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A MÚSICA COMO FERRAMENTA DE RESISTÊNCIA NAS COLÔNIAS ESPANHOLAS E INGLESAS Giovana Eloá Mantovani Mulza Mestranda em História Política Universidade Estadual de Maringá (UEM) [email protected] Resumo: As formas de resistência à dominação europeia assumiram formas variadas nas Américas espanhola e inglesa. Apesar das distinções estruturais nos sistemas coloniais implantados no vasto continente americano especialmente devido às distintas realidades existentes na Espanha e na Inglaterra a partir dos séculos XV e XVI , a escravidão foi uma importante forma de mão de obra na produção e extração de bens e gêneros naturais. Seja através dos povos nativos secularmente presentes naqueles territórios ou através de comunidades trazidas do continente africano, o não-europeu era concebido como criatura inferior e, portanto, apta aos trabalhos ditos como vulgares. No decorrer do período que compôs a escravidão nas Américas tradicionalmente entre o quinhentos e o oitocentos , povos indígenas e comunidades africanas encontraram formas de resistência que se manifestaram frequentemente de forma implícita, assumindo a forma de uma resistência camuflada. Nesse trabalho, buscaremos compreender o papel da música como uma ferramenta de resistência nas Américas, empregando os conceitos de infrapolítica e de “tática” de Michel de Certeau (1998). Entre os indígenas submetidos compulsoriamente ao sistema representativo espanhol, as canções permaneciam ditadas em dialetos nativos e eram compostas por elementos da cultura local. As músicas, portanto, acabavam por desempenhar a função de preservação, constituindo em uma forma de resistência diante das tentativas de imposição de modelos religiosos e comportamentais pelos europeus. No que se refere aos africanos, deslocados do continente-mãe e trazidos com destaque às Américas inglesas, os spirituals estiveram presentes nas lavouras, sendo cantados na língua inglesa e repleta de heranças do cristianismo europeu. Desde já, podemos destacar que as canções dos povos indígenas subordinados à Coroa espanhola e as músicas dos negros submetidos ao regime escravocrata inglês consistiram em formas importantes de resistência frente à dominação europeia. Palavras-chave: Resistência cultural; Música; História das Américas. Introdução A história dos mecanismos de conquista e colonização do amplo continente americano suscitou debates seculares nas instituições produtoras de conhecimento. Fosse sob o discurso de um “imperialismo ecológico” (CROSBY, 2011) ou de um “determinismo geográfico” (DIAMOND, 2018), a dominação europeia nesse novo continente protagonizada sobretudo pelos reinos da Espanha e da Inglaterra constituiu

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A MÚSICA COMO FERRAMENTA DE RESISTÊNCIA NAS COLÔNIAS

ESPANHOLAS E INGLESAS

Giovana Eloá Mantovani Mulza

Mestranda em História Política

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

[email protected]

Resumo: As formas de resistência à dominação europeia assumiram formas variadas nas

Américas espanhola e inglesa. Apesar das distinções estruturais nos sistemas coloniais

implantados no vasto continente americano – especialmente devido às distintas realidades

existentes na Espanha e na Inglaterra a partir dos séculos XV e XVI –, a escravidão foi

uma importante forma de mão de obra na produção e extração de bens e gêneros naturais.

Seja através dos povos nativos secularmente presentes naqueles territórios ou através de

comunidades trazidas do continente africano, o não-europeu era concebido como criatura

inferior e, portanto, apta aos trabalhos ditos como vulgares. No decorrer do período que

compôs a escravidão nas Américas – tradicionalmente entre o quinhentos e o oitocentos

–, povos indígenas e comunidades africanas encontraram formas de resistência que se

manifestaram frequentemente de forma implícita, assumindo a forma de uma resistência

camuflada. Nesse trabalho, buscaremos compreender o papel da música como uma

ferramenta de resistência nas Américas, empregando os conceitos de infrapolítica e de

“tática” de Michel de Certeau (1998). Entre os indígenas submetidos compulsoriamente

ao sistema representativo espanhol, as canções permaneciam ditadas em dialetos nativos

e eram compostas por elementos da cultura local. As músicas, portanto, acabavam por

desempenhar a função de preservação, constituindo em uma forma de resistência diante

das tentativas de imposição de modelos religiosos e comportamentais pelos europeus. No

que se refere aos africanos, deslocados do continente-mãe e trazidos com destaque às

Américas inglesas, os spirituals estiveram presentes nas lavouras, sendo cantados na

língua inglesa e repleta de heranças do cristianismo europeu. Desde já, podemos destacar

que as canções dos povos indígenas subordinados à Coroa espanhola e as músicas dos

negros submetidos ao regime escravocrata inglês consistiram em formas importantes de

resistência frente à dominação europeia.

