a lavagem de são roque em riachão do jacuípe um espaço de integração entre a população pobre...

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2 Introdução: A análise das religiões no Brasil compõe-se em objeto de curiosidade de diversas áreas de estudos acadêmico, como Historia Filosofia, Sociologia, Antropologia, entre outras, abordando as mais variadas vertentes, porém todas estas, acredita-se que as vivências religiosas de qualquer tempo enquanto fenômeno religioso não se esgota em si, mas amplia perspectivas e possibilidades cada vez maiores e mais amplas. Neste contexto a atenção deste trabalho será voltado para a instituição católica, especialmente á Festa dedicado ao Glorioso São Roque, praticada em Riachão do Jacuipe BA. Cidade por ter sua localização ás margens do Rio Jacuipe, no semi-árido baiano com uma distância aproximadamente da capital baiana de 183Km. No qual, seu território esta incluído na zona do “Polígono da Seca”. Para a realização desse trabalho abordarei os festejos de São Roque em Riachão do Jacuipe nas décadas de 1930-1950.O visual parece ter estado sempre associado a vivencia e a teatralidade de relação com os orixás que no candomblé, o santo homenageado tem função homologa. E possível acompanhar essa prática cultural de herança africana através de fotografias e vídeos, práticas essas excluídas pala Igreja Católica. Após essas considerações faz-se necessário demonstrar algumas possibilidades de abordagem e, em seguida, apontar algumas inquietações temáticas. Porém algumas discussões teóricas, atenta-se, neste momento para a participação do fenômeno religioso na realização da Lavagem das Prostitutas em louvor a São Roque em Riachão do Jacuipe- Ba. Dessa forma buscando uma história local numa perspectiva da História Cultural, pretendo analisar os motivos que levou a igreja católica de Riachão do Jacuipe a não aceitar num ato discriminatório, separar a parte religiosa dos festejos de São Roque, realizado pela Igreja Católica local, da parte profana, realizada pelas prostitutas. O trabalho apresenta-se dividido em três subtópicos: O primeiro intitulado: Breve histórico sobre a prostituição que busca compreender o fenômeno da prostituição nas décadas de 1930-1950. O segundo intitulado: Resistência e opressão vivida pelas prostitutas trata-se do processo de segregação, exclusão e preconceito sofrida pelas prostitutas e luta pelas mesmas para resistir e ainda lutar contra a dominação da sociedade autoritária e se fazerem presentes na sociedade mesmo que por pouco tempo.

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Page 1: A lavagem de são roque em riachão do jacuípe um espaço de integração entre a população pobre e as prostituas nas décadas de 1930 1950

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Introdução:

A análise das religiões no Brasil compõe-se em objeto de curiosidade de diversas

áreas de estudos acadêmico, como Historia Filosofia, Sociologia, Antropologia, entre outras,

abordando as mais variadas vertentes, porém todas estas, acredita-se que as vivências

religiosas de qualquer tempo enquanto fenômeno religioso não se esgota em si, mas amplia

perspectivas e possibilidades cada vez maiores e mais amplas. Neste contexto a atenção deste

trabalho será voltado para a instituição católica, especialmente á Festa dedicado ao Glorioso

São Roque, praticada em Riachão do Jacuipe – BA. Cidade por ter sua localização ás margens

do Rio Jacuipe, no semi-árido baiano com uma distância aproximadamente da capital baiana

de 183Km. No qual, seu território esta incluído na zona do “Polígono da Seca”.

Para a realização desse trabalho abordarei os festejos de São Roque em Riachão do

Jacuipe nas décadas de 1930-1950.O visual parece ter estado sempre associado a vivencia e a

teatralidade de relação com os orixás que no candomblé, o santo homenageado tem função

homologa. E possível acompanhar essa prática cultural de herança africana através de

fotografias e vídeos, práticas essas excluídas pala Igreja Católica.

Após essas considerações faz-se necessário demonstrar algumas possibilidades de

abordagem e, em seguida, apontar algumas inquietações temáticas. Porém algumas discussões

teóricas, atenta-se, neste momento para a participação do fenômeno religioso na realização da

Lavagem das Prostitutas em louvor a São Roque em Riachão do Jacuipe- Ba.

Dessa forma buscando uma história local numa perspectiva da História Cultural,

pretendo analisar os motivos que levou a igreja católica de Riachão do Jacuipe a não aceitar

num ato discriminatório, separar a parte religiosa dos festejos de São Roque, realizado pela

Igreja Católica local, da parte profana, realizada pelas prostitutas.

O trabalho apresenta-se dividido em três subtópicos:

O primeiro intitulado: Breve histórico sobre a prostituição que busca compreender o

fenômeno da prostituição nas décadas de 1930-1950.

O segundo intitulado: Resistência e opressão vivida pelas prostitutas trata-se do processo de

segregação, exclusão e preconceito sofrida pelas prostitutas e luta pelas mesmas para resistir e

ainda lutar contra a dominação da sociedade autoritária e se fazerem presentes na sociedade

mesmo que por pouco tempo.

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Já o terceiro subtópico: O contexto da festa após Abdias objetiva conhecer as mudanças após

a morte de Abdias Carneiro

E por fim as considerações finais remetem a sistematização do que foi identificado na pesquisa num

processo em que o lado religioso da festa de São Roque foi separado da parte profana. A Lavagem de

São Roque. Identificando conflitos sociais, mas também, como afirmam os seus participantes, um

espaço de alianças, alegrias e a diversão era, sobretudo, uma forma de expressão, de auto-

afirmação naquela estrutura social.

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A LAVAGEM DE SÃO ROQUE EM RIACHÃO DO JACUÍPE: UM ESPAÇO DE INTEGRACAO ENTRE A POPULACAO POBRE AS PROSTITUTAS NAS DÉCADAS DE 1930-1950

Breve histórico sobre a prostituição

Historicamente, há registros da existência de prostitutas desde a Antigüidade. Na

Grécia Antiga a classe das hetairas, eram as prostitutas mais sofisticadas, que além de suas

prestações sexuais ofereciam companhia e com as quais os clientes frequentemente tinham

relacionamentos prolongados. No entanto, em fins do século XV a prostituição passa a ser

proibida em quase toda a Europa, por conta da enorme difusão da sífilis no mesmo momento

em que ocorriam as crises da Reforma e da Contra-Reforma, quando a intolerância era

justificada com o discurso que defendia o equilíbrio entre aquilo que era mais santo e mais

puro.

No Brasil o fenômeno da prostituição existe desde o período colonial e transformou-se

em objeto de estudo a partir da segunda metade do século XX. Alguns autores1 afirmam que

as prostitutas do Brasil Colônia contribuíram para a construção e valorização do seu oposto:

ou seja, as mulheres puras, identificadas com a Virgem Maria e longe da sexualidade

excessiva. Nessa realidade, as mulheres que exerciam a prostituição eram vistas como

pacificadoras da violência sexual, salvaguarda do casamento moderno e, ao mesmo tempo,

taxadas de meretrizes.

Para compreender o significado da prostituição neste período, é necessário lembrar-se

da realidade social: a pobreza, que fazia do meretrício um ofício ou uma forma de trabalho

ligada à sobrevivência. A prostituta, carregada de preconceitos como herdamos hoje no Brasil,

nasce do conflito entre as duas diferentes idéias e realidades de prostituição existentes: as

prostitutas de bordel caracterizadas como bem instruídas, sofisticadas, educadas, etc. com

aparente permissão para transgredir e as prostitutas de bordéis populares, predominantemente

pobres, mulatas ou negras, e que se sujeitavam á prostituição por razões de sobrevivência.

