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A narrativa, a experiência e o acontecimento fundador de novos regimes de visibilidade da TV brasileira. Marialva Barbosa. Revista Tempo.

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  • TempoISSN: [email protected] Federal FluminenseBrasil

    Barbosa, MarialvaA narrativa, a experincia e o acontecimento fundador de novos regimes de visibilidade da TV

    brasileiraTempo, vol. 9, nm. 17, julio, 2004, pp. 1-20

    Universidade Federal FluminenseNiteri, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=167017770008

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  • 17 Tempo

    1

    A narrativa, a experincia e oacontecimento fundador de novosregimes de visibilidade daTV brasileira*1Marialva Barbosa**

    Atravs das cerimnias da televiso pode-se desvendar a face oculta doespectador, j que estas emisses produzem instantaneamente um grupohomogneo ao participar deste momento ritual?

    Este texto parte, portanto, desta indagao bsica e propomos, a partirda anlise da cerimnia televisiva2 fundadora a chegada do homem Lua,em julho de 1969 , recuperar e reconstruir os gestos do pblico. Estas narra-tivas introduzem um novo modelo de atuao do espectador com lgicas* Artigo recebido em maio de 2003 e aprovado para publicao em maro de 2004.1 Este texto apresenta os resultados preliminares da pesquisa realizada com o apoio do CNPq Mdia e Cerimnias: uma anlise da consolidao do modelo cerimonial na mdia audiovisual bra-sileira a partir dos anos 1960 e contou com a participao da bolsista de iniciao cientficaRenata Machado, sem a qual no teramos possibilidade de recompor os dados empricos.** Doutora em Histria pela UFF. Professora do Programa de Ps-Graduao em Comunica-o da Universidade Federal Fluminense e, atualmente, coordenadora do Programa.2 O conceito de televiso cerimonial foi desenvolvido por D. Dayan e E. Katz (1996). Definin-do estas emisses como as que interrompem as seqncias narrativas, interpondo-se no vdeoe interrompendo o contnuo incessante da programao da televiso, Dayan identifica trsgrupos de cerimnias: conquista, confronto e coroamento.

    Tempo, Rio de Janeiro, n 17, pp. 153-172

  • 2Marialva Barbosa Artigos

    narrativas e de interpretao prprias que constri um ritual ao fazer partedo momento cerimonial, um ritual de participao.

    A questo da narrativa

    Mas o que estamos considerando narrativa? No se trata apenas de di-vidir modalidades menores ou molduras menores (frames) do discurso, massobretudo visualizar as regras bsicas que orientam determinados processosde comunicao, construindo as especificidades dos prprios relatos, para almdas discursividades que produz.

    A categoria experincia aparece como central na definio de narrati-va. O que est em cena o lugar de fala do sujeito e a sua prpria experinciafrente ao mundo, ao construir estas molduras para o seu discurso.

    Benjamin, ao analisar o narrador, caracteriza trs estgios evolutivos desua prpria histria.3 O narrador clssico, cuja funo era dar ao seu ouvinte aoportunidade de trocar experincias; o narrador do romance, que j no fala-va mais de maneira exemplar ao leitor e, finalmente, o narrador jornalista, quenarra a informao, j que o que est no centro do seu discurso no mais asua prpria experincia, mas o que aconteceu com um outro. Benjamin des-valoriza esta ltima modalidade e s considera como verdadeira a narrativaclssica, pois esta no deve estar interessada em transmitir o puro em si dacoisa narrada como uma informao ou um relatrio.

    No primeiro caso o da narrativa clssica o que narrado est mergu-lhado na vida do narrador e deste lugar que retirado. O que narrado visto com objetividade pelo narrador, embora aparea como algo relativo sua prpria vivncia.

    A perda da dimenso utilitria da narrativa clssica eixo central dopensamento de Benjamin produz uma espcie de lapso em relao dimen-so esttica: o narrador clssico produz a sua narrativa com o intuito de ensi-nar. Nas palavras de Benjamin, quando um campons sedentrio e um mari-nheiro narram tradies ou viagens estas esto sendo teis ao ouvinte. Estautilidade pode consistir num ensinamento moral, numa sugesto prtica, numprovrbio ou norma de vida de qualquer maneira, o narrador o um ho-mem que sabe dar conselhos. O conselho tecido na substncia viva da expe-rincia tem um nome: sabedoria.4

    3 Walter Benjamin, O narrador, in: Sobre arte, tcnica, linguagem e poltica. Lisboa: RelgioDgua Editores, 1992.4 Idem, p. 31.

  • 3A narrativa, a experincia e o acontecimento fundadorde novos regimes de visibilidade da TV brasileira

    A informao, ao contrrio, no seria capaz de transmitir esta sabedo-ria, pois ela no construda a partir da experincia do narrador, mas a partirda experincia de um outro, exterior ao narrador. Ele apenas observa o quese passa com algum e relata este fato como informao.

    Segundo Silviano Santiago,5 este narrador contemporneo que eledenomina ps-moderno transmite sua sabedoria em decorrncia da obser-vao da experincia alheia. E , nesta ao bisbilhoteira, um ficcionista, poisa autenticidade que produz tem respaldo na vivncia de um outro. O texto,por outro lado, no possui nenhuma autenticidade, isto se considerarmos quea verossimilhana produto da experincia e no da lgica interna do prpriorelato. O real e o autntico so, portanto, construes de linguagem e o narradorps-moderno tem conscincia disto.

    No texto de Benjamin, percebemos tambm o paralelo que constrientre o embelezamento da narrativa clssica e o embelezamento do homemno leito de morte. Ao descrever o desaparecimento da narrativa clssica, fazreferncia descrio da excluso do mundo da morte do mundo dos vivosque se processou, sobretudo a partir do sculo XIX, quando se passa cada vezmais a evitar o espetculo da morte.

