a luta pela terra numa Área de conflito na amazÔnia artigo encontro de historia oral

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1 A LUTA PELA TERRA NUMA ÁREA DE CONFLITO NA AMAZÔNIA: NARRATIVA, ORALIDADE E MEMÓRIA Fábio Tadeu de Melo Pessôa – UFPA Resumo O presente artigo pretende abordar a relação entre história, memória e oralidade, tendo como foco a análise do filme “Esse homem vai morrer: um faroeste caboclo”. O filme narra a história de pessoas marcadas para morrer na cidade de Rio Maria, no Pará, a partir de relatos orais dos sujeitos históricos amazônicos em luta pela terra. Pretendemos discutir as histórias de vida dos agricultores paraenses em luta pela terra e a violência por eles sofrida (1580 pessoas assassinadas nos últimos 30 anos, segundo a CPT) além da produção cinematográfica e da oralidade enquanto fontes fundamentais para os historiadores, de modo a contribuir com as análises feitas sobre a realidade econômica e social de agricultores no estado do Pará. Esse filme/documento nos permite aprofundar o debate sobre o tempo presente, algo que está longe de ser consenso entre os historiadores, acostumados a tempos mais recuados, às análises das estruturas de longa duração. Nos permite um olhar sobre as histórias individuais que se coletivizam na luta pela sobrevivência de suas vidas e de suas lembranças. É a história daqueles que ousaram lutar contra a opressão. É a história da memória contra o esquecimento. Palavras-chave: memória, oralidade, tempo presente. Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Karl Marx, O 18 Brumário... Introdução

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A LUTA PELA TERRA NUMA ÁREA DE CONFLITO NA AMAZÔNIA: NARRATIVA, ORALIDADE E MEMÓRIA

 Fábio Tadeu de Melo Pessôa– UFPA

Resumo

O presente artigo pretende abordar a relação entre história, memória e oralidade, tendo como foco a análise do filme “Esse homem vai morrer: um faroeste caboclo”. O filme narra a história de pessoas marcadas para morrer na cidade de Rio Maria, no Pará, a partir de relatos orais dos sujeitos históricos amazônicos em luta pela terra. Pretendemos discutir as histórias de vida dos agricultores paraenses em luta pela terra e a violência por eles sofrida (1580 pessoas assassinadas nos últimos 30 anos, segundo a CPT) além da produção cinematográfica e da oralidade enquanto fontes fundamentais para os historiadores, de modo a contribuir com as análises feitas sobre a realidade econômica e social de agricultores no estado do Pará. Esse filme/documento nos permite aprofundar o debate sobre o tempo presente, algo que está longe de ser consenso entre os historiadores, acostumados a tempos mais recuados, às análises das estruturas de longa duração. Nos permite um olhar sobre as histórias individuais que se coletivizam na luta pela sobrevivência de suas vidas e de suas lembranças. É a história daqueles que ousaram lutar contra a opressão. É a história da memória contra o esquecimento.

 Palavras-chave: memória, oralidade, tempo presente.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na

história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez

como tragédia, a segunda como farsa.

Karl Marx, O 18 Brumário...

Introdução

No dia 13 de maio de 2011, uma sexta-feira, dia que representa oficialmente a abolição da

escravatura, ocorreu o lançamento do filme “Esse homem vai morrer: um faroeste caboclo”, no Rio

de Janeiro. Dirigido por Emílio Gallo, o filme narra a história de pessoas marcadas para morrer na

cidade de Rio Maria, no Pará. Pessoas cujo o crime foi o comprometimento na luta pela terra e a

denúncia do trabalho escravo na região, daí o elemento simbólico do 13 de maio, data de estréia do

filme. Algumas das pessoas ameaçadas vieram a ser mortas, mostrando que em alguns casos, a

realidade supera a ficção.

Um dos protagonistas do filme, o padre Ricardo Rezende é atualmente professor da UFRJ,

mas seu protagonismo não se explica pela sua trajetória acadêmica. É sua atuação junto à Comissão

Pastoral da Terra durante duas décadas, no município de Conceição do Araguaia, município que

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chegara em 1977, ainda sob forte vigilância e repressão em função da guerrilha do Araguaia

desmantelada pelas forças do exército em 1974, que marca sua história de vida.

Com um registro de quase 700 entrevistas de sobreviventes de trabalho escravo, padre

Rezende é um personagem como tantos outros na história do tempo presente amazônico, história essa

marcada fortemente pela grilagem e especulação de terras públicas, projetos minerais que atraíram milhares

de pessoas para a região, ação de grandes grupos que fazem da exploração ilegal de madeira um negócio

altamente lucrativo, com terríveis danos sociais e ambientais.

O filme em questão possibilita o registro de inúmeras histórias de vida, suas memórias, suas

dores e esperanças, numa perspectiva de pensar a história como processo em construção

permanente, criando e recriando memórias. Os depoimentos são mais que simples relatos. São

registros, indícios para o estudo mais aprofundado sobre o tempo presente amazônico. Permite

dialogar com outras fontes, outras evidências, de modo a fazer do tempo presente não uma “questão

jornalística” simplesmente, mas um elemento fundamental para a compreensão histórica.

Tempo presente e narrativa: encontros e desencontros pela história

Fazendo uma análise do desenvolvimento da história enquanto disciplina, desde o século 19

até finais do 20, o historiador alemão Georg Iggers (1998) levanta uma série de questões pertinentes

aos métodos e interpretações teóricas da história, fundamentalmente no que diz respeito ao status

“científico” que se atribuiu à história a partir do denominado historicismo clássico. Falando de um

“giro lingüístico” contido na “historiografia pós-moderna”, o autor apresenta como ponto de partida

a idéia de que a crença em se pensar a história enquanto uma ciência que tem uma explicação

objetiva, coerentemente precisa da realidade não seria mais possível. Citando, entre outros autores,

Hayden White (1994 p.84), para quem a história “não possui nenhum critério científico da

verdade”, Iggers apresenta esse giro lingüístico naquilo que comumente se chamou de o “retorno da

narrativa”.

Apresentando também esse “renascimento da narrativa”, Burke (1992) fala da superação por

parte da historiografia do desprestígio do político, do “acontecimento” e da narrativa. A

historiografia produzida nos anos de 1950 e 1960, principalmente, assentada nas análises das

estruturas de longa duração, privilegiava análises das estruturas de produção, da quantificação dos

dados, da série de documentos, das análises demográficas. Citando o célebre livro de Fernand

Braudel, O Mediterrâneo, Burke afirma que os historiadores estruturais “encaravam os

acontecimentos como a superfície do oceano da história” (BRAUDEL, apud BURKE, 1992: p.

328).

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O debate permaneceu com críticas tanto aos historiadores estruturais, quanto dos defensores

da narrativa em história, debate que permanece em aberto. A historiografia tradicionalmente

constituída tinha aversão aos estudos recentes ou aquilo que atualmente consideramos “tempo

presente”. O interessante dessa perspectiva é que havia, pelo menos se acreditava, uma

fundamentação científica da explicação histórica, que procurava entendê-la de modo “objetivo”,

afastando qualquer influência da contemporaneidade, do presente, na medida em que os fatos

deveriam ser narrados “tal como efetivamente aconteceram” e que, nos dizeres de um historiador do

19, “escrever a história contemporânea nenhum historiador o deve fazer para não se expor a juízos

temerários e a outros inconvenientes” (SCHWARCZ: 1993, p 146).

Segundo Ferreira (2002, p.318), a fundação na França da revista Annales, em 1929, e da

École Pratique des Hautes Études, em 1948, daria novas perspectivas a produção historiográfica,

focando agora uma “história total”. No lugar de uma história centrada nos “grandes personagens”, o

foco seria o estudo das “sociedades” em seus múltiplos aspectos. No entanto, a questão da

objetividade permanecia como preocupação fundamental e a narrativa e estudos focados no tempo

presente ficariam em segundo plano, sem falar na predominância inquestionável das fontes escritas

em detrimento das fontes orais e das histórias de vida.

