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677 A MEMÓRIA DE TRÊS MILITANTES DA AÇÃO POPULAR (AP) SOBRE A REPRESSÃO DESFERIDA CONTRA ELES PELOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA A SERVIÇO DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA: 1972/1974 1 CRISTIANE MEDIANEIRA ÁVILA DIAS Mestre em História-UPF E-mail: [email protected] Resumo: O artigo tem como objetivo analisar a memória dos militantes da organização de esquerda Ação Popular (AP), Nilce Azevedo Cardoso, Dilza de Santi e Antonio Ramos Gomes sobre a repressão desferida contra eles durante suas prisões no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de Porto Alegre e na sede da Operação Bandeirante (OBAN). Neste contexto, a montagem do aparelho repressivo utilizado pela ditadura civil-militar brasileira baseava- se nos pressupostos teóricos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que utilizou práticas violentas como a tortura e o desparecimento de seus opositores políticos, para criar uma cultura do medo, aplicando aquilo que foi definido como Terror de Estado (TDE). Assim, a memória destes três militantes tem importância fundamental para a reconstrução histórica do período ditatorial, marcado pela imposição de um esquecimento coletivo à população. Palavras-chave: Ação Popular (AP) - Rio Grande do Sul - Memória AÇÃO POPULAR (AP) A Ação Popular foi uma organização de esquerda formada em 1962, originada de uma ruptura entre militantes ligados aos movimentos leigos da Igreja Católica e a sua hierarquia, que não aceitava a participação deles em atividades políticas. Sendo assim, militantes oriundos da Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Operária Católica (JOC) e da Juventude Independente Católica (JIC), a partir de uma tomada de conscientização política, deixaram de lado as práticas assistencialistas para realizarem atividades junto às massas, cada vez mais integrados à vida da população mais pobre do país. Em relação ao movimento leigo: 1 Este artigo é parte de um projeto mais amplo, desenvolvido na dissertação de mestrado, junto ao Pro- grama de Pós Graduação em História (PPGH) da Universidade de Passo Fundo (UPF), e sua temática centrou-se na análise da trajetória da organização de esquerda Ação Popular (AP), no Rio Grande do Sul, de 1962 até 1972.

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A MEMÓRIA DE TRÊS MILITANTES DA AÇÃO POPULAR (AP) SOBRE A REPRESSÃO DESFERIDA CONTRA ELES PELOS ÓRGÃOS DE

SEGURANÇA A SERVIÇO DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA: 1972/19741

Cristiane Medianeira Ávila dias

Mestre em História-UPFE-mail: [email protected]

Resumo: O artigo tem como objetivo analisar a memória dos militantes da organização de esquerda Ação Popular (AP), Nilce Azevedo Cardoso, Dilza de Santi e Antonio Ramos Gomes sobre a repressão desferida contra eles durante suas prisões no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de Porto Alegre e na sede da Operação Bandeirante (OBAN). Neste contexto, a montagem do aparelho repressivo utilizado pela ditadura civil-militar brasileira baseava-se nos pressupostos teóricos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que utilizou práticas violentas como a tortura e o desparecimento de seus opositores políticos, para criar uma cultura do medo, aplicando aquilo que foi definido como Terror de Estado (TDE). Assim, a memória destes três militantes tem importância fundamental para a reconstrução histórica do período ditatorial, marcado pela imposição de um esquecimento coletivo à população.

Palavras-chave: Ação Popular (AP) - Rio Grande do Sul - Memória

AÇÃO POPULAR (AP)

A Ação Popular foi uma organização de esquerda formada em 1962, originada de uma ruptura entre militantes ligados aos movimentos leigos da Igreja Católica e a sua hierarquia, que não aceitava a participação deles em atividades políticas. Sendo assim, militantes oriundos da Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Operária Católica (JOC) e da Juventude Independente Católica (JIC), a partir de uma tomada de conscientização política, deixaram de lado as práticas assistencialistas para realizarem atividades junto às massas, cada vez mais integrados à vida da população mais pobre do país. Em relação ao movimento leigo:

1 ∗Este artigo é parte de um projeto mais amplo, desenvolvido na dissertação de mestrado, junto ao Pro-grama de Pós Graduação em História (PPGH) da Universidade de Passo Fundo (UPF), e sua temática centrou-se na análise da trajetória da organização de esquerda Ação Popular (AP), no Rio Grande do Sul, de 1962 até 1972.

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O movimento foi orquestrando reformas, plano de ação que dialogavam com o social, o ético, o cultural, o político, a arte, a mística. O conhecimento da realidade, a formação na ação e a metodologia “Ver-Julgar-Agir”, próprios da JOC, foram sendo incorporados pelos outros grupos e tornaram-se os eixos centrais que passaram a orientar esse apostolado leigo. Portanto, começa a ocorrer uma mudança substantiva na Ação Católica. Mais que ideias, conceitos e normas, foi-se definindo também um novo tipo de relação da Igreja com o mundo social, político, cultural e artístico (DELGADO, 2007:102).