    A narrativa clssica, cuja autoridade se fundamentava no conselho,encontrava a sua imagem ideal no espetculo da morte humana. no mo-mento da morte [diz Benjamin] que o saber e a sabedoria do homem assu-mem pela primeira vez uma forma transmissvel. A autoridade uma condi-o inerente ao que morre, j que a experincia vivida s assume a sua pleni-tude com a morte. E desta forma que no texto de Benjamin morte e narra-tiva cruzam o mesmo caminho.

    Na contemporaneidade, o foco do narrador desloca-se para a experin-cia alheia, que apresentada como espetculo que causa, tanto ao que pro-duz os acontecimentos, como aos que deles se apropriam pelos regimes devisualidade, prazer e crtica. A experincia retirada do campo da ao, davivncia e passa a ganhar sentido atravs de uma imagem transmitida emmassa. A experincia passa a ser o olhar e a partir destes regimes devisualidade que existe. A palavra do prprio narrador recoberta pelo olhar eeste constitui a narrativa.

    5 Silviano Santiago, O narrador ps-moderno, in: Nas Malhas da Letra. So Paulo: Compa-nhia das Letras, pp. 38-52, 1998.

  • 4Marialva Barbosa Artigos

    O acontecimento fundador

    Esta narrativa olhar no pode admitir qualquer interrupo. A televi-so, com suas imagens que se sucedem incessantemente, constri novas ex-perincias que se configuram na experincia de um outrem que tambm sereatualiza a cada instante.

    A televiso transforma a narrativa num espetculo ininterrupto. E a expe-rincia passa a ser a prpria cerimnia que se constri da vivncia de um outrem.

    Este movimento de construo de experincias ininterruptas, a partirde novos regimes de visibilidade, instaurado pelas chamadas cerimnias dateleviso. E, no caso brasileiro, 20 de julho de 1969 o marco fundador. Oitovezes Armstrong repetiu a lenta e dramtica dana. De costas para a paisa-gem da noite lunar, com as mos seguras na escada de sua guia metlica,procurava com os ps cada degrau da histrica descida.

    Desta forma a edio histrica da revista Veja de 23 de julho de 1969,ento no seu nmero 46, procurava reconstruir a imagem da chegada do ho-mem lua, transmitida pela televiso. Segundo clculos estampados na pr-pria revista, 1.200 milhes de pessoas em todo o mundo viram o espetculopela televiso.6 Detalhando a cobertura prosseguiam: a rede europia de TValcanou 220 milhes de pessoas e somente nos EUA as trs maiores redesde TV Columbia Broadcasting System (CBS), a American BroadcastingCorporation (ABC) e a National Broadcasting Corporation (NBC) calcularamem 150 milhes o nmero de americanos que assistiram s transmisses. Estasemissoras gastaram 1,5 milho de dlares.

    Mostrando a importncia do acontecimento do ponto de vista da mdiateleviso, o texto destaca ainda o fato de a televiso no ter chegado a rou-bar todo o espetculo de Cabo Kennedy, apesar de ter levado as imagens dolanamento ao mundo inteiro graas ao sistema de comunicaes da NASA.Isto porque, entre os trs mil jornalistas credenciados em Cabo Kennedy, amaioria era de jornais e revistas.

    No Brasil, apenas 19 anos aps a inaugurao da TV, existiam 3.276.000aparelhos espalhados por todo o pas e recebiam a programao das 15 emis-soras existentes, atingindo aproximadamente 25 milhes de expectadores(ABINEE). A emissora mais importante era a Rede Tupi de Televiso e o seuprincipal programa jornalstico, o Reprter Esso. Os filmes ocupavam a maior

    6 Veja. Hoje, a lua do homem. So Paulo: Editora Abril, n. 46, 23 jul. 1969, p. 20.

  • 5A narrativa, a experincia e o acontecimento fundadorde novos regimes de visibilidade da TV brasileira

    parte da programao. As notcias estavam em sexto lugar, atrs ainda dosprogramas de auditrio, das novelas, do esporte e da publicidade.7 Mas o gran-de acontecimento daquele 1969 foi a transmisso ao vivo, via satlite, do ho-mem pousando na lua.

    Do ponto de vista poltico vivia-se, em 1969, o perodo mais duro daditadura militar, seis meses aps a promulgao do Ato Institucional no 5, que,decretado em dezembro de 1968, suspendeu todas as garantias constitucio-nais e institucionais e ampliou os poderes presidenciais. Alm disso, a fun-o legitimadora do Congresso foi sumariamente dispensada, sendo o rgofechado e reaberto somente em outubro de 1969, para ratificar a escolha donovo presidente pelo Alto Comando das Foras Armadas.8

    Do ponto de vista econmico, aps a recesso entre 1962-67, vivia-seum perodo de desempenho positivo da economia, sobretudo a partir de 1968:iniciava-se o perodo do chamado milagre econmico, mas que, de fato,significou a garantia de lucros mirabolantes s empresas oligopolistas, na-cionais e estrangeiras.9

    Ainda que os meios de comunicao tenham desempenhado papelfundamental no perodo, via apoio aos poderes excessivos do Estado, levan-tando-se vozes espordicas contra o perodo ditatorial militar, a televiso ti-nha, ento, poder de difuso restrito. Em funo disso, o seu prprio poderpoltico era de menor abrangncia.

    Das 15 emissoras existentes no pas, a TV Tupi era a lder de audin-cia, apregoando em anncios veiculados na imprensa ser responsvel pelamaior cobertura geogrfica do pas, atingindo 6 milhes de telespectadores,em seis estados brasileiros: alm da ento Guanabara, Rio de Janeiro, MinasGerais, Esprito Santo, So Paulo e Bahia. (O Cruzeiro, 15 maio 1969, p. 98Voc sabe com quem est falando? A TV Tupi sabe!) Registrava 34,61%da preferncia do pblico, frente da Record que, segundo dados do Ibope,ocupava a segunda posio nestes estados, com 31,52% da audincia. 10

    A TV Globo, apenas quatro anos depois de sua inaugurao, seguia a li-nha de veiculao de programas populares, tentando conquistar uma fatia

    7 IBGE. Anurio Estatstico do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1972, p. 159.8 Sonia Regina de Mendona e Virgnia Maria Fontes, Histria do Brasil Recente. 1964-1992.Rio de Janeiro: Editora tica, 1996.9 Idem, p. 22.10 O Cruzeiro, 24 de julho 1969, p.99.