A partir do final dos anos de 1970, com o desenvolvimento da História Cultural,

privilegiando análises qualitativas, relatos orais e desconstruindo noções vinculadas a dicotomia

entre o popular e o erudito, o debate em torno da objetividade e da importância das narrativas,

sejam elas literárias ou orais, voltaria com grande força.

Segundo Iggers (1998, p. 59-60), a publicação na revista Past and Present de um ensaio de

Lawrence Stone sobre o “retorno da narrativa” ou aquilo que ele chama de “a nova velha história”

irá retomar o debate sobre a importância da narrativa para a história, não aquela factualista do

historicismo clássico que privilegiava os grandes personagens, mas fundamentalmente uma

narrativa de experiências de vida, individuais ou coletivas, de sujeitos históricos anônimos

vinculados às classes subalternas, aos pobres e excluídos.

O alargamento dos objetos de estudos e a retomada de aspectos por certo tempo

negligenciados ou esquecidos levou a possibilidades da ampliação do universo de pesquisa e a

inclusão de novas fontes e metodologias, como aquelas vinculadas aos estudos das fontes orais

como forma de estudar sujeitos historicamente excluídos, como os operários, a exemplo da obra A

voz do passado, de Paul Thompson (1992).

Criticado por muitos como “coisa de jornalista”, a história do tempo presente, por trabalhar

com “testemunhos vivos”, como é o caso do filme-documentário que pretendemos analisar neste

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artigo, tem desenvolvido metodologias a partir de inúmeras pesquisas realizadas nos últimos anos.

Para a historiadora Marieta de Moraes Ferreira,

ao esquadrinhar os usos políticos do passado recente ou ao propor o estudo das visões de mundo de determinados grupos sociais na construção de respostas para os seus problemas, essas novas linhas de pesquisa também possibilitam que as entrevistas orais sejam vistas como memórias que espelham determinadas representações. Assim, as possíveis distorções dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma nova maneira, não como uma desqualificação, mas como uma fonte adicional para a pesquisa. (FERREIRA: 2002, p. 324)

Falando do debate em torno da história política, que de certo modo relaciona-se com o

interesse crescente com o “tempo presente”, embora não possa ser confundido com este, René

Remond (1999), afirma que o “político” pensado enquanto dimensão da sociedade não pode ser

resumido ao “acontecimento” ou a uma “anedota”. Se há o limite da “ausência da sequência”, o

estudo do tempo presente tem na “evolução do ambiente ideológico”, na importância das histórias

de vida e no político pensado como “expressão de fatos culturais”, elementos fundamentais. O

político não é mais pensado como uma narrativa de fatos numa seqüência temporal precisa, mas

como uma dimensão da sociedade produzida pela cultura.

Dessa forma, os estudos de aspectos vinculados ao tempo presente também serão

privilegiados, a partir da influência que o debate em torno da memória irá suscitar entre os

historiadores do tempo presente, como veremos a seguir.

Disputas pela memória e a luta contra o esquecimento

A memória compreendida como campo de disputa foi apresentada por Pollak (1989) em um

artigo de grande repercussão no Brasil. Para o autor, existiriam diversas dimensões da memória,

tanto no que se refere às memória individuais, quanto aquelas partilhadas por grupos e instituições.

Pare ele, “a despeito da importância da doutrinação ideológica”, existiria uma “clivagem

entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas”. Estas últimas, transmitem suas

“lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da

redistribuição das cartas políticas e ideológicas”. (POLLAK 1989, p.5)

No filme analisado neste artigo, intitulado “Esse homem vai morrer: um faroeste caboclo”

podemos perceber que as memórias individuais, captadas através de depoimentos de diversos

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personagens da história do tempo presente amazônico, mais particularmente na região Sul do Pará,

com foco na cidade de Rio Maria, se entrelaçam com memórias coletivas, partilhadas por

moradores da área, fundamentalmente no que se refere aos grupos em luta pela terra na região,

como representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais

(STR).

Tendo ainda como referência os argumentos de Pollak (1989, p.9-10), a memória pode ser

entendida como uma “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se

quer salvaguardar”. Esse enquadramento da memória se dá de diversas maneiras, mas dentro de

dois elementos fundamentais. Em primeiro lugar, o “enquadramento da memória se alimenta do

material fornecido pela história” num processo constante de disputa do passado, reinterpretando-o

“em função dos combates do presente e do futuro”.

Outro elemento do enquadramento da memória diz respeito à necessidade da credibilidade

daquilo que se pretende salvaguardar, de modo a transformar essa memória “selecionada” em um

instrumento de coesão e de identidade do grupo. O autor afirma ainda que toda organização política,

por exemplo – sindicato, partido político etc. –, veicula seu próprio passado e a imagem que forjou

para si”. Além disso, argumenta, o trabalho de enquadramento da memória “tem seus atores

profissionais da história das diferentes organizações de que são membros” (POLLAK: 1989.p.10)

Podemos encontrar também essa perspectiva em Le Goff (1994, p. 477) quando este faz a

defesa de que a memória se serve da história, “salvando o passado para servir ao presente e futuro”.

E complementa, afirmando que os historiadores devem “trabalhar de forma que a memória coletiva

sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.

Como podemos observar, a memória em disputa, seu enquadramento, seus usos (e por vezes

seus abusos) também pode ser usada como objeto de manipulação política e/ou ideológica. Falando

sobre o conceito de “comunidade afetiva” desenvolvido por Maurice Halbwachs, Silva (2002)

afirma que a memória “passa a integrar o território do historiador” em que este deve assumir “o

papel de mediador”, procurando “adequar os relatos individuais à veracidade histórica” dentro da

perspectiva de pensar a “relação entre o presente da memória e o passado histórico que se quer

recuperar” (SILVA: 2002, p. 426-427)

Assim, como veremos, o filme-documentário analisado é a clara tentativa de disputar a

memória sobre a luta pela terra sob o ponto de vista daqueles que sofreram ameaças e perseguições.

É a memória dos que ousaram enfrentar a força econômica do latifúndio monocultor, capitaneado

por grandes empresas e fazendeiros, que utilizaram a estrutura de um estado que tem na

permanência do autoritarismo e da impunidade seus alicerces fundamentais. Os personagens falam

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de suas experiências, de seus mortos, de seus sonhos, de seu passado e de suas esperanças, na luta

permanente da memória contra o esquecimento.

Mas será que o cinema, a imagem, o documentário, os relatos orais podem,

metodologicamente, integrar o universo analítico do historiador? Será que as imagens não são

distorções da realidade? Haveria credibilidade nos relatos desses personagens/sujeitos históricos?

Ou, ao contrário, as imagens, os filmes, documentários, relatos orais, são documentos, monumentos,

indícios, fontes fundamentais para o trabalho do historiador?

Narrativas orais e fontes visuais: o filme como linguagem e narrativa histórica

Segundo Burke (2004), a História Social da Cultura contribuiu decisivamente para ampliar

os horizontes dos historiadores, ao conceber as imagens não como uma mera ilustração, uma

curiosidade artística de um tempo, mas como fonte importante de percepção da realidade ou ainda,

citando Arnoldo Hauser, perceber a arte “como reflexo de toda uma sociedade”. (BURKE, 2004,

p.226)

Mesmo indicando um certo desprestígio do uso das imagens entre os historiadores, Burke

(2004, p.14) fala de uma “virada pictórica”, fundamentalmente nos anos de 1960, quando da

utilização de fontes fotográficas e de filmes entre os historiadores sociais, e de pinturas entre os

historiadores da cultura. O autor aprofunda a questão ao falar de uma “retórica da imagem”, através

das formas pelas quais ela opera para persuadir ou obrigar os espectadores a fazer determinadas

interpretações.

