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A MÚSICA COMO FERRAMENTA DE RESISTÊNCIA NAS COLÔNIAS
ESPANHOLAS E INGLESAS
Giovana Eloá Mantovani Mulza
Mestranda em História Política
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Resumo: As formas de resistência à dominação europeia assumiram formas variadas nas
Américas espanhola e inglesa. Apesar das distinções estruturais nos sistemas coloniais
implantados no vasto continente americano – especialmente devido às distintas realidades
existentes na Espanha e na Inglaterra a partir dos séculos XV e XVI –, a escravidão foi
uma importante forma de mão de obra na produção e extração de bens e gêneros naturais.
Seja através dos povos nativos secularmente presentes naqueles territórios ou através de
comunidades trazidas do continente africano, o não-europeu era concebido como criatura
inferior e, portanto, apta aos trabalhos ditos como vulgares. No decorrer do período que
compôs a escravidão nas Américas – tradicionalmente entre o quinhentos e o oitocentos
–, povos indígenas e comunidades africanas encontraram formas de resistência que se
manifestaram frequentemente de forma implícita, assumindo a forma de uma resistência
camuflada. Nesse trabalho, buscaremos compreender o papel da música como uma
ferramenta de resistência nas Américas, empregando os conceitos de infrapolítica e de
“tática” de Michel de Certeau (1998). Entre os indígenas submetidos compulsoriamente
ao sistema representativo espanhol, as canções permaneciam ditadas em dialetos nativos
e eram compostas por elementos da cultura local. As músicas, portanto, acabavam por
desempenhar a função de preservação, constituindo em uma forma de resistência diante
das tentativas de imposição de modelos religiosos e comportamentais pelos europeus. No
que se refere aos africanos, deslocados do continente-mãe e trazidos com destaque às
Américas inglesas, os spirituals estiveram presentes nas lavouras, sendo cantados na
língua inglesa e repleta de heranças do cristianismo europeu. Desde já, podemos destacar
que as canções dos povos indígenas subordinados à Coroa espanhola e as músicas dos
negros submetidos ao regime escravocrata inglês consistiram em formas importantes de
resistência frente à dominação europeia.
Palavras-chave: Resistência cultural; Música; História das Américas.
Introdução
A história dos mecanismos de conquista e colonização do amplo continente
americano suscitou debates seculares nas instituições produtoras de conhecimento. Fosse
sob o discurso de um “imperialismo ecológico” (CROSBY, 2011) ou de um
“determinismo geográfico” (DIAMOND, 2018), a dominação europeia nesse novo
continente – protagonizada sobretudo pelos reinos da Espanha e da Inglaterra – constituiu
um tema muito discutido desde o século XV. A multiplicidade dos sistemas políticos e
econômicos ali implantados acabou por dotar a história americana de pluralidades,
aquando da própria historiografia falar da existência de Américas, no plural, em
detrimento de uma realidade uniforme e homogênea. No entanto, fosse sob o aspecto de
uma extensão do reino metropolitano ou como um refúgio de outsiders europeus –
suscitando o termo de Norbert Elias (2000) –, a colonização das Américas contou com a
mão de obra escrava, ora fornecida pelos habitantes locais, ora “importada” do continente
africano.
Os contínuos mecanismos de dominação de um “outro” não-europeu,
inferiorizado cultural e fisicamente por teorias da filosofia natural como a Cadeia do Ser
(SANTOS, CAMPOS, 2014) ou através da racionalidade médica com os princípios da
craniometria (GOULD, 1991), eram cotidianos e foram institucionalizados pelos
impérios europeus a fim de legitimar a captura, comércio e uso da mão de obra escrava.
Embora muito tenha sido escrito sobre uma “hegemonia política e cultural europeia”, os
debates interdisciplinares oriundos de uma mudança historiográfica do século XX
apontam para uma renovação na escrita da história americana. O novo arcabouço teórico-
metodológico inaugurado por Marc Bloch e Lucien Febvre – tema muito debatido por
historiadores de notório renome acadêmico como Peter Burke (1991) – foi de extrema
valia e preeminência para legitimar a ascensão de uma nova perspectiva sobre o processo
de conquista e colonização das Américas, a partir do qual uma nova categoria social seria
de fato analisada: os escravos.