1 Podemos citar entre os autores em questão: SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In:

PRIORE, Mary Del (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p.362. FRANCO,

Setastião Pimentel. O gênero feminino na história brasileira: da exclusão e busca da participação. FCAA

Disponível em:<www.fcaa.com.br/sitenovo/.../lernoticia.asp?...> Acesso em: 14 Jul. 2009

BROTTO, Renata Batista. Médicos e padres: maternidade e representações dos papéis sociais da mulher (1860-

1870). Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009. Disponível em:

www.fiocruz.br/ppghcs/media/dissertacaorenatabrotto. Acesso em: 14 Jul. 2010. DEL Priore, Mary Lucy. Ao sul

do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro; José Olympio,

1993

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Nesse contexto Sueann Caulfield vem falar da hierarquia social das prostitutas, ou

seja, no final da década de 1920 no Rio de Janeiro as prostitutas de classe baixa ficavam

separadas isoladas em áreas que os próprios policiais reservavam, pois, o objetivo dos

mesmos pressionados pela sociedade era mantê-las longe dos centros comerciais, e da linha

dos bondes distante dos “cidadãos respeitáveis”. A sociedade cobrava dos policiais por meio

de campanhas sensacionalista da empresa e pelas autoridades médicas e jurídicas temendo o

aumento da criminalidade e desordem social no Rio de Janeiro.2 Nesse sentido ficava a cargo

da policia a retirada das prostitutas do centro, isolando-as em bairros periféricos onde

localizava os chamados baixo meretrício, evidenciando o preconceito de raça, etnia e classe

por parte da elite. Observando assim, um número relevante de prostitutas pobres e negras3.

A respeito disso Waldir de Abreu, afirma que:

Já no século XVII, em Recife, era ostensiva a prostituição, sob a dominação

holandesa, quer em numerosos sobrados e bordeis, quer em prostíbulos do porto.

Variava a categoria desde as negras, mulatas e brancas nacionais até as louras e

ruivas holandesas. Uma delas chegou a ser denunciada ao Santo Ofício” 4.

Para Gilberto Freire:

A cidade de Recife talvez deva ser considerada a primeira de uma série de pequenas

Sodomas e Gomorras, que floresceram á margem do sistema patriarcal brasileiro.

Foram muitos os sobrados que, ainda novos tiveram lá, como em cidades mineiras,

em Salvador, e no Rio de Janeiro, seu patriarcal desvio, seu sentido familiar

pervertido, sua condição cristã manchada por extremos de libertinagem.5

Segundo Guido Fonseca em seu livro História da prostituição em São Paulo6, José

Arouche de Toledo Rondon fala, em 1788, sobre a visão deprimente que se tinha nas ruas da

cidade: meninas pedindo esmola e outras, se prostituindo sendo que a maioria delas tinha

idade inferior a 12 anos. Relata ainda que em 1825, crianças rejeitadas ou filhas de militares

enviados ao extremo sul do país da Pátria que não haviam retornado ou voltavam inválidos

perambulavam pelas cidades e acabavam sendo recolhidas por famílias miseráveis que logo as

atiravam à prostituição, visando o lucro, como na Grécia Antiga. No século XX, havia

2 CAULFIELD, Sueann. O nascimento do mangue: raça, nação, e o controle da prostituição no Rio de Janeiro,

1850-1942. Rio de Janeiro: Tempo, 1996 nº 9.p.44. Disponível em: www.historia.uff.br/tempo/site/?cat=37.

Acesso em: 20 de Jul. 2009. 3 CAULFIELD, Sueann. Op. cit. p. 44.

4 ABREU, Waldyr de. O submundo da prostituição, vadiagem e jogo do bicho: aspectos sociais, jurídicos e

psicológicos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1968. p. 42. 5 Idem, ibidem, loc. cit. p. 42.

6 ANDRADE, Ivanise. Prostituição e exploração: comercialização de sexo jovem. Disponível em:

www.caminhos.ufms.br/.../impressao.htm?artigo=45. Acesso em 20 de Jun 2010.

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prostíbulos onde as exploradoras reservavam crianças do sexo feminino, filhas de prostitutas

escravas, substituindo as mais velhas ou as que tivessem falecido.7

Através das palavras de Guido Fonseca é possível perceber que o fenômeno da

prostituição além de um processo crescente, era uma forma de sobrevivência diante da

situação financeira das famílias, complementando a renda familiar ou até sendo a única fonte

de renda, ou seja, a questão social em que a maioria das famílias vivia com a pobreza e

miséria determinava o aumento da mesma tanto infanto-juvenil, quanto adulta.

De acordo com Cremoso, para Evaristo de Moraes, um dos maiores criminólogos

brasileiros, na virada do século XIX ao XX a prostituição era um "mal necessário" para a

preservação da moral no lar, não podendo ser considerada crime. Entretanto, ela foi

criminalizada como "ato imoral" que ameaçava a vida social. Paralelamente a isso, existiu

uma repressão médica, que perpassava a profilaxia da sífilis, e uma repressão moral contra os

"escândalos" promovidos pelas meretrizes. Implantou-se, portanto, uma penalização quanto à

"conduta anti-social (anti-higiênica ou desmoralizante)" das meretrizes que ofendessem a

sociedade e o Estado. A Medicina foi um instrumento como forma de penalizá-la, pois a

polícia devia capturar as prostitutas para exames médicos. Tratava-se, então, de um controle

da sexualidade vista como criminosa pelo discurso da Criminologia: declarava-se ser

necessário uma Polícia Sanitária para criminalizar a prostituição8.

Fosse a prostituição, no discurso da Criminologia, um fenômeno fisiológico, orgânico

ou patológico, ela era vista por moralistas, sociólogos e criminólogos como resultado do meio

social, tendo como principal causa a miséria. O meretrício seria inevitável, pois uma parte

significativa de mulheres somente obteria a sua sobrevivência pela prostituição. Com relação

aos homens, o meretrício seria a única forma de obter satisfação sexual. Segundo diversos

autores, a prostituição era uma necessidade social como “a ante-moral do lar doméstico [...]”,

visto que “não se conhece meio algum eficaz de impedir, coercitivamente, a existência dessa

instituição”.

Candido Motta, que, além de ter sido um dos principais criminólogos da época, seguiu

carreira nos cargos públicos, desde Chefe de Polícia até Secretário da Justiça e Segurança

Pública do Estado de São Paulo, escrevendo em 1897, afirmava que a prostituição era

considerada um "fenômeno social fatal e necessário", como o crime, uma resultante de fatores

antropológicos, físicos e sociais. "A sua necessidade explica-se pelo derivativo que oferece às

7 Idem, ibidem. Loc. cit.

8CREMOSO Karine. P. Estudo teórico sobre a prostituição e as casas de prostituição p.1. Disponível em:

<intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/.../1119> . Acesso em: 08 jun. 2010.

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excitações genéricas muito intensas, que sem ela não respeitariam, talvez, nem a infância,

nem o lar doméstico". Daí, a necessidade de opor barreiras ao vício que, sem elas, se alastraria

num crescendo9.

A sexualidade no lar tinha seus limites, devendo ser respeitada a "natureza" e contidos

os excessos. A relação sexual ali era mantida dentro dos padrões tradicionais, extirpando-se

desvios, mantendo-se a reprodução e a sexualidade sadia. O submundo da sexualidade devia

ser exercido fora do lar, com o sadio e o desvio podendo existir, mas de formas separadas:

eles não caberiam no mesmo teto, nem na mesma rua. A perversão só era possível, portanto,

no mundo da prostituição, cabendo dentro do lar o respeito.

Para alguns criminólogos, apesar da preponderância das causas sociais na explicação

do meretrício, existiam casos patológicos, mulheres que se entregavam "à prostituição pelas

exigências mórbidas do seu organismo” 10

. Lombroso afirmou a existência da prostituição

(feminina) nata, do mesmo jeito que existia a criminalidade (masculina) nata, ambas marcadas

pela hereditariedade11

.

De acordo com esses mesmos pensadores, "a prostituição com as características da que

hoje conhecemos resultou do desenvolvimento urbano"12

. O período de 1870 a 1920 foi

exatamente aquele em que tanto a cidade de São Paulo, como outros núcleos do mesmo

estado (principalmente Campinas e Santos) estavam se formando. São Paulo se transformava

num centro industrial e de serviços, Campinas era o principal centro cafeeiro e Santos o

grande porto do estado, por onde passava toda a exportação e importação de mercadorias e,

principalmente, imigrantes13

.