  • 6Marialva Barbosa Artigos

    expressiva do pblico. As suas relaes com o poder e a sua ligao aos inte-resses internacionais (vide, por exemplo o chamado acordo Time-Life) serofundamentais para o desenvolvimento da emissora exatamente neste perodo.

    Foi a aposta nos programas populares, liderados por Chacrinha, SilvioSantos e Derci Gonalves, uma das razes para o incremento do pblico daTV Globo no perodo. Paralelamente, a morte do lder dos Dirios Associados,Assis Chateaubriand, em 1968, marca o incio de uma longa crise que se aba-teria sobre todo o grupo, sem excluir, evidentemente, a TV Tupi.

    Naquele julho de 1969, havia grande expectativa para as transmissesda chegada do homem a Lua, que comearam por volta das 21 horas, termi-nando s trs horas da madrugada e reproduzindo a cena espacial ao vivo: opouso da nave, a descida dos astronautas no solo lunar, o passeio ao redor e oregresso novamente ao mdulo espacial. A Rede Tupi transmitiu estas cenas.

    Mesmo antes do incio da transmisso da NASA, a TV Tupi j mostravao centro espacial de Houston, esperando as primeiras imagens do homemdescendo na lua. A emissora concorrente a TV Globo projetava os seusprogramas de maior audincia: Silvio Santos e Chacrinha. Os resultados doIbope foram implacveis: enquanto a Tupi registrava 80% da audincia, aGlobo ficava com 20%.11

    As transmisses foram simultneas em todo o mundo. Milhes de pes-soas assistiram ao mesmo fato, no mesmo momento: o pouso da nave Apolo 11.Criava-se, pela primeira vez, uma comunidade de pblico em torno de ummesmo acontecimento. Criava-se um fenmeno cerimonial novo e univer-sal, pressupondo uma mesma atitude o ver com diante da emisso. E havianeste gesto uma cerimnia coletiva instaurada pela televiso.

    Criava-se uma comunidade de pblico tambm para estas pessoas queassistiam juntas a um ritual que tornava a cerimnia a priori num misto defico e realidade, solicitando a crena coletiva e no a razo crtica. Inme-ros artifcios narrativos foram construdos para a transformao da transmis-so numa espcie de festa comunho: a escolha das imagens, o apagamentodo contexto, a lentido dos movimentos e a repetio dos efeitos.

    O fato de a cerimnia que inaugura este ritual televisivo ter sido a che-gada do homem lua produziu a emergncia deste modelo. Um acontecimen-to inscrito no mundo da fico o homem descia no espao num satlite dis-

    11 Televiso O vo rasteiro das nossas emissoras, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 deJulho de 1969, Caderno B, p. 2.

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    tante da terra e visto sempre com uma aura de fantasia pelo pblico acen-tuou, sem dvida, a construo do modelo narrativo que perdura ainda hojenas cerimnias da televiso. A paisagem lunar aparecia fluida nas imagens, adana de Armstrong ao sair do mdulo lunar assemelhado a uma aranha episar na lua era uma espcie de fico. Mesmo todo o aparato narrativo mon-tado para transform-la em acontecimento jornalstico no foi capaz de per-mitir este tipo de apropriao por parte do pblico, que continuou vendo asimagens como uma espcie de fico possibilitada pela tecnologia.

    Pela primeira vez, a televiso se constitua em testemunha de umaverdade anunciada por ela mesma. Suas imagens foram reproduzidas sob aforma de testemunho e apropriadas para a construo de um acontecimento,no qual era impossvel a presena fsica do jornalista. No dia seguinte s trans-misses ao vivo, todos os jornais, bem como as principais revistas nas sema-nas que se seguiram, reproduziram, como espcie de cone da veracidade doacontecimento, as imagens transmitidas pela televiso. Assim, a chegada dohomem lua no era mais o acontecimento jornalstico e sim as imagens quea televiso produziu sobre o fato.

    Se, para alguns autores, o acontecimento moderno pode ser localizadonos ltimos trinta anos do sculo XIX,12 a chegada do homem Lua inaugu-raria uma espcie de acontecimento contemporneo, no qual a atualizaopermanente a marca mais singular. Neste tipo de acontecimento, alm deuma continuidade que se instaura sem cessar, a atualizao permanente tam-bm se sobrepe. Com isto, o presente passa a ser possudo de um sentidosupra-histrico. A percepo histrica passa a se dar no presente e de manei-ra permanentemente atualizada, e o acontecimento s existe na medida desua inscrio na cena miditica.

    Acontecimento, neste sentido, deve ser definido no mais pelo duploaspecto original: a ruptura e o conhecimento. preciso acrescentar um ter-ceiro corolrio: a atualizao permanente. Acontecimento seria algo que emer-ge na durao, irrompendo a cena e estabelecendo uma distino entre aqueleinstante e o imediatamente anterior. Mas no basta a ruptura para a produodo acontecimento. necessrio que ele seja conhecido. Por um lado, neces-sita-se da diferena, da excepcionalidade que cria, mas, para se constituir comotal, preciso ainda que uma ampla maioria de pessoas tome conhecimentoda sua existncia.12 Pierre Nora, O retorno do fato, in: J. Le Goff e P. Nora (org.), Histria: novos problemas.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

  • 8Marialva Barbosa Artigos

    Alm disto torna-se necessrio que esta ruptura seja permanentemen-te atualizada, produzindo novas rupturas e inscries de um acontecimentoque se sobrepe ao outro, de tal forma que no se tem mais perspectiva dofato original.

    Se uma espcie de acontecimento monstruoso13 emerge no final dosculo XIX, fazendo com que este antes domnio da histria positivista,objetiva e passadista seja resultante do imediatismo histrico provocadopelas mdias, no sculo XX acrescenta-se um novo aspecto: a atualizaopermanente instaurando um presente contnuo.