Vinculada a mecanismos institucionais ou culturais, a dominação de povos e o
trabalho escravo integrou a história americana. Embora remeta ao ínterim pré-colombiano
e anteceda o contato intercontinental, a escravidão foi maximizada e teve seus impactos
amplificados a partir dos séculos XV e XVI, tornando-se a principal força de trabalho em
grande parte do continente e modelando as relações sociais, econômicas e culturais. A
escravidão, portanto, consistiu em uma instituição integrante da história americana, cujo
estudo se torna preeminente nas análises acerca da conquista e colonização do Novo
Mundo. Tal constatação perdura mesmo diante dos múltiplos sistemas políticos
implantados pelas distintas metrópoles europeias, historicamente diversas em suas
constituições culturais.
A América, secularmente isolada do restante do globo, havia tido uma história
distinta e livre de grandes influências externas. Assim, foi uma complexa interação de
fatores internos que, no alvorecer do século XVI, deu muitas formas às diversas
sociedades indígenas: estados altamente estruturados, senhorias mais ou menos estáveis,
tribos e grupos seminômades ou nômades (WACHTEL, 2018). Seria nesse mundo
notoriamente autossuficiente que um amplo impacto brutal e sem precedentes ocorreria a
partir da invasão dos homens europeus – os quais comungavam de uma realidade
profundamente diferente. No que concerne ao processo de conquista e colonização
espanhola, a reação dos americanos nativos diante da invasão hispânica teria variado
consideravelmente: de ofertas de aliança a uma colaboração parcialmente forçada, de uma
resistência passiva a uma hostilidade permanente – como apontam as obras de Bartolomé
de Las Casas (BRUIT, 1995). No entanto, em toda parte, a chegada desses homens
causaria um amplo impacto e espanto, não menos intenso entre os próprios
conquistadores: “ambos os lados estavam descobrindo uma nova raça de homem de cuja
existência jamais haviam suspeitado.” (WACHTEL, 2018, p. 195).
Embora muito se discorreu sobre o trauma da conquista espanhola – fosse
ressaltando sua importância para homologar uma efetiva mundialização do globo
(MARKS, 2007) ou para a criação de uma rede econômico-cultural concreta (MCNEILL,
MCNEILL, 2010) –, fato é que a chegada do europeu nos impérios pré-colombianos
causou uma desestruturação no modelo político, religioso e cultural daqueles povos.
Afinal, o governo espanhol, ao mesmo tempo em que fazia uso das instituições nativas,
realizava sua desintegração, deixando apenas estruturas parciais que sobreviveriam fora
do contexto coerente que lhes havia dado sentido. Assim, “As consequências destrutivas
da conquista afetaram as sociedades nativas em todos os níveis: demográfico, econômico,
social e ideológico.” (WATCHEL, 2018, p. 200). No plano eclesiástico, por exemplo,
muitas discussões foram feitas para compreender a compatibilidade da “descoberta” do
Novo Mundo com as palavras bíblicas (SANTOS, NETO, 2011). Muitos dos interesses
dos invasores consistiam na extração de minérios, especialmente a prata e o ouro, muito
apreciados na Europa e na China. Para tanto, a mão de obra indígena desempenhou um
importante papel na economia extrativa implantada pela Coroa espanhola, ao longo de
todo o período colonial e ainda no alvorecer dos primeiros Estados Nacionais do século
XIX.
Apesar do descenso demográfico dos indígenas ocasionado pela invasão e
colonização espanhola – as estimativas apontam para uma redução de 90% da população
nativa ainda no século XVI (WATCHEL, 2018) –, o trabalho escravo na América
espanhola foi composto majoritariamente pelos povos locais. O frade dominicano
Bartolomé de Las Casas (1484-1566) dedicou diversas obras ao comportamento dos
indígenas diante da conquista espanhola e suas observações podem ser estendidas para
grande parte do período de existência da escravização dos nativos (BRUIT, 1995). Sob
uma aparente insolência e preguiça, os nativos submetidos ao sistema escravista
buscavam formas de resistência aos mecanismos institucionais de dominação que
frequentemente se manifestavam de forma mascarada e implícita. Dentre os modelos de
resistência adotados pelos indígenas foi a tentativa de manutenção dos códigos
linguísticos e culturais frente às imposições homogeneizantes da Coroa espanhola. Além
da comunicação em dialetos locais, muitos dos povos buscavam perpetuar seus costumes
e valores através de ritos ou canções, todos mascarados e infiltrados no sistema colonial.