Novas perspectivas de análise são criadas, principalmente a partir do que ele chama de

“história cultural da imagem” de modo a perceber o seu uso para diversos fins, influenciando

decisivamente nas memórias individuais ou coletivas, de modo a glorificar fatos e personagens ou

mesmo silenciar histórias, como é o caso da segunda parte do filme de Einsenstein, Ivan o Terrível,

“escondida do público pelo governo até a morte de Stalin”. Ou ainda do ostracismo de Delacroix,

no quadro Liberdade guiando o povo, durante o período de restauração do Império na França após

1789.

A análise que fazemos das imagens selecionadas para esse texto tem como elemento os

dizeres de Peter Burke, quando este afirma que

“as imagens não são nem um reflexo da realidade social nem um sistema de signos sem relação com a realidade social, mas ocupam uma variedade

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de posições entre esses extremos. Elas são testemunhos dos esteriótipos, mas também das mudanças graduais, pelas quais indivíduos ou grupos vêm o mundo social, incluindo o mundo da imaginação”. (BURKE, p.232) [grifos meus]

Alguns cuidados apresentados pelo autor nos serviram de alerta quando da produção deste

artigo. Primeiro, reconhecer que “as imagens dão acesso não ao mundo social diretamente, mas sim

a visões contemporâneas daquele mundo”. Além disso, é preciso contextualizar o testemunho das

imagens, reconhecendo as influências culturais, políticas e econômicas na produção, circulação e

recepção das mesmas.

O trabalho de Marc Ferro (2010), também nos serve como uma importante referência para

aqueles que pretendem estudar o filme como um documento histórico, como uma representação do

e sobre o passado. Falando de várias reviravoltas no uso dos filmes como evidência aos

historiadores, dos anos de 1970 e 1980 quando há vários trabalhos na área, aos anos de 1990

quando há muita desconfiança nessa perspectiva metodológica, o certo é que, para o autor de

Cinema e História, há um fenômeno novo que é “a instrumentalização do vídeo para finalidades de

documentários, isto é, sua utilização para escrever a História do nosso tempo as enquetes fílmicas

que lançam mão da memória e do testemunho oral são numerosas” (FERRO: 2010, p. 11)

O documentário em análise é exatamente isso. Procura resgatar as histórias de trabalhadores,

sindicalistas, religiosos e políticos mortos em Rio Maria e outras localidades da região sul do Pará,

também conhecida como região do “bico do papagaio”, a partir de depoimentos-testemunhos de

inúmeros personagens da vida real da Amazônia em uma obra que também é ficcional, já que, como

já afirmamos, estamos entre aqueles que não acreditam ser possível resgatar a história “tal como

aconteceu”.

O filme tanto pode “contar uma história” quanto criar um acontecimento. Ao analisar o

filme do diretor polonês Andrzej Wajda, Danton, Robert Darnton (1990) apresenta as diferentes

interpretações e desdobramentos na arena política francesa do final dos anos de 1980. Danton e

Robespierre, suas histórias e as memórias construídas sobre eles, à esquerda e à direita, entre

socialistas, comunista e gaullistas, foram recriadas no filme, independente da vontade do diretor. A

associação de Danton, liderança importante da revolução de 1789, com o líder do Solidariedade

polonês, Lech Walesa, o entusiasmo da direita francesa com a dessacralização de Robespiere,

descrito como um insensível tirano, para espanto da esquerda, são exemplos da estreita relação entre

a importância historiográfica do cinema, seu usos e, por vezes, seus abusos. Nessa perspectiva,

consideramos o cinema como produto da sociedade que o produziu, como testemunho intencional,

nada inocente, servindo de referência importante para o historiador justamente por isso.

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No caso das representações produzidas sobre a Amazônica, Barbara Westein (2006)

apresenta um excelente texto analítico em relação ao documentário “The Amazon Awakens”,

produzido em 1944 no contexto da segunda guerra mundial, na qual a borracha tinha um valor

econômico e estratégico militar fundamental. No documentário, dedicado a promover a “Política de

Boa Vizinhança” entre os EUA e vários países da América Latina, entre os quais o Brasil, a

Amazônia era retratada como uma espécie de paraíso de riquezas ilimitadas. O enredo passa pela

incorporação da Amazônia ao progresso, ao desenvolvimento, após ser libertada de seu arcaísmo e

atraso tecnológico pelo mágico “beijo de um Príncipe Encantado (notável por sua semelhança com

Henry Ford)”. No documentário estão ausentes os povos indígenas ou questões relacionadas a

preservação. O homem amazônico apresentado como que em estado de inércia, mas naturalmente

propenso ao progresso, “desde que estejam disponíveis os capitais e recursos tecnológicos

necessários ao esforço modernizador”. (WEINSTEIN: 2006, p.87-88)

No documentário, fica nítida uma visão da natureza amazônica enquanto lugar ao mesmo

tempo paradisíaco, de recursos naturais inesgotáveis, mas com uma natural propensão para a

civilização. Os “soldados da borracha”, as cidades de Manaus e Belém, os portos escoando a

produção, e Fordlândia – cidade-símbolo da superação do atraso, fincada no meio da floresta –, dão

o tom da imagem da região produzida no filme. A “realidade” era representada por critérios

eminentemente comerciais. Não havia conflito, somente progresso e otimismo. O filme/documento

que passaremos a analisar vai no caminho inverso.

“Esse homem vai morrer”: entre histórias e representações

O filme inicia com a fala de uma professora do sul do Pará, politicamente engajada,

relatando a situação da região para as autoridades, em uma audiência. Interpretada por Dira Paes, a

personagem denuncia as mortes que estão acontecendo em Rio Maria, de 1980 até a década de

1990, indicando, inclusive, a morte de padres e sindicalistas. Padre Josimo, morto “em frente a

Igreja dele” é um exemplo. Num relatório recente a Comissão Pastoral da Terra também detalha 42

trabalhadores ameaçados que vieram a ser mortos nos últimos 10 anos, excluindo-se aí inúmeras chacinas

realizadas contra trabalhadores que não entram nessa lista das “mortes anunciadas”. Além disso, o relatório

da CPT encaminhado ao Ministério da Justiça afirma que “(...) até 2010, foram assassinadas 1580 pessoas,

em 1186 ocorrências. Destas somente 91 foram a julgamento com a condenação de apenas 21 mandantes e

73 executores.  Dos mandantes condenados somente Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, acusado de ser um

dos mandantes do assassinato de Irmã Dorothy Stang, continua preso”1.

Na paisagem que mostra um trecho da viagem de Brasília até Rio Maria (16 horas) pela

rodovia PA 150, percebemos o predomínio do desmatamento e da criação de gado nas terras à beira

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da estrada. A partir daí, vemos o personagem principal, Padre Rezende, sempre em movimento,

evidenciando seu protagonismo, ao falar enquanto anda pelas ruas da cidade de Rio Maria. Inicia

falando do João Canuto2, “que já sabia que ia morrer”. Padre Rezende faz um paralelo entre a morte

de Canuto e o personagem do livro de Garcia Marques, “Crônica de uma morte anunciada”. A

diferença, diz o padre, “é que enquanto no livro o personagem não sabia que ia morrer, o

personagem da vida real sabia”. Morreu na frente da igreja. Aliás, há uma relação de proximidade

muito grande entre a Igreja e o movimento popular.

