a monitoria de assistência ao aluno com deficiência visual
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Escola de Música
Licenciatura em Música
A monitoria de assistência ao aluno com deficiência visual
no curso de licenciatura em música
Moisés Carneiro Ferreira Junior
Natal - RN
Outubro/2017
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Escola de Música
Licenciatura em Música
A monitoria de assistência ao aluno com deficiência visual no
curso de licenciatura em música
Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura
em Música da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) como requisito parcial para a
obtenção do título de licenciado em música.
Moisés Carneiro Ferreira Junior
Orientadora: Profª. MSc. Catarina Shin Lima de Souza
Natal – RN
Outubro/2017
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4
Dedico este trabalho à minha avó Salete, que
com amor investiu seu tempo e recursos na
minha criação, sempre prezando por uma boa
educação. Sinto grande alegria em tê-la
presenciando esta importante conquista.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar a Deus, que tem me guiado por caminhos melhores do
que pude sonhar.
A minha esposa, por todo apoio que me ofereceu neste processo.
A minha família por torcer pelo meu sucesso.
Aos meus amigos verdadeiros por sempre demonstrarem crença em meu potencial.
A professora Catarina Shin e a Vilson Zattera pela grande disposição em me orientar
na construção deste trabalho.
A Gessé pela amizade e todos os conhecimentos compartilhados.
Aos demais colegas de turma e funcionários da Escola de Música da UFRN pela
parceria.
A todos os envolvidos no Projeto Esperança Viva pelos ensinamentos que me foram
doados.
Enfim, agradeço a todos que fizeram parte desta etapa importante da minha vida.
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RESUMO
Neste trabalho apresenta-se um relato da experiência de monitoria no suporte a um aluno com
deficiência visual no curso de licenciatura em música. Serão apresentadas as dificuldades
encontradas no processo, tanto gerais do contexto de ensino quanto as que podem ser
consideradas específicas do caso, e as soluções que foram adotadas com o interesse de
propiciar uma experiência acadêmica equiparada com a que é oferecida aos demais discentes.
Será discutido também o patamar da educação inclusiva no Brasil, desde a educação básica
até o acesso ao nível superior. Em seguida serão apresentadas informações sobre o contexto e
o sujeito do caso, assim como as ferramentas que foram utilizadas no processo. A utilização
da Musicografia Braille no processo será um dos focos do relato, já que é onde se encontrou
parte das dificuldades, pois todas as disciplinas de teoria musical são regidas por livros em
tinta. O processo de aquisição de independência no ato da pesquisa também será tratado, pois
levantou questões sobre a proporção ideal de assistência que se deve oferecer visando a
autossuficiência do aluno cego. Por fim, serão expostas as conclusões obtidas sobre cada uma
destas questões no exercício da monitoria.
Palavras-chave: Monitoria de assistência ao aluno com deficiência visual. Inclusão no curso
de licenciatura em música. Utilização da Musicografia Braille no curso de licenciatura em
música.
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ABSTRACT
In this work is presented an account of the monitoring experience in supporting a visually impaired student in the undergraduate music course. It will present the difficulties found in the process, both general of the teaching context and those that can be considered case-specific, and the solutions that were adopted with the interest of providing an academic experience equivalent to that offered to other students. It will be also discused the level of inclusive education in Brazil, from basic education to access to the higher education. Next, information about the context and the subject of the case will be presented, as well as the tools that were used in the process. The use of Braille Musicography in the process will be one of the focuses of the account, since it is where some of the difficulties were found, because all disciplines of musical theory are governed by books in ink. The process of acquiring independence in the act of research will also be addressed, since it raised questions about the ideal proportion of assistance that should be offered aiming for the self-sufficiency of the blind student. Finally, conclusions will be drawn on each of these issues in the monitoring exercise. Keywords: Assistance monitoring of to visually impaired students. Inclusion in the
undergraduate music course. Use of Braille musicography in the undergraduate music course.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Máquina de escrever em Braille..............................................................................21
Figura 2 – Interface do programa Musibraille..........................................................................22
Figura 3 – Primeiro compasso da cantata nº 189 de J. S. Bach................................................25
Figura 4 – Representação em braille do primeiro compasso da cantata nº 189 de J. S.
Bach..........................................................................................................................................25
Figura 5 – Página 11 do livro de harmonia funcional utilizado na disciplina..........................29
Figura 6 – Reglete.....................................................................................................................30
Figura 7 – Trecho de partitura para quatro vozes.....................................................................31
Figura 8 – Representação em braille da partitura acima...........................................................31
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CAENE – Comissão Permanente de Apoio a Estudantes com Necessidades Educacionais
Especiais
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LIBRAS – Linguagem Brasileira de Sinais
MB – Musicografia Braille
MEC – Ministério da Educação
Pe – Padre
SEMBRAIN – Setor de Musicografia Braille e Apoio a Inclusão
SIGAA – Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas
SISU – Sistema de Seleção Unificada
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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SUMÁRIO
1 Introdução............................................................................................................................. 10
2 O sujeito................................................................................................................................ 14
3 O contexto............................................................................................................................. 17
4 Relato de experiências.......................................................................................................... 20
4.1 Ferramentas para escrita..................................................................................................... 20
4.2 Simplificação para melhor entendimento.......................................................................... 24
4.3 Materiais para leitores de tela............................................................................................ 32
4.4 Processo de aquisição de independência............................................................................ 34
5 Considerações finais............................................................................................................. 38
Referências............................................................................................................................... 41
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1 INTRODUÇÃO
Aceitar a importância da individualidade é o caminho para aceitar o próximo. Movidos
por pensamentos altruístas como este é que têm ocorrido diversas discussões sobre o tema da
inclusão, não só no Brasil. O objetivo principal é oferecer um olhar para as pessoas que não
têm as mesmas oportunidades na sociedade, e atualmente este termo é mais comumente
associado às pessoas com deficiência. Para estes a falta de inclusão tem pesado
principalmente no aspecto educacional, já que é a base da formação do ser humano.
No Brasil existem diversas leis com a intenção de promover a inclusão de pessoas com
deficiência no ensino, mas pode-se perceber uma contradição entre os objetivos e as ações.
Tudissaki (2013, p.53) enumera quatro ordenamentos legais que garantem o acesso de pessoas
com deficiência a um ensino de qualidade:
a) Inciso III do artigo 208 da Constituição Federal de 1988, que atribui como dever
do Estado, o atendimento educacional especializado aos deficientes,
preferencialmente na rede regular de ensino;
b) Artigos 4, 58, 59 e 60 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional;
c) Lei n. 10.172, de 09 de janeiro de 2001, que aprovou o Plano Nacional de
Educação, que, por sua vez, estabelece vinte e sete objetivos e metas para a
educação das pessoas com ‘necessidades educacionais especiais’;
d) Portaria do Ministério da Educação (MEC) n. 3.284, de 07 de novembro de 2003,
que dispõe sobre os requisitos de acessibilidade para pessoas com deficiência, bem
como aqueles para instruir os processos de autorização e de reconhecimento de
cursos, e de credenciamento de instituições.
Apesar da democratização do acesso ao ensino básico, os alunos que conseguem um
espaço estão fadados a lidar com a falta de conhecimento acerca das deficiências e suas
necessidades pedagógicas, falta de comprometimento e de apoio de diversas partes, altos
custos de materiais, ideias erradas sobre suas capacidades, entre outras coisas. Em relação à
falta de conhecimento sobre a cegueira, percebe-se que muitas vezes vem acompanhada de
mitos, como a ideia de que o aluno não tem capacidade de realizar tarefas que as pessoas
videntes1 realizam normalmente no dia-a-dia. Esta visão traz receios e até mesmo temores aos
docentes, e por este motivo o aluno com deficiência acaba sendo deixado de lado nas
atividades em sala. Este mito só tende a manter-se a cada dia, pois apesar do crescente
ingresso destes alunos no ensino regular e superior, ainda não caracteriza uma presença
expressiva, principalmente considerando a parcela que representam de nossa população2. Esta
1 Vidente – É um termo utilizado no meio da deficiência visual para se referir às pessoas que não possuem a
deficiência. 2 Segundo o censo demográfico realizado pelo IBGE (2010), a população brasileira que possui alguma
deficiência representa cerca de 23% da população.