A música como subterfúgio de resistência não se restringiu aos indígenas da
América espanhola. Embora com significados e contextos distintos, a música como
instrumento de resistência política e cultural esteve presente em outra porção do
continente americano: aquela dominada pela Inglaterra. É um consenso que a mão de obra
indígena desempenhou um papel menos determinante na economia agrícola implantada
nas chamadas Treze Colônias Inglesas – localizadas no leste do atual território dos
Estados Unidos –, onde o trabalho africano seria de maior predominância. Os negros
“importados” do continente africano teriam sido levados majoritariamente à porção sul
da área das Treze Colônias, sendo complementares à mão de obra servil e livre. Para esses
povos, submetidos ao tráfico intercontinental de escravos, a língua e a cultura inglesa
foram de maior receptividade quando comparadas à adoção do espanhol pelos indígenas
nas colônias hispânicas. Não deve nos surpreender que as músicas cantadas pelos
escravos africanos no território inglês incorporassem elementos da religião cristã e
fossem cantadas na língua inglesa. Nesse contexto, os spirituals desempenharam um
importante papel, não somente por constituir um meio de expressão, mas sobretudo por
seu conteúdo servir de esperança aos negros e inspirá-los a uma resistência frente à
dominação.
O presente trabalho visará discorrer acerca da importância das músicas na
escravidão indígena nas colônias espanholas e na escravidão africana nas colônias
inglesas, destacando-as como mecanismos de resistência cultural e política. O texto está
estruturado em um tópico central responsável por aprofundar o debate, assim como de
uma conclusão.
A música, os índios, os negros e a resistência nas colônias espanhola e inglesa
Em A invenção do cotidiano (1998), Michel de Certeau conceituou o binômio
estratégia-tática, cujos significados, apesar de complementares, se contrapõe. Segundo o
autor, “O que distingue estas daquelas são os tipos de operações nesses espaços que as
estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem
utilizá-los, manipular e alterar.” (CERTEAU, 1998, p. 92). Diante de uma produção
racionalizada e expansionista feita pelas estratégias institucionais, posta-se uma produção
totalmente diversa e astuta, caracterizada sob o conceito de “consumo”, a qual é parte das
táticas. As táticas, portanto, constituem na arte de utilizar aquilo que é imposto, atuando
como uma espécie de resistência inconsciente diante dos mecanismos institucionais de
dominação. Muitos desses comportamentos de resistência fazem parte do campo da
infrapolítica, visto que integram uma porção não-institucional do sistema político.
Tomando como parâmetro os conceitos desenvolvidos por Michel de Certeau (1998) e o
campo da infrapolítica, podemos compreender a música indígena e a música negra
enquanto táticas de resistência frente os mecanismos institucionais de dominação
impostos pelas Coroas europeias. Tanto os nativos americanos quanto os negros africanos
empregaram as canções como ferramentas de resistência, ora tentando preservar a cultura
tradicional, ora oferecendo esperança e incitando a revoltas.
A música enquanto fonte para o conhecimento histórico não foi objeto de estudo
entre os historiadores há tanto tempo. Foi sobretudo através da Nova História que se
passou a cogitar o uso das canções para “pensar a sociedade e a história.”
(NAPOLITANO, 2002, p. 08). Além do estudo de sua própria musicalidade, o historiador
conta com um suporte metodológico para pensar através da música. Nessa parte do
trabalho, iremos buscar analisar o papel das músicas na sociedade colonial da América
espanhola e inglesa, mapeando sobretudo seus significados no sistema escravista.
Comecemos com as colônias hispânicas. Devido à multiplicidade de tradições nativas
existentes no território americano, iremos enfocar a cultura uitoto, comungada pelos
povos originários da região amazônica peruana e colombiana, secularmente dominada
pela Coroa espanhola.
O estudo das culturas indígenas foi muito prejudicado por uma tradicional
hierarquia existente entre escrita e oralidade. De fato, essa circunscrição do fenômeno
cultural à uma escrita alfabética acaba tendo como resultado uma invisibilidade das
diversas outras formas de escrita que não se manifestam unicamente em uma página, mas
através de suportes acústicos, visuais e táteis. Essa nova maneira de estudar as tradições
indígenas acaba por reconhecer a importância da oralidade e da verbalização das culturas
originárias, permitindo ao historiador ampliar seu campo de fontes e adentrar no universo
das músicas. É a partir desse arcabouço que podemos analisar os cantos ritualísticos
uitotos, grupo assentado na região colombiana do Gran Caquetá (ALCOCER, 2015). As
músicas entre os indígenas não devem ser vistas apenas como elementos da tradição
nativa, mas necessita ser estudada enquanto uma reflexão em torno da experiência
histórica desse povo aquando do contato com os europeus. É evidente que o quadro das
relações interétnicas entre europeus e americanos que está imbrincado na vida dos uitotos
alcança a realidade de outros povos originários da América.