Segundo Fernandes (1999, p. 40) a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 1975 e

a atuação das Comunidades Eclesiais de Base como instrumento organizativo, comunitário,

identitário e formativo dos camponeses na região, acabou potencializando suas formas de

resistência e luta ao processo de privatização das terras na região. Mas o papel da Comissão

Pastoral da Terra não se limitava a mediar conflitos. A CPT também tinha forte atuação formadora,

não só religiosa, mas um processo de formação política dos trabalhadores, através das comunidades

eclesiais de base, que serviam como instrumento de aglutinação de demandas, por ser, em grande

medida, um dos poucos canais de reunião e contestação dos trabalhadores do campo.

A CPT também atuava na organização política dos trabalhadores quando estes disputavam o

controle do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR´s), quase sempre sob intervenção federal,

como é o caso do STR de Conceição do Araguaia, cujo presidente, Bertoldo Siqueira de Lima, fora

eleito sob a pressão do GETAT – Grupo Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins -, e do major

do Exército Sebastião “Curió”, responsável direto pela repressão à guerrilha do Araguaia,

desmantelada em 19743. Neste sentido,

“a CPT surgia para assessorar e estimular o pessoal que já se encontrava engajado no trabalho de base (...) A CPT procurava prestar serviços diretamente à organização dos trabalhadores; cartilhas com explicações sobre os direitos dos posseiros, meeiros, assalariados; cursos de orientação para a formação de sindicatos; estímulo para a estruturação de oposições sindicais... (A Igreja dos oprimidos... 1981, apud PEIXOTO: 1992, p.142.)

A criação da CPT num contexto ainda recente de repressão política após o golpe civil-militar

instaurado no Brasil em 1964, significou também uma mudança na postura da Igreja em relação ao

golpe e seus desdobramentos. Quando do golpe, a Igreja ainda estava majoritariamente dirigida por

setores conservadores, fundamentalmente nos mais altos escalões de poder hierárquico. As

violências sofridas por muitos integrantes da Igreja durante a ditadura fez refletir ao conjunto do

clero brasileiro sobre a opção inicial de apoio ao golpe, em nome de um sentimento anti-comunista

fortemente presente no pensamento e ações clericais.

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Falando desse deslocamento “dos palácios à miséria da periferia”, Helena Salem (1981) fala

de três fatores fundamentais dessa “guinada” da Igreja. Em primeiro lugar, o Concílio Vaticano II

(1962) e a II Assembléia Geral da Conferência Episcopal Latino-Amaericana (Medelin, 1969)

possibilitaram algumas mudanças importantes, como o estímulo da participação dos leigos

(fundamental para atuação nas CEB´s por exemplo), a crítica ao capitalismo dependente e à miséria.

Além disso, observa a autora, houve a mudança na formação dos religiosos, que passaram a entrar

em contato com a chamada “teoria da dependência” da CEPAL, ao mesmo tempo em que

pensadores antes demonizados, como Karl Marx, passaram a ser lido pelos teólogos latino-

americanos, muitos dos quais acabariam por formular o que se denominou de Teologia da

Libertação. Um terceiro elemento desta “opção preferencial pelos pobres”, tem relação também

com o crescimento do número de adeptos das Igrejas evangélicas na América Latina, que passam a

disputar com os católicos a base social da população mais pobre. Essa evangelização mais perto dos

problemas da população mais carente de acesso a bens básicos de sobrevivência, era também uma

estratégia de assegurar o predomínio católico numa crescente presença dos evangélicos (SALEM:

1981, p. 37-41)

Essa influência pode ser observada quando analisamos o documento produzido pelos Bispos

do Centro-Oeste brasileiro (entre os quais D. Pedro Casaldáliga, D. Estevão Avelar e D. Tomás

Balduíno) em maio de 1973, intitulado “Marginalização de um povo”. Com uma linguagem

próxima a realidade dos camponeses e escrito para eles, o documento é dividido em seis pontos

principais: 1- Introdução; 2- a vida do povo (saúde, educação, habitação e emprego); 3- a

organização da produção (estrutura fundiária); 4- o meio rural; 5- aspectos sócio-econômicos; 6- a

igreja e o trabalhador.

Na introdução, o mundo é apresentado pela metáfora do rio, onde o “peixe grande come o

pequeno”, simbolizando a exploração existente na sociedade. Os demais pontos continuam a expor,

muitas vezes contando com dados estatísticos levantados por pesquisas sócio-econômicas das

dioceses da região, as condições de vida da população no que diz respeito a mortalidade infantil,

desemprego/renda, condições de habitação e educação, entre outros elementos que servem de base

para a compreensão, segundo o documento, de que “o povo não é nada bobo e que, com um pouco

de esclarecimento, descobre os seus direitos e tem mentalidade para compreender o valor da união e

da organização” (p.9)

1 Relatório enviado ao Ministério da Justiça em 2010.2 João Canuto de Oliveira era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria quando foi assassinado em dezembro de 1985. Ver em: OLIVEIRA FILHO, (1991).

3 ? Sobre a Guerrilha do Araguaia, ver, por exemplo, NASCIMENTO (2000, 2004) e REIS FILHO (1985).

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O documento assinado pelos bispos do Centro-Oeste também analisa a política do Governo

Federal para o “setor rural”, consubstanciada pelo Estatuto da Terra e seus desdobramentos,

fazendo críticas veementes à política de incentivos fiscais concedidas pelo governo em relação a

aquisição de terras públicas. Para os bispos que subscrevem o texto “A marginalização de um

povo”, a política de incentivos fiscais beneficiam a aquisição de terras na região por grande

empresas do Centro-Sul do país, pois elas [as empresas], “podem aplicar a metade do imposto de

renda em empresas, industriais ou não, que favoreçam o desenvolvimento de regiões de menor

progresso”. Além disso, afirma o documento, há uma outra forma de financiamento, através dos

bancos, que exigem alguma forma de garantia, ou seja, quem não tem o título de propriedade não

recebe o financiamento. “Podemos então concluir que essa política é feita para favorecer mesmo os

que não precisam, os que já são donos de outras propriedades” (p.24)

Ao dividir a sociedade em “duas classes de gente: os grandes proprietários de um lado, os

trabalhadores rurais junto com os pequenos proprietários do outro” (p.15), o documento entra na

questão da propriedade e do sentido do uso da terra para os “grandes” e pequenos”. Aqueles,

identificados como “patrões”, gente com “amigos nos bancos e associações de crédito”. Os últimos,

como “empregados”, que só tem “os braços para trabalhar”, que se “constituem como classe pela

pobreza, por ser seu trabalho quase escravo”. Qualquer relação com a máxima contida no Manifesto

Comunista de divisão em burgueses (donos dos meios de produção) e proletários (vendem sua força

de trabalho em troca de um salário) não nos parece uma mera coincidência.

Voltando ao documentário, temos o depoimento de “Olinto”, uma testemunha dos

acontecimentos e morador de Rio Maria, ao afirmar que “se o padre Ricardo e o frei Henry não

intervém, acho que tava morto todo mundo. A idéia era matar todos que não pensavam da forma

deles, a forma de lês é quem é pobre tem que ser pobre quem é rico tem que ser rico”. O cemitério

de Rio Maria tem destaque no documentário sobre as mortes anunciadas, já que muitos

sindicalistas, agentes de pastoral e padres estão lá enterrados. Na lápide de Belchior, morto em

1982, segundo padre Rezende, “com mais de 145 perfurações”, tem uma passagem bíblica que

evidencia a posição da igreja nesse momento: “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça,

porque deles é o Reino dos Céus”. (Mat 5,10)

Mas qual o sentido dessas mortes anunciadas? Quais as razões para tantos conflitos pela

posse da terra no Estado do Pará?

