionaram, também, o comissário do lugarejo, um velhote metidoa valentão, que chegou, quase no mesmo instante. Todavia, Aquileu,por mais brigão e arisco que fosse, ainda levando em consideraçãoos vapores do álcool acumulado, e mais, exausto de tanto dar ereceber cacetadas, acabou dominado, aliás, completamentenocauteado.     Finalmente conseguiram colocar-lhe as algemas.

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- Cadê o valentão?

- Ali, doutor.

     O tal comissário, muito brabo, e abusando do seu poder, chutoucom força as costas de Aquileu.

- Então você é um delegado?

- Positivo. Sou seu colega. Meu nome...

- Identificação?

- Acredite, não posso provar agora, mas...

- Seus comparsas foram para onde? Que rumo tomaram?E o produto do roubo, onde esconderam?

     Cadê o  restante das armas? Além de você, quantos maisconseguiram fugir? Desembucha de uma vez que é melhor. Lá nacadeia disponho de uns métodos interessantes para fazer o sujeitosoltar a voz. Tenho certeza que o meu amigo “delegado”, desculpe,o doutorzinho, particularmente, vai adorar.     Com a prisão do suspeito desfizeram a barreira. LevaramAquileu, a BMW e as armas para a Delegacia. Na porta do prédioonde funcionava a DP, uma multidão de curiosos aguardava achegada do comissário e do misterioso assaltante. Assim que seviu em frente ao edifício, o comissário ordenou a um agente quelevasse o “delinquente” para os fundos da construção e desse umachuveirada fria no mais novo “Van Damme”do pedaço para lheacalmar os ânimos agitados. Em obediência, dois “canas” de narizroxo e cabelos em desalinho (devido às porradas recebidas) seapresentaram para dar início ao tratamento vip que consistia,primeiramente, na revista corporal, ou como é conhecida na gíriados malandros, a “arrancada das penas do frango”.     Depois o meliante seria levado ao tradicional banho do

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descarrego, ou o jato de água fria, com mangueira de bombeiro,que atirava a criatura longe. Por derradeiro, uma visita à salaespecial, onde “encapuzados” faziam qualquer brutamontes soltara língua e confessar que matou a mãe a pedradas e comeu a irmãde sobremesa. Nessa ordem, começaram pela camisa. Em seguida,o cinto, os sapatos, o relógio, celular, cordão de ouro, pulseira,até que chegou a vez da calça. Aquileu voltou a ficar endiabrado ea distribuir porradas, mesmo estando com os braços para trás,presos ao bracelete. Todavia, seus esforços resultaram em vão.Dominado uma vez mais pelos grandalhões com traços de“Schwarzenegger”, finalmente, a jeans rolou pernas abaixo.

     O espanto veio junto. A comoção pegou todos de surpresa.Tomou forma em rostos de aparências rudes que nunca abrirambrechas para sorrisos. Olhares incrédulos, queixos caídos, gentese benzendo. Um Ohhhhh! uníssono pipocou de um canto a outro.“Meu Deus – disse um pastor – em que mundo estamosvivendo?”.      O comissário veio lá da recepção, onde dava entrevista à FM91,9 Rádio Comunitária. Tudo girava em torno de política.O prefeito, o padre, os vereadores, todos, sem distinção, se faziampresentes no átrio da delegacia. Repórteres dos dois jornais diários,ávidos por um “furo” jornalístico, inédito naquele condado,obtiveram permissão para adentrarem no recinto e fotografarem oabsurdo. Um sensacionalismo bizarro e, ao mesmo tempo,dramático. Certamente, aumentaria a venda dos periódicos pormuitas semanas. A gargalhada vinda dos fundos da construçãoestrondeava pelos quatro cantos. Criava força, à medida que anotícia ia se propagando, numa velocidade incrível, de boca emboca, de casa em casa, de bar em bar, enfim, entre a multidão empolvorosa. O parrudo delegado Aquileu, saradão, queimado desol, corpo atlético e de boa aparência, no lugar da cueca, usavauma minúscula calcinha cor de rosa.

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