A urbanização também foi um dos fatores que contribuíram para o surgimento da

prostituição em Riachão do Jacuípe, ou seja, por volta dos anos 50 à cidade acentua o seu

desenvolvimento. É nesse período que chegam à luz elétrica, as indústrias e as rodovias. Foi

então que vieram pessoas, principalmente do sexo masculino de vários lugares para trabalhar

na construção da BR 324 e foi aí que se deu a procura de mulheres para satisfazer o desejo

9 MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade Criminalizada: Prostituição, Lenocínio e Outros Delitos - São Paulo

1870/1920. São Paulo: Revista brasileira de História. vol. 18 n. 35, 1998. Disponível em:

www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102...script. Acesso em: 20 Jul. 2009 10

PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRODE PROTEÇÃO Á INFÂNCIA, Rio de Janeiro. Anais. Rio de

Janeiro: MORAES, Evaristo de. "Prostituição e Infância", 1925. 10 p. 11

ABREU, Waldir de, Op. cit., p. 19. 12

MORAES, Evaristo de. Op. cit., p. 10. 13

Sobre a cidade e são Paulo consultar: FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano. A Criminalidade em São Paulo

(1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1983. In CRUZ, Heloísa Faria. Trabalhadores em serviços: dominação e

resistência. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990.

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sexual dos trabalhadores. Sobre esse momento, observa Dedê14

uma das primeiras moradoras

do bairro:

Isso tudo era lama. A luz não era, era luz de motor, nem acendia digamos sete horas

quando era dez horas ia embora. Ia muitas firmas em Riachão umas quatro a cinco

firmas. Naquela época aqui era um movimento doido, era um movimento estrupido

era muito movimento, muita mulé, muleres jovens.15

Nesse ambiente urbano as opções de trabalho feminino ainda são limitadas destacando

o comércio informal e, em casos extremos, em que essas opções não estavam disponíveis dá-

se a prostituição diante de um cenário de dificuldade e pobreza. Mais tarde, nas décadas de

1980 e 1990, a crise do sisal no nordeste baiano, contribuiu também para o empobrecimento

da população e o aumento da prostituição. Veja-se nesse sentido o relato de Dona Idalina,

antiga profissional do sexo na região:

Naquele tempo eu sofria muito. Naquele tempo eu vendia minhas carnes para comer,

né isso, perdendo noite, dando boa vida a dono de abuate. Naquela vida era uma

vida precuaria, uma vida de sofrimento, mas a gente vivia tudo na honestidade(...)16

Segundo Moraes, a grande indústria "tende a destruir os elos e freios familiares". Os

baixos salários femininos faziam com que a prostituição fosse "um fenômeno econômico,

como sendo o complemento do salário insuficiente, ou a falta absoluta de salário". 95% das

prostitutas, nessa perspectiva, vinham das classes pobres.17

Fica assim evidente a relação ambígua entre a rejeição e a aceitação da prostituição.

Por um lado sua figura feria a conduta, a moral e os bons costumes da sociedade, e por outro

não deixava de atender as vaidades masculinas que viam nas meretrizes o cumprimento de

suas fantasias e desejos já que para a estrutura familiar e social a relação entre o casal era de

respeito, ou seja, não cabiam os ímpetos do desejo masculino.

Diante da visão comum das pessoas, e do preconceito existente, a imagem da

prostituta quanto ao seio familiar é de que a mesma não tem apoio ou afeto da sua família, ou

seja, é sozinha na vida. Porém, um olhar mais atento evidencia uma realidade diferente, fator

relevante surge neste contexto que vai quebrar essa visão na qual as prostitutas

frequentemente eram uma fonte de renda para suas famílias e contribuíam com a economia

local como consumidoras de produtos e serviços. É o que se constata, por exemplo, na fala de

14

Uma das primeiras moradoras do bairro da Rua do Fogo 15

FERREIRA, L.; BRITTO, Kall. Documentário: Rua do Fogo - Memórias do Baixo Meretrício. In. III

encontro de cinema Negro Brasil/África Américas. Rio de Janeiro, 2009. Riachão do Jacuípe. 2009. 1 CD 16

Idem, ibidem. Depoimento de Dona Idalina, antiga profissional do sexo na região: 17

MORAES, Evaristo de. Op. cit., p. 158-160.

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Maria de Lurdes, lavadeira, que afirma ter lavado roupas das prostitutas da Rua do Fogo.

Segundo dona Maria de Lurdes ela criou seus filhos com a ajuda das prostitutas que ao voltar

de suas viagens ainda traziam presentes para seus filhos. E mesmo diante do preconceito da

maioria da sociedade ela se orgulha de ter convivido com as prostitutas. Segundo Maria de

Lurdes elas eram seres humanos também.18

A despeito dessa inserção as prostitutas eram descriminadas na sociedade jacuipense

tendo como único espaço de expressão uma festa religiosa: a festa de São Roque. Para melhor

entendimento desse espaço e dos seus conflitos cabe uma breve caracterização da sociedade

jacuipense. A cidade de Riachão do Jacuípe situa-se a margem da BR 324 encontra-se a 75

km da cidade de Feira de Santana, no semi-árido baiano, distanciando-se a 183 km de

Salvador, capital do Estado da Bahia.

Riachão do Jacuípe na década de 40 e 50 era uma pequena cidade e continua sendo em

relação à extensão territorial e carrega traços culturais característico de cidade pequena, ou

seja, as relações sociais se davam de forma rápida, pelo fato de todos se conhecerem os

acontecimentos acabavam chegando a todos os habitantes com certa velocidade. De acordo

com a memória local a maior parcela da população professava o Catolicismo, sendo que se

observava em meio à população subalterna como da Rua do Fogo e outros, além da devoção a

São Roque havia também seguidores do Candomblé que louvam São Roque e os Orixás

Obaluaê ou Omolu. Porém, era notória a proibição de batuques naquela época. A respeito de

tal comportamento da sociedade Rachel Soihet vem falar dos objetivos e métodos usados por

policiais para combater as manifestações culturais e para elucidar ela cita como exemplo a

Festa da Penha no Rio de Janeiro mo momento da transição para a modernidade:

O objetivo da repressão era não só o problema da ordem publica, ameaçadas por

roubos e conflitos supostamente sugeridos entre os populares, como também as

manifestações culturais destes grupos, tais como a capoeira, o batuque, o samba etc.,

sendo apreendidos os instrumentos que os acompanhavam: violão, pandeiro e

outros. Sobre a vertente de origem negra das manifestações populares recaía com

maior ênfase o viés preconceituoso, limitando a repressão19

.

Em meio a esta opinião preconceituosa da sociedade, ou seja, da elite era nesse

período que a base econômica dos jacuipense predominava a agropecuária de bovino, suíno,

ouvino e caprino movimentando a economia da região, além da criação de gado que tinha

como referência a bacia leiteira da região, sem esquecer a agricultura de subsistência, as

18

CONCEIÇÃO de Oliveira, Maria de Lurdes. Lavagem de São Roque. Casa da entrevistada: 2008. Riachão do

Jacuipe. 10 Jul. 2008. Entrevista concedida a M. N. de Lima 19

SOIHET, Raquel. Festa da Penha: resistência e interpretação cultural (1890-1920). In CUNHA, M. C. P.

(org.), Carnavais e outras f(r)estas, Campinas: Unicamp, 2005. p. 355.

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pessoas se ajudavam e compartilhava de muita abundância na alimentação e colheita. Os

números de fazendas de gado foram aumentando de forma significativa, os fazendeiros

movimentavam a economia local, e também exerciam certa autonomia na cidade.