    Por outro lado, preciso salientar que a atualidade comandada pelaordem do sensacional. Em um mundo convulsionado e, ao mesmo tempo,comunicante: tem-se a sensao de que as crises podem subverter a vida.Levadas ao conhecimento do pblico, estas crises provocam angstia e afli-o. E esta caracterstica imediata da comunicao que impe ao jornalis-mo o papel de construtor da histria imediata, diante de uma multidoalucinada por informao.14

    Entretanto, preciso atentar que estamos falando de um momento emque existia um outro regime visual na televiso. Apenas 19 anos aps seuincipiente aparecimento no Brasil, o discurso produzido por esta mdia, emfuno dos recursos tecnolgicos ento disponveis, ainda era definido por umaespcie de distanciamento do olhar do telespectador da cena do acontecimento.

    Alm disto, a ausncia de dispositivos tecnolgicos que permitiriam aaproximao da cmara, o carter quase fluido da imagem (gravada, editada etransmitida a partir do centro espacial americano e com a lgica da produoda imagem construda para a cincia), que era retransmitida pela televiso,fazia com que a iluso imagtica prevalecesse, tomando o lugar da produodo acontecimento como fato real. Ainda que se considere a natureza ideol-gica da imagem, definida a partir do lugar da cmara ao focar o seu objeto, acaptao das imagens se fazia por uma outra tica, um outro olhar, que so-mente a posteriori se transformava num olhar jornalstico.

    Recuando-se no tempo, percebe-se que a tcnica, determinante naconstruo do carter das imagens e das discusses propostas ao espectador,fazia com que existisse um outro regime de imagem, tanto na expresso quanto

    13 Idem.14 Jean Lacouture, A histria imediata, in: J. Le Goff (org.), A histria nova, SoPaulo: Martins Fontes, 1990.

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    no contedo. A inteno era exatamente de evidenciar a diferena entre osolhares eletrnico e humano. A imagem grifava esta diferena para o recep-tor, como que dizendo o tempo todo que o olhar ampliado do mundo era anova maneira de torn-lo visvel. E aquele olhar eletrnico tinha o poder depenetrar onde o olho humano jamais poderia estar. Na tela estava reveladoum mundo at ento invisvel para o pblico, um mundo que, embora numprimeiro momento, parecesse prximo, estava longe, porque assim a tcnicao queria.15

    O evento fundador do carter cerimonial da televiso faz com que apa-rea pela primeira vez a idia de que esta mdia era capaz de registrar o acon-tecimento no momento mesmo de sua produo. Instaura-se uma espcie depresente histrico, governado pelo olhar eletrnico da televiso.

    O jornalismo torna-se, portanto, produtor do tempo presente, no qualos acontecimentos se sucedem numa velocidade estonteante. Nada pode serpassado. Tudo deve ser absolutamente novo.

    Assim, a televiso, ao assumir papel singular na construo das chama-das cerimnias televisuais,16 instaura, de maneira emblemtica, o instante deruptura e, ao mesmo tempo, de permanente reconfigurao de um mesmoacontecimento.

    A questo da objetividade tambm central, quando se enfoca o acon-tecimento contemporneo. Tambm para o jornalismo o presente no aquiloque realmente aconteceu, e a descrio realizada pelo jornalista apenas re-construo. O narrador da atualidade est implicado na prpria construo dofato jornalstico e submetido aos limites ideolgicos do seu tempo e das es-truturas s quais est filiado. O acontecimento jornalstico s se configura narelao entre a descrio do fato e a interpretao realizada pelo prprio jor-nalista. Da mesma forma que a histria no pertence ao documento, sendofeita pelo prprio historiador na crtica que produz, tambm o acontecimen-to jornalstico no pertence realidade. O que o constitui a interpretaorealizada pela mdia no instante em que transporta um fato para a categoriade acontecimento.

    15 Eliana Monteiro. O seqestro do nibus 174 na cena da tv: espao, tempo e cidade. Niteri, 2002.Dissertao (Mestrado em Comunicao, Imagem e Informao) Universidade FederalFluminense.16 D. Dayan e E. Katz, La tlvision cremonielle. Paris: PUF, 1996.

  • 10

    Marialva Barbosa Artigos

    No centro do debate sobre a absolutizao do acontecimento est a suaprpria constituio como narrativa. Ao atrel-lo noo de narrativa, no sepode esquecer tambm a questo da singularidade: os acontecimentos sonicos em lugares e pocas especficas.

    Acontecimento e narrativa esto, como afirma Paul Ricouer, natural-mente inter-relacionados. A narrativa produz uma apropriao particular dotempo vivido, caracterizada pela sua mediatizao entre o campo da ao e oda recepo. A descrio de um acontecimento no o aprisiona naquela lgi-ca temporal, mas atravessa o passado e o futuro. Assim, narrar o acontecimento entrar num campo de experincia, no qual traos do passado sorememorados e transmitidos. Mas tambm ingressar num horizonte de ex-pectativa. A narrativa construda para um outro, dentro deste horizonte, queenvolve, por exemplo, vontade, anlise racional, contemplao receptiva oucuriosidade.17

    Cerimnias televisivas: o acontecimento jornalstico em permanente atualizao

    As cerimnias televisivas moldam de outra maneira o acontecimentojornalstico. Acontecimento no mais o que emerge na durao, mas aquiloque, emergindo, se atualiza sem cessar. Estas cerimnias que instantaneamen-te produzem comunidades, ainda que efmeras, inauguram uma outra rela-o com as mdias para o pblico que visualiza estas emisses. Cria-se umsentimento de comunho, invisvel aos outros espectadores que no partici-pam daquela comunidade imaginria. O acontecimento, por outro lado, exis-te apenas no programa que o difunde sem cessar, sendo, pois, criao diretado pblico, que deixa de ser formado por grupos fragmentados (em ter-mos de gnero, profisso, grupo social) para adquirir nova face, diantedaquelas emisses que se constituem em lugares pblicos, nos quais a fa-mlia e os amigos se reencontram para dividir e partilhar a mesma experin-cia. Este instante efmero e que ser alado rapidamente categoria de es-quecimento produz a sensao ou a iluso de participao no acontecimentoe, portanto, de participao poltica.