11
situação indica a existência da necessidade de mais ações de preparo para os futuros
professores, que não visem somente metodologias de ensino específicas. É necessário
fomentar um pensamento crítico e ético sobre o tratamento a pessoas com deficiência, que
devem receber um ensino equiparado aos demais, evitando assim que fiquem à parte das
atividades de sala de aula (SILVA, 2013). Não é algo fácil, pois exige do educador um
repensar de sua atuação nos diversos âmbitos e evitar acomodação, intolerância e outros
aspectos que resultam em desigualdades. Uma situação muito comum, e que chamo de
inserção sem integração, é quando aluno com deficiência é tratado com desdém em sala de
aula, participando de aulas ministradas sem nenhuma adaptação. Esse é o modelo incoerente
de integração apontado na história da educação especial, no qual o aluno normalmente é
prejudicado por não conseguir acompanhar o desenvolvimento da turma. Esta e outras
situações apontam para a educação inclusiva como a solução, pois, como cita Profeta (2007,
p. 235):
[...] é uma modalidade de ensino que está possibilitando que toda a sociedade reveja
seus conceitos em relação às pessoas com deficiência, uma vez que por meio dela
aquelas pessoas vão ascender no mundo, logrando êxito em sua vida profissional,
social e afetiva.
No ensino superior, a realidade não tem sido diferente. Mesmo considerando o grande
potencial criativo deste campo (que é um lugar de incentivo à criação de saberes), o processo
de inclusão tem sido um desafio. Foi alcançada a democratização do acesso, mas com
qualidade didática limitada (RAMALHO; NUNES, 2009 apud MAGALHÃES, 2013). E ao
que diz respeito aos cursos de música, área de aplicação deste estudo, existe outro problema,
presente ainda no processo de inserção. Além de necessitar da aprovação mediante o SISU3 o
aluno é submetido a uma prova de conhecimentos específicos, que avalia o conhecimento
prévio sobre teoria e prática musical que o aluno possui, com o objetivo principal de impor
um nivelamento de conhecimentos para as turmas iniciais. Porém neste aspecto as pessoas
com DV não possuem as mesmas oportunidades que as videntes. Souza (2010, p. 1) afirma:
Dentro desse cenário, a pessoa cega que pretende prestar essa mesma prova de
vestibular se depara com um panorama bem diferente ao buscar adquirir esses
mesmos conhecimentos. Ela constatará escolas de música e professores
despreparados para lhes atender de forma satisfatória; recusando-os ou criando
3 SISU – É um sistema utilizado pelas instituições públicas de ensino superior para oferecer vagas a participantes
do Enem, disponibilizado pelo MEC.
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adaptações em relevo das partituras e métodos em tinta4. Raras exceções são os
professores que os recebem já com as partituras em braille.
Por esses motivos e também em parte pela escassez de materiais didáticos adequados
às suas deficiências, muitos músicos acabam optando por aprendizado voltado principalmente
as suas capacidades de escuta. Mas essas por si só não são suficientes para alcançar uma
aprovação no teste específico, pois são necessários conhecimentos teóricos e de escrita, e isto
implica, para o cego, conhecimento da grafia braille. Ainda que alcance a aprovação, terá
dificuldades no decorrer do curso, e esta é, inclusive, um dos problemas abordados neste
trabalho.
Ao lidar com deficientes visuais é importante que se tenha uma noção sobre sua
deficiência e os recursos que utilizam para o estudo. Desta forma será possível compreender
que lhes ensinar não é uma tarefa difícil como se acredita popularmente. Através de
experiências realizadas por professores especializados na área da educação de pessoas com
deficiência, percebi que em grande parte dos casos não são necessárias mudanças extremas
para que um aluno possa ser incluído no sentido mais amplo deste termo, no âmbito da sala de
aula. Não são obrigatórias mudanças no currículo do curso, mas pequenas adaptações em sala
de aula, no planejamento e na forma de aplicar os assuntos, que podem fazer toda a diferença
na experiência do aluno. O professor pode e deve continuar usando seus recursos visuais em
sala, e a simples ação de descrever detalhadamente os elementos do quadro pode ajudar o
aluno a criar uma imagem em sua mente e compreender aquilo que está sendo mencionado. É
importante que o aluno não se sinta de nenhuma forma deixado de lado, pois essa atitude
tende a contribuir para que se retraia, resultando, no mínimo, em um acúmulo de dúvidas não
esclarecidas, podendo levar até a falta de frequência nas aulas. Quanto ao monitor do aluno
com deficiência, este possui um papel de extrema importância e seriedade, já que em suas
atribuições irá atuar como um agente da inclusão.
Diante do exposto, esse trabalho tem a intenção de relatar experiências vivenciadas no
processo de assistência a um aluno cego no curso de licenciatura em música da UFRN. Serão
tratados desafios que foram enfrentados no exercício da monitoria, alguns destes comuns à
realidade do contexto e outros que considero mais específicos, e expostas as soluções que
foram adotadas com a intenção de proporcionar ao monitorado uma experiência relevante no
curso. Serão abordadas situações relacionadas ao seu processo de aprendizagem nas
4 Em tinta – Refere-se aos materiais impressos no modo convencional.
13
disciplinas, a preparação de material didático, assim como questões na interação com o aluno
e professores.
No início de 2014 ingressei no curso de licenciatura em música da UFRN, e
imediatamente fui indicado para a monitoria. A indicação foi feita por um amigo recém-
formado no curso, que havia se envolvido com a área de estudo em questão em seu último
ano. Paralelo a essa atividade passei a atuar também como monitor do “Esperança Viva”,
projeto de extensão da UFRN, que na época tinha como objetivo o ensino de flauta doce e
teoria musical para pessoas com deficiência visual. As aulas ocorriam durante todo o período
diurno das segundas-feiras, e eventualmente o grupo recebia convites para apresentações em
outros períodos. Todas as ações foram feitas mediante planejamento e sob a orientação de
professores e servidores supervisores, e os monitores ficavam responsáveis principalmente em
auxiliar os alunos individualmente durante as atividades com a flauta e estudo teórico, em
acompanha-los tocando nos ensaios e ajudando durante as refeições e locomoção tanto na
universidade quanto nas apresentações. O próprio aluno auxiliado por mim na licenciatura foi
fruto deste projeto, que também instrui alunos no acesso aos cursos superiores de música.
Inicialmente eu não possuía nenhuma experiência de ensino e nem mesmo noções de como se
comportar diante destes colegas do projeto, mas mediante a convivência tive a oportunidade
de adquirir diversos conhecimentos, e também na experimentação da prática docente.
No primeiro semestre do curso também tive a oportunidade de participar da disciplina
“Musicografia Braille”, na época ministrada pela coordenadora do Esperança Viva, e foi
quando adquiri alguns dos primeiros conhecimentos sobre o contexto das pessoas com
deficiência visual e sobre o braille, sistema de escrita em alto relevo utilizado pelos mesmos.
Foi de extrema importância no momento, já que até ali não tinha conhecimento algum sobre a
escrita e os materiais utilizados para realizar tal registro, mesmo já atuando na monitoria.
Durante quase todo o curso eu e meu monitorado nos matriculamos nas mesmas
disciplinas, para que eu pudesse o auxiliar em todas as atividades dentro e fora de sala. No
primeiro semestre ofereci pouco suporte, já que eu não tinha conhecimentos suficientes sobre
os recursos que poderia utilizar para apoiá-lo. A urgência da situação foi o que me influenciou
a buscar o conhecimento de maneira mais rápida possível. Com o passar do tempo o aluno
passou a usufruir dos serviços que serão descritos a seguir. Acredito que as estratégias bem-
sucedidas registradas neste trabalho são eficientes, portanto serão expostas com o intuito de
oferecer propostas para educadores musicais desta área de atuação.
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2 O SUJEITO
Deficiência visual é o comprometimento do funcionamento da visão, total ou parcial.
Como cita Louro (2012), estas pessoas, pedagogicamente, precisarão da ajuda de recursos
segundo sua especificidade, desde impressos ampliados (para os com baixa visão) até do
aprendizado sistema braille, que é o meio de leitura e escrita essencial para pessoas cegas.
Pessoas com DV podem levar suas vidas normalmente com a ajuda da família e de
profissionais, de acordo com o estímulo que recebem em seu desenvolvimento, devido a
capacidade do corpo humano de realizar alterações através de estimulação. Seja uma criança
que já nasceu com a deficiência, ou um indivíduo que a adquiriu depois de usufruir da visão, é
comum que desenvolvam dificuldades como, por exemplo, de locomoção, mas existem ações
para melhorar sua qualidade de vida. Isto também ocorre por relação a fatores emocionais,
pois como afirma Medeiros (2009):
É natural que a pessoa sinta que o seu mundo ruiu ao cegar. As bases em que ele se
sustentava deixarão de existir. Realizar tarefas quotidianas em casa, andar na rua,
dirigir-se para a escola ou emprego, entre outras, deixará de ser possível antes de se
ter iniciado um processo de reabilitação.