Pensando em autonomia o plano político, indica que se trata de uma região

tradicionalmente controlada por grandes proprietários rurais e comerciantes. Pode-se afirmar

que até meados da década de 80, o quadro político local era marcado por formas tradicionais

de dominação que remontam ao “coronelismo” do início do século passado, observava-se ao

lado de suas casas de fazenda o tronco que estava ali como símbolo de poder e autoridade do

senhor. Nesse sentido, afirmam Padrão e Pinheiro, o “poder local”, expressão hoje tão em

moda, não era ali uma redução do conteúdo da informação de um conceito; ao contrário,

encontrava-se bem fundado em relações personalizadas de mando, que, segundo relatos,

intimidavam pessoas ou grupos a não questionarem a dominação a que se encontravam

submetidos.20

Um elemento comum aos municípios da região era, até recentemente, a forte

deficiência de infra-estruturas e serviços sociais. Às precárias condições de acesso à água

presentes tanto nas comunidades rurais como em bairros urbanos, somavam-se deficiências

nos serviços de saúde, carência de escolas, professores e material didático, inexistência de

infra-estrutura de esportes e lazer, serviços de comunicação e transporte insuficientes.

É nesse contexto que os grupos subalternos principalmente na Rua do Fogo na qual se

formava com rua estreita que vai se enlarguecendo, com casinhas bem juntinhas, uma colada

na outra que dava acesso a outra rua. Um bairro humilde, constituído de moradores de baixa

renda como: magarefes, lavadeiras, pedreiros, as fateiras, os carroceiros e açougueiros. A

afro-descendência é muito marcante. Tem também o Rio Jacuípe, que corta toda a Rua e boa

parte da cidade. Segundo a população nesse período quando as enchentes chegavam alagavam

todas as casas das ruas. Na beira do rio, as antigas profissionais do sexo criavam seus filhos,

tratavam os fatos de boi, pescavam.

A Rua do Fogo gerava a economia da cidade e a prostituição era só uma conseqüência.

Lá, tinha fábrica de balas, batedeiras de sal, olarias na beira do rio, tudo na Rua do Fogo ou

adjacências. E lá se localizava os baixos meretrícios de inicio se dava os encontros furtivos

em locais com estrutura de bodega, como ressaltei anteriormente as ruas não eram asfaltadas e

não tinha luz elétrica na cidade, mas era lá que recebiam inúmeras mulheres das regiões

20

PADRÃO, Luciano Nunes In PINHEIRO, Maria Lúcia Bellicanta. Um estudo de impacto: o

programa de pequenos projetos da CESE na Região do Sisal. Salvador: CESE, 2004. Disponível

em:< www.cese.org.br/.../Cese%20-%20Estudo%20de%20Impactos%20-%20Relatrio%20Final%20(v_08-10-

04).doc> Acesso em: 8 jul. 2009.

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circunvizinhas, depois na década de 60 a prostituição ganha um novo cenário com os avanços

urbanos e então começam a surgir as Boates. Uma delas que ganhou destaque foi a Boate

Refúgio. Dona Bernadete descreve a Rua do Fogo da seguinte maneira:

A Rua do Fogo era o seguinte tinha coisa tinha buate muita coisa que não prestava,

mas o povo gostava de fazer muita zonzeira muita coisa aí chamou Rua do Fogo.

Que era a rua que tinha mais movimento e que tinha mais transito. Hoje é uma rua

de família mais eu alcancei sendo rua que só passava mesmo quem fosse da

mangueira, quem fosse do brinquedo, quem não fosse não passava.

O dia de Sábado mesmo, família quase nenhuma passava porque não prestava não

dava pra passar. (...) movimento brega, cabaré tinha uns quatro a cinco, tinha bem

uns oito, todo lugar que vendia cachaça tinha dança, cada lugar que tinha dança

tinha mulher e tinha movimento.21

Naquela época, a vida noturna era somente na Rua do Fogo. Doutores, filhos da elite

de Riachão que estudavam em Salvador, iam para Riachão no fim de semana buscar diversão

na Rua do Fogo. O Centro, a rua de cima, era da elite. E lá, tinha horário para dormir, acordar,

e não podia ter barulho, por isso as mulheres do baixo meretrício eram impedidas de subir. Na

época, tinha um sargento que ficava na vigília para barrar a subida das prostitutas. Um amigo

de confiança das mesmas, uma espécie de cafetão, era quem combinava os encontros, era

quem comprava remédio em farmácia, levava e pegava carta em correio, porque elas eram

proibidas de ir até a rua de cima. Só as mais ousadas como Cheirinho, segundo seu próprio

depoimento, é que enfrentava e subia.

Há seu Dilo inspetor se um, a mulher subisse na rua de chorte com as pernas de fora

ele cobria o reio, agora comigo não que eu era ousada, eu ia mesmo. Vestia o mais

curta que eu tinha e ia não é não ninguém abriu o caminho já achou aberto, se

tivesse em um bar e uma mulher solteira chegasse todo mundo saia não queria

aceitar22

Pessoas da alta sociedade que o dia estava com sua família e a partir das dez horas

iam saciar seus desejos e fantasias, o que cabe então uma reflexão porque recriminar as

trabalhadoras do sexo já que a alta sociedade participava ativamente ou porque não dizer

eram eles os responsáveis pela manutenção das casas. O que nos leva a pensar que a

aparência era o elemento fundamental dessa ordem social. Quem vem elucidar isso é a

ex- prostituta Cherinho: “Os homens da sociedade era quem vinham naquele tempo, mas antigamente

era”.

21

FERREIRA, L.; BRITTO, Kall. Documentário. Rua do Fogo - Memórias do Baixo Meretrício, 22

Idem, ibidem. Depoimento de Cherinho, uma ex profissional do sexo.

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12

Segundo o depoimento de Armando Colombina afirma também que naquele período

as mulheres vinham de vários lugares sendo a descontração dos estudantes jacuipense:

Juazeiro, Bom Fim, Petrolina, todo essa região vinha muler. Todos os estudantes

daquela época filho de Riachão que estudava em Salvador, o fim de semana ia

curtir lá em casa porque aqui tinha muitas muleres bonitas, nova e eles

fraquentavam e eram bem recebidos.23

Segundo o depoimento de Edílson um cafetã, os freqüentadores dos meretrícios eram:

Duca, era seu Lauro Coletor, meu tio que é Reginaldo, Naginho é médico analista

mora em Ipirá, Mundinho de Zé de Cândido que era Ortopedista esse povo tudo

freqüentava, Vaginho,Plínio esses homens tudo vinha era de dentro.24

É nesse espaço que fica evidente a distribuição dos grupos subalternos, e a pouca

aceitação formal desses indivíduos em conviver com a sociedade, grupos que são

marginalizados e excluídos do contexto social jacuipense.

Figura 1 Imagem da Lavagem de São Roque. Riachão do Jacuípe. Ano 2009

Na cidade de Riachão do Jacuípe das décadas de 30 e 50 o espaço encontrado pelas

prostitutas para estar inseridas na sociedade foi a Lavagem de São Roque. Cabe aqui, porém

uma breve caracterização histórica deste festejo.

23

FERREIRA, L.; BRITTO, Kall. Depoimento de COLOMBINA, Armando um cafetã 24

PEREIRA, Edílson. Nasceu em 28.02.1951, em Riachão do Jacuípe.

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13

O culto aos santos, desde os tempos da Colônia se apresenta como a grande expressão

do Catolicismo no Brasil. As aventuras e desventuras de personalidades que simbolizam o

ideal de pureza e bondade desdobram ao longo dos séculos, ratificando condutas e

comportamentos sociais, que a ótica da Igreja Católica deveria ser seguida pelos fiéis.

A lista de santos e santas que povoam o universo católico no Brasil é muito grande,

cada um com papel específico na condução das almas. A figura de São Roque é identificada

como: “Padroeiro dos inválidos, cirurgiões, protetor do gado, contra doenças contagiosas e a

peste”. Acompanhando então a história de vida de São Roque para melhor nos situarmos com

essa questão, temos as informações de que ele é um santo da Igreja Católica Romana, que

protege contra a peste e é padroeiro dos inválidos e cirurgiões. É também considerado por

algumas comunidades católicas como protetor do gado contra doenças contagiosas. A sua

popularidade, devido à intercessão contra a peste, é grande, sendo o Santo de muitas

comunidades em todo o mundo católico e padroeiro de diversas profissões ligadas à medicina,

ao tratamento de animais e dos seus produtos bem como dos cães. A sua festa celebra-se no

dia 16 de Agosto.