Nesse período, os movimentos leigos se tornaram mais fortes politicamente, a partir da nomeação de João XXII, o qual foi considerado um progressista. Para o Papa (1958), com a realização do Concílio Vaticano II (1962-1965), a promulgação da encíclica de “Mater et magistra” (1961), por meio da qual a Igreja reconheceu o seu papel como agente fundamental nas mudanças sociais e também da encíclica “Pacem in Terris” (1963), que reafirmou as diretrizes da encíclica anterior, sendo destacada a importância dos movimentos leigos nesta nova orientação adotada pela Igreja.Os movimentos também se cruzaram com outro processo, em nível de América Latina, no começo da década de 1960: a Revolução Cubana (1959), cuja união fomentou o clima político que originou, mais tarde, o chamado “cristianismo de libertação” e marcou o início de “um ciclo de lutas sociais, guerrilhas e insurreições” que atingiu toda a região, sendo que suas consequências ainda podiam ser vistas até a década de 1990 (LOWY, 2007:306).

No Brasil, os movimentos leigos possuíam algumas características e práticas políticas que os diferenciavam de outros grupos que atuavam junto aos países latino-americanos, pois enquanto esses tinham ligação com a Ação Católica Espanhola, os brasileiros estavam vinculados à Ação Católica Francesa, os quais receberam a maior parte de suas referências teóricas. Destaca-se a influência do filósofo cristão Jacques Maritain, que através de uma revisão das ideias de Thomás de Aquino, fundou uma escola de pensamento denominada de “neotomismo”. Esta doutrina defendia a ideia de que os cristãos deveriam adotar o socialismo, mas dentro de uma perspectiva diferenciada, personalista, voltada para o desenvolvimento do indivíduo, que possibilitaria o exercício de sua autonomia e através dela, de sua liberdade:

Ora, de que liberdade se pode tratar antes de tudo para uma civilização cristã? Não, segundo a concepção liberal, da simples liberdade da escolha do indivíduo (não é esta mais que o começo ou a raiz da liberdade); e não, segundo a concepção imperialista ou ditatorial da liberdade de grandeza e de poder do Estado; mas sim, antes de tudo da liberdade de autonomia das pessoas, que se confunde com sua perfeição espiritual. Assim, ao tempo em que se abaixa como vimos o centro de unificação da ordem temporal e política, mas se elevam acima desta ordem a dignidade e a liberdade espiritual da pessoa (MARITAIN, 1965:141).

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A aproximação entre os movimentos leigos e as ideias defendidas pelo neotomismo fez com que a AP adotasse em 1962, ano de sua fundação, uma doutrina própria denominada de socialismo humanista2, resultado do esforço realizado pelos militantes da organização em elaborar um pensamento, uma reflexão a respeito do marxismo, a partir de uma abordagem dialética, presente no materialismo histórico. A opção pelo socialismo humanista fez com que os militantes voltassem suas atividades políticas para as massas, participando, por exemplo, do processo de alfabetização desenvolvido em parceria com o governo João Goulart, que ficou conhecido como Movimento de Educação de Base (MEB).

Além disso, parte da organização apoiava, mesmo que dentro de uma perspectiva crítica, as Reformas de Base3, pois entendia que embora o projeto não fosse promover mudanças estruturais na sociedade, por ter um caráter reformista e não revolucionário, seria um passo inicial para as transformações sociais que deveriam ocorrer no país. Além do MEB, a AP participou da campanha pela volta do presidencialismo, que ocorreu em 1963 e do Comício na Central do Brasil, ocasião em que várias organizações de esquerda se uniram para apoiar o presidente no dia 13 de março de 1964. As atividades políticas desenvolvidas pela AP junto às massas foram interrompidas com o golpe civil-militar, desferido contra o presidente João Goulart e as instituições democráticas brasileiras em abril de 1964. Na época, houve a coesão de forças civis e militares com a finalidade de organizar um golpe que garantisse o poder desses grupos enquanto bloco hegemônico, a partir das ações realizadas pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPÊS) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). O complexo IPÊS/IBAD forneceu apoio material e fomentou o clima de agitação que propiciou o golpe, que não foi apenas um evento político, mas um projeto amplo, que foi criado com o objetivo de acabar com as contradições existentes na sociedade e no governo brasileiro, reunindo vários setores militares e civis em torno de um objetivo comum, sendo que organizaram a tomada do aparelho do estado e estabeleceram uma nova relação de forças

