a instituição policial na democracia

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    A Instituio Policial na Ordem Democrtica:

    o caso da Polcia Militar do Estado de So Paulo

    Cristina Neme

    Dissertao de mestrado apresentada aoDepartamento de Cincia Poltica daFaculdade de Filosofia, Letras e CinciasHumanas da Universidade de So Paulo, sob

    a orientao do Prof. Dr. Paulo SrgioPinheiro. Dezembro de 1999.

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    Resumo

    Aps um longo processo de transio, a instituio da democracia no

    Brasil no suprimiu as prticas arbitrrias e ilegais do regime autoritrio

    instaurado em 1964. A permanncia de padres de conduta autoritrios e ilegais

    dentro de instituies do Estado - como a violncia das foras policiais - um

    dos graves obstculos consolidao democrtica. Esta pesquisa parte do

    problema da violncia policial exercida em clara violao ordem constitucional

    estabelecida em 1988, com o objetivo de abordar a instituio policial na ordemdemocrtica.

    Abstract

    After a long process of transition, the Brazilian institution of democracy has

    not terminated the arbitrary and illegal practices of the authoritarian regime

    established in 1964. The permanency of the patterns of authoritarian and illegal

    conduct within the institutions of the state - as is the case of police violence - is one

    of the gravest obstacles to democratic consolidation. This dissertation discusses

    the problem of police violence as exercised in clear violation of the constitutional

    order as established in 1988 with the objective of producing a study of the police

    as institution in the democratic order.

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    Para Beta e Saleme, meus pais.

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    Agradecimentos

    Que fiquem expressos meus agradecimentos ao Prof. Paulo Srgio Pinheiro,

    pela orientao e preciosas sugestes bibliogrficas.

    Ao Ncleo de Estudos da Violncia, cujas pesquisas contriburam para esta

    dissertao.

    Ao CNPQ, instituio que financiou o trabalho, e ao Departamento de Cincia

    Poltica, onde foi realizado.

    Polcia Militar do Estado de So Paulo, por sua disposio em colaborar com

    a pesquisa.

    A Guaracy Mingardi e Paulo Mesquita, pelas sugestes no exame de

    qualificao, e a Luiz Antonio de Souza, pelos comentrios pesquisa.

    A Luciano Codato, pela reviso final do texto.

    Aos amigos, Frances, J, Nando, Ana Maria e Olaya, a meus pais, Beta e

    Saleme, e i rmos, Fernando e Rafael, pelo apoio.

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    Introduo

    Aps um longo processo de transio, a instituio da democracia no

    Brasil no acabou com as prticas arbitrrias e ilegais do regime autoritrio

    instaurado em 1964. A democracia brasileira, assim como outras democracias

    latino-americanas que sucederam ditaduras militares, um regime em

    construo. Muitos avanos foram alcanados desde o retorno ao governo civil ea Constituio de 1988 a principal referncia da ruptura com o autoritarismo.

    Essa ruptura, contudo, no se realizou completamente. A permanncia de

    padres de conduta autoritrios e ilegais dentro de instituies do Estado - como

    a violncia das foras policiais - representa um dos graves obstculos

    consolidao democrtica.

    Este estudo parte do problema da violncia policial, exercida muitas vezes

    em clara infrao ordem constitucional estabelecida em 1988, e procura

    investigar as dificuldades de adaptao da instituio policial nova ordem

    democrtica. Ao definir como tema de pesquisa a violncia ilegal e arbitrria da

    polcia, no se pretende afirmar que a ao policial invariavelmente ilegal e

    arbitrria, mas que uma margem expressiva de prticas ilegais caracteriza

    muitas vezes o relacionamento da polcia com a populao, sobretudo aquela

    definida por criminosos e "suspeitos". Entre estes ltimos, inclui-se uma ampla

    parcela de cidados que podem ser associados criminalidade apenas em

    razo de sua condio socioeconmica - pobreza, desemprego, residncia nas

    periferias etc.

    De maneira geral, a investigao do caso da polcia faz parte de uma

    preocupao mais ampla com as dificuldades do processo de consolidao da

    democracia no Brasil, onde direitos bsicos ainda so inacessveis grande

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    maioria da populao, apesar de formalmente assegurados. O presente estudo

    limita sua abordagem questo da violao de direitos por instituies do Estado,

    as chamadas graves violaes de direitos humanos. O enfoque dirigido mais

    precisamente aos direitos civis, uma vez que as transgresses cometidas pelapolcia atentam contra tais direitos. O problema adquire relevncia especial na

    medida em que as prprias instituies do Estado parecem constituir obstculos

    democratizao no Brasil, no acompanhando ou mesmo resistindo a ess e

    processo. Dentre outros tipos de violaes recorrentes no caso brasileiro, no

    difcil reconhecer que as cometidas pela polcia, contra uma populao j vtima

    de uma srie de injustias e privada de um amplo universo de direitos, merecem

    destaque e investigao.