O culto a São Roque foi difundido em nosso país com a chegada dos colonizadores

portugueses no portal de 1500 e na contemporaneidade mantém-se com o mesmo vigor em

diversas cidades baianas. Em sua pesquisa sobre São Roque, Benevides nos informa que no

Brasil, o culto a este santo sempre esteve ligado às epidemias de doenças contagiosas 25

. Por

volta de 1850, estavam ocorrendo epidemias de cólera por todo Brasil26

: “Na Bahia, ela chega

entre 1855 e 1856 [...] causando a morte de quarenta mil pessoas principalmente em Salvador.

Em Riachão do Jacuípe o culto remonta a 1904, quando o flagelo da peste acometeu o

povo Jacuipense, semelhante ao que aconteceu em Santos (SP) e Salvador (Ba). Como

conseqüência da epidemia de peste na região de Riachão do Jacuípe a sociedade adotou a

devoção á São Roque, ao lado de Nossa Senhora da Conceição padroeira oficial. Desse modo

o santo tornando-se Co-padroeiro e santo protetor da cidade, que é festejado no dia 16 de

Agosto, data de seu sepultamento em Montpellier, na França, em 1379.

Uma vez que enfrentavam a reprovação social, não conseguiam freqüentar os eventos

religiosos cotidianos da Igreja Católica, as prostitutas recorriam á Festa de São Roque para se

fazerem reconhecidas na sociedade. Saíam em grupo, em procissão festiva que partia da Rua

do Fogo, atual Barão do Rio Branco em direção as principais ruas da cidade com o objetivo

25

BENEVIDES, Nete. A Louvação das prostitutas de Riachão do Jacuípe ao Glorioso São Roque. Salvador:

Secretaria da Cultura e Turismo, FUNCEB, 2006, p. 56 26

O autor, na verdade refere-se equivocadamente á peste bubônica.

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de louvar São Roque e mesmo momentaneamente marcar um espaço, uma identidade própria,

na sociedade, integrando-se a outros grupos sociais.

A Lavagem da Rua do Fogo, ou seja, a procissão do dia 15 de Agosto tornou-se o

maior evento para a população que habitava naquele espaço. Representava o sentimento

religioso, artístico e cultural, alimentado pela fé no Santo Padroeiro que para muitos

integrantes da religião do candomblé, sincretiza-se com o orixá Obaluaê.

Nas antigas lavagens da rua do fogo as mulheres acompanhavam o cortejo com

porrões com água de cheiro, enquanto dançavam enfileiradas e protegidas por

correntes dos dois lados. Além das raparigas. O cortejo era composto por homens

caboclos e jumentos enfeitados que carregavam água para lavar a Igreja de nossa

Senhora da Conceição27

A Lavagem de São Roque possui a riqueza de várias tradições que foram sendo

incorporadas. Existem significados que se entrecruzam, crenças que unem o sagrado ao

profano. Os momentos de sociabilidade já ocorriam durante a preparação das atividades,

especialmente nas festividades promovidas pela população na arrecadação de fundos para a

realização da festa: eram doadas prendas para o leilão por todos os seguimentos sociais, desde

pessoas influentes até os mais humildes contribuíam com os festejos na cidade. Em sinal de

gratidão e fé, anualmente, nos dias 15 e 16 de agosto era realizado o novenário na Igreja

Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Feira de comidas típicas, leilões, entre outros jogos,

além de três alvoradas e a tradicional procissão religiosa acompanhada pela Filarmônica Lyra

Oito de Setembro. Segundo depoimento de José de Aquino, conhecido como Seu Zico,

naquele tempo a festa de São Roque começava nos dia 13 para 14 e 15 para 16 de agosto, e

relata:

Vinham os Barbeiros de Pé de Serra, quando também existia aqui o terno de Aleluia

que tocava juntamente com o tradicional Barbeiro de Pé de Serra. No dia 14 fazia as

matinas, tocava às cinco horas da manhã, tocando na porta da Igreja e os sinos

tocando. Ao meio dia eles iam à porta da Igreja, tocava as músicas que eram

adequadas àquele momento e o sino tocava meio-dia, e repicava anunciando a festa,

a mesma coisa às seis horas.

No dia 15, celebrando a missa de Nossa Senhora [havia] muito foguete, muito

foguete já. Às vezes até a Filarmônica tocava e gente já participando da festa. Missa

festiva às 10 horas, a Filarmônica e os Barbeiros tocando a noite [...]

Dia 15 também era feito a Lavagem. O que era a Lavagem? Por muitas vezes grupo

de senhoras e moças ficavam na Igreja lavando a Igreja. E os Barbeiros, o terno de

Barbeiro tocando na rua acompanhada pelas prostitutas. Era o dia em que elas

tinham de diversão, de divertir [...] mais nesse dia elas iam dançando, cantando,

sambando acompanhado pelo terno de Barbeiro....28

27

BENEVIDES, Nete., 2006, p. 110. 28

AQUINO, José. Lavagem de São Roque. Casa do entrevistado: 2008. Riachão do Jacuípe. 07. 12. Dez. 2008.

Entrevista concedida a M. N. de Lima

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No dia 16, o ultimo dia de festa, percebe se uma diferença, ou seja, a festa agora era

realizada a parte, sem a presença das prostitutas. Jose de Aquino descreve esse dia assim:

Os barbeiros faziam as matinas cinco horas da manhã. Como já foi dito às 10 horas

tocava a missa de São Roque, juntamente com as Filarmônicas. Às duas horas iam

pra rua com moças da elite. Aí já era o destaque, a diferença. Quer dizer, as moças

da de condição fazer o banho de precatório. Era a toalha de mesa ou um lençol

seguro por moças desfilando nas ruas para arrecadar fundos arrecadar dinheiro para

a comissão da festa. Era acompanhado também pelo terno de barbeiro, pós esse

desfile pós arrecadação em quase toda a cidade. Às quatro horas era realizada a

procissão que ao chegar à frente da Igreja era dada a benção do santíssimo e

encerrada a festa de São roque (....)29

A festa começou partir da década de 1920, mas ganha impulso por volta de 1930, com

a organização de Abdias Carneiro. Este fez uma promessa para São Roque que se o Santo

livrasse os jacuipense das doenças, todo ano faria uma festa para ele. Assim, durante 59 anos,

Abdias administrou os festejos religiosos ligados a Igreja e a Procissão da Rua do fogo em

louvor a São Roque. Abdias nasceu em 28 de abril de 1905, era filho de Jovita Leonília

Carneiro e de Joaquim Carneiro da Silva, próspero comerciante jacuipense, que fora também

Intendente e Juiz de Paz do município, além de ser descendente de uma das famílias que

fundou Riachão do Jacuípe.

Desde criança Abdias participava dos festejos a São Roque, mas só em 1938 passou a

organizar a festa. Quando esteve por conta da organização da Lavagem de São Roque

observava-se uma maior participação das prostitutas. Ele se dedicou à preparação com muita

dedicação e, mesmo não sendo de classe desfavorecida, talvez por ter uma mentalidade mais

aberta, não fazia distinção de classe ou etnia. Convidava a todos para louvar o Santo, o que

resultava em uma maior participação da população Jacuipense, e as prostitutas eram um dos

segmentos que participavam da Lavagem. Segundo Antônio Cedraz Mascarenhas, filho de

Abdias:

Quem deu embalo foi Abdias porque ele aí deu impulso, gente que dizia Ave Maria

que mulheres não podiam vim na rua de jeito nenhum só depois das dez horas da

noite. E aí quando ele tomou conta ele aí abriu, jogou solto, deu a liberdade da tarde

e deu liberdade da manhã e não tinha nenhum desrespeito, toda vida na festa e na

alvorada (...) você não via nenhuma discussão, era com o maior respeito do mundo30

No período em que Abdias Carneiro organizava os festejos de São Roque, havia um

planejamento anterior aos dias da festividade. O senhor Abdias já encomendava com Leandro

29

AQUINO. Op. Cit.. 30

MASCARENHAS, Antônio Cedraz. Lavagem de São Roque. Casa do entrevistado: 2010. Riachão do Jacuípe.

07. 07. Jul.20 10. Entrevista concedida a M. N. de Lima.