    A prpria caracterstica da sociedade contempornea, em que o espaopblico se situa entre o ldico e o violento, enquanto o privado se torna lugarde interaes e redes de sociabilidades, faz com que estas cerimnias apar-

    17 R. Koselleck. Le futur pass. Contribution la smantique des temps historiques. Paris: EHESS,1990.

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    A narrativa, a experincia e o acontecimento fundadorde novos regimes de visibilidade da TV brasileira

    tadas da lgica poltica sejam lugares de participao. Da tambm a impor-tncia deste tipo de gnero narrativo, ao assumir aspecto ritualizado para oconjunto de pessoas que assiste, juntas, mesma transmisso.

    A cerimnia miditica, transmitida ao vivo e de maneira incessante pelateleviso, apresenta todas as caractersticas de um ritual, aproximando-se dacriao romanesca ou da iluso teatral. Os personagens situam-se entre o reale a fico, solicitando do pblico a crena coletiva e no a razo crtica. Paraisto, preciso criar artifcios narrativos: escolha de imagens, apagamento docontexto, repetio dos efeitos, lentido dos movimentos dos personagens,atores principais ou secundrios. Tudo conduz criao de uma festa, na qualrituais esto inseridos. Estes rituais pedem tambm uma ao ritual do p-blico, ator da cerimnia. O pblico convidado a participar da festa-comu-nho. A transmisso simultnea unifica reas geogrficas e instaura novastemporalidades, transformando tambm a experincia do telespectador emrelao mdia.18

    Outro aspecto a ser considerado em relao ao acontecimento cerimo-nial fundador da televiso a questo da simultaneidade das transmisses,em tempo real, isto , no momento mesmo em que Neil Armstrong pisava naLua. A caracterstica de imprevisibilidade instaurava o regime da surpresa doque estava por vir.

    A experincia narrativa cerimonial deste acontecimento introduziufortemente a idia de fico. Apresentar como real uma cena construda hdcadas no imaginrio como fico a chegada do homem lua refora ocarter ficcional do acontecimento.

    Mas esta mesma experincia narrativa tambm introduziu a idia deuma nova instantaneidade e simultaneidade, instaurando para o acontecimen-to a iluso de permanncia. Ao ser atualizado sem cessar, o acontecimentocerimonial produz a negao da ruptura, incluindo-se, pois, num novo regi-me: o de permanncia. H ainda um ltimo aspecto a ser considerado: o acon-tecimento passa a ser temporalmente construdo a partir da sua escolha pelateleviso.

    O que est se desenvolvendo naquele momento o acontecimento eos meios de comunicao no so apenas arquivos para o futuro, mas arqui-vos permanentes do presente. A narrativa que produzem no mais apenas amescla do ficcional com o informacional, mas a narrativa histrica do imediato.

    18 D. Dayan e E. Katz, op. cit.

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    Marialva Barbosa Artigos

    As cerimnias televisuais criam nova relao com o pblico, na medidaem que, ao fazerem parte do ritual televisivo, este pblico inaugura um novodilogo com estas mdias.

    Importando modelos narrativos destas cerimnias, o gnero jornalsticoda televiso brasileira calcado tambm na iluso da participao do pblicona prpria narrativa. Ao lado disto, coloca em foco a simbiose da fico com ainformao, no havendo nestas textualidades a percepo de onde acaba umregime e comea o outro.

    A iluso de participao do pblico daquele vasto auditrio que se crialeva ao predomnio de regimes de oralidade, extremamente importantes parao jornalismo da televiso. A cena dos telejornais, onde o convite oralidadese faz na forma como os jornalistas se apresentam no estdio, mostra que aampliao do auditrio se fez tambm pela recuperao cultural dos gestosdo pblico.

    O auditrio do homem na Lua

    Mas quem eram estes telespectadores que, em grupo ou individual-mente, assistiram s imagens transmitidas durante mais de seis horas ao vivo da chegada do homem lua? Como se instaurou, a partir desta emisso, afesta comunho em torno desse acontecimento?

    A chegada do homem lua produziu uma ruptura no quotidiano dopblico os que viam a televiso ou os que sabiam que a televiso transmiti-ria aquelas imagens , instaurando tambm uma nova temporalidade: era comose o mundo tivesse parado, de repente, para assistir ao acontecimento porta-dor de uma aura sacralizada.

    Mobilizam um vasto auditrio, a partir do instante-comunho da trans-misso da emisso, que passa a partilhar da mesma experincia, fazendo par-te de um novo grupo revelado por este instante-comunho. Como pblico damesma cerimnia, participa ativamente daquela celebrao.

    desta forma que o auditrio da chegada do homem Lua se inscrevena cerimnia fundadora deste ritual televisivo. Pelos vestgios e pelos traosdeixados do passado, pode-se reconstruir este auditrio e, sobretudo, as im-presses e as imagens-lembranas que guardou do acontecimento.

    Dois tipos bsicos de pblico participaram daquelas transmisses: o quese reuniu para, em grupo, celebrar o instante sagrado e o que soube a posterioricomo havia sido aquelas transmisses. Nisto tambm o jornalismo cumpriu

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    A narrativa, a experincia e o acontecimento fundadorde novos regimes de visibilidade da TV brasileira

    papel definitivo, j que os jornais dirios, as revistas, ou seja, a mdia impres-sa de maneira geral reproduziu em detalhes as imagens transmitidas pela te-leviso. A chegada do homem lua foi um acontecimento televisivo, e os jor-nais e as revistas basearam toda a sua cobertura nas impresses deixadas pe-las transmisses da televiso.