O processo de reabilitação ensina a realizar as atividades de acordo com sua nova
condição; tarefas como tomar banho, organizar o quarto e até se alimentar, que poderiam ser
difíceis sem ajuda, podem ser realizadas natural e independentemente com o devido
treinamento. Ainda sobre o processo de reabilitação, Montilha (2007, p. 114) comenta:
O processo de reabilitação, então, tem o objetivo de oferecer condições para que a
pessoa que adquiriu a deficiência visual tenha o maior nível de independência e
autonomia que lhe seja possível, contribuindo assim para uma melhor qualidade de
vida.
Com base nisso, o indivíduo que possui a deficiência tem o que é necessário para
vivenciar todos os níveis de ensino que almeje, desde que, é claro, receba atendimento
especializado. Gessé José, o aluno alvo de minhas ações como monitor, passara pelo processo
de reabilitação e estava pronto para esta nova fase de sua vida.
Gessé precisou trabalhar desde cedo para ajudar nas despesas familiares, e por isso os
seus estudos do não ocorreram de forma adequada. Antes do acidente, ocorrido no ano de
2003, que ocasionaria posteriormente sua cegueira total, o mesmo cursou o fundamental
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inteiramente em um supletivo, e em 2009 cursou ensino médio em uma escola especializada
no ensino de cegos.
Sua jornada musical e rumo a academia iniciou quando o aluno passou a frequentar o
projeto Esperança Viva, conforme já mencionado. Foi onde adquiriu os primeiros
conhecimentos musicais, através de aulas de flauta-doce e musicografia braille. Como é de
costume no projeto, o aluno foi influenciado a dar este passo rumo a uma profissionalização
musical, e o mesmo aceitou este desafio. Passou a receber aulas preparatórias, nas quais eram
abordados os assuntos da prova de conhecimentos específicos, critério para o ingresso no
curso de licenciatura em música. Para a alegria de todos teve êxito nos exames e, apesar das
dificuldades, essa fase foi vencida.
Ao frequentar as primeiras aulas do curso de licenciatura em música, Gessé se deparou
com suas primeiras dificuldades. Sua experiência educacional prévia não o tornara totalmente
apto para esta nova etapa. No início de minha assistência pude perceber que o aluno sentia
grandes dificuldades em algumas atividades básicas, como na elaboração e em alguns casos
na compreensão de textos, por exemplo. Esta debilidade veio à tona quando recebi os
primeiros fichamentos de textos, criados pelo aluno conforme proposto nas atividades da
disciplina Introdução à metodologia Científica, quando pude identificar problemas na
construção das frases.
Outra dificuldade que teve, segundo próprio relato, foi quanto a locomoção. Gessé
morava distante da universidade, e como o curso era a noite seu retorno se tornava arriscado.
O próprio campus da UFRN era local de prática de assaltos com certa frequência, apesar de
possuir segurança própria. Esta situação somada ao fato de que seu ônibus muitas vezes
atrasava se tornou um dos motivos de desânimo. Pude acompanhar esta situação de perto, pois
durante o exercício da monitoria, após todas as aulas ofereci companhia enquanto esperava
seu ônibus na parada. Seus lamentos constantes eram justificados, já que era obrigado a andar
seu caminho escuro e inseguro todas as noites.
Estas dificuldades deixaram o aluno desmotivado em seu primeiro semestre letivo.
Compartilhou por várias vezes sobre seu plano de desistir do curso. Qualquer desafio, por
maior ajuda que seja oferecida, pode se tornar um gigante para alguém que perdeu algo tão
importante na vida, neste caso a visão. Através dos meus primeiros meses de prática nesta
área percebi que pessoas com deficiência visual tendem a desanimar com facilidade ao se
depararem com problemas. Parte disso também se deve ao preconceito sofrido e falta de
atenção da sociedade em relação a algumas de suas necessidades. Por isso é importante que
estas pessoas sejam lembradas a cada dia de suas capacidades, para que se tornem cada vez
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mais confiantes para lidar com os desafios de suas vidas. Em relação ao processo de ensino-
aprendizado, Sá, Campos e Silva (2007, p. 14) afirmam que as pessoas com deficiência:
[...] necessitam de um ambiente estimulador, de mediadores e condições favoráveis
à exploração de seu referencial perceptivo particular. No mais, não são diferentes de
seus colegas que enxergam no que diz respeito ao desejo de aprender, aos
interesses, à curiosidade, às motivações, às necessidades gerais de cuidados,
proteção, afeto, brincadeiras, limites, convívio e recreação dentre outros aspectos
relacionados à formação de identidade a aos processos de desenvolvimento e
aprendizagem.
Especificamente no caso de Gessé, como complemento de todo o auxílio prestado,
conforme será apresentado posteriormente neste trabalho, o uso de frases simples como “você
vai conseguir”, ou “você está indo bem” foram importantes não só nesta primeira etapa. Em
determinados momentos durante o curso o aluno foi lembrado de tudo o que já tinha
superado, e com o tempo se tornava mais confiante sobre os próximos passos.
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3 O CONTEXTO
A Escola de Música da UFRN fica localizada na Av. Passeio dos Girassóis, no bairro
de Lagoa Nova, considerado zona nobre da cidade de Natal. O prédio está em bom estado, e
conta com salas de aula climatizadas, tanto coletivas quanto para estudos individuais de
instrumento. As coletivas possuem equipamentos de áudio e datashow, e parte das salas de
estudo possuem pianos de armário. Possui um auditório com capacidade para 250 pessoas,
que dispõe de um equipamento de sonorização de ponta. A biblioteca "Pe. Jaime Diniz" está
situada em uma parte central do prédio e oferece um vasto acervo de obras na área da música.
Quase todo o espaço da escola conta com internet via WI-FI, que pode ser acessada
livremente. É muito utilizada pelos alunos em seus smartphones ou notebooks para fins de
estudo, e também pode ser acessada através de computadores disponibilizados na sala da
biblioteca. Conta também com um estúdio de gravação, e instrumentos musicais e outros
equipamentos estão à disposição de professores e alunos.
Funcionando em todos os horários, a Escola de Música oferece cursos de licenciatura e
bacharelado, além de cursos de nível técnico (instrumento, canto, regência e processos
fonográficos). Também acontecem projetos de extensão com foco de atuação na área da
música, coordenados por professores da instituição. Nestes projetos são oferecidas bolsas para
os alunos integrantes, que têm a oportunidade de aprofundar os conhecimentos adquiridos em
sala, alguns os colocando em situações reais de ensino.
O curso de licenciatura em música da UFRN possui um documento contendo o seu
projeto político pedagógico, criado em 2004. Acerca do assunto “diversidade”, afirma:
Levando-se em conta o caráter heterogêneo, no que se refere ao perfil dos alunos
que vêm compondo os nossos cursos superiores, a elaboração de uma proposta
curricular para uma Licenciatura em Música deverá, necessariamente, contemplar
essa pluralidade, criando espaço para uma construção aberta, não diretiva e que
possibilite uma ação interativa dos participantes - discentes e docente. É importante
que suas histórias sejam consideradas no processo de construção do conhecimento
musical, se pensarmos que estamos em constante processo de reelaboração e
ressignificação conceitual do mundo. (UFRN, 2004, p. 8)
É uma proposta interessante que visa contemplar as necessidades de cada aluno,
individualmente. Apesar de não estar voltado especificamente para a área da deficiência, este
parágrafo sintetiza uma boa abordagem desse tipo de ensino. No decorrer do curso
observamos que apenas parte do corpo docente segue esta visão. Algumas situações nos
fizeram concluir que talvez haja a necessidade de oferecer aos professores reciclagens no que
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diz respeito principalmente ao tratamento de alunos com deficiência. Houve situações em que
as necessidades de Gessé foram consideravelmente negligenciadas pelos professores, aqueles
que devem ser os maiores responsáveis pela viabilização do aprendizado. Para ser mais
específico, alguns utilizavam de didáticas totalmente dependentes da percepção visual, e
durante a aplicação de algumas destas não havia tempo para que eu pudesse oferecer
audiodescrições. Atos como estes provam do total descaso por parte de alguns professores do
curso. Em contrapartida presenciamos metodologias serem substituídas em função do aluno,
assim como novas ferramentas serem criadas. Em algumas das disciplinas o aluno teve um
tratamento diferenciado, recebendo até, por algumas vezes, um prazo maior para entrega de
atividades, por compreenderem que alguns de seus processos podem se tornar mais lentos do
que os dos demais.