Os depoimentos contidos no filme podem ser analisados tendo como ponto de partida o

processo de colonização da região conhecida como “bico do papagaio” e sobre as características

gerais da região. A questão agrária brasileira e a amazônica em particular tem sido tratada

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tardiamente se comparada ao tempo de sua origem. Para o sociólogo José de Souza Martins a

questão agrária brasileira é a maneira como, desde o século XIX, o problema do trabalho escravo

permanece inconcluso, assim como o uso e apropriação da terra, explodindo em conflitos

potencializados pela massa de trabalhadores que o latifúndio, modernizado, foi descartando, e que o

mercado de trabalho urbano não teve condição de absorver (MARTINS: 2004, p.17).

As ações das ligas camponesas nos anos cinqüenta e os conflitos de indígenas e posseiros na

Amazônia, principalmente a partir dos anos de 1970, a partir do deslocamento da “frente pioneira”

para a região Araguaia-Tocantis-Itacaiúnas (Velho, 1981) tiveram desdobramentos políticos no

início dos anos oitenta com a formação do MST. No caso das Ligas Camponesas, as demandas

foram incorporadas em alguma medida pelo Estado, através da inclusão da pauta da reforma agrária

na agenda política do então governo de João Goulart (1960-1964), através das Reformas de Base.

No caso das lutas empreendidas na década de 1970, pela ausência de canais partidários que

expressassem as tensões no campo devido situação política imposta pela ditadura militar instalada

em 1964, a demanda popular foi incorporada pela Igreja através da CPT.

Desde o final do século XIX, Conceição do Araguaia foi a principal porta de entrada para a

região, desde a produção da borracha. Até a década de 1950, praticamente inexistia a propriedade

jurídica da área, sendo que boa parte das terras eram consideradas livres, onde posseiros lavradores

produziam pequenas roças (IANNI: 1978, apud FERNANDES: 1999, p.31). A criação de diversos

planos de “integração regional” (Fundação Brasil Central, Grupo Executivo de Terras do Araguaia-

Tocantins), cada qual a sua maneira, irá contribuir para a reconfiguração espacial, formas de

produção e reprodução de capital e nas relações de trabalho, sem falar na apropriação da terra, que

irão marcar fortemente as tensões e disputas pela terra no Araguaia. Seja através de incentivos

fiscais ou da construção da Belém - Brasília, permitindo a chegada dos “pioneiros” e a especulação

de terras na região Araguaia paraense, seja em função do GETAT que procurava mediar conflitos

através de sua papel de polícia, a concentração fundiária e a expulsão de camponeses gerou uma

situação de tensão e violência sem precedentes.

Essas frentes de expansão são bastante diversas e complexas, segundo os estudos de Otávio

Velho (1981), produzidos na década de 1970. Para o autor, além de constituírem uma alternativa à

urbanização, há várias inter-relações entre as diversas frentes com a frente de expansão

agropecuária, gerando tensões permanentes entre elas e as populações já existentes na região.

Chamadas pela população local de “mata geral”, boa parte das terras da região Araguaia foram

apropriadas, muitas vezes por meios fraudulentos, por investidores de outras regiões, seja pela

lógica da agropecuária, seja pela especulação fundiária (Fernandes, 1999, p. 97-98). Nessa “mata

geral”, além de pequenos agricultores, existiam diversas comunidades indígenas, como os Kaipó-

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Gorotire, e que nem “desconfiavam que seu território iria virar nome de uma sociedade anônima

que havia comprado quase todas as suas terras” (SILVA: 1982, apud FERNANDES:1999, p. 40).

Com essas frentes de ocupação agropecuária, mas também de pequenos camponeses, a

principal cidade do Araguaia paraense foi sendo desmembrada. Conceição do Araguaia e seus

vários latifúndios foram sendo transformados, criando-se novos municípios, na lógica de

concentração ainda maior de terras e de poder político. A cidade de Rio Maria, por exemplo, está

localizada em terras pertencentes a Braz Domiciano Sobrinho, depois adquiridas por famílias de

“desbravadores”, seja através dos incentivos fiscais concedidos pelo governo estadual, seja através

da prática de grilagem4 de terras. Segundo Oliveira Filho (1991), duas famílias gaúchas, os Remores

e os Malinskins, adquiriram uma grande quantidade de terras no lugar que viria a ser Rio Maria,

trabalhando na rentável atividade de extração e comercialização de madeira, instalando as bases

para a criação da Madeireira do Araguaia S.A., MAGINCO. Os tratores da empresa abriam os

caminhos na mata para a extração da madeira, no clarão da floresta que seriam transformados em

ruas da nova cidade, incluindo-se aí a extensão da rodovia PA-150 (na época PA-70) que passaria

pela cidade ligando-a a outras a serem criadas sob a mesma lógica. Ainda segundo o autor, a

imagem na população da cidade de que “quase tudo pertencia a MAGINCO” era bastante forte,

consubstanciando um misto de sentimento de subalternidade e resistência, reverberando em atitudes

de aceitação e confronto, resignação e revolta. Outros “desbravadores”, principalmente mineiros e

goianos, chegaram à cidade que ainda pertencia ao município de Conceição do Araguaia,

adquirindo terras “a preço de banana, muitas vezes pagando apenas os custos da medição das áreas,

realizado pelos técnicos do Instituto de Terras no Pará (ITERPA)” (OLIVEIRA FILHO, 1991, p.

20, apud FERNANDES: 1999, p. 58).

Outras cidades ocupadas a partir de 1960 e que criaram autonomia administrativa nas

décadas de 1970 e 1980, Santana do Araguaia, São João do Araguaia, Redenção, Xinguara,

obedeciam a mesma lógica de ocupação e “colonização”, de um projeto implementado pelo governo

militar, principalmente após a Guerrilha do Araguaia. Essa perspectiva de colonização a partir de

empreendimentos agropecuários (madeira e gado fundamentalmente) contrastava com a lógica da

economia camponesa, fincada em valores e sentidos bem diferenciados. Na condição de

trabalhadores autônomos, acabaram sendo incorporados pelo processo de privatização crescente das

terras do Araguaia, comprometendo seu ethos camponês nas áreas de fronteira.

Para uns, tal conflito é de ordem estrutural, “entre os segmentos mais poderosos da

sociedade e um conjunto de frações de classe que tem, no plano da luta política, se afirmado a partir

4 ? A grilagem significa um processo fraudulento do processo de aquisição de terras. O grileiro oficializa o requerimento da compra protocolando-o em cartório. Venda uma terra que não é sua, que ainda está em processo de compra.

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da luta pela terra” (Costa, 1991 apud Fernandes, 1999, p. 71). Para outros, é necessário

compreender esses sujeitos dentro da lógica de uma “campesinidade”, isto é, compreender que

“(...) os pequenos produtores concretos não são tipos, mas sujeitos históricos, e que as situações empíricas observadas, por serem históricas, são ambíguas. (...) Modelos não são iguais à realidade, se por esta última se entende concretude histórica que é, essencialmente, movimento” (BRANDÃO: 2004, p. 161).