    Aqui em casa, no vimos o homem descer na Lua. Por qu? Porque comofoi dito no Caderno B de 23 de julho de 1969 para a televiso carioca, o gran-de feito dos cosmonautas americanos se no chegou a ser um programa derotina, nem por isso mereceu um tratamento diferenciado daquele que dados partidas de futebol.19

    A carta de Ceclia Meira apresenta indignao diante da forma como astransmisses foram realizadas. Criticando a performance jornalstica, a espec-tadora se insere na produo do acontecimento. Embora no tenha assistidos transmisses, porque estas no foram construdas dentro de uma estticageral que atendesse s suas expectativas, participou do ritual daquele 21 dejulho.

    Aqueles descemos na Lua, minha gente e foi a maior conquista foram de-mais. O fato de um reprter gordo e sem gravata estar nesse momento ao ladode uma bastante ultrajada senhora de peruca tentando defender os mritosda dita reportagem, em nada altera o fato que nem mesmo um acontecimentodesta importncia conseguiu levar as equipes de televiso local a um mnimode estudo e planejamento. Ultrajado est o pblico, isto sim.20

    A crtica da leitora concentra-se na forma como o acontecimento foiapresentado. A vestimenta do reprter causara impresso de desrespeito: di-ante de um acontecimento que mudava o mundo, como era possvel apare-cer no vdeo sem gravata? Por outro lado, ao transgredir o cdigo lingstico,apresentando a descida como comum a todos, inclusive ao prprio reprter,ou seja, como uma conquista, causou indignao.

    A experincia festiva da qual ela tambm participara no era constru-da com a aura de cientificidade desejada. Entretanto, do ponto de vista daconstruo narrativa, o texto do reprter possua todos os elementos necess-rios elaborao de uma festa-comunho: a retrica da denegao e a recria-o do acontecimento.

    19 Ceclia Meira, A TV e o vo Lua, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de julho de 1969,p. 6.20 Idem, ibidem.

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    Atravs da linguagem coloquial e da sua insero na cena do aconteci-mento, o jornalista criava um discurso de compensao, em que a narrativaera o instrumento da representao do acontecimento cerimonial, isto , vetorde seu contgio.

    Ao recriar o acontecimento, deslocava suas prprias fronteiras. A narra-tiva inseria-se entre a cerimnia e a fico. Da a utilizao de uma enunciaoque transformava a descrio do acontecimento numa prtica coloquial, ounuma transmisso semelhante que realizavam durante as partidas de futebol.

    Um outro elemento fundamental tambm esteve presente: os atoresdo acontecimento, os espectadores no caso, representados pela senhorade peruca que apareciam em torno. Mesclam-se smbolos pblicos NeilArmstrong construindo sua lenta e dramtica dana com atores que falamde suas emoes privadas as impresses das imagens deixadas no pblico.

    Como cerimnia da televiso, a chegada do homem lua permitia aosespectadores explorar o interior do prprio acontecimento. O recurso ao sis-tema de pontos de vista os levava a assistirem cena pelos olhos de seusparticipantes diretos. E os jornalistas, por no implementarem uma lgicanarrativa diferente das habituais reportagens, foram alvo de duras crticas doauditrio.

    No momento em que Armstrong colocou o p sobre a Lua, no s comeouuma nova era na explorao dos espaos, mas principalmente uma nova erana comunicao entre os homens. A linguagem da imagem universal, propi-ciada pela televiso, de longe repara a Babel de idiomas que por milnios di-vidiu a humanidade.21

    Desta forma o espectador Ray Guenzburg manifestou, no dia seguintes transmisses, sua crtica forma como a narrativa foi conduzida. Para ele, oacontecimento a transmisso direta e ao vivo fora nico do ponto de vistadas relaes comunicacionais, entretanto

    (...) nossos experts em TV no se aperceberam do momento histrico que vi-vamos, comportando-se como crianas excitadas e salientes diante dagrandiosidade dos fatos. No puderam entender a solenidade de 1.200 mi-lhes de seres humanos desejando o sucesso de sua aventura mxima. Por issono conseguiram colocar, ao menos, dignidade em seus comentrios.22

    21 Ruy Guenzburg, TV e o vo lua, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 de julho de 1969, p. 6.22 Idem, ibidem.

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    A narrativa, a experincia e o acontecimento fundadorde novos regimes de visibilidade da TV brasileira

    A cerimnia da televiso coloca na cena principal o narrador/jornalistano papel de comentador. necessrio iniciar o espectador no tipo de eventoaberto sua participao. O carter de excepcionalidade pode ser facilmentepercebido na voz dos comentadores e no seu vocabulrio. A conciso d lugara uma linguagem ornamental e muitas vezes incluso do prprio jornalista/comentador no desenrolar da cena. O texto assume o aspecto de uma poesiacelebratria.

    Para o espectador, entretanto, estas caractersticas fundamentais danarrativa cerimonial foram percebidas como transgresso realizada pelos jor-nalistas que se comportaram como crianas excitadas e salientes diante dagrandiosidade dos fatos. O pblico reclama, portanto, da no-sacralizao doevento.

    O fato de aquela ser a primeira cerimnia da televiso aberta a umtipo de narrativa que prima pela improvisao fez com que o pblico noenxergasse naquela arte de narrar a textualidade at ento comum televi-so. Da o estranhamento, apresentado como falta de informao do prpriojornalista.

    Se alguns viram aquele acontecimento com o olhar crtico voltado paraa emisso, outros duvidaram das cenas que a televiso mostrava ao vivo. C-ticos diante da imagem, acreditavam que as cenas eram uma montagem, pos-sibilitada pela tecnologia. A repetio das imagens a descida de NeilArmstrong, seus passos inseguros, o espao restrito sua volta e a repetioseguida do mesmo cenrio rido da superfcie lunar acrescida de sua carac-terstica fluda e pouco ntida aumentava a sensao de dvida. Mas a dvidaera antes de tudo instaurada pelo novo regime narrativo que a televiso inau-gurava.

    Reaes diversas diante de um mesmo acontecimento no faziam dosque participavam como espectadores daquele acontecimento um pblicodiverso. Ao contrrio. O fato de assistirem ao mesmo evento-comunho ostransformava num s pblico, permeado pelos rituais de uma mesma cele-brao.