2 Socialismo humanista: Um movimento político-ideológico, fundamentado numa ideologia própria, numa visão do homem e do universo que sendo universal aspira a ser um ponto de convergência e união de toda a força para trabalhar o desenvolvimento integral do homem; um movimento revolucionário que se propõe a formar quadros que possam participar de uma transformação radical da estrutura da sociedade brasileira em sua passagem do capitalismo ao socialismo (SALES, 2007:28). 3 Reformas de Base compreendiam as seguintes mudanças; a reforma agrária, para distribuir a terra, com o objetivo de criar uma nova classe de pequenos proprietários no campo. A reforma urbana, para planejar e regular o crescimento das cidades. A reforma bancária, com o objetivo de criar um sistema voltado para o financiamento das prioridades nacionais. A reforma tributária, deslocando a ênfase da arrecadação para os impostos diretos, sobretudo o imposto de renda progressivo. A reforma eleitoral, liberando o voto para os analfabetos, que então constituíam quase metade da população adulta do país. A reforma do estatuto do capital estrangeiro, para disciplinar e regular os investimentos estrangeiros no país e as remessas de lucro para o exterior. A reforma universitária, para que o ensino e a pesquisa se voltassem para o atendimento das necessidades sociais e nacionais (REIS FILHO, 2004: 32).

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políticas no poder (DREIFUSS, 2008:419). Logo após o golpe, a AP passou por uma fase conturbada, pois sofreu os efeitos do

esvaziamento no seu quadro de adeptos, visto que muitos foram presos e outros optaram por deixar suas atividades, os quais temeram os efeitos da repressão efetuada pelos órgãos de segurança ditatoriais contra a organização. Os militantes que permaneceram no grupo deram início a uma série de discussões internas, que envolviam questões relacionadas ao referencial teórico a ser adotado por eles para estruturar suas ações frente à nova conjuntura nacional, que proibia a realização de reuniões, debates, palestras ou qualquer outra manifestação de caráter político. Entre as questões discutidas, estava a possibilidade da organização se estruturar de forma semelhante ao Grupo dos Onze, trocando, no entanto, o número de onze para cinco companheiros, que permitiu uma dispersão mais rápida, caso a ação fosse descoberta pela polícia.

Nesse contexto, o plano econômico adotado pelo governo militar não foi suficiente para resolver os problemas sociais mais urgentes da população brasileira e o clima de insatisfação foi crescendo até atingir o ápice em 1968, quando organizações de esquerda como a AP e o movimento estudantil, realizaram uma série de manifestações contra a ditadura. Assim, no mês de março ocorreu um protesto contra a morte do estudante Edson Luis Souto, atingido pela polícia ao participar de um evento que reivindicava melhorias na alimentação fornecida pelo restaurante Calabouço, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em maio, ocorreram greves de trabalhadores, reivindicando melhorias salariais nas cidades de Osasco (SP) e Contagem (MG), a essas se uniu também o movimento estudantil e, em junho, realizou-se a “Passeata dos Cem Mil”, que reuniu diversos setores da sociedade em protesto contra o governo (MARTINS FILHO, 2007).

As mobilizações que ocorreram em 1968 foram utilizadas como justificativa para que os militares decretassem o Ato Institucional nº5, AI-5, em dezembro daquele ano. O AI-5 forneceu as medidas que os militares precisavam para aperfeiçoar o aparelho montado pelo Estado com a finalidade de combater a esquerda e marcou uma nova fase de enfrentamento entre a ditadura e os setores de oposição em todo o país. Esta fase correspondia ao “3º ciclo de repressão”, pois o primeiro foi atribuído ao período pós-golpe, quando as ações ditatoriais voltaram-se contra as pessoas ligadas a João Goulart; um segundo ciclo, onde o governo tratou de utilizar as medidas de exceção para excluir dos cargos eleitorais e burocráticos pessoas consideradas “inimigas” do regime. Já o “terceiro ciclo” ficou caracterizado pelo emprego da violência em larga escala: “as campanhas de busca e detenção em escala nacional estenderam-se a setores da população até então não atingidos” (ALVES, 1989:141).

O regime ditatorial brasileiro ficou marcado por suas contradições internas, pois a bandeira política utilizada pelos militares e civis que desferiram o golpe e impuseram as

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medidas de exceção que se seguiram a ele era a defesa da democracia e dos valores liberais. Esta controvérsia fez com que o governo buscasse constantemente a legitimação dos seus atos arbitrários e mantivesse algumas instituições representativas como, por exemplo, o Congresso Nacional. Tais diretrizes deixaram margens para a atuação dos grupos de esquerda, que conseguiram neste espaço de tempo realizar atividades de contestação ao regime, o que não foi possível após o AI-5, quando a única opção de contestação passou a ser a luta armada (ALVES, 1989:136).