Para assegurar o acesso de pessoas com deficiência na UFRN, em 15 de março de
2010 foi criada a CAENE – Comissão permanente de apoio a estudantes com necessidades
educacionais especiais. Faz parte do plano de desenvolvimento institucional da universidade,
e tem como objetivos:
Apoiar e orientar a comunidade universitária acerca do processo de inclusão de
estudantes com necessidades educacionais especiais, tendo em vista seu
ingresso, acesso e permanência, com qualidade, no ambiente universitário.
Propor soluções para a eliminação de barreiras atitudinais, arquitetônicas,
pedagógicas e de comunicação no âmbito da instituição, visando garantir a
permanência e a terminalidade com sucesso do estudante com necessidade
educacional especial;
Apoiar e orientar os Colegiados de Cursos de qualquer unidade acadêmica,
independente do nível ou modalidade de ensino na adequação curricular para
atender às especificidades do estudante com necessidade educacional especial;
Acompanhar o desenvolvimento da política de inclusão do estudante com
necessidade educacional especial na UFRN, visando contribuir para a tomada
de decisões nos vários níveis da instituição. (CAENE, 201-)
Durante estes últimos anos, essa instituição tem realizado ações relevantes rumo ao
alcance destes objetivos. No ano de 2016 qualquer aluno da universidade poderia perceber
mudanças nas calçadas e em alguns prédios. Foram instalados pisos táteis nos principais
trajetos do campus, e servem para guiar pessoas com deficiência visual enquanto se
locomovem pelas calçadas. Possui informações em alto relevo que permitem que o indivíduo
se mova sempre na direção correta, e oferece alertas caso algum trecho ofereça perigo.
Também foram construídas rampas para beneficiar cadeirantes, já que sem ela torna-se
impossível para estas pessoas acessar prédios situados e níveis diferentes. A própria escola de
música foi alvo destas reformas. A rampa que fazia ligação da parte central do prédio com o
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setor oeste foi reestruturada para atender melhor às necessidades dos frequentastes
cadeirantes.
A CAENE possui profissionais de várias áreas (pedagogos, psicólogos, intérpretes de
LIBRAS, assistentes sociais, revisores Braille) à disposição, que atuam tanto na sede da
CAENE como em um laboratório de acessibilidade instalado num setor da Biblioteca Central.
São responsáveis também pela produção de materiais didáticos em formatos acessíveis. Basta
que os professores repassem os materiais que serão utilizados, a fim de serem impressos ou
salvos em formato digital, e estes são adaptados e entregues diretamente ao aluno. Para gozar
do serviço o aluno deve realizar uma solicitação online, através do SIGAA – Sistema
integrado de gestão de atividades acadêmicas. O próprio fato de que a página está em um
formato acessível já representa um avanço a favor da inclusão, já que é através desta que
todos os alunos realizam diversas atividades acadêmicas, como solicitações de bolsas e
atestados e até mesmo downloads dos arquivos que são disponibilizados pelos professores.
Para atender a uma demanda recorrente de alunos do curso, na Escola de Música da
UFRN foi criado o SEMBRAIN – Setor de Musicografia Braille e Apoio a Inclusão. Graças
ao apoio da CAENE e da Biblioteca setorial, o laboratório conta com a aparelhagem adequada
e um acervo crescente de materiais didáticos voltados a área da educação para pessoas com
necessidades educacionais especiais à disposição dos alunos. O laboratório foi instalado na
sala que antes comportava o acervo audiovisual da biblioteca, e hoje tem como atividade
principal a produção de material em Braille, realizada por professores e alunos bolsistas.
Desta forma, o aluno deficiente visual que ingressa em qualquer dos cursos oferecidos pela
escola de música tem um atendimento mais rápido e eficiente, já que os materiais são
preparados por alunos e revisado por professores da mesma área de conhecimento.
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4 RELATO DE EXPERIÊNCIAS
Este relato trata de soluções adotadas no exercício da monitoria no auxílio de um
aluno cego em suas atividades acadêmicas, mas ao contrário de outros trabalhos de atuantes
da área, o problema da escassez de materiais não será enfatizado, já que este não foi um de
seus maiores problemas. Existem poucas obras importantes da área da música impressos em
Braille, mas o aluno da Escola de Música da UFRN conta com a ajuda do SEMBRAIN para
atende-lo segundo suas demandas, e não só neste aspecto. Aqui serão apresentadas
dificuldades relacionadas ao próprio uso do Braille nas disciplinas do curso de licenciatura,
uma vez que, como será explicado posteriormente, este apresenta uma abordagem da teoria
musical diferente dos livros em tinta. Faz-se importante relatar os recursos que o aluno
possuiu à sua disposição.
4.1 FERRAMENTAS PARA ESCRITA
O sistema Braille se dá nas diferentes combinações (64 ao todo) associadas a seis
pontos em auto relevo, dispostos em duas fileiras de três pontos cada, que configuram a “cela
Braille”. Hoje existem várias formas de realizar sua grafia, desde a mais rudimentar até a mais
moderna. Para tomar notas em sala de aula o aluno utilizou a “reglete”. É a ferramenta mais
utilizada pelo o aluno cego para a escrita em Braille, até pela sua facilidade de levar na bolsa.
A reglete se trata de um tipo de “fôrma” para orientar o usuário sobre os espaços da folha e
permitir que os pontos sejam feitos organizadamente. É utilizada juntamente com o punção,
através do qual se pode criar os pontos em alto relevo. O aluno pode fazer anotações para
consultar posteriormente, e apesar de sua escrita não ocorrer tão rapidamente, ainda se torna a
melhor opção para a sala de aula. Mas o recurso que mais utilizou para registro de aulas foi o
gravador. O mesmo era ativado no início da aula e posicionado próximo ao professor. O
aparelho realizava registros sonoros de toda a aula através da captação do microfone, e ao
chegar em casa o aluno reproduzia o áudio e fazia anotações.
O SEMBRAIN também possui uma máquina de escrever Braille à disposição dos
alunos. Tem o mesmo funcionamento da máquina de datilografia, muito popular no passado,
mas para a digitação possui apenas seis teclas, referentes aos seis pontos da cela Braille. Para
inserir um caractere basta pressionar simultaneamente as teclas segundo a combinação do que
se deseja grafar. Os demais botões servem para avançar, retroceder e mudar de linha na folha.
Através desta máquina é possível criar textos de forma ágil, vantagem considerável em
21
relação ao uso da reglete. Seu ponto negativo é o peso, já que a maior parte da máquina é
constituída de metal.
Figura 1 – Máquina de escrever Braille.
Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)
As transcrições de materiais didáticos eram realizadas no SEMBRAIN. Para a
transcrição de materiais contendo apenas textos e imagens utilizávamos o programa Braille
Fácil, que também se trata de um software gratuito. Através dele, é possível que qualquer
pessoa, mesmo que não tenha memorizado o alfabeto Braille, transcreva rapidamente textos
de livros e outros materiais. Basta digitar o texto ou simplesmente copiar de um arquivo em
formato digital e colar em sua interface. As imagens devem ser descritas textualmente, com a
maior quantidade de detalhes possível. É necessário realizar algumas formatações, com o
objetivo de facilitar a navegação no texto. O programa oferece opções de formatação e
disponibiliza uma opção para a visualização do resultado em formato digital. Também pode
ser operado por DVs, pois é acessível.
O programa mais utilizado na atuação como monitor foi o Musibraille, que tem a
mesma função do Braille Fácil, mas suas funcionalidades são voltadas à escrita musical. O
programa possui um dicionário contendo vários elementos musicais, onde é possível inserir
no texto com um clique. Mas a forma mais prática de escrita se dá ativando o modo Perkins,
através da tecla F11. As teclas “S”, “D”, e “F” representam os pontos “3”, “2” e “1”, e as
teclas “J”, “K” e “L” os pontos “4”, “5” e “6” da cela Braille, respectivamente. A utilização
22
deste modo demanda o conhecimento dos elementos musicais em Braille. Seus recursos
permitem que o transcritor possa criar trechos musicais e acompanhar simultaneamente seu
resultado em tinta. O programa também é acessível e possui um sintetizador para que seja
possível ouvir o que está sendo digitado, porém apenas os elementos mais básicos são
considerados na execução. Esse software também foi muito utilizado quando o material
possuía tanto elementos textuais quanto de escrita musical, pois ele oferece um campo que
permite a digitação de texto. Abaixo, a foto 1 ilustra a interface do aplicativo:
Figura 2 – Captura de tela da interface do programa Musibraille.
Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)
Para a impressão de arquivos criados no Braille Fácil ou no Musibraille utilizamos
uma impressora Braille, que funciona basicamente da mesma maneira que as convencionais,
mas ao invés de realizar impressões em tinta o faz em alto relevo. Desta forma, é possível
criar materiais extensos de forma rápida em relação às demais ferramentas, e é um recurso
muito importante, pois a falta de acervo é uma das dificuldades que se depara no ensino para
DVs. Os professores eram orientados a enviar todo o material da disciplina com antecedência,
para que o aluno os tivesse em mãos antes do momento de sua utilização. Apesar da fluência
com do sistema Braille, Gessé não conseguia ler com a mesma rapidez que normalmente se lê
um texto em tinta, e ao receber o material com antecedência ele poderia realizar leituras
prévias. Infelizmente alguns professores não davam atenção a esta solicitação, e algumas
23
vezes o aluno acabava prejudicado por este motivo. Algumas vezes era possível realizar a
transcrição à tempo, e outras vezes o aluno recebia com atraso.
24
4.2 SIMPLIFICAÇÃO PARA MELHOR ENTENDIMENTO
Uma das atribuições principais nesta monitoria é a transcrição de material em tinta
para o Braille, pois, como afirma bem Moraes (2015, pág. 1),
O Sistema Braille é importante para a educação inclusiva na medida em que o
aprendizado deste sistema proporciona ao aluno incluído maior independência na
escrita e na leitura, o que proporciona, consequentemente, maior facilidade de
comunicação e de socialização [...].
É importante que todo aluno, independente do seu perfil de aprendizado, possua um
material didático à sua disposição para leitura, afinal de contas, mesmo que um indivíduo
possua uma grande capacidade de memorização, é natural esquecer muitas informações no
decorrer do dia a dia, e por isso precisamos eventualmente de uma fonte de reposição. O
Braille para o aluno cego deve ser o meio de leitura primário, pois como citado acima, através
desta tem autonomia para realizar registros de qualquer tipo sem necessitar de auxílio algum
de terceiros.
A escrita Braille foi criada para ser simples, fácil de aprender, e com a MB não foi
diferente. Mas em alguns níveis exigirá um pouco mais de prática. Como cita Giesteira (2015,
p. 1, tradução nossa):
Devido a necessidade de representar toda a informação da partitura, são
utilizados inúmeros signos em Braille e as combinações entre eles, gerando
uma quantidade de informação que somente são lidas de maneira linear e
horizontalmente, caractere a caractere.5
A escrita musical em tinta se utiliza da verticalidade para expressar elementos que devem ser
pensados simultaneamente, permitindo uma leitura ágil. Mas o Braille tem um caráter
diferente. Todas as informações são acrescentadas horizontalmente, e considerando que cada
elemento terá no mínimo uma cela para sua representação, um curto trecho em tinta pode
representar várias linhas no Braille. Logo, sua compreensão pode se tornar difícil ou no
mínimo demorada, já que em muitos dos casos somente ao fim de uma longa leitura o trecho
terá o seu sentido completo. Também demandará ao leitor uma grande capacidade de
memorização, já que precisa, à medida que lê, guardar gradativamente cada informação para
relacionar ao final.
5 “Debido a necesidad de representar toda la información de la partitura, son utilizados innúmeros signos
en Braille y las combinaciones entre ellos, generando una cantidad de información que solamente son
leídas de manera linear y horizontalmente, carácter a carácter.”
25
Em seus estudos musicais Gessé adquiriu muitos conhecimentos que o permitiu ler
partituras com autonomia, e executar em seu instrumento sem muitas dificuldades. Mas em
nenhuma destas experiências o aluno teve oportunidade de se aprofundar ao ponto de adquirir
conhecimentos que o permitissem a leitura fluente de partituras um pouco mais complexas,
como, por exemplo, as que contém uma quantidade maior de informações que funcionam em
conjunto entre si. Pode-se observar esta situação no exemplo abaixo:
Figura 3 – Primeiro compasso da Cantata nº 189 de J. S. Bach
Fonte: BACH, [1891?], p. 1.
Figura 4 - Representação em Braille do primeiro compasso da Cantata nº 189 de J.S. Bach.
Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)
Trata-se do trecho inicial da “Cantata 189” de J. S. Bach em tinta e uma representação
visual de sua versão em Braille, na qual os pontos mais escuros se referem aos que seriam
grafados em alto relevo. A primeira linha refere-se ao pentagrama superior, e o segundo ao
inferior. Observando a primeira imagem podemos considerar durante a leitura diversos
elementos quase que simultaneamente, graças ao recurso da verticalidade, o que irá permitir
uma rápida execução. A própria representação ocupa um pequeno espaço na página. Já na
segunda imagem os mesmos elementos têm suas representações lado à lado, fazendo com que
o leitor construa a informação gradativamente, e ao final deverá contar com uma grande
capacidade de memorização para juntar os seus significados e entender o seu produto final.
Sua leitura também pode ser mais demorada, já que uma página em tinta pode resultar em
duas ou até mais páginas em Braille. É muito comum no curso de licenciatura a apreciação de
26
grandes obras através de escuta acompanhada da leitura de sua partitura, mas aluno que lê em
Braille pode sentir dificuldade para acompanhar o ritmo dos colegas, ou nem mesmo
conseguir interpretar os trechos em questão durante a aula.
O estudo do Braille também demanda grande investimento de tempo, já que para
compreender um assunto as vezes é necessário possuir outros conhecimentos teóricos, como
cita Bonilha (2010, p. 14):
O domínio da leitura e escrita musical em braille está necessariamente
associado ao domínio de conceitos teóricos, o que não ocorre em relação ao
aprendizado da leitura em tinta. É imprescindível, por exemplo, que o leitor de uma
partitura em braille tenha conhecimentos sobre escalas, tonalidades, formação de
intervalos, padrões rítmicos, etc. Essas noções são intrínsecas aos princípios
norteadores do próprio código e, por isso, tornam-se pré-requisitos para o seu
aprendizado.
O primeiro problema surgiu quando, no decorrer das disciplinas, a leitura de algumas
partituras se fazia importante para a realização das atividades. Em alguns casos Gessé não
possuía o conhecimento e a prática necessários para realizar uma análise eficiente, e o que
fazer quando não é possível adquirir tais conhecimentos do dia para a noite? Não se pode
esperar que o aluno adquira tais capacidades de leitura em uma semana, um mês, ou até
mesmo um semestre, considerando a quantidade de conhecimentos que podem se fazer
necessários para o seu alcance.
Devido a escassez de materiais que pudessem oferecer orientações sobre como
proceder nesta situação tão específica, fez-se necessária a elaboração de maneiras que
permitissem que o aluno compreendesse os assuntos abordados nas disciplinas, conforme será
exposto nas próximas linhas.
Eis a primeira solução adotada: transcrever apenas as informações mais importantes,
para que seja mais fácil sua interpretação. Muitas das informações de uma partitura,
dependendo do objetivo principal que se tem ao utilizá-las, podem ser omitidas. A leitura de
partituras no curso de licenciatura em boa parte das vezes é utilizada com o objetivo de trazer
exemplos dentro do assunto que se está abordando, sem necessidade de realizar sua execução
plena através de um instrumento ou canto. Uma partitura escrita para diversos instrumentos
oferece ao aluno cego no início de seus estudos grande dificuldade para se nortear na página.
Mas se o conhecimento necessário pode ser obtido com a melodia de apenas um instrumento,
porque não oferecer uma partitura com apenas essa informação? É compreensível que no
curso superior o corpo discente veja a oportunidade de oferecer aos alunos uma experiência
completa de apreciação e leitura de grandes obras. Entretanto, para beneficiar o aluno que
27
ainda não dispõe de conhecimentos que o permitam esta apreciação plena, ao que se refere a
parte escrita, transcrever a partitura utilizando apenas uma voz, por exemplo, é uma solução
eficaz. Não devemos pensar nisso como algo que desmerece a música ou o Braille, assim
como a capacidade dos alunos. Pelo contrário, nesta situação em que o aprendizado do aluno
está em jogo suas dificuldades devem ser levadas em consideração. Por este motivo, foram
produzidos materiais simplificados para o aluno, considerando os objetivos que se tinha. Em
certos casos, alguns elementos eram omitidos para seu melhor entendimento, conforme no
exemplo a seguir.