    Reunindo-se para comemorar diante da televiso, suprindo a falta doaparelho com a ao do ver em companhia de um outro, os espectadorestransformavam a emisso numa cerimnia. As reaes mltiplas resultavamda partilha das mesmas possibilidades de viso, a partir das imagens que es-tavam sendo transmitidas.

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    Marialva Barbosa Artigos

    Um carioca destelevisado que mora na Avenida Niemeyer desceu at a casade amigos para ver pelo vdeo a transmisso do histrico acontecimento. J demadrugada, Armstrong e Aldrin de volta ao mdulo, tambm ele resolveuvoltar para a sua casa. Saiu e tomou um txi. Antes de revelar o itinerrio foilogo perguntando ao portugus que o servia, o que tinha achado da faanhaamericana, se teria coragem de ir Lua.23

    A crnica de Jos Carlos Oliveira, publicada no Caderno B do Jornal doBrasil, informa sobre uma atitude comum: celebrar o acontecimento, ao verem conjunto a emisso, partilhando formas de olhar.

    No foi apenas o fato de no possuir o aparelho transmissor que reuniuas pessoas naquele 21 de julho: foi a possibilidade de celebrar a ao conside-rada excepcional e que inseria o pblico na sua prpria constituio. Estainstaurao da participao do pblico se fazia tambm atravs da mitificaoda televiso em torno do acontecimento.

    Poucos foram os que saram de casa, permanecendo a populao em vigliacientfica desde os primeiros instantes da transmisso, por volta de 21 horas,at a concluso da mesma, quase trs horas da madrugada. Os restaurantes eboates s moscas, limitaram-se a receber alguns bomios, j depois daquelahora.24

    O acontecimento s existia na medida da participao do pblico. As-sim, no era possvel perder nenhuma daquelas imagens, que eram vistas eentrecortadas por comentrios produzidos na cena do acontecimento e na cenada celebrao.

    Mesmo os poucos que se aventuraram a sair o fizeram munidos de televisesportteis, que colocavam a sua frente nos locais aonde iam, atraindo a curiosi-dade e o interesse dos demais. At no Maracan, em pleno jogo Fluminensex Vasco, havia na tribuna da imprensa uma TV porttil espera de algumatransmisso que mostrasse a descida do mdulo na Lua. Quando foi ligada,todos que se achavam nas proximidades esqueceram a peleja e cercaram oaparelho, interessados no noticirio lunar.25

    Cria-se, pois, uma nova paisagem, na qual a inscrio da televiso fundamental. Interrompendo a cena quotidiana, at mesmo num outro palco

    23 Jos Carlos Oliveira, A lua mais tranquila, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de julhode 1969, Caderno B, p. B-2.24 Idem.25 Idem.

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    A narrativa, a experincia e o acontecimento fundadorde novos regimes de visibilidade da TV brasileira

    sagrado, o estdio de futebol, a televiso faz parte agora do novo cenrio nar-rativo. Organizando-o para a entrada do pblico, decifra gradativamente oacontecimento, criando expectativa em torno do momento culminante: adescida do mdulo lunar.

    Antes mesmo da transmisso do acontecimento central, inicia-se o es-pectador no tipo de evento que estar ao seu alcance e aberto sua participa-o atravs de uma ao ritualstica. O jornalista interrompe a cena para dar atodo momento novas informaes, facilitando, assim, a participao do p-blico e compensando deficincias culturais. Prope-se uma verdadeiraexegese filosfica e histrica do acontecimento. H a retrica pedaggica: daa multiplicao de mesas-redondas, de comentrios de especialistas e de trans-cries de textos de cientistas nos jornais e nas revistas, nos dias subseqen-tes, referendando o acontecimento primeiro.

    A voz do comentarista ia aos poucos anunciando os fatos principais esecundrios, convidando o espectador a interromper sua vida quotidiana, soba promessa de que participaria de uma experincia coletiva comum. A ceri-mnia da comunicao de massa tem a, neste acontecimento, o seu momen-to fundador.

    Ele muito mau e amarelo. Alm disso, o homem a Terra que ele conseguirpegar ser transformado num monstro como ele para ajud-lo a invadir a Ter-ra. isso que ele faz com o homem de Vnus e com o homem de Marte. Oprimeiro transformado em bicho e o outro em robs.26

    O homem da lua para o menino Alexandre era o homem amarelo. Per-cebia o acontecimento fundador das cerimnias da televiso como pertencen-do ao universo da ficcionalidade. Entretanto, esta reao no era exclusivados espectadores infantis.

    Evidentemente, a forma como o tema vinha sendo tratado influencia-va este tipo de apropriao, mas no era s isto. A ficcionalidade fazia partetambm da forma como este fora construdo pela televiso e no poderia serde outra forma. Imerso num universo cultural, que informava sobretudo so-bre a dvida, era preciso inaugurar a certeza da existncia daquele evento apartir da retrica do discurso cientfico.

    26 Alexandre Proena, Homem amarelo, O Globo, Rio de Janeiro, 22 de julho de 1969, p. 8.

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    Entretanto, isto no foi feito nas emisses. A dvida sobre o fato faziaparte do universo cultural do pblico, e a emisso no poderia destruir o car-ter ficcional que existia a priori na construo do evento cerimonial.

    D. Maria Alice costurando para fora em seu ateli confessa-se muito interes-sada na Apolo 11. Enquanto costura ela assiste aos programas de televiso.At pouco tempo, porm, no estava ligando muito para a misso Apolo. Ago-ra que compreendeu toda a importncia do acontecimento.27

    A lgica da dvida e a discusso conjunta em torno da veracidade e deoutros aspectos da emisso fazem parte do universo do pblico que via asemisses com a certeza de que pertenciam ao regime de ficcionalidade. E,sem dvida, a forma e o contedo das primeiras cerimnias da televiso fo-ram determinantes neste sentido.