Seja em razão da perda da identidade camponesa ou da materialidade imediata de

sobrevivência, a terra, os conflitos se avolumaram na região nos anos de 1970. Segundo Kotscho

(1991) Fernandes (1999, p. 72),

“somente em Conceição do Araguaia, no começo de 1978, havia 43 áreas de conflitos identificados e cadastrados. Seis meses depois chegam a 55 as áreas conflitadas e no final do ano já ultrapassavam 80. Entre 1979 e junho de 1981 ocorreram no Pará 151 conflitos, envolvendo 37.874 famílias” ( KOTSCHO,1991 apud FERNANDES, 1999, p. 72)

Em um desses conflitos, podemos observar a complexa inter-relação de diversos atores e

instituições: o poder judiciário, as instâncias governamentais, a Igreja e os movimentos sociais em

luta pela terra. Numa demarcação de terras feita pelo Incra com apoio do Iterpa e da Polícia Militar

do Pará, um conflito resultou na morte de dois PM´s, na localidade de “Perdidos”, em Conceição do

Araguaia. A morte de dois “agentes do estado” num conflito de terras não era algo comum na região

se comparada às mortes de trabalhadores rurais. Ocorridas em 27 de outubro de 1976, dentro de um

contexto político nacional denominado de processo de “abertura lenta e gradual”5, quando a

ditadura começava dar sinais de afrouxamento de seu aparato repressivo. A atuação de clérigos e

instituições ligadas à Igreja, um espaço de defesa dos trabalhadores rurais fundamental no período,

levou ao choque entre essas instituições e outras ligadas ao estado, como o Ministério Público

Estadual. Para o 1º Promotor da capital (Belém), Carlos Peixoto, o clero tinha íntima ligação com o

crime cometido contra os PM´s. Considerando a ação da Igreja “boa”, o nobre Promotor considera

“inegável dizer que ela está minada de ideário comunista por alguns de seus membros (...) que

querem paulatinamente implementar a ideologia de esquerda em nosso país”6. A revolta do

Promotor se explica pela absolvição dos réus no processo movido pela promotoria contra vários

religiosos, entre os quais D. Estevão Cardoso Avelar (bispo de Conceição do Araguaia), Frei

Expedito Marques da Silva e o padre Florentino Naboni, que seria preso meses depois.

A acusação de “subversivos” aos clérigos é compreensível, considerando a postura favorável

da Igreja em relação aos camponeses. O que chama atenção, no entanto, é o papel que caberia a

Igreja, segundo a visão do Promotor Peixoto. “Por que se arvorou o clero de Conceição do Araguaia

5 Sobre esse processo, há um trabalho minucioso de (ALVES, 2005) em relação ao período.6 Ministério Público Estadual, Promotoria de Belém, Carlos Peixoto, 24 de agosto de 1978, fls, 5.

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em assuntos que não lhe competia”? Esses religiosos, na visão do promotor, não estavam fazendo

ação pastoral pois essa “não serve para instigar pessoas ao crime, pois a ação pastoral não manda

matar”. Nessa visão, caberia aos religiosos cuidar das “almas” e deixar “para as “autoridades

competentes”, o papel/função de cuidar das questões que não dizem respeito à Igreja. Além disso,

ao “desvirtuar suas funções”, os religiosos estavam “incitando os camponeses ao crime”.

Vinte e seis anos depois, padre Ricardo Rezende retoma essa acusação de “incitar ao crime”

e de “subversivos” atribuídos aos religiosos em relação a participação destes nas questões

relacionadas aos conflitos de terra. No documentário, afirma ser sim um subversivo, mas com outro

sentido:

“Me viam, me denunciaram, principalmente na ditadura, como comunista, terrorista, esse tipo de coisa. Eu respondia que de fato eu era um subversivo, pois queria subverter a desordem que vivíamos e continuamos vivendo eu diria hoje. Uma desordem social, um caos fundiário, as pessoas têm os direitos pisoteados. Ainda temos a utilização da mão de obra escrava por esses grandes empreendimentos. Então nesse sentido eu era subversivo porque eu queria subverter essa desordem. Era preciso que houvesse uma nova ordem, precisávamos exorcizar esses demônios, que são os demônios da fome, da miséria, da injustiça, e criar um mundo melhor, um mundo que Deus quer, um mundo onde corre o leite e o mel, onde corre a justiça, ou usando uma simbologia dos indígenas, uma terra sem males, uma terra sem maldade. Nós cansamos de rezar missa de sétimo dia, cansamos de socorrer viúvas e órfãos. O que estamos vivendo em Rondon do Pará é uma tragédia, estamos revivendo agora (anos 2000) o que Rio Maria viveu há 14 anos. Não sou corajoso, sou teimoso, misturo fé e teimosia”

Além da promotoria de Belém, o Coordenador Regional do Incra (responsável pela

demarcação da terra no caso de “Perdidos”), Elias Seffer, “queria saber quem insuflou os

posseiros”7. Era como se os “posseiros” não tivessem vontade própria. Como se não conhecem seu

“lugar no mundo”. Como se não soubessem o “momento de agir”. Como se suas atitudes fossem

obra de manipulação de outras pessoas. Indo no caminho contrário, uma moradora da localidade de

“Perdidos”, Maria Rosa Pereira, afirma que “não houve ‘projeto de briga’. Foi o povo que imaginou

que o ‘careca’, com a ajuda da PM, ia tomar as terras dos posseiros e resolveu enfrentar a coisa no

tiro”8. Duas observações. Primeiro, perguntada sobre a especulação em torno da “incitação ao

crime” por parte de “alguns membros subversivos da Igreja”, a moradora afirma não haver nenhum

“projeto de briga”, isto é, nenhuma prévia articulação política antes da chegada dos agentes do

estado. Seria um movimento espontâneo diante da cotidiana presença da polícia como braço armado

dos latifundiários. Além disso, o “careca” era nada mais nada menos que um contumaz grileiro a

serviço de interesses privados, conhecido da população, o que reforça o argumento da moradora.

7 A Província do Pará. “Demarcação a qualquer preço”. Belém, 02/11/1976.8 O Liberal. “Perdidos depois da ação dos posseiros”. Belém, 30/11/1976.

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Os argumentos do Promotor Peixoto continuaram repercutindo dentro e fora do Estado do

Pará dividindo opiniões. Enquanto o Inquérito Policial Militar considerava que “se não fosse a

prelazia de Conceição do Araguaia, que apaziguava e tranqüilizava o povo, coisas bem piores

poderiam ter ocorrido no Sul do Pará”9, a Promotoria Militar (José Manhes Leitão) e o 1º Promotor

da capital (Carlos Aleixo Peixoto), cada um a sua maneira, davam margem para enquadrar os

religiosos na Lei de Segurança Nacional, principalmente D. Estevão Avelar, da diocese de

Conceição do Araguaia. Houve Um total de 42 prisões, a maioria de posseiros10, além do Padre

Maboni11. Além de “insuflar os posseiros a subversão”12, segundo os argumentos do Promotor

Carlos Peixoto, para a PM, a partir de seu comando no Sul do Pará, considera os conflitos como

resultado da ação de grupos guerrilheiros, sugerindo o uso da força para coibir “novos

derramamentos de sangue”13. Quanto a D. Estevão, apesar das declarações de apoio da CNBB,

acabou sendo transferido de Conceição pra Uberlândia14, enquanto o padre Maboni, depois de solto,

enviado a Porto Alegre15.

É nesse contexto que Padre Rezende, protagonista do filme/documento chega á região, em

1977. Chegou no momento de continuidade dos conflitos, com o início da mobilização popular

através de atos de rua em Conceição do Araguaia16. Conflitos que iam se radicalizando na mesma

proporção em que crescia o nível de organização dos trabalhadores rurais. Conflito que se dá

também com a criação de fissuras no interior do “partido do poder” a ARENA. Divida em

Conceição, a ARENA 1 seria a composição apoiada pelo governador Aluísio Chaves e encabeçada

por Ulisses Vieira. Já a ARENA 2, encabeçada por Giovani Queiroz, que viria ser eleito, era uma

espécie de “oposição na situação” pois, ao ser preterido pelo governador, passou a disparar

discursos contra a PM do Pará, acusando-os pela morte de inúmeros posseiros, numa clara tentativa

de ter para si os votos da população majoritariamente composta por lavradores17.