O cenário de efervescência política vivenciado pelo Brasil durante a década de 1960 propiciou o surgimento da Ação Popular (AP) e de várias outras organizações de esquerda, como também fomentou as cisões internas pelas quais elas passaram durante sua trajetória de existência, verificadas principalmente após o golpe de 1964 e a decretação do AI-5, considerados pontos de clivagem para a atuação destes grupos no país. Em relação a AP, a perseguição aos seus militantes tornou-se mais intensa a partir do AI-5, sendo que a polícia voltou suas ações num primeiro momento para São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e conforme iam ocorrendo as prisões e a obtenção de informações dos prisioneiros, a repressão também se espalhava, atingindo o Rio Grande do Sul em 1972.

A MEMÓRIA DAS MILITANTES DA AP SOBRE A REPRESSÃO

Nilce Azevedo Cardoso iniciou sua militância política em 1964, quando se mudou do interior para cursar a faculdade de Física na Universidade de São Paulo (USP) e passou a integrar os quadros da Juventude Universitária Católica (JUC). Com o objetivo de dar continuidade as suas atividades políticas, só que dentro de uma perspectiva marxista, Nilce deixou a JUC para integrar na AP no ano 1967, tendo mantido suas atividades políticas na organização até o AI-5, quando ela e os demais militantes da organização, por medida de segurança, tiveram que partir para a clandestinidade.

Nesse período, a AP já havia adotado de maneira definitiva o maoismo e os seus militantes foram orientados a participarem da política de integração na produção, ou seja, eles deveriam ir trabalhar como operários em fábricas ou como camponeses em áreas rurais de várias regiões brasileiras. De acordo com a Direção Nacional, a maior deficiência da organização era ser formada, em sua maioria, por estudantes oriundos da classe média, que eram capazes de fazer distribuição de panfletos, participar de reuniões, manifestações e passeatas, mas não podiam formar o grupo de vanguarda habilitado a conduzir o processo revolucionário no país, pois eles não tinham acesso a produção. Na avaliação de Santana:

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O objetivo de superação dos limites de classe era posto como algo secundário no desencadeamento da integração, de maneira que, em “Integração com as massas: roteiro para uma discussão” foram colocados como aspectos fundamentais da prática o ideal de servir ao povo se integrar na vida das massas (comer, trabalhar e viver com as massas) sendo isso a base objetiva para a direção da luta de classes. Tanto que, a transformação ideológica aparece como aspecto secundário, sendo ressaltado que ela facilitaria a integração, mas não seria o fator principal (2008:58).

Em razão disso, a Direção Nacional da AP enviou Nilce em 1969 para assumir o Setor Operário no Rio Grande do Sul e ela foi trabalhar como integrada na metalúrgica Renner, na cidade de Gravataí. Além do trabalho junto às operárias, ela também era responsável pelo Setor de Serviços e fazia o contato entre a direção nacional e regional, considerado crucial para a segurança da organização e para qual ela recebeu um treinamento especial, tendo sido orientada a esquecer de determinadas informações, como o endereço da residência dos dirigentes nacionais e dos familiares com os quais ela mantinha contato. Ela também deveria ser rigorosa com o horário de permanecer no ponto, um local pré-determinado onde os militantes se encontravam para trocar informações sobre a AP e suas atividades políticas, para que estes encontros não chamassem a atenção da polícia.

O treinamento recebido por Nilce para atuar no Setor de Serviços fez com que ela adotasse a posição de permanecer calada durante o período em que esteve presa no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de Porto Alegre, no ano de 1972. A atitude de resistência adotada por Nilce irritou os policiais, que na tentativa de “quebrar” suas forças e obterem as informações desejadas, aumentaram a violência dos suplícios aplicados a ela. A tortura sofrida com as agressões físicas e os choques foram tão intensos, que ela entrou em coma, tendo permanecido por oito dias lutando por sua vida no hospital militar, para onde havia sido transferida.

Quando retornou a delegacia, Nilce estava muito magra, cheia de hematomas e extremamente debilitada e coube aos outros militantes da AP, que também estavam presos na delegacia, a tarefa de convencê-la que grande parte da organização já havia sido presa e que ela poderia prestar alguma informação à polícia, pois se permanecesse calada, estaria correndo o risco de ser novamente torturada. A regra de conduta adotada pelas organizações de esquerda era de que o militante, ao ser preso, deveria permanecer durante 24 ou 48 horas sem fornecer informações à polícia, para que o restante da organização tivesse tempo de fugir, mas depois desse prazo, ele poderia fornecer dados para os policiais. No entanto, Nilce resolveu que não ia falar nada sobre as suas atividades na AP e não iria entregar o nome dos seus companheiros de organização, e essa foi a posição que ela manteve durante todo o tempo em que esteve presa.

