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A LATA DE FEIJÃO
Vinha chovendo há dias. Chuva e mais chuva. Chuva que Deus mandava,
como diriam nossos avós. As ruas começavam a ficar alagadas. O inevitável
estava para acontecer. Grande parte da cidade de Rio do Sul estaria novamente
imersa nas águas do impiedoso Rio Itajaí-Açu.
O nível do rio vinha subindo rapidamente e a água se aproximava cada vez
mais das casas. As regiões mais baixas da cidade, o bairro Bela Aliança, o bairro
Santana, o bairro Canoas, parte do bairro Canta-Galo e parte do centro, estavam
sendo atingidas e os moradores começavam a recolher roupas, comida,
documentos e material escolar dos filhos, preparando-se para deixar suas casas.
Na rádio local, o locutor anunciava o nível do rio e alertava aos que
estivessem em área de risco de inundações, para que saíssem de suas
residências e fossem alojar-se em casa de amigos e parentes, ou nos centros
comunitários, salões de igrejas e ginásios de esportes.
O Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar, a Prefeitura Municipal, a equipe de
Defesa Civil, e muitos voluntários já estavam mobilizados, preparando
alojamentos e auxiliando no transporte de pessoas e seus pertences.
Uma a uma, as famílias abandonavam suas moradias, deixando-as
entregues às imundícies das águas lamacentas que insistiam em entrar nelas.
Grande parte do comércio local estava fechando suas portas e retirando as
mercadorias para guardar em depósitos improvisados.
Dirigi-me à casa de meus parentes, que residiam no bairro Canoas, para
auxiliá-los, se necessário, a retirar alguma coisa e transportar para lugar seguro.
Tínhamos passado pela mesma experiência em 1983, o ano anterior,
quando ocorreu, segundo os moradores mais antigos, a maior enchente da
história do município de Rio do Sul.
E, apesar da esperança de que tal catástrofe não se repetisse, estávamos
atentos às informações sobre as previsões do tempo.
O nível do rio já estava mais de oito metros acima do normal. Quando
alcançasse nove metros e oitenta centímetros, estaria entrando na casa deles. E,
se as águas continuassem subindo no ritmo em que estavam, inevitavelmente isto
aconteceria. Sabíamos também que, antes de alcançar aquela casa, a enchente
alagaria uma parte da estrada ali perto, que ficaria sem condições de passagem.
No meio da tarde, o locutor da rádio anunciou que o rio estava nove metros
acima do nível normal e que, segundo as últimas previsões meteorológicas, a
chuva continuaria caindo.
Conscientizamo-nos, então, de que se tornava urgente iniciarmos os
preparativos para a retirada. Era preciso partir antes do anoitecer. Era preciso
recolher e empacotar roupas, alimentos e tudo o que fosse possível. Meus tios e
primos ficariam alojados na casa de amigos, que moravam a 200 metros dali, os
mesmos que os haviam abrigado da última vez.
Passamos a selecionar o mais importante.
Naquela hora tudo parecia importante, mas era impossível levar tudo e
então tinham que ser estabelecidas as prioridades.
Foi quando, minha prima tirou de uma estante, uma lata grande que estava
cheia de feijão.
- Temos que levar esta lata de feijão. É da última safra. É um feijão muito
bom e suficiente para nosso consumo até a próxima colheita.
- Mas não temos como levar tanta coisa, acrescentou ela mesma.
Sugeri que aquela lata fosse colocada bem no alto, em cima do armário da
cozinha. E assim foi feito.
Enquanto escolhíamos o indispensável e ajeitávamos em caixas, sacolas e
trouxas feitas com lençóis, meu primo se apressava em colocar tudo no carro e
levar para o local onde iriam se alojar. Foi levando, por vezes seguidas, o carro
abarrotado de roupas e mantimentos e levou também meus tios, que eram
pessoas de idade avançada.
Voluntários apareceram e carregaram colchões e acolchoados, que, além
de ser importante salvar da enchente, seriam indispensáveis no alojamento
improvisado.
Em pouco tempo a água alcançou a parte mais baixa da estrada, por onde
tínhamos que sair e meu primo não conseguiu mais passar com o carro.
Atravessou a pé e veio nos chamar.
- Vamos todos. Já não há mais tempo. Cada um leve ainda o que puder
carregar, o restante fica. Se não formos imediatamente, não conseguiremos mais
sair daqui.
Arregaçamos as calças até acima dos joelhos, recolhemos sacolas e
pacotes, e, lançando um olhar de desespero para tudo o que ficava para trás,
fechamos a porta e partimos. Não sabíamos em que condições encontraríamos
aquela casa, dias depois, quando pudéssemos retornar.
Caminhamos o mais depressa possível e atravessamos com dificuldade
aquele trecho de estrada já inundado.
Chegando ao alojamento, despedi-me dos parentes e dirigi-me ao outro
lado da cidade, o bairro Boa Vista, onde morava. Deles eu só teria notícias
quando a enchente baixasse.