As tensões aumentavam e a CPT se posicionava. Numa denúncia publicada na imprensa, a

Comissão Pastoral da Terra denunciava a formação de milícias armadas para expulsar posseiros de

suas terras, localizadas em 25 áreas de Conceição do Araguaia, envolvendo um total de 4.450

famílias. Na região de Floresta do Araguaia,em que 3.000 famílias viviam desde 1973, há um clima

tenso depois que o Governo do Pará e a SUDAM decidiram diminuir a área destinada aos colonos

como meio de atender a interesses de proprietários da região. Em Xinguara, ainda segundo o 9 O Liberal, “Sem caráter subversivo ou político”. Belém, 11/06/1978.10 O Liberal, “Segurança Nacional para os posseiros”. Belém, 1/10/1976.11 O Liberal. “Padre preso de novo acusado de insuflar”. Belém, 6/11/1976.12 O Liberal. “Promotor acusa do Estevão de subversão”. Belém, 9/6/1978. 13 O Liberal. “PME vê Ação de Guerrilhas nos conflitos do Araguaia”. Belém, 7/11/1976. 14 A Província do Pará. “D. Estevão transferido de Conceição para Uberlândia”15 O Liberal. “Pe Maboni solto e enviado a Porto Alegre”. Belém, 27/11/1976.16 O Liberal, “Passeatas e conflitos em Conceição do Araguaia”. Belém, 13/11/1978. 17 O Liberal. “Divisão na ARENA”. Belém, 3/11/1978.

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relatório da CPT, “400 lavradores permanecem nas terras do banqueiro Flávio de Almeida Pinto,

que já entrou com ação judicial contra nove lavradores”18. Como vemos, nesse clima de abertura

política “lenta e gradual”, a radicalização política no Sul do Pará vive uma crescente.

Os alertas da CPT em 1979 tinham fundamento. Quase três anos depois do “alerta”, o

agricultor conhecido como “Goiano”, foi assassinado por soldados da PM e pelo pistoleiro Zezinho

da Codespar, em 1982. “Goiano” era trabalhador na fazenda Tupã-Cieretã, de propriedade de Flávio

de Almeida Pinto, o mesmo banqueiro que três anos antes havia solicitado na justiça o despejo dos

posseiros (Oliveira Filho, 1991). Num processo de litígio sobre a posse da Gleba Cabeceira, em Rio

Maria, Belchior,outro agricultor, foi assassinado, também em 1982. Ainda segundo Oliveira Filho

(1991) não constava nenhum inquérito policial sobre o crime na delegacia da cidade de Rio Maria,

oficialmente emancipada em 13 de maio de 1982, mesma data da estréia do filme/documentário.

Mas a disputa não se dava pela mera posse da terra, como já assinalamos. Se dava também

pelo controle do poder político da região, com a mobilização de setores antagônicos, através da

disputa pelo sindicato de trabalhadores rurais (controlados historicamente pela repressão) e a

formação de uma organização dos produtores de grande força na região: a UDR. Na disputa pelo

sindicato dos trabalhadores rurais de Conceição do Araguaia (município que na época englobava

diversos municípios que depois iriam se emancipar), o agente de pastoral Raimundo Ferreira Lima,

o “Gringo”, candidato oposicionista à presidência do STR, foi assassinado, em 1980, dando início

ao “ciclo das mortes anunciadas” (OLIVEIRA FILHO: 1991, p.51).

No processo de abertura política que incluía a reforma partidária, a campanha por eleições

diretas para presidente da república e a formação do pluripartidarismo, incluindo-se aí a legalização

de partidos historicamente ilegais para a justiça brasileira, como o PCB e o PC do B, as tensões no

campo continuavam. Na disputa pelo poder político na recém emancipada Rio Maria, João Canuto

de Oliveira, que havia sido candidato à prefeito da cidade pelo PMDB, funda e se torna presidente

do Sindicato dos Trabalhadores Rurais daquela cidade. Sua ação política e sindical logo o coloca

em evidência e na mira dos fazendeiros e seus jagunços. Ameaçado por diversas vezes, acaba sendo

emboscado e morto em 1985, quando saia de casa. Dois anos depois, o advogado do STR de Rio

Maria, fundador da Sociedade em Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) no Pará e deputado

estadual eleito, Paulo Fonteles, também viria a ser assassinado, mostrando que a chamada “Nova

República” trazia consigo a velha tradição de associar latifúndio e violência.

A história é movimento. A natureza também.

18 O Liberal. “CPT prevê conflito armado em Conceição do Araguaia: terras”. Belém, 3/10/1979.

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De volta ao documentário, podemos ver pelos depoimentos a atualidade inquietante da

violência no campo paraense. As mortes anunciadas, consubstanciadas pelo título do filme, “Esse

homem vai morrer”, continuam a ser cumpridas numa impressionante mistura de impunidade e

indignação. Na década de 1990, os irmãos Canuto foram seqüestrados e mortos, sobrevivendo

Orlando que conta, no filme/documento, sua versão sobre os momentos de terror que vivera.

Baleado no abdômen e no braço e algemado com as mãos para trás, conseguiu fugir. Teve ajuda de

uma família de agricultores que moravam a alguns metros e que ouviram os disparam. Cerraram a

algema e colocaram um pano para estancar o sangue, o que ajudou na sua fuga.

Em fevereiro de 1991, Expedito Ribeiro de Souza, Presidente do STR de Rio Maria, também

foi assassinado. Militante do PC do B e candidato do partido a prefeito da cidade, Expedito foi

morto com um tiro pelas costas (Oliveira Filho, p. 68). No mês seguinte, um comício de repercussão

internacional, organizado por partidos políticos, entidades sindicais, instituições religiosas e

contando com personalidades políticas e artísticas, acabou por impor uma nova lógica de resistência

e combate ao latifúndio e à violência por ele provocada. A luta sindical, que continua, seria também

acompanhada por manifestações que envolvessem pessoas e instituições de outros espaços de

atuação, colocando a questão da violência do campo em evidência internacional.

Expedito Ribeiro de Souza, Presidente do STR de Rio Maria. Foto de João Roberto Ripper.In: OLIVEIRA FILHO (1991)

Após a mobilização em torno das mortes anunciadas, também em 1991, o Sindicato Rural de

Xinguara, município próximo a Rio Maria, convocou uma reunião para discutir ações em favor

dos interesses de sua classe: os proprietários da região. O presidente do Sindicato, Castro de

Andrade, fez a leitura de um texto, uma espécie de manifesto, em defesa da propriedade “dos

grandes e médios produtores”. Faz um alerta no qual “as grandes e médias propriedades da

região ou estão invadidas ou em vias de serem invadidas”. A imagem do documentário segue

com o discurso improvisado de Tião Aranha, na época prefeito de Rio Maria:

“Nós é que tem que resolver o problema, não esses comunistas que vêm aí fazer discurso em cima do palanque, que vem chorar em cima de defunto. Eu não sei quando, meus amigos, em Rio Maria tem uma família do Canuto. Já foi morto o

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Canuto, foi morto os dois filhos, e ainda essas pessoas tem a coragem de subir no palanque rapaz, será que essas pessoas não tem remorso? De ter o seu pai morto, seus irmãos, e ta em cima de palanque xingando os fazendeiro? Nós temos é que resolver o problema!

Ao lado da disputa pela terra, há também uma disputa em torno das formas de se conceber a

natureza, organizar o trabalho e a produção dos recursos extraídos da terra. No documentário,

diversas imagens e depoimentos dão mostra dessa diversidade. Para um pecuarista, falando em um

leilão de gado, “ quando tem conflito todos os dois lados correm risco. Quando um lato ataca o

outro se defende. Eles [os trabalhadores] são ladrões de gado que atacam os fazendeiros”. Um

discurso bem apropriado considerando a expansão da pecuária na região. Essa atividade traz em si

uma compreensão de valor de uso e valor de troca em relação ao uso da terra. Estudando as

representações do universo rural em Minas Gerais, a historiadora Maria Eliza Linhares Borges

afirma que os pecuaristas da região eram ex-produtores de alimentos, que acabaram por se

converter em pecuaristas pela lógica do lucro fácil, pois “era só cercar a terra, era lucro sem gastar”.