Palavras-chave: Resistência cultural; Música; História das Américas.

Introdução

A história dos mecanismos de conquista e colonização do amplo continente

americano suscitou debates seculares nas instituições produtoras de conhecimento. Fosse

sob o discurso de um “imperialismo ecológico” (CROSBY, 2011) ou de um

“determinismo geográfico” (DIAMOND, 2018), a dominação europeia nesse novo

continente – protagonizada sobretudo pelos reinos da Espanha e da Inglaterra – constituiu

um tema muito discutido desde o século XV. A multiplicidade dos sistemas políticos e

econômicos ali implantados acabou por dotar a história americana de pluralidades,

aquando da própria historiografia falar da existência de Américas, no plural, em

detrimento de uma realidade uniforme e homogênea. No entanto, fosse sob o aspecto de

uma extensão do reino metropolitano ou como um refúgio de outsiders europeus –

suscitando o termo de Norbert Elias (2000) –, a colonização das Américas contou com a

mão de obra escrava, ora fornecida pelos habitantes locais, ora “importada” do continente

africano.

Os contínuos mecanismos de dominação de um “outro” não-europeu,

inferiorizado cultural e fisicamente por teorias da filosofia natural como a Cadeia do Ser

(SANTOS, CAMPOS, 2014) ou através da racionalidade médica com os princípios da

craniometria (GOULD, 1991), eram cotidianos e foram institucionalizados pelos

impérios europeus a fim de legitimar a captura, comércio e uso da mão de obra escrava.

Embora muito tenha sido escrito sobre uma “hegemonia política e cultural europeia”, os

debates interdisciplinares oriundos de uma mudança historiográfica do século XX

apontam para uma renovação na escrita da história americana. O novo arcabouço teórico-

metodológico inaugurado por Marc Bloch e Lucien Febvre – tema muito debatido por

historiadores de notório renome acadêmico como Peter Burke (1991) – foi de extrema

valia e preeminência para legitimar a ascensão de uma nova perspectiva sobre o processo

de conquista e colonização das Américas, a partir do qual uma nova categoria social seria

de fato analisada: os escravos.

Vinculada a mecanismos institucionais ou culturais, a dominação de povos e o

trabalho escravo integrou a história americana. Embora remeta ao ínterim pré-colombiano

e anteceda o contato intercontinental, a escravidão foi maximizada e teve seus impactos

amplificados a partir dos séculos XV e XVI, tornando-se a principal força de trabalho em

grande parte do continente e modelando as relações sociais, econômicas e culturais. A

escravidão, portanto, consistiu em uma instituição integrante da história americana, cujo

estudo se torna preeminente nas análises acerca da conquista e colonização do Novo

Mundo. Tal constatação perdura mesmo diante dos múltiplos sistemas políticos

implantados pelas distintas metrópoles europeias, historicamente diversas em suas

constituições culturais.

A América, secularmente isolada do restante do globo, havia tido uma história

distinta e livre de grandes influências externas. Assim, foi uma complexa interação de

fatores internos que, no alvorecer do século XVI, deu muitas formas às diversas

sociedades indígenas: estados altamente estruturados, senhorias mais ou menos estáveis,

tribos e grupos seminômades ou nômades (WACHTEL, 2018). Seria nesse mundo

notoriamente autossuficiente que um amplo impacto brutal e sem precedentes ocorreria a

partir da invasão dos homens europeus – os quais comungavam de uma realidade

profundamente diferente. No que concerne ao processo de conquista e colonização

espanhola, a reação dos americanos nativos diante da invasão hispânica teria variado

consideravelmente: de ofertas de aliança a uma colaboração parcialmente forçada, de uma

resistência passiva a uma hostilidade permanente – como apontam as obras de Bartolomé

de Las Casas (BRUIT, 1995). No entanto, em toda parte, a chegada desses homens

causaria um amplo impacto e espanto, não menos intenso entre os próprios

conquistadores: “ambos os lados estavam descobrindo uma nova raça de homem de cuja

existência jamais haviam suspeitado.” (WACHTEL, 2018, p. 195).