O horror das torturas sofridas por Nilce na delegacia do DOPS afetou a sua saúde física e mental e ela passou a sofrer amnésia. A recuperação de sua memória teve início

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quando ela participou em Buenos Aires de um trabalho com os filhos de pessoas que haviam morrido ou desaparecido no período em que vigorou a ditadura civil-militar na Argentina. Durante a realização do curso, ela percebeu que não lembrava parte de sua vida e na tentativa de buscar as lembranças perdidas, Nilce passou a fazer terapia e estudar psicopedagogia, profissão que adotou mais tarde e em que atua até hoje na cidade de Porto Alegre. Ela também destacou o apoio que recebeu da família e dos amigos durante o tratamento, que foram fundamentais para a recuperação das lembranças do seu passado, que haviam sido perdidas durante a tortura.

A prisão do militante Antonio Ramos Gomes, dirigente regional da AP, também ocorreu em abril de 1972, fase em que a AP se empenhava na confecção e distribuição de panfletos que convocavam os trabalhadores a participarem das manifestações de oposição à ditadura, que seriam realizadas durante os eventos de comemoração do dia 1º de maio no Rio Grande do Sul. Antonio salientou que no dia de sua prisão, ele estranhou o fato da militante Nilce não ter comparecido ao ponto para acertarem os detalhes das ações previstas para o mês de maio e se dirigiu ao apartamento dela, onde foi preso pelos policiais que lá estavam. Ao realizar essa atividade, ele infringiu uma das principais regras de segurança da organização, que orientava os militantes a jamais irem à residência de um companheiro, caso ele não comparecesse ao local combinado.

Durante a entrevista, o militante também chamou a atenção para o fato de que a aplicação de violência física e psicológica contra os presos políticos era uma prática rotineira na delegacia do DOPS de Porto Alegre. Assim, durante o período em que esteve preso, ele passou por várias sessões de tortura, nas quais foi agredido pelos policiais com socos e pontapés e colocado em um aparelho denominado de “barra”. A pessoa que comandava as sessões de tortura no local era o próprio delegado do DOPS, Pedro Seelig, definido por Antonio como o “torturador-mor”, que contava com o apoio de outros policiais, considerados seus braços direitos, Nilo Hervelha e Gusmão Ferro, que eram os dois principais torturadores.

De acordo com as observações do projeto “Brasil Nunca Mais”, a finalidade da tortura é realmente a de fazer uma espécie de ruptura entre o corpo e a mente, provocando a instabilidade do ser humano que está sofrendo os suplícios e, a partir disso, este começa a falar sobre aquilo que está sendo questionado pelo torturador, pois esse é modelo básico no qual ele se apoia. É como se o corpo durante a tortura, se voltasse contra a pessoa que está sendo torturada, exigindo que ela forneça as informações pelas quais está sendo supliciado, causando nela um estado de horror: “A tortura nos impõe a alienação total de nosso próprio corpo, tornando-o estrangeiro a nós. (...) O projeto da tortura implica numa negação total e totalitária da pessoa, enquanto ser encarnado” (ARNS, 1985:7).

A trajetória política da militante Dilza de Santi iniciou em Uruguaiana, onde cursou

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o ensino médio na Escola Nossa Senhora do Horto, entrando em contato com integrantes do meio eclesiástico que faziam parte do clero progressista, cuja influência motivou ela a ingressar no Grêmio Estudantil, na JEC e na União Gaúcha de Estudantes Secundaristas (UGES). Nesse período, ela participou da aplicação do método de alfabetização Paulo Freire, trabalhando principalmente com a comunidade de pescadores da cidade. Após o de 1964, Dilza mudou-se para Porto Alegre, indo mais tarde cursar a faculdade de Filosofia na UFRGS, onde deu continuidade as suas ações políticas. Nesse período, ela ocupou o cargo de vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE), organizando junto com outros militantes uma série de protestos contra a ditadura até a promulgação do AI-5, que inviabilizou qualquer manifestação de oposição ao regime.4

Com o aumento da repressão contra a esquerda e a opção definitiva da AP pelo maoísmo, Dilza foi participar do movimento de integração na produção junto à região do ABC paulista em 1969, mas em razão de sua idade (ele tinha apenas 19 anos) e da falta de qualificação profissional, ela não conseguiu emprego nas metalúrgicas e teve que ir trabalhar na feira popular de São Caetano. Neste período ela também foi morar na vila “Califórnia”, onde enfrentou, além dos problemas de infraestrutura do local, dificuldades na convivência com os moradores locais, pelo fato de que ela era uma garota jovem, bonita e culta que vivia sozinha numa vila operária, que atraía a atenção dos homens e irritava as mulheres da comunidade, que não aceitavam a presença dela naquele local.

No turno da noite, os militantes integrados se encontravam para realizar reuniões, panfletagens, discussões e organizar greves, em conjunto com o movimento operário e outras organizações de esquerda, que também atuavam nestes locais. Para não chamar a atenção da polícia, a maior parte das reuniões acontecia em igrejas cujos padres integravam o quadro de simpatizantes da AP. No entanto, em outubro de 1969, após um destes encontros, todos os militantes do ABC foram presos pela polícia, exceto Dilza e outro companheiro, que desconfiaram da ação e tomaram um caminho diferenciado dos demais.