Para os outros atores, meeiros, pequenos agricultores, empregados, a perspectiva era a “terra liberta,

fecunda, de fartura e felicidade” (BORGES: 2004, p.308).

Regina Horta Duarte (2005), escrevendo sobre as diversas concepções construídas sobre a

natureza ao longo da história, nos serve de referência para pensar as representações descritas acima.

Segundo a autora de História e Natureza, partindo do trabalho do historiador William Cronon,

diversos sentidos foram atribuídos à natureza. Um deles, a natureza como um Édem, dentro da

tradição judaico-cristã, parece povoar o imaginário dos clérigos que atuam no meio rural brasileiro,

dispostas a defender a causa de um povo simples em busca da terra prometido, do reino da

felicidade. Evidentemente que essa perspectiva edênica da natureza reverbera para aquilo que

Diegues ( 19) denominou de “mito moderno da natureza intocada”. Mas no caso dos ativistas

atuantes no meio rural, muitos dos quais vinculados à Teologia da Libertação, o sentido edênico se

dá pela ação comunitária, agregando valor á fartura do pão que o suor do trabalho pode propiciar.

Podemos ver essa perspectiva no trabalho de Roberto Araújo sobre a ocupação camponesa na

transamazônica, ao analisar a atuação dos leigos e religiosos católicos:

O termo comunidade aplica-se ao conjunto de católicos que se reúnem periodicamente no seio de uma mesma capela, participando das atividades promovidas pela Igreja ou executadas com sua aprovação. Mas para a hierarquia pós-conciliar, a experiência comunitária contém em germe um projeto de sociedade cuja concretização é necessária à realização do Reino. Refletindo os valores cristãos de partilha e igualdade entre os homens, lugar de um poder refratário de toda concentração excessiva de autoridade, a comunidade, ‘escola’ na qual o povo aprende a tornar-se sujeito da própria história, antecipa uma forma nova de vida social” (ARAÚJO: 1992, p. 128)

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Utilizando a metáfora da “caminhada para os reinos dos céus” tal concepção, na realidade

concreta ora estudada, apresenta um valor fundamental ao trabalho e ao “merecer a terra” a partir da

idéia de que a “terra pertence a quem nela trabalha”:

“ao legitimar as aspirações do pobre, único a merecer o epíteto de agricultor, pois só ele tira da terra produtos imediatamente utilizáveis no seio da unidade doméstica, a oposição pressentida entre produtos do rico e do pobre aparenta ir além da simples definição de categorias de pessoas ela representa a materialização das naturezas inconciliáveis do rico e do pobre, base ded um confronto entre fortes e fracos no seio de um mesmo universo” (idem, p. 130)

Outro sentido atribuída à natureza, diz respeito a idéia de que a “natureza é um bem comercial para

ser comprado e vendido” (Duarte, 2005, p. 81). Nos parece ser essa a compreensão geral do estado brasileiro

em relação à Amazônia e de boa parte dos “desbravadores” das matas da região. A fala de um fazendeiro vai

na direção da tradicional defesa de propriedade de um bem juridicamente posto, na qual a relação de

“legalidade” se dá a partir do poder do proprietário, que teria a atribuição de defender “o que é seu” na lógica

do “custe o que custar”. Vejamos seu argumento: “se entra na sua casa o que você faz? pois nós

também, e questão de defender seu patrimônio. O correto é a justiça, mas a gente não pode nem

ficar discutindo a justiça no nosso país né?”. Aqui temos a idéia de que a justiça, o estado, não

resolvem, valendo a idéia de que impera alei da “sobrevivência do mais forte”, os mais “aptos” o

que significa que existe uma “naturalização da condição social”.

O documentário segue com imagem de padre Rezende, e a narrativa de sua estratégia em

relação ao estado geral de violência no município. Da lista original dos anos 80, sete pessoas foram

assassinadas. A estratégia do padre Ricardo, para sustar as mortes foi muito simples, sensibilizou a

imprensa e organizações humanitárias no Brasil e no exterior e com a ajuda delas mobilizou artistas

e personalidades de. Eles foram várias vezes a Rio Maria demonstrar solidariedade aos ameaçados

de morte. Hoje, 20 anos depois, essa ainda tem sido a forma mais eficiente de proteger muitos

ameaçados naquela região. Atualmente em Rondon do Pará, circula uma lista de 18 pessoas

“marcadas para morrer”.

Pe Ricardo Rezende, celebrando Missa em Rio Maria. Foto de João Roberto Ripper. In: OLIVEIRA FILHO (1991)

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Considerações finais: a história não acabou.

O filme termina com imagens contrastando as fazendas de gado em oposição aos casebres

miseráveis de parte da população. Numa espécie de “eterno retorno” dentro da “circularidade

histórica”, há depoimentos de pessoas ameaçadas que vieram a ser mortas tempos depois. Algumas,

como o casal de extrativistas de Nova Ipixuna, também no Pará, mostram que o problema continua.

Logo depois, reaparece a professora interpretada pela atriz paraense Dira Paes, falando

novamente aos deputados, já mais velha, vinte anos depois, contando a mesma história com

personagens e lugares diferentes. Agora, Rondon do Pará é uma espécie de Rio Maria de ontem.

Dezinho, presidente do sindicato daquela cidade, morto pela mesma lógica que seus companheiros

Expedito, João Canuto, entre tantos outras vítimas da violência e impunidade, também entra nessa

triste estatística.

A morte do casal de agricultores, descrita no início desse texto, nos serve para pensar a

atualidade da questão agrária na Amazônia e seus desdobramentos. Como elemento simbólico

dessas mortes, complementada pela morte de uma testemunha do assassinato, o também agricultor

Erenilton Pereira dos Santos, está o fato do casal não apenas constar na “lista da morte” como

também representar a luta pelas reservas extrativistas em oposição à grilagem e à exploração ilegal

de madeira na região, práticas que muitos consideram facilitadas se o novo código florestal,

atualmente em tramitação no Congresso Nacional, se confirmar.

Um dos itens polêmicos do novo código estabelece que, além da união, os estados poderão criar seus

programas de regularização ambiental o que pode acarretar pressões políticas e econômicas sobre os

governos. No Pará, tal pressão esbarra, vez por outra, na presença mais ou menos eficiente de órgãos como o

IBAMA  e a Polícia Federal. Essa flexibilização abre uma prerrogativa que ao invés de minimizar as tensões,

deve radicalizar os conflitos, pois como vimos no relatório da CPT, a impunidade nesses casos é uma

excelente conselheira para os assassinos de trabalhadores.

Há também o caso da anistia para aqueles que cometeram crimes ambientais até 2008, através da

assinatura de um “termo de adesão e compromisso”. Outra medida que na prática pode significar a

regularização do desmatamento.

Enquanto o governo federal articula uma ação interministerial para discutir ações aos problemas do

campo, os trabalhadores rurais são ameaçados e mortos, e os ruralistas se sentem os “donos do campo”.

Estendem sua arrogância ao parlamento e à grande mídia, numa impressionante sintonia entre o poder

político, o grande capital e os meios de comunicação.

O debate sobre o código florestal mostra que, apesar da vitória ruralista na câmara federal, a questão

agrária brasileira ainda está em aberto, no momento em que o tema ambiental e a violência no campo têm

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ressonância internacional. Nossa esperança e nossa luta apontam para outro caminho, um futuro cujo roteiro

está sendo escrito por homens e mulheres que plantam os sonhos para colherem um novo amanhã.

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Notas