Precisava ir logo, porque alguns trechos do caminho que eu deveria
percorrer provavelmente já estavam sendo atingidos pela água. Andei por
algumas ruas com água até os joelhos, atravessei as duas pontes, a do Canoas e
a do centro, e alcancei a Rua Tuiuti. Passei pelo Hospital Cruzeiro, e subi ao
bairro Boa Vista.
Muita gente, sem dúvida, a estas horas, gostaria de ter lá a sua residência.
A água continuou subindo durante toda aquela noite, e na manhã seguinte,
de acordo com as informações sobre o nível do rio anunciadas na rádio, com
certeza, já chegara à casa de meus parentes.
Á medida que ouvia o anúncio do nível do rio, eu ficava a imaginar a que
altura estaria a água dentro daquela residência: entrando por baixo das portas
alagando o assoalho, atingindo a geladeira, o fundo dos armários, os sofás, as
camas.
Tínhamos colocado o fogão, o botijão de gás e as cadeiras em cima da
mesa da cozinha, mas a água continuava subindo e estes também seriam
alcançados.
Na sala de trabalho de minha prima que é costureira, as máquinas de
costura foram erguidas em cima da grande mesa de madeira. Se as águas
parassem de subir, estas seriam atingidas apenas em seus pedais, não ficando
danificadas.
Porém, continuava chovendo cada vez com mais intensidade e as águas
continuavam subindo, subindo. E, de repente, lembrei da lata de feijão. Estaria ela
ainda a salvo, no alto daquele armário?
Bem sabia que, se a água atingisse mais de um metro de altura dentro de
casa, os móveis fatalmente tombariam. Portanto, a essas horas, eu já não tinha
mais certeza de que a lata de feijão ainda estivesse onde a tínhamos deixado.
Minha idéia fora infeliz.
E a chuva não parava de cair ali em Rio do Sul e nos municípios vizinhos,
nas cabeceiras dos rios. As barragens construídas para contensão das cheias,
em Taió e Ituporanga, já não tinham mais capacidade de retenção das águas, por
terem atingido seu limite máximo.
Enfim, no quinto dia após o início daquela tragédia, a manhã se apresentou
mais clara, sem chuvas, e um fio de esperança brotou na alma dos desabrigados
e de toda a população rio-sulense. O nível do rio poderia subir ainda durante
aquele dia, mas, se não tornasse a chover, em 24 horas começaria a baixar.
E foi assim que aconteceu.
O último registro divulgado foi de que o rio atingira doze metros e oitenta
centímetros acima de seu nível normal.
Quando as águas baixaram, à medida que se tornava possível o acesso às
casas que tinham sido inundadas, os moradores faziam o caminho de volta,
muitos deles acompanhados por parentes e amigos, a fim de iniciar a limpeza.
Retornamos à casa de meus parentes. A água havia atingido até o teto. O
quadro era desolador. Era um caos total. A maior parte dos móveis havia
tombado. Camas, sofás, estantes, armários, fogão, geladeira, mesas, cadeiras,
louças, tudo se encontrava em desalinhamento total e coberto de lodo.
E lá, no meio da cozinha imunda, estava caída a lata de feijão. Todos os
olhares se voltaram para ela.
- Se a tivéssemos levado conosco!
Para iniciar o trabalho de limpeza, era preciso utilizar a água do rio, que
estava ainda a poucos metros de distância. Buscamos água em baldes e latas, e
jogamos nas calçadas, para podermos colocar aí os móveis, para mais tarde
selecionar o que ainda poderia ser recuperado e o que seria jogado fora.
Começamos pelos quartos, banheiros, sala de estar e sala de costuras.
Carregamos os móveis para fora, jogamos água nas paredes e no assoalho, para
poder varrer a lama grossa. Neste primeiro momento, retiramos o maior lodo e
somente depois que voltasse a água nas torneiras é que seria feita a limpeza
propriamente dita.
Chegamos à cozinha. Ali se concentrava a maior desordem, sujeira e mau
cheiro. O grande armário de madeira e a geladeira estavam tombados, com a
parte superior apoiada sobre a mesa; o fogão caído; as cadeiras trancadas entre
uma coisa e outra; os armários de compensado que eram presos à parede,
estavam despencados, alguns ainda com louças dentro; bacias, latas, louças e
vidros de conservas estavam espalhados pelo chão, muita coisa quebrada;
minhocas e sapinhos se movimentavam no meio do lodo.
Fomos retirando, com cuidado, o que estava mais próximo da porta, para
depois chegar até as louças, antes que os armários desabassem de vez.
E, quando alcançamos a lata de feijão, fez-se grande suspense em torno
dela.
- Vamos abrir para ver como está.
A lata foi aberta aos olhares de todos.
E, para surpresa geral, nenhuma gota de água havia entrado nela. Lá
estavam todos os grãos intactos e sequinhos.
Oxalá, em cada casa atingida pelas águas da enchente, houvesse sobrado
pelo menos uma lata de feijão.
VK / 2005