Na disciplina Linguagem e Estruturação Musical II foi abordado o assunto cadências.
No material referente ao assunto, o exemplo associado à “Cadência Machaut” foi um trecho
da obra “Kirie” da “Messe de Nostre Dame”. É uma partitura para quatro vozes, e a parte de
maior interesse do exemplo era o trecho final de sua primeira frase. Porém, a leitura de uma
partitura para vocal demanda conhecimento de regras específicas, principalmente pelo fato de
que é necessário relacionar sílabas às notas musicais, e Gessé ainda não tinha domínio. Como
a letra não era de total importância para o objetivo que se tinha com o exemplo, mas sim os
movimentos das notas na parte final do trecho, ela foi omitida, e o aluno pôde acompanhar
com mais facilidade. Com um elemento a menos para interpretar em sua leitura, o aluno
absorveu rapidamente a informação principal. As demais informações eram passadas de
forma verbal e através da escuta do trecho musical – que é um recurso essencial para aquele
que não dispõe da visão. Em alguns outros casos Danilo Guanais, professor da disciplina,
orientou a transcrever apenas a voz considerada principal dos trechos utilizados, para uma
leitura ainda mais rápida, se fosse o suficiente para alcançar o objetivo, possibilitando que o
aluno acompanhasse o desenvolvimento do assunto. Desta forma, o aluno pôde acompanhar o
ritmo de leitura dos demais alunos da turma, e a leitura continuou sendo eficaz em oferecer
informações importantes sobre os trechos que eram ouvidos.
A mesma estratégia foi utilizada na transcrição de livros didáticos de teoria musical.
Se faz pouco efetivo o aprendizado de teoria para cegos regido por livros teóricos em tinta.
Isto porque as representações de alguns elementos se fazem bastante diferentes de uma grafia
para outra. Por exemplo: Determinado livro de teoria musical, em seu primeiro capítulo, pode
tratar sobre o pentagrama, informando que se constitui de cinco linhas horizontais paralelas, e
que são enumeradas de baixo para cima como linhas 1 a 5. Se estas informações forem
transcritas fielmente, nada deste texto fará sentido quando se comparado aos respectivos
exemplos gráficos, porque não há pentagrama na MB. Sendo assim, se prezarmos pela
fidelidade total aos documentos originais – que é um padrão quando se fala em transcrição de
28
documentos - capítulos inteiros de livros não terão utilidade, tendo em vista que a intenção
dentro da disciplina é que o DV compreenda o conteúdo prioritariamente em sua linguagem
primária, e não sua representação em tinta.
Mesmo considerando que a teoria para um aluno cego deve ser aplicada com uma
abordagem dos assuntos diferente, pelos motivos mencionados anteriormente, a maior parte
do público do curso era formada por alunos videntes, então o mais coerente a se fazer foi
adaptações dos livros. Foram criados materiais baseados em cada conteúdo que possuísse
elementos que não fizessem sentido em sua tradução literal, que tiveram abordagens mais
adequadas às regras da musicografia. Cada assunto possuiu sua própria versão em Braille, e
tudo foi elaborado juntamente com os professores das disciplinas, para evitar perda dos
objetivos ou qualquer outra falha no processo. O material da disciplina “Harmonia funcional”,
por exemplo, exibia uma série de problemas desse tipo. Além de utilizar com muita
frequência elementos que Gessé ainda não dominava (Como por exemplo formação de
acordes, que são notas tocadas simultaneamente. Aprender sua representação em braille
requer investimento em leitura e principalmente de prática.) e outros que tinham
representações muito diferente no Braille, nos espaços onde deveriam estar explicações e
exemplos haviam linhas para que o aluno escrevesse o conteúdo conforme o professor fosse
ditando, como apresentado na imagem à seguir:
29
Figura 5 - Página 11 do livro de harmonia funcional utilizado na disciplina de mesmo título.
Fonte: BARRETO, Manoca (20--, p. 11)
Percebi que o ideal seria que os materiais já possuíssem todo o texto, para evitar que o
aluno ao tentar escrever nos espaços reservados acabasse rasurando as partes já escritas.
Alguns dos conteúdos foram elaborados com explicações alternativas, algumas vezes por
extenso, evitando a escrita musical, já que poderia ser de difícil compreensão especificamente
para o aluno. Foram impressos separados por assuntos, e ao final do semestre Gessé possuiu
cada assunto abordado na disciplina. A solução se mostrou eficiente, e o aluno se saiu muito
bem nas avaliações.
30
Na disciplina Linguagem e estruturação musical o professor Danilo propôs uma
solução em que obteve êxito ao tratar das regras de construções de acordes. Na escrita em
tinta as notas são escritas empilhadas, e o Braille, apesar de ter sua representação ser
horizontal, se baseia nesta disposição. Como Gessé não tinha o conhecimento das regras para
acordes em Braille foi proposto uma forma alternativa, para que pudesse alcançar os
conhecimentos teóricos rapidamente. O professor propôs que escrevesse uma nota sobre a
outra utilizando a reglete, já que a ferramenta permite a escrita de quatro linhas. Pensando em
colunas, é possível escrever vários acordes de quatro notas, grafadas através de suas
respectivas representações em cifras. Eventualmente era necessário gravar mais de um
caractere para representar informações adicionais das notas, mas bastava que o aluno
aumentasse o espaço entre as colunas, trabalho que se tornou mais fácil com a prática e
também com o meu auxílio. Materiais foram criados com base neste método, e se tornou
bastante útil também no assunto “condução de vozes” – uma forma de produzir acordes
combinando melodias individuais -, que seguia o mesmo conceito de notas executadas
simultaneamente. Gessé, já informado sobre a maneira como foi escrito, ao chegar no trecho
mudaria a sua forma de leitura, passando a ler coluna por coluna, de baixo para cima,
seguindo o sentido do grave para o agudo.
Figura 6 - Reglete
Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)
31
Figura 7 - Trecho de partitura para quatro vozes.
Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)
Figura 8 – Representação, em Braille, simplificada da partitura acima.
Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)
O exemplo acima mostra a representação de um trecho para quatro vozes, contendo oito
compassos. Gessé escreveria as notas, uma sobre a outra, exatamente como na partitura em
tinta. Ignorando qualquer outra informação era possível se concentrar apenas no movimento
de cada linha melódica. Quando as notas possuíssem acidentes6, estes deveriam ser escritos ao
lado esquerdo das quais se referiam, e quando não possuíssem, era necessário deixar uma cela
em branco, para evitar que as colunas ficassem irregulares, conforme pode-se perceber na
figura 8. Também é importante que o aluno compreenda bem a extensão de cada voz ou tenha
uma boa percepção, já que este modo de escrita não oferece indicação de oitavas.
O método foi muito útil, pois a medida que o professor ia ditando as notas de cada
voz, o aluno registrava rapidamente, o que não seria possível no braile já que trataria voz por
voz. Foi da mesma forma eficiente nos momentos de composição de Gessé, ainda que não
soubesse representar de forma escrita em Braille, mas pensando em sua utilização prática.
6 Acidente - Símbolo utilizado para modificar a altura de uma nota.
32
4.3 MATERIAIS PARA LEITORES DE TELA
Algumas vezes o aluno preferia receber o material para estudar em casa através de
leitores de tela. São aplicativos para computadores que permitem que o usuário tenha uma
resposta sonora dos textos que estão na tela, através de síntese de voz. Existem diversos
softwares com este objetivo, como o NVDA, JAWS e o DOSVOZ, que foi desenvolvido no
Brasil e tem a vantagem de ser gratuito. A transcrição de materiais que seriam utilizados
nestes leitores demandava algumas adaptações. Adotei um método de escrita de conteúdo de
forma discursiva, já que seria ouvido através de uma voz de sintetizador. Assim, trechos
musicais precisavam ser descritos detalhadamente, como se o próprio professor estivesse a
explicar, elemento por elemento. Se houvesse a necessidade de descrever, por exemplo, o
início de “Asa branca”, poderia ser escrito da seguinte forma: “A música está na tonalidade de
sol maior. Inicia em anacruse de um tempo contendo as notas ‘sol’ e ‘lá’, ambas escritas em
colcheia na terceira oitava, e no compasso seguinte as notas ‘si’ e ‘ré’ escritas em semínima,
respectivamente na terceira e quarta oitava.”.