Depois desse episódio, Dilza se afastou da vila operária e foi trabalhar numa empresa de planejamento em São Paulo, cujo dono empregava perseguidos políticos. Neste local, ela conheceu o seu futuro marido, Mário, que também participava do movimento de resistência à ditadura, integrando uma rede que auxiliava pessoas em situação de risco a sair do país pela região de fronteira do Rio Grande do Sul, assim como fornecia auxílio às famílias de pessoas atingidas pela repressão ditatorial, que ficaram em dificuldades financeiras depois da prisão ou do exílio de parte de seus integrantes.

No mês de dezembro de 1974, período em que a AP já havia sido praticamente desestruturada pela repressão, Dilza foi presa junto com o marido e o filho, que na época

4 Depoimento concedido à autora do artigo por Dilza de Santi. Porto Alegre, 14 de outubro de 2011.

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estava com apenas 16 dias de vida e encaminhados até a sede da Operação Bandeirantes (OBAN), na Rua Tutóia, em São Paulo. Durante o interrogatório, os agentes mostraram para ela uma espécie de livro montado pelo Serviço de Inteligência da Marinha (CENIMAR), que continha fotos e informações detalhadas a respeito dos militantes da organização, sendo que ela era citada como líder estudantil e dirigente regional da AP no Rio Grande do Sul. Além disso, os policiais também tinham informações a respeito das atividades de apoio às famílias dos presos políticos, realizadas pelo casal.

O marido de Dilza era jornalista e logo depois deles terem ido para a OBAN, a irmã dela, que morava próximo a sua residência, entrou em contato com a imprensa para informar a respeito da prisão, o que gerou uma mobilização na Revista Veja, no Jornal “O Estadão” e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em favor da liberação do casal, que aconteceu um dia depois da detenção. Entretanto, a repressão deixou marcas profundas na vida de Dilza, já que ela passou o dia na prisão sem ver o seu filho, que foi separado da família e durante esse período o tratamento médico que ele fazia foi interrompido, o que ocasionou problemas de saúde na criança. Ao sair da prisão da OBAN a criança foi levada para o hospital, pois a interrupção nos medicamentos e a falta de acompanhamento agravaram o seu problema de saúde e ele teve que tomar medicação até os sete anos de idade.

OS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

A criação da Operação Bandeirante, em 1969, resultou do aperfeiçoamento do aparelho repressivo, que por ordem do general Garrastazú Médici mais tarde foi integrada aos demais órgãos do governo militar com a denominação de Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército, ficando conhecido pelas siglas DOI/CODI II. O objetivo da OBAN era reunir todos os esforços realizados por vários órgãos no combate as atividades das organizações de esquerda e, no estado de São Paulo, passou a ser comandado pelo major do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. A fundação da OBAN resultou do seguinte contexto:

A ineficiência dos DEOPS e a dispersão das Forças Armadas fizeram surgir a ideia de uma entidade centralizadora de homens materiais na luta contra-revolucionária. Uma vez que em São Paulo mais se multiplicavam as ações da guerrilha urbana, fundou-se ali, a 29 de junho de 1969, a Operação Bandeirante (OBAN) (...). Os quadros da OBAN foram preenchidos por oficiais e subalternos das três Armas e da Força Pública de São Paulo, bem como por delegados, investigadores, e pessoal burocrático da Secretaria da Segurança (...). Uma vez que não constava de nenhum organograma do serviço público, a OBAN tinha caráter extralegal. O êxito alcançado pela experiência-piloto de São Paulo venceu as objeções dos oficiais que julgava indevida ou

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inconveniente o envolvimento institucional do Exército em missões policiais (GORENDER, 1998:171).

Gaspari também defendeu a versão de que a montagem e o aperfeiçoamento do aparelho repressivo governamental, a instalação da Operação Bandeirante e a utilização da tortura contra os presos políticos faziam parte das medidas políticas de Estado adotadas pela ditadura civil-militar. Dessa forma, as atividades arbitrárias realizadas pelos agentes da polícia e também por integrantes das Forças Armadas eram conhecidas dos altos escalões do governo militar, que justificaram a utilização da tortura como uma “arma” necessária à obtenção de informações rápidas sobre as organizações de esquerda, constituindo-se um método eficiente de combate à luta armada. Contudo, a prática da tortura deixou marcas profundas na esquerda, na sociedade brasileira e também nas Forças Armadas, pois, “quando tortura e ditadura se juntam, todos os cidadãos perdem uma parte de suas prerrogativas e, no porão, uma parte dos cidadãos perde todas as suas garantias ”(2002:27).