Embora muito se discorreu sobre o trauma da conquista espanhola – fosse

ressaltando sua importância para homologar uma efetiva mundialização do globo

(MARKS, 2007) ou para a criação de uma rede econômico-cultural concreta (MCNEILL,

MCNEILL, 2010) –, fato é que a chegada do europeu nos impérios pré-colombianos

causou uma desestruturação no modelo político, religioso e cultural daqueles povos.

Afinal, o governo espanhol, ao mesmo tempo em que fazia uso das instituições nativas,

realizava sua desintegração, deixando apenas estruturas parciais que sobreviveriam fora

do contexto coerente que lhes havia dado sentido. Assim, “As consequências destrutivas

da conquista afetaram as sociedades nativas em todos os níveis: demográfico, econômico,

social e ideológico.” (WATCHEL, 2018, p. 200). No plano eclesiástico, por exemplo,

muitas discussões foram feitas para compreender a compatibilidade da “descoberta” do

Novo Mundo com as palavras bíblicas (SANTOS, NETO, 2011). Muitos dos interesses

dos invasores consistiam na extração de minérios, especialmente a prata e o ouro, muito

apreciados na Europa e na China. Para tanto, a mão de obra indígena desempenhou um

importante papel na economia extrativa implantada pela Coroa espanhola, ao longo de

todo o período colonial e ainda no alvorecer dos primeiros Estados Nacionais do século

XIX.

Apesar do descenso demográfico dos indígenas ocasionado pela invasão e

colonização espanhola – as estimativas apontam para uma redução de 90% da população

nativa ainda no século XVI (WATCHEL, 2018) –, o trabalho escravo na América

espanhola foi composto majoritariamente pelos povos locais. O frade dominicano

Bartolomé de Las Casas (1484-1566) dedicou diversas obras ao comportamento dos

indígenas diante da conquista espanhola e suas observações podem ser estendidas para

grande parte do período de existência da escravização dos nativos (BRUIT, 1995). Sob

uma aparente insolência e preguiça, os nativos submetidos ao sistema escravista

buscavam formas de resistência aos mecanismos institucionais de dominação que

frequentemente se manifestavam de forma mascarada e implícita. Dentre os modelos de

resistência adotados pelos indígenas foi a tentativa de manutenção dos códigos

linguísticos e culturais frente às imposições homogeneizantes da Coroa espanhola. Além

da comunicação em dialetos locais, muitos dos povos buscavam perpetuar seus costumes

e valores através de ritos ou canções, todos mascarados e infiltrados no sistema colonial.

A música como subterfúgio de resistência não se restringiu aos indígenas da

América espanhola. Embora com significados e contextos distintos, a música como

instrumento de resistência política e cultural esteve presente em outra porção do

continente americano: aquela dominada pela Inglaterra. É um consenso que a mão de obra

indígena desempenhou um papel menos determinante na economia agrícola implantada

nas chamadas Treze Colônias Inglesas – localizadas no leste do atual território dos

Estados Unidos –, onde o trabalho africano seria de maior predominância. Os negros

“importados” do continente africano teriam sido levados majoritariamente à porção sul

da área das Treze Colônias, sendo complementares à mão de obra servil e livre. Para esses

povos, submetidos ao tráfico intercontinental de escravos, a língua e a cultura inglesa

foram de maior receptividade quando comparadas à adoção do espanhol pelos indígenas

nas colônias hispânicas. Não deve nos surpreender que as músicas cantadas pelos

escravos africanos no território inglês incorporassem elementos da religião cristã e

fossem cantadas na língua inglesa. Nesse contexto, os spirituals desempenharam um

importante papel, não somente por constituir um meio de expressão, mas sobretudo por

seu conteúdo servir de esperança aos negros e inspirá-los a uma resistência frente à

dominação.