Palavras eram acrescentadas sempre que se fizessem necessárias para substituir
elementos visuais, como, por exemplo, com intenção de separar informações. Ou seja, se um
determinado texto utilizasse cores para separar as suas sentenças, era necessário criar um
título antes de cada um destes trechos. As vezes até a inversão da ordem em que algumas
informações se apresentavam poderia facilitar o entendimento do aluno. Este não era o
método primário de criação de seus materiais didáticos, já que desta forma o aluno não pratica
a leitura do Braille, mas ao certo era o que permitia que os recebesse mais rápido, pois ocorria
imediatamente por e-mail, independentemente de onde foi elaborado ou onde o destinatário
estivesse no momento do envio. Como todo o material impresso era entregue em mãos, o
aluno praticamente só adquiria durante as aulas, e algumas vezes perdia momentos em que
poderia realizar suas leituras. Um material concluído, por exemplo, no fim de semana já
poderia ser lido, mesmo não havendo expediente na universidade. Foi muito útil para
materiais extras solicitados pelo aluno para que pudesse realizar leituras prévias antes do
momento de sua utilização, que às vezes aconteceria no dia posterior. Permite também uma
leitura rápida e de fácil compreensão, já que para tal não precisa consultar seus conhecimentos
sobre sinais de representação textual.
Através da experiência com este e outros recursos que possibilitam a ampliação das
habilidades do aluno cego, foi possível perceber que ferramenta pode beneficiar mais ou
menos em determinados tipos de atividades acadêmicas. Logo, somá-los pode ser uma
33
maneira de extrair o máximo da experiência acadêmica, pois como afirma Borges (2009, pág.
100):
A tecnologia de computação em poucos anos tornou possível o rompimento
de muitas outras barreiras além da escrita e leitura textuais, aumentando não apenas
seu potencial de estudo mas sua relação com as outras pessoas, cegas ou não cegas.
34
4.4 PROCESSO DE AQUISIÇÃO DE INDEPENDÊNCIA
Nas experiências de ensino para outros alunos cegos percebi que, mesmo passando
pelo processo de reabilitação, muitos continuam muito dependentes do auxílio de outras
pessoas para a realização de várias tarefas. No projeto Esperança Viva, por exemplo, boa
parte dos alunos já havia frequentado a escola de música por um longo período, mas apenas
parte dos alunos conseguia se deslocar pelos corredores sem o auxílio dos monitores. Uma
das alunas, apesar de sua maioridade, é acompanhada por sua mãe em diversas atividades,
desde o trajeto entre sua casa e a universidade e até em algumas das apresentações do grupo.
Mesmo identificando o sentimento de cuidado, comum entre mãe e filha, percebemos que
esses comportamentos de superproteção não trazem efeitos positivos, uma vez que um
indivíduo pode desenvolver a capacidade de realizar suas atividades do dia-a-dia com toda a
autonomia. Riscos existem, principalmente considerando que ainda poucos trajetos em nossas
cidades dispõem de mecanismos de acessibilidade, mas através de estratégias visando a
adequação, estas adversidades podem ser vencidas e os indivíduos podem ter a capacidade de
ir e vir quando bem entenderem. Em seu artigo o jornal Correio Popular (2016) reforça que:
“Todo ser humano almeja ter autonomia, uma faculdade relacionada à
tomada de decisões e à realização das próprias escolhas. Da mesma forma, todo ser
humano deseja ter independência, uma outra aptidão igualmente importante, ligada
ao desempenho de tarefas sem a necessidade de auxílio.
Gessé demonstrou independência em diversos aspectos. Falando de mobilidade, por
exemplo, apesar da grande distância percorrida a pé em parte do trecho entre sua casa e a
universidade, o risco que pode oferecer o horário em que o trajeto era percorrido no retorno e
a desmotivação causada por estas dificuldades, nada disto se tornou um empecilho para que o
aluno frequentasse as aulas. Por várias vezes ficou na universidade praticamente o dia inteiro,
como uma forma de participar de atividades em turnos diferentes, tarefa essa que pode ser
bastante cansativa. Também adquiriu a capacidade de se deslocar por todo o prédio da
universidade sem a necessidade de um guia, apesar do fato de que na maioria das vezes
colegas ofereciam esta ajuda. Houve um período que venceu todos os bloqueios deixados sem
aviso prévio por motivo de reforma das calçadas que utilizava em seu percurso para a
universidade. Pedras e areia não permitiam a passagem de qualquer pessoa, e Gessé foi
obrigado a realizar um desvio de seu trajeto, passando pela rua. Nesse aspecto não houve, em
meu ponto de vista, nenhuma situação que o impedisse de realizar suas atividades, até mesmo
pelo fato de que o aluno sempre buscava enfrentar qualquer tipo de situação adversa.
35
Apesar de a mobilidade ter importância de destaque no processo de reabilitação, e ser
de extrema importância para o aluno cego dentro da universidade, a independência na
realização de pesquisas e produções acadêmicas representam também uma qualidade
essencial. Mesmo possuindo à disposição em seu notebook aplicativos que ofereciam
autonomia nestas atividades, e a habilidade no manuseio, Gessé demonstrava grandes
dificuldades de realiza-las sozinho. É natural que um aluno que cursou boa parte do ensino
fundamental em supletivos sinta dificuldades nesta nova etapa, pois como afirmam Nervo e
Ferreira (2015, p. 33), “Sabe-se que o aluno sente um imenso impacto da transição do ensino
médio para o ensino superior, o ritmo, as regras e métodos rigorosos, a prática da leitura,
reflexão [...]”. Por este motivo recebeu orientações, como um tipo de reforço, sobre como
proceder em diversos tipos de trabalhos como fichamentos, seminários, e etc. Havia situações
em que, mesmo após instruções dos professores acerca das atividades, Gessé continuava com
dúvidas, e solicitava minhas orientações.
Suas maiores dificuldades identificadas foram em trabalhos onde era necessária
produção textual, mesmo que totalmente baseadas em outros textos, como resumos. Como
monitor, uma de minhas funções era revisar suas produções antes de entrega-las aos
professores, e realizar pequenas correções de erros que passavam despercebidos ao aluno. No
decorrer desta atividade percebi em seus textos falhas de coesão, e algumas dificuldade na
construção das frases. Era como se no final da frase já não se lembrasse do que tinha escrito
no início, e esta falta de correlação deixava seu texto algumas vezes sem sentido. Para ajudá-
lo a aprimorar suas capacidades de criação textual de forma prática, propus feedbacks após
cada correção. Comentava os pontos positivos e negativos de cada texto, segundo noções que
adquiri quando cursei, alguns anos atrás, disciplinas do curso de línguas – Português e Inglês.
Juntamente com a indicação dos pontos onde Gessé não se saiu bem, ensinava opções de
abordagem, para que aplicasse em sua próxima experiência. Sobre esta dificuldade na
elaboração das frases, pedi que apenas falasse em voz alta tudo aquilo que queria expressar, e
não me detive a noções gramaticais, já que muito aprendemos apenas com a leitura das obras
que são propostas em cada disciplina. Com o passar do tempo pude notar evolução do aluno,
que gradativamente compreendia seus erros e realizava produções cada vez melhores. Os
textos começaram a se tornar mais extensos por riqueza de informações.
Apesar das habilidades adquiridas de pesquisa e elaboração de conteúdo, nas situações
de trabalho em grupo Gessé apresentava falta de iniciativa para elaborar sua contribuição. Em
nossos trabalhos em grupo procurei sempre propor com antecedência separação de funções ou
conteúdo (no caso de seminários). O fazia parte por preferir realizar minhas atividades
36
acadêmicas com antecedência, e parte para que fosse possível escolher o assunto do
monitorado também com antecedência, permitindo que tivesse bastante tempo para elaborar
sua parte. Mas com o passar do tempo Gessé ficou dependente dessa ação, e percebi que desta
forma não estava permitindo que adquirisse autonomia em suas experiências. O mesmo não
realizava a atividade até que se fosse orientado sobre o que poderia ser feito. Entendi que era
o momento de permitir que desenvolvesse nele a proatividade. Ao romper com esta prática,
por muitas vezes o aluno questionava sobre sua parte no trabalho, como seria feito ou
apresentado, e minhas respostas eram sempre voltadas à compreensão de que possuía a
mesma responsabilidade que os demais sobre a execução do trabalho. Discerni que deveria
deixa-lo realizar com autonomia todos os processos que diziam respeito a sua parte nos
trabalhos, mas isto com o cuidado de que continuasse recebendo assistência em tudo o que
não poderia fazer sem ajuda. Inicialmente tive dúvidas quanto aos limites desta prática, para
achar o ponto ideal em oferecer apenas o suporte necessário, nem mais do que o aluno
necessita, levando em conta inclusive das habilidades que poderia desenvolver, e nem menos,
evitando que o aluno ficasse sem condições de realizar atividades ou não possuísse algum dos
conteúdos ministrados na disciplina.