A montagem do aparelho repressivo ditatorial vinculou-se a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), uma espécie de “esqueleto teórico” que baseava suas prerrogativas na Guerra Fria e na existência de um conflito permanente entre o mundo comunista da União Soviética, em oposição ao mundo capitalista dos Estados Unidos. A teoria rejeitava a ideia de que a sociedade estava dividida em classes sociais e que existiam conflitos entre elas, pois isso entrava em choque com a “noção de unidade política” da doutrina. A pessoa que não se enquadrava nas prerrogativas da DSN era denominada de “inimigo interno”, conceito que permitia a inclusão permanente de “indivíduos alvos” no esquema repressivo ditatorial, além dos guerrilheiros, que participaram ativamente da luta armada, pessoas que de alguma forma eram identificadas como “comunistas” e possíveis inimigos, entre os quais estavam membros de partidos políticos, sindicalistas, estudantes, padres progressistas, artistas e simpatizantes de movimentos de contestação (PADRÓS, 2005:186).

A aplicação dessas medidas propiciou, conforme os aparelhos repressivos atuaram contra os grupos de oposição, o surgimento de uma “cultura do medo”, que enquadrava a população dentro de um determinando padrão de comportamento, que não permitia espaço para a contestação. Percebeu-se que nas ditaduras de Segurança Nacional, tanto no Brasil como nos demais países latino-americanos, o Estado, ao invés de garantir a segurança da população, utilizou seu aparato institucional para coibir as ações dos grupos que se opunham aos interesses dos governos militares que tinha por finalidade causar o imobilismo popular. Baseados nas diretrizes da DSN, que considerou o contexto particular de cada um desses países, o aparelho estatal não teve nenhuma preocupação em extrapolar os limites coercitivos constitucionais, que desencadeou práticas e as ações que acabaram

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configurando em um sistema de Terror de Estado (TDE):

Portanto, o Estado, que deveria ser uma estrutura de mediação e de proteção da sociedade, agindo como fiador da segurança das pessoas, foi utilizado de forma geral, em toda a região, como um mecanismo que devia enfrentar e derrotar o “inimigo interno”. Sob as diretrizes gerais resultantes da interpretação particular que a DSN recebeu em cada país e através da guerra contra-insurgente, o aparato estatal extrapolou os limites coercitivos constitucionais, desencadeando práticas e ações que acabaram configurando, um sistema de Terror de Estado (PADRÓS, 2005:59).

Nessa perspectiva, todo o réu preso pelos órgãos de segurança ditatoriais no Brasil, até que se provasse o contrário, era culpado de “subversão”. A ideia de combate ao “inimigo interno” e a subversão foi colocada na cabeça de todos os agentes que ficaram durante anos comandando a repressão, sendo que eles baseavam suas ações na hipótese que nenhuma pessoa admitiria os seus crimes políticos se não fosse coagido a falar sobre eles e para fazê-los tomar essa iniciativa só existia um método: o emprego da violência, da tortura indiscriminada contra os presos políticos. E nessa ótica, para a pessoa que estava sofrendo a tortura: “A dor física, o pânico psíquico e o medo desencadeiam no prisioneiro, o instinto da sobrevivência (...). Nesse momento, a escolha é crucial, entre ceder à ânsia de sobreviver ou aceitar a dor e a morte por fidelidade aos princípios assumidos” (BETTO, 1982:261)

A MEMÓRIA: QUESTÃO DE DEBATES

No término de seu depoimento, Dilza de Santi declarou que embora a participação no movimento de integração na produção tenha sido muito difícil para ela, que não se adaptou ao meio operário e da prisão de sua família ter ocasionado sérios problemas de saúde para o seu filho, ela não se arrepende de ter participado do quadro de militantes da AP. Na sua avaliação, as atividades da organização no ABC paulista contribuíram para a fomentação do Movimento Operário, pois foi neste período de militância não apenas da AP, como de outras organizações, se criou uma base de debate e discussões política para os movimentos que se deflagraram mais tarde em toda aquela região.

A militante Nilce Azevedo Cardoso declarou que apesar dela ter vivido o horror das torturas, ela não se arrependeu de suas opções políticas, nem de ter permanecido calada durante a sua prisão no DOPS, porque o seu silêncio não permitiu que a polícia chegasse até as pessoas com as quais ela mantinha contato no Movimento Operário e nenhuma delas foi presa. Ela acrescentou que a continuidade de suas atividades políticas ajudou na recuperação se sua memória, pois logo depois de sair da prisão, ela já começou a trabalhar em defesa da volta de eleições diretas no país, na campanha pelas “Diretas Já”

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e pela anistia.