O presente trabalho visará discorrer acerca da importância das músicas na

escravidão indígena nas colônias espanholas e na escravidão africana nas colônias

inglesas, destacando-as como mecanismos de resistência cultural e política. O texto está

estruturado em um tópico central responsável por aprofundar o debate, assim como de

uma conclusão.

A música, os índios, os negros e a resistência nas colônias espanhola e inglesa

Em A invenção do cotidiano (1998), Michel de Certeau conceituou o binômio

estratégia-tática, cujos significados, apesar de complementares, se contrapõe. Segundo o

autor, “O que distingue estas daquelas são os tipos de operações nesses espaços que as

estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem

utilizá-los, manipular e alterar.” (CERTEAU, 1998, p. 92). Diante de uma produção

racionalizada e expansionista feita pelas estratégias institucionais, posta-se uma produção

totalmente diversa e astuta, caracterizada sob o conceito de “consumo”, a qual é parte das

táticas. As táticas, portanto, constituem na arte de utilizar aquilo que é imposto, atuando

como uma espécie de resistência inconsciente diante dos mecanismos institucionais de

dominação. Muitos desses comportamentos de resistência fazem parte do campo da

infrapolítica, visto que integram uma porção não-institucional do sistema político.

Tomando como parâmetro os conceitos desenvolvidos por Michel de Certeau (1998) e o

campo da infrapolítica, podemos compreender a música indígena e a música negra

enquanto táticas de resistência frente os mecanismos institucionais de dominação

impostos pelas Coroas europeias. Tanto os nativos americanos quanto os negros africanos

empregaram as canções como ferramentas de resistência, ora tentando preservar a cultura

tradicional, ora oferecendo esperança e incitando a revoltas.

A música enquanto fonte para o conhecimento histórico não foi objeto de estudo

entre os historiadores há tanto tempo. Foi sobretudo através da Nova História que se

passou a cogitar o uso das canções para “pensar a sociedade e a história.”

(NAPOLITANO, 2002, p. 08). Além do estudo de sua própria musicalidade, o historiador

conta com um suporte metodológico para pensar através da música. Nessa parte do

trabalho, iremos buscar analisar o papel das músicas na sociedade colonial da América

espanhola e inglesa, mapeando sobretudo seus significados no sistema escravista.

Comecemos com as colônias hispânicas. Devido à multiplicidade de tradições nativas

existentes no território americano, iremos enfocar a cultura uitoto, comungada pelos

povos originários da região amazônica peruana e colombiana, secularmente dominada

pela Coroa espanhola.

O estudo das culturas indígenas foi muito prejudicado por uma tradicional

hierarquia existente entre escrita e oralidade. De fato, essa circunscrição do fenômeno

cultural à uma escrita alfabética acaba tendo como resultado uma invisibilidade das

diversas outras formas de escrita que não se manifestam unicamente em uma página, mas

através de suportes acústicos, visuais e táteis. Essa nova maneira de estudar as tradições

indígenas acaba por reconhecer a importância da oralidade e da verbalização das culturas

originárias, permitindo ao historiador ampliar seu campo de fontes e adentrar no universo

das músicas. É a partir desse arcabouço que podemos analisar os cantos ritualísticos

uitotos, grupo assentado na região colombiana do Gran Caquetá (ALCOCER, 2015). As

músicas entre os indígenas não devem ser vistas apenas como elementos da tradição

nativa, mas necessita ser estudada enquanto uma reflexão em torno da experiência

histórica desse povo aquando do contato com os europeus. É evidente que o quadro das

relações interétnicas entre europeus e americanos que está imbrincado na vida dos uitotos

alcança a realidade de outros povos originários da América.

Ao menos desde o século XVII, os povos que atualmente habitam a Amazônia

colombo-peruana inseriram-se em relações comerciais que acabam por vinculá-los ao

capital mercantil, participando de diversas maneiras na economia extrativa dedicada ao

Ocidente. De fato, desde o intercâmbio de bens de manufatura ocidental até as grandes

escravistas para fornecer mão de obra para as colônias espanhola, holandesa, inglesa e

francesa, os sucessivos auges econômicos dos uitotos estiveram associados ao advento de

epidemias de varíola, gripe e sarampo – quadro compartilhado pelos povos situados por

todo o território americano (ALCOCER, 2015). E mais: a cultura uitoto convivia com

intensa violência do exercício do controle social e territorial, o que contribuiu para

dizimar severamente os povos originários da região. Além do massacre demográfico, as

armas e os germes acabaram por auxiliar no desaparecimento de aspectos da cultura e dos

conhecimentos locais. Essa situação deve ser relembrada quando nos propomos a estudar

as músicas ritualísticas dos uitotos.