    A narrativa da televiso, caracterizada pela fragmentao, conduz a apro-priaes igualmente fragmentadas, permitindo uma pluralidade de aes noinstante da recepo. Se o pblico passa a se expor por um longo perodo mensagem televisiva, esta se d na lgica da fragmentao e da diviso daateno. Enquanto trabalha, costurando no seu ateli, D. Maria Alice v te-leviso. Outros discutiam a temtica, a veracidade do acontecimento, as ce-nas que passavam diante de seus olhos, conversando, bebendo, confraterni-zando. Numa grande mesa tambm pontificava uma televiso. Ningumsabia se comia ou se prestava ateno transmisso. Acabaram ficando comfome.28

    Os limites culturais influenciam diretamente na forma como as men-sagens so apropriadas. Entretanto, todos os que, naquele 20 de julho, assis-tiram pela televiso inaugurao de um novo ritual faziam parte de ummesmo lugar cultural: o de pblico daquela emisso.

    A criao de uma narrativa preliminar ao prprio acontecimento ia cons-truindo este lento auditrio. O fluxo televisual do acontecimento homem nalua existia antes de ele ser instaurado e era tambm construdo em outrasmdias. A expectativa em torno do fato, antes mesmo do seu desenrolar, cria-va a aura de celebrao.

    A ida na Lua h de ser muito boa. Se eu fosse uma menina que entendesseingls eu entenderia o que ele estava falando na televiso. Eu estava pensan-do como eles iro parar na Lua se os russos estivessem l. Mas eu queria ver

    27 Outras opinies, O Globo, 23 de julho de 1969, p. 4.28 Idem.

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    A narrativa, a experincia e o acontecimento fundadorde novos regimes de visibilidade da TV brasileira

    como era a Lua de perto. Como eu gostaria de voar pelos ares, em volta daLua.29

    O sistema miditico funciona segundo as mesmas leis das narrativasmticas e literrias, nas quais possuem papel fundamental o tratamento retricoe estilstico prprio, a gesto da temporalidade e a liberdade de criao doreceptor. A narrativa, como enfatiza Paul Ricoeur30, guardi do tempo. As-sim, s adquire plenamente sentido quando lhe restitudo o tempo de agir,marcando a interseo entre o mundo do texto e o mundo do leitor.

    Ao construir a narrativa, o sistema miditico produz uma espcie derenarrativao do mundo. Inscrita no tempo por obedecer a uma temporali-dade construda, em que ordem, durao e freqncia so constantes, as ce-rimnias da televiso, ainda que no tenham temporalidade previamentemarcada, so configuradas gradualmente e podem comear a ser produzidasantes mesmo do incio da ecloso do acontecimento fundador.

    Ao participar daquele evento, o telespectador tambm se insere noprprio tempo do acontecimento. A chegada do homem lua deixa, assim,de ser uma narrativa da televiso para ser, a partir da apropriao do telespec-tador, parte de sua prpria existncia.

    iluso de uma temporalidade direta acrescenta-se agora a imagem real.Difundindo o acontecimento no momento de sua produo, constri a idiada mdia como guardi da autenticidade e da veracidade. A imagem a real,j que o acontecimento no est mais sendo recontado.

    O que novo nesta narrativa que instaura um ato cerimonial na televi-so que, ao apresentar um acontecimento construdo historicamente comofico o homem na lua como real, por se realizar no instante mesmo desua produo (ele instantneo e simultneo), a televiso transforma a narra-tiva que constri numa mescla destes dois regimes. Embaralham-se as cate-gorias de ficcional, histrico e jornalstico. Realidade funde-se com fico, nohavendo limite de onde acaba um regime e comea o outro.

    O pblico sente-se participativo do prprio acontecimento, ao se inse-rir no ritual. Mesmo os que no participam diretamente como espectadoresde primeira natureza daquelas emisses fazem parte do imenso auditrio que criado.

    29 Maria Helena, 10 anos, Como as crianas vem o homem na Lua in: Correio Braziliense,Braslia, 21 de julho de 1969, p.2.30 Paul Ricoeur, Tempo e narrativa, Campinas: Papirus, 1994, vol. 1.

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    Marialva Barbosa Artigos

    Muita gente humilde falou ao jornal O Globo como Tarci Malaquias Souza queganha a vida puxando um carrinho-de-mo, fazendo pequenas mudanas eAntonio Xavier Carneiro que passa o dia vendendo carvo. Gente que no pdeassistir a chegada do homem a lua pois no possua um aparelho de TV.31

    Nos traos e nos vestgios deixados do passado, o que Malaquias deSouza e Antonio Xavier revelaram das suas impresses sobre aquele aconte-cimento no foi fixado pelo jornal. Ao serem espectadores de segunda natu-reza daquelas cenas, tiveram tambm suas vozes negadas lembrana. Odiscurso que produziram ficou automaticamente inscrito na categoria de es-quecimento.

    Entretanto, Tarci Malaquias de Souza e Antonio Xavier Carneiro par-ticiparam daquela cerimnia que inaugura um modelo narrativo onde se mis-turam regimes de ficcionalidade e veracidade, porque tambm o pblico,atores privilegiados na construo daquele acontecimento, viam-no comopertencente a estes dois lugares. A necessidade da insero compulsria dopas na modernidade impingia aos grupos dominantes a crena da veracida-de da cincia. Entretanto, aquele acontecimento vinha sendo h anosconstrudo como uma fico. Por que haveria a televiso de construir umanarrativa fora do seu tempo?

    Para muitos telespectadores, o fato de a televiso mostrar as imagensda descida da nave Apolo 11 na Lua no fazia do acontecimento algo veross-mil. Para outros, entretanto, esta mdia trazia a marca da transposio do reala partir da imagem transmitida.

    Ainda que esta questo seja importante, necessrio ver, sobretudo, aforma como foi construdo por estas narrativas um elo emblemtico com opblico, ator central neste processo: atos de pblico que ficam registrados emvestgios e traos do passado que se materializam sob a forma de lembrana.

    31 Alexandre Proena, op. cit.