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Fogueteiro, os fogos do ano seguinte no final da festa. Ele enviava cartas para os moradores

da zona urbana e da zona rural, solicitando prendas (brindes) destinadas aos leilões que

ocorriam na noite da novena de São Roque, nas cartas ele dizia:

Aproximando dos festejos do Glorioso São Roque, viemos através dessa carta pedir

uma prenda pra o glorioso santo para que sejam feitas as despesas da festa do

glorioso São Roque, na certeza que, o glorioso São Roque irá continuar sempre a

nos livrar da peste.31

No que confere à organização da festa, Benevides ressalta:

Abdias não era um homem de muitas palavras ou grandes demonstrações afetivas,

no entanto tinha um grande amor pelos festejos pelos qual era responsável.

Bernadete Pereira de Oliveira, que foi porta-bandeira, no tempo em que Abdias

campeava sobre a organização anual da festa, é testemunha ocular da época: “oxente

se a gente não fosse ele chorava, seu Abdias chorava, chegava a derramar as

lágrima, ele não salvava ninguém, num conversava com ninguém mais a bandeira

que entrá a bandeira32

.

Quando doente escreveu uma mensagem no livro de novena pedindo à população

jacuipense que não deixasse a festa São Roque se perder. A mensagem dizia:

Querido povo Jacuipense

Ao se celebrar a primeira festa do “Glorioso São Roque” sem a minha” “presença

física”, conclamo a todos para que se empenhem, o máximo para que ela não se

perca com o tempo, mesmo se minha família vier a ficar de fora, por conseqüências

ingrata do homem. A festa de São Roque já é uma tradição de nossa querida

Riachão, porém as dificuldades da nossa região a tornaram menos brilhante na sua

essência dos anos passados: mas o povo continua participando na sua piedade e

perseverança, graças a vossa fé neste santo que com zelos tão fervorosa os a todos

curais. Rogai por todos, Oh! São Roque!

E assinando no final33

É importante observar que a Lavagem foi ignorada pela igreja Católica, por constituir

a parte profana da festa, além de não aceitar que São Roque fosse o segundo padroeiro da

cidadejá que a primeira era Nossa Senhora da Conceição. Esse festejo, realizado pelas

prostitutas da “Rua do fogo”34

percorria todas as ruas da cidade acompanhada por uma

bandinha de sopro “os Barbeiros”35

.

31

Idem, Ibidem. p. 137. 32

BENEVIDES, Op. cit. p. 141. 33

IGREJA MATRIZ DE RIACHÃO DO JACUÍPE. Novena do glorioso São Roque. Feira de Santana: J. M. A.

Comercial Gráfica, [2003?]. 34

Chamada assim por abrigar um alto número de prostíbulos, como também uma clara alusão ao incêndio que

ocorreu na região de Mataripe, na década de 60, quando o fogo que tomou uma das peças de petróleo da refinaria

Landulfo Alves era avistada ao longe pela população de Riachão do Jacuípe. 35

Músicas que tocam de ouvido, sem partitura, se assemelha ao estilo de Filarmônica.

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Durante a Lavagem de São Roque, as mulheres se vestiam com roupas com muito

brilho e acessórios extravagantes, desfilavam com bandeiras, cantando e dançando durante

todo o percurso, que culminava com a lavagem da Igreja Matriz pelas próprias prostitutas.

Figura 2 Festa de São Roque. Ano de 1997. Em

primeiro plano Idalina Soares da Hora (porta- bandeira)

uma ex-profissional do sexo

Figura 3- Imagem da lavagem de São Roque, 1997

Segundo informações orais de uma ex-participante da lavagem, era este o „único‟ dia

em que elas estavam livres para percorrer a cidade como integrantes da sociedade. “As coisas

que eu brincava no meio delas tudo só era a Lavagem aqueles outros negócio não era” 36

.

Essa fala de Dona Bernadete na citação acima vem evidenciar uma contradição muito

presente em todas as falas dos entrevistados: o preconceito estava impregnado não só

naquelas que se dizia de “famílias de bem”, como as próprias prostitutas demonstravam ao

afirmar que a rua “não prestava”.

Em cada lugar, a festa de são Roque tem características singulares, mas todas elas são

realizadas a partir de referências comuns, ativadas pela memória coletiva que envolve o santo

protetor contra as doenças contagiosas. Vejamos o ideal construído em torno da imagem de

São Roque através das orações e do hino de São Roque rezadas nas novenas:

Hino de são Roque

Ó são Roque pai amável

Que doce contentamento eu sinto a cada momento Teu Santo nome invoca

Refrão: Salve, salve, salve São Roque

Protetor universal

Que nos livra sempre da peste

E nos guarda de todo mal

Ó São Roque glorioso

36

FERREIRA, L.; BRITTO, Kall. de Dona Bernadete uma ex profissional do sexo.

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Que só um anjo celeste

Mandou – vos Deus ajudar

Contra o contágio da peste

Rogai por nós, oh! São Roque diante do sumo bem pra que nos livre da peste

Trazendo nos lábios

Teu nome São Roque eu te chamo dia e noite como filho eterno Pai.37

Esta citação se faz relevante, pois, ilustra muito bem o valor e a fé ao santo exaltado.

Ao proferir palavras de exaltação ao santo, há um estreitamento dos laços entre as „pobres

criaturas pecadoras‟, que rogam por sua proteção e bondade. Já que era o santo da cura,

bondade, da caridade e que ajudou os pobres e os doentes.

Contudo, em 1930, as mulheres da antiga „Rua do Fogo‟, atual Barão do Rio Branco,

localizada na área do meretrício Jacuipense, tiveram acesso às comemorações de São Roque.

Também considerado protetor das raparigas38

do sertão, o santo iria protegê-las das doenças

como a sífilis à qual estavam expostas devido a sua profissão. Ou seja, a devoção das

prostitutas mais velhas ao santo, justifica-se pelo fato de considerá-lo como protetor das

doenças venéreas e como aquele que iriam „absorvê-las‟ dos „pecados da carne‟. Além disso,

pode-se considerar também que a festa era um momento de embate político, na medida em

que representava a luta dessas mulheres pela inserção na sociedade.

Na verdade, as prostitutas aproveitavam dessa festividade, desse evento anual, para se

afirmarem socialmente como cidadãs e como a padroeira Nossa Senhora da Conceição era

uma festa religiosa de maior participação elitizada, acabava excluindo os outros grupos

sociais. Nesse sentido, Benevides afirma que:

As raparigas levadas pelo fervor dessa devoção, porém oprimidas e excluídas dos

festejos pela tradicional sociedade local, instituíram para a tarde do dia 15 de Agosto

um evento festivo pelas ruas da cidade, para o qual levou uma grande parcela da

população ecomonicamente menos privilegiada, como; feirantes, magarefes,

lavadeiras , carroceiros e coveiros os quais vivem na expectativa dessa encanação

anual escrita no calendário Jacuipense. 39

Assim, uma vez que as prostitutas não acharam espaço para estarem integradas à

sociedade Jacuipense, a Lavagem de São Roque acabou tendo mais um significado, ou seja,

tornou-se um pretexto, mesmo que inconscientemente, para inserção social, apresentando-se

como espaço alternativo, que abrigava de forma mais igualitária a participação de todos.

Vale lembrar, porém, que esse contexto não é exclusivo de Riachão, mas que se faz

presentes em outros lugares, como Feira de Santana, onde a festa religiosa era marcada

também por dois momentos: a Procissão e a Lavagem de Santana (sendo esta ultima a parte

37

Cântico do glorioso São Roque. [s.n], 16 de Agosto de 1995. 38

Termo utilizado para se referir as prostitutas. 39

BENEVIDES, Op. cit. p. 19.

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19

profana ). A Lavagem era o momento em que a maior participação era do „povo‟ contando

com a participação dos organizadores da Festa religiosa.

No caso da festa feirense, de acordo com a programação oficial, em 1945, a Lavagem

era vista como:

Festa do povo

No dia 25 de Janeiro, quinta- feira, o nobre povo feirense estará nas ruas da Cidade,

em explosões de alegria e de reconhecimento, levando a Santana orações de risos e

de sons.