Atualmente, se reconhece como etnia uitoto cerca de 6 mil povos ameríndios

localizados na Amazônia colombo-peruana. As incursões dos conquistadores europeus

ocasionaram uma certa dispersão inicial. Segundo Paulina Alcocer (2015), os principais

assentamentos atuais se localizam nos rios Igarapaná, Caraparaná, no meio do Caquetá e

em algumas localidades do Peru. No entanto, apesar da dispersão espacial e da

heterogeneidade linguística que os compõe, os povos uitotos conformam uma mesma

sociedade, compartilhando um mesmo complexo cerimonial organizado em torno do

consumo ritualístico da coca e do tabaco. Apesar do notório etnocídio que acarretou no

declínio da memória ritual e cultural do grupo, houve uma tentativa em preservar os

dialetos nativos e a estrutura de clãs. Nesse ponto, um importante papel seria

desempenhado pelas músicas, responsáveis por convergir aspectos da cultura uitoto e

cantadas na língua tradicional.

Muito do que a historiografia conhece sobre as músicas uitotos são resultado de

esforços de compiladores europeus – especialmente dos antropólogos. As primeiras

tentativas vieram do etnólogo alemão Konrad Theodor Preuss (1869-1938), cujos livros

acerca das canções e danças dos uitotos apareceram na Alemanha na década de 1920 em

dois volumes. Mas será somente na década de 1990 que as obras de Preuss serão

traduzidas ao espanhol, as quais coincidem com o advento dos trabalhos de Fernando

Urbina Rangel (1992; 2011) e Juan Álvaro Echeverri (1997). Esses textos tentaram fixar

as tradições culturais dos uitotos em uma escrita alfabética, visando transcrever o que até

então havia subsistido na sabedoria dos anciãos. Ao relatar o papel da coca entre esses

nativos, Rangel (2011) relata uma conversa que teve com o Abuelo José García, no qual

o indígena colombiano relembra a secular tradição de cultivar a planta com as músicas:

“Al sembrar se canta, se silba para que la coca se ponga contenta. Al cantar se pone feliz

porque presiente que se va a hacer baile. Y así crece rápido. Esos cantos son las oraciones.

¡Como antiguamente todo se hacía coqueando!” (GARCÍA apud RANGEL, 2011, p.

201).

Através das comunidades sobreviventes, os historiadores, antropólogos e

etnólogos conseguem acessar – mesmo que parcialmente – uma tradição cultural também

sobrevivente do processo de conquista europeia. São principalmente os vestígios dos

rituais que aparecem nos textos entonados pelos indígenas, que ganham uma

musicalidade proveniente de instrumentos locais (ALCOCER, 2015). O cultivo e uso

ritualístico da coca é o principal tema das canções. De fato, a manutenção desse

conhecimento mesmo depois de tantos séculos de contato com uma cultura de imposições

sociais e políticas é um fenômeno que não deixa de surpreender aos pesquisadores.

Mostra, como bem ressalta uma historiografia de revisão, que os ameríndios não foram

simples agentes passivos do processo de dominação europeia, o que nos leva a contestar

o próprio uso do termo “aculturação”. Apesar de se referirem ao início da conquista

europeia, os relatos escritos pelo próprio Bartolomé de Las Casas evidenciam a ausência

de passividade entre os povos nativos, os quais acabavam por mascarar sua resistência

até mesmo através da preservação de sua língua ancestral. Era uma resistência manifesta

na conservação, muitas vezes vista como idolatria – como aponta Clementina Battcock

(2015) em seu estudo sobre os costumes de indígenas bolivianos.