Ao menos desde o século XVII, os povos que atualmente habitam a Amazônia
colombo-peruana inseriram-se em relações comerciais que acabam por vinculá-los ao
capital mercantil, participando de diversas maneiras na economia extrativa dedicada ao
Ocidente. De fato, desde o intercâmbio de bens de manufatura ocidental até as grandes
escravistas para fornecer mão de obra para as colônias espanhola, holandesa, inglesa e
francesa, os sucessivos auges econômicos dos uitotos estiveram associados ao advento de
epidemias de varíola, gripe e sarampo – quadro compartilhado pelos povos situados por
todo o território americano (ALCOCER, 2015). E mais: a cultura uitoto convivia com
intensa violência do exercício do controle social e territorial, o que contribuiu para
dizimar severamente os povos originários da região. Além do massacre demográfico, as
armas e os germes acabaram por auxiliar no desaparecimento de aspectos da cultura e dos
conhecimentos locais. Essa situação deve ser relembrada quando nos propomos a estudar
as músicas ritualísticas dos uitotos.
Atualmente, se reconhece como etnia uitoto cerca de 6 mil povos ameríndios
localizados na Amazônia colombo-peruana. As incursões dos conquistadores europeus
ocasionaram uma certa dispersão inicial. Segundo Paulina Alcocer (2015), os principais
assentamentos atuais se localizam nos rios Igarapaná, Caraparaná, no meio do Caquetá e
em algumas localidades do Peru. No entanto, apesar da dispersão espacial e da
heterogeneidade linguística que os compõe, os povos uitotos conformam uma mesma
sociedade, compartilhando um mesmo complexo cerimonial organizado em torno do
consumo ritualístico da coca e do tabaco. Apesar do notório etnocídio que acarretou no
declínio da memória ritual e cultural do grupo, houve uma tentativa em preservar os
dialetos nativos e a estrutura de clãs. Nesse ponto, um importante papel seria
desempenhado pelas músicas, responsáveis por convergir aspectos da cultura uitoto e
cantadas na língua tradicional.
Muito do que a historiografia conhece sobre as músicas uitotos são resultado de
esforços de compiladores europeus – especialmente dos antropólogos. As primeiras
tentativas vieram do etnólogo alemão Konrad Theodor Preuss (1869-1938), cujos livros
acerca das canções e danças dos uitotos apareceram na Alemanha na década de 1920 em
dois volumes. Mas será somente na década de 1990 que as obras de Preuss serão
traduzidas ao espanhol, as quais coincidem com o advento dos trabalhos de Fernando
Urbina Rangel (1992; 2011) e Juan Álvaro Echeverri (1997). Esses textos tentaram fixar
as tradições culturais dos uitotos em uma escrita alfabética, visando transcrever o que até
então havia subsistido na sabedoria dos anciãos. Ao relatar o papel da coca entre esses
nativos, Rangel (2011) relata uma conversa que teve com o Abuelo José García, no qual
o indígena colombiano relembra a secular tradição de cultivar a planta com as músicas:
“Al sembrar se canta, se silba para que la coca se ponga contenta. Al cantar se pone feliz
porque presiente que se va a hacer baile. Y así crece rápido. Esos cantos son las oraciones.
¡Como antiguamente todo se hacía coqueando!” (GARCÍA apud RANGEL, 2011, p.
201).
Através das comunidades sobreviventes, os historiadores, antropólogos e
etnólogos conseguem acessar – mesmo que parcialmente – uma tradição cultural também
sobrevivente do processo de conquista europeia. São principalmente os vestígios dos
rituais que aparecem nos textos entonados pelos indígenas, que ganham uma
musicalidade proveniente de instrumentos locais (ALCOCER, 2015). O cultivo e uso
ritualístico da coca é o principal tema das canções. De fato, a manutenção desse
conhecimento mesmo depois de tantos séculos de contato com uma cultura de imposições
sociais e políticas é um fenômeno que não deixa de surpreender aos pesquisadores.