A Cidade inteira estará de pé, contente e sadia, ao lado da divina Padroeira.

É a tradicional Lavagem, manifestação simples, mas sincera, dos humildes, dos que

sofrem resignados e esperançosos.40

O segundo momento, a festa Religiosa “A missa Solene”, era na verdade, uma missa

grandiosa realizada depois de sete dias depois do bando anunciador, sempre pela manhã que

era celebrada por vários sacerdotes. Essa missa reunia orquestras, maestros, e filarmônicas.41

Em que se percebia o luxo e requinte para louvar Santana. O programa da festa assim o

descrevia:

Dia 26

É o dia máximo de grandiosidade e esplendor, porque é o dia da Festa.

Nesse dia extraordinário tudo será melhor e mais completo. Toda a Feira irá pôr aos

pés da Padroeira, as flores do seu amor e de fé. As matinas, a novena, a tocata, feita

pela „EUTERPE FEIRENSE‟ terá uma concorrência fora do comum. [...] A noite

desse grande e glorioso dia tocará ao auge e animação no Largo da Matriz, sob

nuvens de lança-perfume e os doces sons da sympathisada.

Características parecidas a essas citadas se davam também em Salvador, com a Festa

de Nosso Senhor do Bonfim. Esta festa é considerada a mais importante das comemorações

de largo de Salvador. O religioso (a parte sacra da festa) inicia-se com o novenário que se

encerra no segundo domingo após o Dia de Reis, ou seja, 06 de Janeiro. A festa realiza-se no

Largo do Bonfim, bem em frente à igreja, no alto da Colina Sagrada, na última quinta-feira

antes do final do novenário e é marcada pela lavagem da escadaria e do adro da igreja por

baianas vestidas a caráter, trazendo na cabeça água de cheiro para lavar o chão da igreja e

flores para enfeitar o altar.

O outro momento, considerado com a parte profana, dá-se com „A festa da lavagem‟ é

atribuída à promessa de um devoto. O cortejo parte ainda pela manhã da Igreja de Nossa

Senhora da Conceição da Praia e vai até o Bonfim, arrastando multidões. Contando com a

40

SILVANIA, Maria Batista. Conflitos e comunhão na festa da padroeira em Feira de Santana (1930 -

1950). 1997. Monografia (Especialização em Teoria e Metodologia da História), Universidade Estadual de Feira

de Santana. Feira de Santana. 1997. p. 37. 41

Idem, ibidem, loc. cit. p. 38

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20

presença de autoridades civis e militares, artistas e personalidades da cidade de Salvador, da

Bahia e do Brasil. Até a década de 50 as baianas tinham acesso ao interior da Igreja, onde o

chão era lavado "com energia e entusiasmo" até que as autoridades eclesiásticas limitaram a

lavagem apenas ao adro da Igreja.42

Por meio de um universo de contestações sociais que visam manter a ordem está

situado o fenômeno da prostituição, no qual os discursos jurídicos, criminalistas e médicos

ditam as regras e formulam comportamentos adequados. Mas então como trabalhar com uma

sociedade que discrimina e ao mesmo tempo mantém a prostituição? E aos homens até que

ponto torna-se vantajoso a permuta encontrada na harmonia de seus lares por noites em

bordéis?

A historiadora Margareth Rago, da sua interpretação quando ela menciona que no

bordel “buscava-se não apenas a transgressão dos comportamentos moralmente sancionados,

mas também os excessos, as fugas, os êxtases e a realização dos desejos que outrora eram

negados em casa,”43

visto que a sexualidade dentro do lar tinha suas limitações.

Nessa perspectiva dois conceitos se tornam fundamentais para a compreensão do

trabalho. Os conceitos de Gênero e de Prostituição, dando ênfase às questões de moralidade

que padronizavam comportamentos e ditavam regras para a manutenção da ordem.

Segundo Gisele Ferreira na visão Michel Foucault,44

todos os discursos sobre o sexo e

sobre a sexualidade passaram a existir no momento em que se precisavam controlar os corpos

na ascensão da classe burguesa e em nome de seus referenciais de moralidade. Pode-se dizer

que o discurso vai se alterando conforme as práticas sociais, mudando de acordo com a época

ou período da história, dependendo das relações de poder vigentes. E, é no século XIX que a

idéia de separação entre o público e o privado vão se aprofundar, e às mulheres, delimita-se os

espaços privados.

A prostituição em Riachão do Jacuípe não é um fenômeno único. Mas para uma melhor

compreensão do significado cultural e social desse fenômeno, faz-se necessária a utilização

da categoria gênero, através da qual os papéis sexuais são concebidos como construções

históricas diferenciadas. Essa categoria, ao incorporar a dimensão das relações de poder e das

relações entre homens e mulheres, possibilita a percepção dos poderes informais femininos

42

VERGER, Pierre. Lavagem do Bonfim: Tradições e Representações da Fé na Bahia. Disponível em:

<www.naya.org.ar/.../ponencias/Luis_Americo.htm>. Acesso em 11 de jul. 2010. 43

RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade em São Paulo, 1890-1930.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 188. 44

FERREIRA, Gisele Gaspar. Prostituição e criminalidade: o cotidiano e os conflitos nos bordéis ponta

grossenses nas décadas de 1930-1940. Disponível em: <htpp:/www.fazendogenero8.ufsc.br/sts.> Acesso em:

11de Jul. de 2010

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permitidos por uma situação de sujeição, que nesse contexto histórico, devem ser entendidos

como contra-poderes sedutores e ilícitos que resultavam em uma existência mais autônoma

para as prostitutas Jacuipense.

Enquanto o social dorme, é possível encontrar um submundo diferenciado em certas

ruas, em alguns bares, nos cabarés, em salas pouco iluminadas e enfumaçadas, onde

as tensões urbanas e sociais emergem, e essas são formas fragmentadas e

diversificadas de vivências. Onde seus freqüentadores fazem da cidade, um lugar

para se trabalhar durante o dia, e fazem da noite um lugar para se divertir e viver

suas aventuras e desventuras.45

Ainda em discussão está o comportamento de uma sociedade com considerável grau

de preconceito, que são ditados pelas normas de moralidade, e nesse mesmo contexto estão

inseridas as atitudes masculinas diante do cenário de contestações femininas, que questionam

a autoridade do homem e buscam novas formas de sobrevivência.

O contato com as fontes possibilita a identificação de profundas marcas de opressão e

exclusão das prostitutas na sociedade jacuipense, seja pela Igreja Católica, ou até mesmo pela

força repressora da polícia. Ao que nos consta, elas eram proibidas de circular normalmente

pela cidade, principalmente durante o dia, e de freqüentarem as festas em clubes ou locais

abertos, já que a presença das mesmas significava uma ofensa à moral e aos bons costumes

das “pessoas de bem”. Para as „moças de família‟ qualquer aproximação poderia deixá-las

mal falada se tal ato constituía uma preocupação constante das mães para com as filhas. Para

os homens, essas mulheres nada mais eram do que um “objeto sexual” que lhes

proporcionaram certo prazer durante algumas horas na noite. Aliás, freqüentar os prostíbulos

era sinal de virilidade. Era comum inclusive, que a vida sexual de muitos jovens se iniciasse

lá.

Essa concepção da classe burguesa significava eliminar focos de doenças que

impregnavam a cidade, e dentre os atores vistos como portadores dos males doentios, estavam

às mulheres prostitutas, ou as “decaídas”, como eram vistas pela população e certificadas pela

imprensa. Essa última citação evidencia claramente o preconceito, discriminação e medo que

a sociedade Jacuipense sentia diante das profissionais do sexo fazendo com que essa categoria

fosse excluída e marginalizada. Tal preconceito é relatado ainda por dona Idalina, ex-

moradora da Rua do Fogo, ao comentar a recusa das „mulheres de família‟ em transitar ali, ao

afirmar “a Rua do Fogo era igualmente a rua de família você não via devassidão [...] as

45

FERREIRA, Op. cit. Disponível em: <htpp:/www.fazendogenero8.ufsc.br/sts.> Acesso em: 11de Jul. de 2010.