No que concerne à colonização da Inglaterra nos territórios setentrionais do

continente americano, vemos uma realidade distinta. O papel do indígena na constituição

da cultura norte-americana permanece de menor proporção quando comparado aos atuais

Estados da América Latina. A própria história dos EUA acaba por silenciar a presença

dos nativos no território “descoberto” pelos europeus e sua importância na constituição

do país. Embora não se possa desconsiderar o papel dos indígenas na construção da

cultura estadunidense, os negros trazidos da África acabaram por possuir um maior

destaque na literatura historiográfica. De fato, desde o começo de sua escravização, os

africanos forçados a saírem de seu lar para o labor à serviço dos europeus na América

inglesa estavam cientes das contradições inerentes a uma sociedade tão ardentemente

comprometida com as ideias de uma irmandade cristã e liberdade e, ainda assim, tão

envolvida na inumana e imoral instituição da escravatura. Mas, independentemente do

quão confusos estivessem seus captores sobre os assuntos da liberdade, aqueles mantidos

em cativeiro tinham clareza que seus direitos humanos à liberdade estavam sendo

violados. Eles também tinham clareza que eles mesmos teriam de assegurar sua liberdade,

uma vez que seus captores haviam miraculosamente conseguido excluir as pessoas de cor

como membros da raça humana (JONES, 2005).

As formas de resistência haviam começado no próprio navio negreiro, onde os

cativos africanos começaram sua luta ativa pela liberdade, expressa sobretudo em forma

de revoltas, escape e suicídio. Em coerência com as tradições africanas, eles pontuavam

suas ações com músicas – em que até mesmo as práticas de suicídio vinham

acompanhadas de “canções de triunfo”. A luta pela liberdade nos afro-americanos se

iniciava ainda no cativeiro africano, a partir de quando muitos escravos reconheciam a

importância do divino para sua liberdade. Afinal, no seu quadro de referências derivado

da África não havia nenhuma contradição entre esta fé absoluta no divino e a

concomitante suposição de responsabilidade pelas ações individuais e coletivas (JONES,

2005). No decorrer do período da escravidão nas Treze Colônias e, posteriormente, no

recém constituído território dos EUA, a luta pela liberdade tomava variadas formas:

incêndios, insurreições, assassinatos, escapes, sobrevivências culturais, suicídios ou

simplesmente a vontade férrea de viver. Combinando sua fé e esperança, aqueles ainda

em cativeiro compuseram e adotaram canções rítmicas e alegres, cheias de antecipação

de liberdade: os spirituals. Por exemplo, em uma de suas mais famosas canções, eles

cantavam em júbilo:

O Senhor não libertou Daniel?

Libertou Daniel, libertou Daniel?

O Senhor não libertou Daniel?

Então porque não [libertar] todos os homens?

Ele livrou Daniel da cova dos leões,

Jonas da barriga da baleia,

E os jovens hebreus da fornalha ardente,

Então porque não [livrar] todos os homens?

(apud JONES, 2005, p. 03)

Fica claro nos spirituals a importância da religião cristã no espírito libertários dos

negros escravos, os quais viam seu futuro de liberdade como algo positivo. As histórias

do Antigo Testamento tinham um papel especial nas letras das canções, posto que a

história do povo hebreu havia se tornado sua história. Estas histórias serviram como fonte

principal para os spirituals, sublinhando o fato de que os africanos escravizados não

apenas desejavam liberdade, mas se identificavam mais fortemente com figuras

ativamente envolvidas e no fim vencedoras nas batalhas por liberdade documentadas

biblicamente. Além de fornecerem conforto e identificação coletiva, no entanto, as letras

dos spirituals eram veículos espirituais através dos quais os africanos escravizados se

transportavam para a efetiva experiência dos israelitas em cativeiro, utilizando relatos

bíblicos da vitória final para sustentar suas visões paralelas de vitória na América

(JONES, 2005).

Muitos spirituals, ademais, foram usados como códigos secretos de comunicação

para planos de escape, revoltas e protestos. Uma das canções mais representativas disso

era “Go Down, Moses”:

“Assim falou o Senhor,” disse o corajoso Moisés,

Deixe meu povo ir;

Se não, Eu irei ferir de morte seu primogênito,

Deixe meu povo ir.

Vá, Moisés,

Desça a terra do Egito.

Diga ao velho Faraó,

Deixe meu povo ir!

Fuja furtivamente, fuja furtivamente, fuja furtivamente pra Jesus!