Mostra, como bem ressalta uma historiografia de revisão, que os ameríndios não foram
simples agentes passivos do processo de dominação europeia, o que nos leva a contestar
o próprio uso do termo “aculturação”. Apesar de se referirem ao início da conquista
europeia, os relatos escritos pelo próprio Bartolomé de Las Casas evidenciam a ausência
de passividade entre os povos nativos, os quais acabavam por mascarar sua resistência
até mesmo através da preservação de sua língua ancestral. Era uma resistência manifesta
na conservação, muitas vezes vista como idolatria – como aponta Clementina Battcock
(2015) em seu estudo sobre os costumes de indígenas bolivianos.
No que concerne à colonização da Inglaterra nos territórios setentrionais do
continente americano, vemos uma realidade distinta. O papel do indígena na constituição
da cultura norte-americana permanece de menor proporção quando comparado aos atuais
Estados da América Latina. A própria história dos EUA acaba por silenciar a presença
dos nativos no território “descoberto” pelos europeus e sua importância na constituição
do país. Embora não se possa desconsiderar o papel dos indígenas na construção da
cultura estadunidense, os negros trazidos da África acabaram por possuir um maior
destaque na literatura historiográfica. De fato, desde o começo de sua escravização, os
africanos forçados a saírem de seu lar para o labor à serviço dos europeus na América
inglesa estavam cientes das contradições inerentes a uma sociedade tão ardentemente
comprometida com as ideias de uma irmandade cristã e liberdade e, ainda assim, tão
envolvida na inumana e imoral instituição da escravatura. Mas, independentemente do
quão confusos estivessem seus captores sobre os assuntos da liberdade, aqueles mantidos
em cativeiro tinham clareza que seus direitos humanos à liberdade estavam sendo
violados. Eles também tinham clareza que eles mesmos teriam de assegurar sua liberdade,
uma vez que seus captores haviam miraculosamente conseguido excluir as pessoas de cor
como membros da raça humana (JONES, 2005).
As formas de resistência haviam começado no próprio navio negreiro, onde os
cativos africanos começaram sua luta ativa pela liberdade, expressa sobretudo em forma
de revoltas, escape e suicídio. Em coerência com as tradições africanas, eles pontuavam
suas ações com músicas – em que até mesmo as práticas de suicídio vinham
acompanhadas de “canções de triunfo”. A luta pela liberdade nos afro-americanos se
iniciava ainda no cativeiro africano, a partir de quando muitos escravos reconheciam a
importância do divino para sua liberdade. Afinal, no seu quadro de referências derivado
da África não havia nenhuma contradição entre esta fé absoluta no divino e a
concomitante suposição de responsabilidade pelas ações individuais e coletivas (JONES,
2005). No decorrer do período da escravidão nas Treze Colônias e, posteriormente, no
recém constituído território dos EUA, a luta pela liberdade tomava variadas formas:
incêndios, insurreições, assassinatos, escapes, sobrevivências culturais, suicídios ou
simplesmente a vontade férrea de viver. Combinando sua fé e esperança, aqueles ainda
em cativeiro compuseram e adotaram canções rítmicas e alegres, cheias de antecipação
de liberdade: os spirituals. Por exemplo, em uma de suas mais famosas canções, eles
cantavam em júbilo:
O Senhor não libertou Daniel?
Libertou Daniel, libertou Daniel?
O Senhor não libertou Daniel?
Então porque não [libertar] todos os homens?
Ele livrou Daniel da cova dos leões,
Jonas da barriga da baleia,
E os jovens hebreus da fornalha ardente,
Então porque não [livrar] todos os homens?
(apud JONES, 2005, p. 03)
Fica claro nos spirituals a importância da religião cristã no espírito libertários dos
negros escravos, os quais viam seu futuro de liberdade como algo positivo. As histórias
do Antigo Testamento tinham um papel especial nas letras das canções, posto que a
história do povo hebreu havia se tornado sua história. Estas histórias serviram como fonte
principal para os spirituals, sublinhando o fato de que os africanos escravizados não
apenas desejavam liberdade, mas se identificavam mais fortemente com figuras
ativamente envolvidas e no fim vencedoras nas batalhas por liberdade documentadas
biblicamente. Além de fornecerem conforto e identificação coletiva, no entanto, as letras
dos spirituals eram veículos espirituais através dos quais os africanos escravizados se
transportavam para a efetiva experiência dos israelitas em cativeiro, utilizando relatos
bíblicos da vitória final para sustentar suas visões paralelas de vitória na América
(JONES, 2005).
Muitos spirituals, ademais, foram usados como códigos secretos de comunicação
para planos de escape, revoltas e protestos. Uma das canções mais representativas disso
era “Go Down, Moses”:
“Assim falou o Senhor,” disse o corajoso Moisés,
Deixe meu povo ir;
Se não, Eu irei ferir de morte seu primogênito,
Deixe meu povo ir.