Em determinada altura de sua experiência acadêmica, observei que o aluno já poderia
realizar diversas ações como pouca ou total interferência minha. Em cada atividade deveria
captar todas as orientações dadas pelo professor, como qualquer outro aluno, anotar se
achasse necessário e tirar suas dúvidas neste primeiro momento. Em seguida, deveria realizar
suas próprias pesquisas, coletar conteúdo das fontes, já que possuía ferramentas para tal, seja
pela internet ou utilizando a biblioteca. Caso algum dos materiais de sua pesquisa necessitasse
de uma transcrição, o faria, mas caso não, Gessé prosseguiria ainda sem interferência. Por
fim, o mesmo elaboraria o conteúdo conforme proposto pela atividade e no, caso dos
seminários, forneceria a parte textual que seria acrescentada aos slides para o
acompanhamento dos alunos videntes. Sempre que necessário poderia tirar dúvidas, já que
esta situação de cooperação mútua é comum e importante entre alunos, e nossa relação
abrangia dois tipos de relacionamento: O de monitor-monitorado e o de colegas de curso.
Além do mais, precisar da ajuda dos outros não significa dependência, desde que uma pessoa
não realize uma tarefa no lugar de outra, mas “com”. Procurei achar a porção ideal de
assistência para que o aluno percebesse todo o potencial de independência que tem. Esta ação
considero de extrema importância já que as atividades de pesquisa e produção dentro do
espaço acadêmico visam preparar os alunos para o momento em que exercerão suas
profissões. No caso de um aluno cego no curso de licenciatura esta meta se potencializa pelo
37
fato de que é muito provável que seja o único responsável pelas salas de aula em que
lecionará, e precisará estar apto a usar cada ferramenta existente para aplicar uma aula de
qualidade de forma independente. Esta autonomia é importante desde o momento de
planejamento de aulas. Demonstrando a importância deste aspecto para o indivíduo que está
“aprendendo a aprender”, baseado na visão educacional de Paulo Freire, Augusto (2007, pág.
25) afirma: “[...] entendemos que a consciência e sua autonomia é base influenciadora dessa
independência, e sua autonomia formal é a alfabetização em moldes freirianos [...]”.
38
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o exercício da monitoria tive o conhecimento da luta que a pessoa com deficiência
visual encara no seu dia-a-dia. Esta luta ocorre desde o levantar, ao sair da zona de conforto
de seu lar para trilhar caminhos difíceis, muitas vezes sozinho. Passei verdadeiramente a
entender suas dificuldades quando pude presenciar situações às quais suas necessidades foram
ignoradas em sala de aula. Não é algo que se espera que aconteça quando se trata de um
ambiente de ensino superior, principalmente quando a instituição tem presente em seus
discursos a questão da pluralidade. É de extrema importância que nesse meio o aluno possa
receber todo o apoio necessário para que saiba de sua importância na sociedade. É só com a
presença destes alunos que o corpo docente perceberá da urgência da necessidade de uma
capacitação, e isto têm sido motivo de progressos nos sistemas de ensino. Para o aluno, esta
nova atitude o afastará de sentimentos de invalidez e, além da aquisição do tão almejado
conhecimento, novos limites podem ser rompidos em sua trajetória rumo a profissionalização.
Desde que todos os envolvidos com o aprendizado do aluno cego se abram para isso,
com criatividade não existem barreiras neste ensino. É preciso, diante das dificuldades,
repensar os processos e se necessário adotar novas didáticas, pesquisar novos recursos,
produzir novos materiais, etc. É importante que o corpo docente conheça ao menos um pouco
do funcionamento do Braille, pois isto vai facilitar o ensino, principalmente na utilização de
materiais didáticos. Quando a universidade possui um laboratório de acessibilidade não se faz
necessário que o professor realize as transcrições, mas o conhecimento permitirá que o aluno
venha a adquirir materiais mais eficazes em proporcionar o aprendizado.
A musicografia Braille é um recurso eficaz e essencial para o músico cego. E a
universidade é um local que pode possibilitar a expansão deste conhecimento, da mesma
forma que um aluno vidente tende a evoluir no aprendizado da teoria musical e leitura em
tinta. Mas para conhecê-la em profundidade é necessário que o músico absorva uma grande
quantidade de conhecimento e vivência musical, o que demanda tempo em sua prática. No
curso de licenciatura, em decorrência dos prazos estipulados dentro do período letivo, o aluno
com deficiência visual nem sempre terá tempo de obter determinados conhecimentos do
Braille que são pré-requisitos para a compreensão dos assuntos abordados nas disciplinas. Por
esse motivo, a aquisição do conhecimento teórico foi priorizada em relação às suas
representações no Braille, e desta forma vimos o aluno aprender cada assunto abordado.
Consideramos essa metodologia como eficaz, já que o objetivo de cada uma das disciplinas
foi alcançado. Paralelamente o aluno poderá complementar o conhecimento aprendendo suas
39
representações em Braille e, provavelmente, ocorrerá de forma mais rápida. Mas até lá os
materiais simplificados permitiram que o aluno acompanhasse as aulas no mesmo ritmo que
os alunos videntes. Isso também se deve as utilizações não convencionais dos recursos. Em
uma de minhas exposições acerca do trabalho desenvolvido fui questionado quanto a
utilização destas práticas, e foi quando ouvi pela primeira vez o termo “desbraillizar”. Mas é
importante frisar que nenhuma das propostas foi feita com intenção de descaracterizar o
Braille, mas justamente pelas barreiras que sua complexidade havia levantado neste processo.
É importante que o músico cego aprenda a MB, mas o curso de licenciatura propõe diversos
outros conhecimentos que também precisam ser adquiridos. Concluo que são necessárias
ações externas, como ocorreu no caso do aluno em sua participação no projeto Esperança
Viva, pois o curso de licenciatura, mesmo contando com as relevantes contribuições das
disciplinas Musicografia Braille I e II, hoje ainda não é um lugar onde seja possível
desenvolver de forma profunda o Braille, também pelo fato de que os livros norteadores de
todas as outras disciplinas são baseados na aplicação da teoria em tinta.
Falando sobre a independência do aluno cego na academia, hoje, graças a toda a
tecnologia assistiva disponível, isso é possível em parte. O aluno tem a oportunidade de
realizar diversas pesquisas e confeccionar trabalhos com autonomia, e a cada prática se
tornará mais apto para tais tarefas. É necessário que tenha este espaço para que, lidando
diretamente com as dificuldades, possa superá-las e avançar neste aprendizado. Desta forma o
aluno se tornará apto a encarar a sua vida profissional pós academia, como é o caso do
monitorado deste trabalho. O mesmo assumiu imediatamente após sua conclusão uma escola
do Estado do Rio Grande do Norte, e leciona sozinho algumas turmas de alunos videntes.
Eventualmente conta com a ajuda do corpo docente da UFRN assim como o laboratório
SEMBRAIN, e toda ajuda é dada prontamente.
A caracterização desta monitoria se deu na relação com as dificuldades do aluno. Um
monitor de um aluno com DV não é apenas um transcritor, mas precisa oferecer suporte em
cada atividade, realizando diversas funções. Pude oferecer audiodescrições nas aulas, ajudas
em cada processo nos trabalhos, como na preparação de conteúdos e apresentações de
seminários. Ofereci serviços de revisor em suas produções textuais, e até auxílio psicológico
por diversas vezes, no que diz respeito à motivação e organização de sua gestão de tempo.
Tudo isto, conforme já mencionando, tendo o cuidado de deixar o espaço para que o aluno
pudesse realizar de forma autônoma todas as práticas as quais já se considerasse apto.
Concluo que se deve haver ênfase na criação de estratégias, tudo para que o aluno DV adquira
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as competências necessárias para o futuro professor, desde que, é claro, não venham a chocar
com outras práticas essenciais.
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Estaversãofoirevisadaeaprovadapelo(a)orientador(a),sendoaceite,pelaCoordenaçãodeLicenciaturaemMúsica,comoversãofinalválidapara
depósitonoRepositóriodeMonografiasdaUFRN.
____________________________DaniloCesarGuanaisdeOliveira
CoordenadordeLicenciaturaemMúsica