Fuja furtivamente, fuja furtivamente para o lar

Não tenho tempo pra ficar aqui!

Meu Senhor me chama,

Ele me chama através do trovão;

A trombeta soa dentro da minha alma,

Não tenho tempo pra ficar aqui!

(apud JONES, 2005, p. 05-06)

Ainda que seja impossível determinar com qualquer certeza as datas de

composição de qualquer canção específica, não há questionamentos de que os spirituals

e outras canções eram usadas frequentemente como comunicação secreta entre

companheiros cativos ou entre cativos e pessoas da comunidade livre [engajadas em

movimentos abolicionistas] servindo para facilitar fugas ou revoltas. Algumas canções

chegavam a servir como mapas, apontando o caminho para rotas que levavam a liberdade

e segurança. A mais bem conhecida destas canções é “Follow the Drinking Gourd”, que

direcionava escravos fugitivos a continuarem viajando em direção ao Big Dipper – nome

dado ao conjunto formado pelas sete estrelas mais brilhantes da constelação de Ursa

Maior, que foi reconhecido por várias civilizações diferentes:

Siga a cabaça!

Siga a cabaça,

Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a liberdade,

Se você seguir a cabaça.

Quando o sol voltar e as primeiras codornas chamarem,

Siga a cabaça,

Pois o velho homem está sempre esperando para carregar-te a liberdade,

Se você seguir a cabaça.

(apud JONES, 2005, p. 07)

Claramente, africanos escravizados empregavam spirituals e outras canções

populares como comunicação codificada secreta anunciando planos de escape, revoltas e

reuniões clandestinas, ou torcendo por seus companheiros em batalha. Mas seria um erro

concluir que tal comunicação secreta fosse o único propósito da maioria dos spirituals ou

que a necessidade de comunicação secreta serviu de principal motivação para suas

criações. Canções como “Follow the Drinking Gourd” podem ter servido ao objetivo

primário de facilitar fugas seguras para os fugitivos. No entanto, é provável que na grande

maioria dos casos em que se empregavam os spirituals instrumentalmente para propósitos

políticos se tratasse de uma improvisação sobre uma forma de arte já existente, não do

objetivo primário de sua composição inicial. É notável que “Follow the Drinking Gourd”

e outras canções similares tenham tido uma relativamente pequena vida ativa para além

da circunstância histórica da escravidão. É provável que tenha havido muitas canções

como esta utilizadas para comunicação secreta, mas a maior parte destas canções não

sobreviveu para que pudéssemos analisa-las. Spirituals profundamente religiosos, como

“Go Down, Moses”, continuam, mais de 130 anos após a emancipação, capturando o

interesse e a atenção das pessoas por todo o mundo. Claro, uma razão para a sobrevivência

destes spirituals sobre as canções mais esotéricas é que a natureza secreta de certas

canções impedia que seus sentidos fossem revelados a coletores e observadores, por

motivos óbvios. É impossível determinar a extensão do quanto este fenômeno esteve

presente no desaparecimento destas canções do repertório da história oral. A despeito

disso, podemos acreditar que uma razão adicional pela qual muitos spirituals

sobreviveram seria porque as inspirações originais por trás de suas criações derivavam de

experiências humanas profundamente significativas arquetipicamente, relevantes não

apenas para a específica circunstância da escravidão, mas também para mulheres e

homens lutando em questões de justiça, liberdade e integridade espiritual em todos os

tempos e lugares.

Considerações Finais

Ao longo desse trabalho, traçamos um estudo do papel das músicas em dois

contextos muitos distintos: nas colônias espanholas e inglesas. Apesar das distinções

culturais historicamente características destas duas realidades, a escravidão enquanto

importante forma de mão de obra foi um fenômeno característico na história do continente

americano. Fosse através do uso da mão de obra indígena ou dos negros africanos, o

trabalho escravo foi a base das plantações e das empresas extrativas nas economias

europeias implantadas no Novo Mundo. Nesse trabalho, buscamos mostrar que, além das

formas convencionais de resistência à escravidão, a música atuou como um importante

instrumento de resistência, sobretudo em seu aspecto cultural, ora contribuindo na

preservação da cultura dos povos nativos, ora como esperança espiritual para os negros

africanos.

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