Vá, Moisés,
Desça a terra do Egito.
Diga ao velho Faraó,
Deixe meu povo ir!
Fuja furtivamente, fuja furtivamente, fuja furtivamente pra Jesus!
Fuja furtivamente, fuja furtivamente para o lar
Não tenho tempo pra ficar aqui!
Meu Senhor me chama,
Ele me chama através do trovão;
A trombeta soa dentro da minha alma,
Não tenho tempo pra ficar aqui!
(apud JONES, 2005, p. 05-06)
Ainda que seja impossível determinar com qualquer certeza as datas de
composição de qualquer canção específica, não há questionamentos de que os spirituals
e outras canções eram usadas frequentemente como comunicação secreta entre
companheiros cativos ou entre cativos e pessoas da comunidade livre [engajadas em
movimentos abolicionistas] servindo para facilitar fugas ou revoltas. Algumas canções
chegavam a servir como mapas, apontando o caminho para rotas que levavam a liberdade
e segurança. A mais bem conhecida destas canções é “Follow the Drinking Gourd”, que
direcionava escravos fugitivos a continuarem viajando em direção ao Big Dipper – nome
dado ao conjunto formado pelas sete estrelas mais brilhantes da constelação de Ursa
Maior, que foi reconhecido por várias civilizações diferentes:
Siga a cabaça!
Siga a cabaça,
Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a liberdade,
Se você seguir a cabaça.
Quando o sol voltar e as primeiras codornas chamarem,
Siga a cabaça,
Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a liberdade,
Se você seguir a cabaça.
(apud JONES, 2005, p. 07)
Claramente, africanos escravizados empregavam spirituals e outras canções
populares como comunicação codificada secreta anunciando planos de escape, revoltas e
reuniões clandestinas, ou torcendo por seus companheiros em batalha. Mas seria um erro
concluir que tal comunicação secreta fosse o único propósito da maioria dos spirituals ou
que a necessidade de comunicação secreta serviu de principal motivação para suas
criações. Canções como “Follow the Drinking Gourd” podem ter servido ao objetivo
primário de facilitar fugas seguras para os fugitivos. No entanto, é provável que na grande
maioria dos casos em que se empregavam os spirituals instrumentalmente para propósitos
políticos se tratasse de uma improvisação sobre uma forma de arte já existente, não do
objetivo primário de sua composição inicial. É notável que “Follow the Drinking Gourd”
e outras canções similares tenham tido uma relativamente pequena vida ativa para além
da circunstância histórica da escravidão. É provável que tenha havido muitas canções
como esta utilizadas para comunicação secreta, mas a maior parte destas canções não
sobreviveu para que pudéssemos analisa-las. Spirituals profundamente religiosos, como
“Go Down, Moses”, continuam, mais de 130 anos após a emancipação, capturando o
interesse e a atenção das pessoas por todo o mundo. Claro, uma razão para a sobrevivência
destes spirituals sobre as canções mais esotéricas é que a natureza secreta de certas
canções impedia que seus sentidos fossem revelados a coletores e observadores, por
motivos óbvios. É impossível determinar a extensão do quanto este fenômeno esteve
presente no desaparecimento destas canções do repertório da história oral. A despeito
disso, podemos acreditar que uma razão adicional pela qual muitos spirituals
sobreviveram seria porque as inspirações originais por trás de suas criações derivavam de
experiências humanas profundamente significativas arquetipicamente, relevantes não
apenas para a específica circunstância da escravidão, mas também para mulheres e
homens lutando em questões de justiça, liberdade e integridade espiritual em todos os
tempos e lugares.
Considerações Finais
Ao longo desse trabalho, traçamos um estudo do papel das músicas em dois
contextos muitos distintos: nas colônias espanholas e inglesas. Apesar das distinções
culturais historicamente características destas duas realidades, a escravidão enquanto
importante forma de mão de obra foi um fenômeno característico na história do continente
americano. Fosse através do uso da mão de obra indígena ou dos negros africanos, o
trabalho escravo foi a base das plantações e das empresas extrativas nas economias
europeias implantadas no Novo Mundo. Nesse trabalho, buscamos mostrar que, além das
formas convencionais de resistência à escravidão, a música atuou como um importante
instrumento de resistência, sobretudo em seu aspecto cultural, ora contribuindo na
preservação da cultura dos povos nativos, ora como esperança espiritual para os negros
africanos.
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