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mulheres casadas que se julgava de passar. Se passasse acho que a doença da gente ia pega

nelas”46

.

Resistência e opressão vivida pelas prostitutas

A sociedade Jacuipense, cuja origem remonta a 1878, é firmada sobre uma postura e

estrutura conservadora, o que revela o preconceito da ordem social estabelecida. Contudo a

sociedade vai se estruturando ao longo do século, sob a égide da Religião Católica, em que a

fé em Deus determina seus destinos e assume lugar de destaque sobre todas as tradições e

povos.

Como também o temor a Deus, a crença na Santíssima Trindade, a louvação á

Padroeira e a gratidão a São Roque, aliados á cultura do homem do sertão fizeram crescer no

imaginário popular desse habitat uma gama de manifestações culturais que fazem desse povo

os criadores de uma cultura popular diversa.

Dento de um longo processo de segregação exclusão e preconceito a muito foi o

silêncio dado como também muito foi resistido. E é procurando vencer tais desafios que as

prostitutas vão lutar contra uma sociedade dominante e autoritária que sujeita o sexo feminino

e dita as regras da moral e dos bons costumes e onde o que for de encontro as mesmas será

perseguida e castigada, sendo considerada degenerada. As relações de poder constatadas

nesse contexto se dão de forma complexa e conflituosa, mas não dá para ignorar o jogo de

sedução, de e interesse existente no núcleo dos meretrícios.

Sobre isso Alberto Heráclito Ferreira Filho afirma que o processo de segregação das

prostitutas em áreas previamente estipuladas pelas autoridades e as políticas de repressão ao

meretrício provocaram uma reação surda em todo período.47

Ou seja, como o projeto político

não tinha a autonomia necessária percebia-se claramente que as resistências eram em um nível

de interferência muito peculiar às mulheres: as inter-relações e os pactos clandestinos.

No caso dos policiais, por exemplo, desmembravam em situações diferentes às vezes

esses davam batidas nos meretrícios e em outros momentos eram clientes desses espaços,

muitas vezes protegendo e por que não dizer preservando o ambiente contra possíveis

fechamentos do recinto. Sobre esta questão o jornal noticia:

46

FERREIRA, L.; BRITTO, Kall. Depoimento de Dona Idalina uma ex- prostituta. 47

FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu, que balance: mundos femininos, maternidade e

pobreza: Salvador: 1980-1940. CEB, 2003. p. 89.

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Em 13 de Outubro de 1910, através de uma noticia moralista, o Diário de Notícias

denunciava a constante presença de policiais nas “casas de mulheres” bebendo,

jogando ou mesmo participando, aos sábados, dos “bailes licenciosos” promovidos

pelas “pensões alegres48

Essa citação serve para ilustrar a relação de poder que as „mulheres de vida pública‟

tinham para resistir ao preconceito da sociedade burguesa que via na prostituição um mal.

Acabar a mesma era o projeto inicial, porém, ao longo do tempo passa-se a tolerá-la, uma vez

que as mulheres de vida fácil serviam para manter o prazer do homem fora de casa, pois,

diante dos padrões estabelecidos a mulher de família tinha que preservar sua relação conjugal

sem tanto fervor, sendo a prostituição um “mal necessário”.

Isso era uma cavalaria da peste, muler vinha até dos infernos aqui pra dentro e de

noite ninguém dormia só ia dormir quatro hora da madrugada, três horas. Era uma

zuada disgraçada era porrada até em muler aí pra dentro. Muler cansou de tomar

torpedo49

aqui dentro desse Riachao. Homem brigava por causa de muler e

cachaça também e foi uma putaria da peste.50

Vale ressaltar que os freqüentadores dos bordéis e meretrícios eram fazendeiros,

autoridade, intelectuais, ou seja, pessoas da alta sociedade que o dia estava com sua família

e a partir das dez horas iam saciar seus desejos e fantasias, o que cabe então uma reflexão

porque recriminar as trabalhadoras do sexo já que a alta sociedade participava ativamente

ou porque não dizer eram eles os responsáveis pela manutenção das casas. O que nos leva a

pensar que a aparência era o elemento fundamental dessa ordem social. Quem vem elucidar

isso é a ex-prostituta Cherinho: “Os homens da sociedade era quem vinham naquele tempo,

mas antigamente era”:

Isso prova que os freqüentadores dos bordéis e os principais colaboradores eram de classe

abastada.

O contexto da festa após Abdias

Hoje os festejos Roqueanos apresentam grandes mudanças, após a morte de Abdias

em três de Abril de mil novecentos e noventa e sete, a começar pela novena. Antes eram nove

dias de festa na Igreja, hoje reduziu-se para três dias (tríduo). Não há mais leilões e sim

bingos, o que fez com que a participação dos devotos na arrecadação das prendas tenha

48

Cf. Diário de Noticias.Bahia, 13 Out.1910. 49

Murro de mão fechada 50

FERREIRA, L.; BRITTO, Kall. Depoimento de Seu João ex cafetão.

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diminuindo muito. A Lavagem não acontece todos os anos e vai dependendo

progressivamente do patrocínio da Prefeitura, a participação popular também se reduziu, quer

seja por parte das prostitutas quer seja da população no geral. A respeito disso Antonio

Cedraz Mascarenhas aponta uma possibilidade da redução do evento em função da Igreja ter

tirado a ajuda de custo para a festa, o que diminuiu o orçamento das participantes para

preparar suas vestimentas e adereços. Afirma ainda que a postura de Padres levou ao fracasso

das festas religiosas tradicionais em Riachão, e dá o exemplo da proibição total, por estes, da

participação das prostitutas nas atividades da Igreja católica.

O Padre Hélio da Rocha foi um dos que ficou totalmente contra a Lavagem de São

Roque, o que explica ele ter tomado a organização da festa das mãos de Abdias, sem dar

explicação alguma ao mesmo. Fato que causou grande tristeza a Abdias, afinal ele já tinha

uma relação de carinho e devoção com os festejos. Porém mesmo depois da proibição a

população jacuipense não aceita essa imposição do Padre e reagi. Contrata-se a bandinha para

tocar e alegrar a festa, nesse ano se constata a maior arrecadação feita pela sociedade, a

solidariedade marca o evento, pois, a bandinha dos Barbeiros aceitam participar da festa sem

receber nem um pagamento. Para elucidar essa questão, Antonio Cedraz Mascarenhas

descreve um fato ilustrativo da mentalidade conservadora desse Padre. Ele conta que nesse

período, quando chegou a Pé de Serra para assistir a missa de Bom Jesus da Lapa:

O padre Hélio da Rocha se aproximou de mime disse: O que veio fazer aqui? Você

queria fazer lá o que eu vi aqui de manhã? Prostitutas em frente à Igreja? [...]

Eu não admito o senhor padre dizer uma coisa dessa [...] O senhor está me dizendo

que prostitutas não pode entrar na igreja. Me diga o senhor quem foi Santa

Madalena? [...] A maior prostituta que o mundo já teve e Jesus perdoou. Será que

essas mulheres não merecem ser perdoadas? Quem é o senhor pra ta julgando A, B,

ou, C? Olhe o passado do senhor. (Eu sabia que ele era gay)51

Fica claro a relação de conflito social e cultural entre os vários segmentos

existente nas festas religiosas, da aceitação e rejeição, de uma questão que perpassa esse

período (1930 a 1950) e encontra-se até a atualidade. Analisando os depoimentos e fontes

coletadas sobre esse espaço simbólico, constatamos a presença marcante das

desigualdades e preconceitos de uma sociedade dominante e hierárquica. Mas também,

como afirmam os seus participantes, aquele era o espaço de alianças, alegrias e a diversão

era, sobretudo, uma forma de expressão, de auto-afirmação nas brechas daquela estrutura

social.

51

MASCARENHAS, Antônio Cedraz. Lavagem de São Roque. Casa do entrevistado: 2010. Riachão do

Jacuípe. 07. 07. Jul.20 10. Entrevista concedida a M. N. de Lima.

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