Já o militante Antonio Ramos Gomes apresentou um ponto de vista diferente de Nilce a respeito das experiências vivenciadas por ele no período em que esteve vinculado à AP. Para ele, os militantes foram muito ingênuos de achar que iriam fazer a revolução e mudar o país, não imaginando o rigor com que a repressão agiria contra as organizações de esquerda. Segundo ele, então, existiu muito voluntarismo e de dogmatismo, pois essa questão de achar que se podem fazer as mudanças desejadas na política, não é verdade. Apesar dessa avaliação, o militante continuou vinculado à política, tendo ingressado no MDB, tornando-se o diretor da Fundação Ulysses Guimarães do PMDB, sendo que ele trabalha até hoje com política profissional dentro da área de informática, tendo ajudando a fundar várias entidades de informática no Rio Grande do Sul.

Verificou-se que os militantes da AP apresentaram diferentes conclusões a respeito da sua trajetória na organização, vinculadas a posição que ocupam no tempo presente. Le Goff chamou a atenção para esse fato ao colocar que na construção de sua memória, os atores sociais tendem a esquecer de determinados fatos e ressignificar outros, na medida em que isso serviu à construção de um ideário coletivo que tinha um objetivo político determinado. Ele nomeou essa política de esquecimento de “memória condicionada”, formada a partir de uma memória coletiva manipulada por grupos sociais que disputam a hegemonia de poder dentro de uma determinada sociedade. A memória condicionada seria um importante lugar para situar as disputas entre grupos políticos antagônicos, visto que se apoderar da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, das pessoas que exercem a dominação na sociedade, pois “os esquecimentos, os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”. Assim, aos pesquisadores, entre os quais estariam os “antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos” caberia a responsabilidade de lutar por uma “democratização da memória social”, tornado-a “um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica” (LE GOFF, 1990:368).

Em relação à memória envolvendo o período em que vigorou a ditadura civil-militar, não apenas no Brasil, mas em outros países da América Latina, é alvo de disputa entre as pessoas que fizeram oposição ao regime e lutam para que as injustiças, as torturas e as arbitrariedades cometidas neste período não sejam esquecidas enquanto os indivíduos que colaboraram de alguma forma com o estado de exceção lutam para manter e perpetuar a política do esquecimento. O processo de “desmemoria” é fundamental para a análise da complexa relação que se estabeleceu entre a lembrança e o esquecimento, que tornaram explícitas a falta de conhecimento sobre esse período histórico, que resultou no “silêncio” ou até mesmo num “apagamento da memória”: “Os responsáveis pelos anos de chumbo latino-americanos sabem que o desconhecimento impede o posicionamento consciente;

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sabem também do potencial de inércia que possui o esquecimento coletivo” (PADRÓS, 2009:28).

Na América Latina permanece uma espécie de “entulho autoritário”, que precisa ser removido para que não se perpetue nesses países a política do esquecimento, utilizada por alguns setores para exercer a manipulação política sobre a população. Em razão disso, a reconstrução da memória coletiva relacionada aos períodos ditatoriais no contexto latino-americano cresceu de importância e significado nas últimas décadas, na medida em que se percebeu que os processos de “redemocratizações” estavam frágeis, diante da permanência de uma espécie de autoritarismo ligado ao exercício do poder: “Diante de tamanha manipulação, pode-se coincidir com Yosef Yerushalmi, quando afirma que, em determinadas situações, a antítese da palavra esquecimento-e da palavra silêncio-talvez seja não memória, senão justiça” (PADRÓS, 2009:28).

Para a militante Nilce Azevedo Cardoso, é fundamental que, assim como ela, o povo brasileiro também recupere a memória relacionada ao período em que vigorou a ditadura em nosso país, pois essa é uma história que precisa ser contada, e que para isso, é fundamental que ocorra a abertura dos arquivos da repressão e que os torturadores sejam julgados e condenados, pois enquanto isso não acontecer, não mudará no país a questão do crime organizado, do crime que não tem consequências, que fica por isso mesmo, como aconteceu com os casos das pessoas torturadas e mortas durante esse período. A cidadania brasileira deve ser desenvolvida dentro de novos parâmetros e para que isso aconteça, tornou-se necessário e urgente que o povo desenvolva a capacidade crítica e reflexiva, deixando de lado a posição de passividade diante do consumismo para, a partir de uma tomada de consciência, se tornar os atores sociais de sua própria libertação e posteriormente, de toda a sociedade.

Assim, os depoimentos dos militantes da AP evidenciaram a necessidade de uma elucidação mais completa das questões relacionadas ao período em que vigorou a ditadura civil-militar brasileira e os atores sociais que nele estiveram envolvidos em suas mais variadas dinâmicas e a forma como a utilização da intimidação e do medo afetou a trajetória de vida destas pessoas. A memória, neste caso, tem importância fundamental para a reconstrução histórica do período ditatorial, marcado pela imposição de um esquecimento coletivo à população.

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