    O trabalho da Comisso Teotonio Vilela de Direitos Humanos (CTV)

    contribui para demonstrar a gravidade do problema. Dedicada promoo e

    defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, a Comisso realiza uma

    atividade de denncia das infraes aos direitos humanos praticadas por

    agentes do Estado e de presso sobre as autoridades pblicas competentes,

    com o objetivo de promover mudanas na conduta das instituies. Seus

    esforos se concentram nas principais formas de violaes, dentre as quais

    encontram-se aquelas exercidas por agncias encarregadas do controle daviolncia, como os sistemas penitencirio e judicial e as foras policiais. Uma

    consulta a seus arquivos comprova que o problema da violncia policial

    cotidiano e recorrente.1

    Que o relacionamento da polcia com uma grande parte da populao seja

    indiscutivelmente marcado pela violncia, algo que se pode constatar de forma

    bastante objetiva. Essa percepo confirmada pela pesquisa desenvolvida no

    Ncleo de Estudos da Violncia (NEV) da USP2, que vem produzindo nos ltimos

    anos um banco de dados sobre violaes de direitos registradas na imprensa a

    1 Criada em 1983, a Comisso Teotonio Vilela funciona no Ncleo de Estudos da Violncia/USP.Parte desta pesquisa se deve participao nos trabalhos da Comisso no perodo de 1992 a1994.2 Pinheiro, P. S., Adorno, S., Cardia, N. Continuidade Autoritria e Construo da Democracia.Projeto Integrado de Pesquisa. So Paulo, NEV, USP.

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    partir da dcada de oitenta no Brasil. Na fase inicial da pesquisa, realizada a

    coleta de dados sobre a violncia policial, pode-se observar claramente a

    freqncia e o carter sistemtico das violaes de direitos por parte de agentes

    policiais, seguindo um padro semelhante ao verificado no trabalho cotidiano daComisso Teotonio Vilela.

    Em face das evidncias, e reconhecendo que a violncia um problema

    inerente instituio policial, seja qual for a polcia, este estudo toma por objeto

    de anlise a Polcia Militar do Estado de So Paulo, a maior fora policial do

    Estado, cuja principal atribuio executar o policiamento ostensivo, atividade

    que a mantm em contato direto com a populao.

    Violncia policial no Brasil

    A violncia policial no novidade na histria brasileira. Uma bibliografia

    bastante diversificada comprova que ela sempre se fez presente, sobretudo

    contra as classes populares, tanto em perodos de regimes polticos autoritrios

    quanto democrticos.3 Ela est presente no perodo republicano, no Estado Novo

    e no regime autoritrio instaurado em 19644, e apesar de a represso se

    especializar e intensificar nos regimes de exceo, as arbitrariedades policiaisno cessam durante os perodos de normalidade democrtica.5 Se no constitui

    fenmeno recente, permeando a histria do pas independentemente do regime

    3 A violncia da polcia, alm de ser tratada em bibliografia especializada, como se ver a seguir,tambm aparece em bibliografia no especializada, em memrias e biografias nas quais osautores, ao reproduzir o cotidiano de cidades brasileiras e mudanas polticas e sociais, fazemreferncias constantes presena da violncia policial. Entre outros, ver NOGUEIRA FILHO, P.Ideais e Lutas de um Burgus Progressista; RAMOS, G. Infncia; TORRES, A. PasquinadasCariocas; AMERICANO, J. So Paulo Nesse Tempo (1915-1935) ; REGO, J. L. Meus Anos Verdes;MELO, O. A Marcha da Revoluo Social no Brasil; VERSSIMO, E. Solo de Clarineta. A propsito:NEME, C. Relatrio de Iniciao Cientfica/FAPESP (1992): Evoluo das Formas de Repressoem So Paulo.4 PINHEIRO, P. S. Violncia e Cultura e Violncia do Estado e Classes Populares; HALL, M. ePINHEIRO, P. S. Alargando a Histria da Classe Operria: Organizao Lutas e Controle;PINHEIRO, P. S.; SADER, E. O controle da polcia no processo de transio democrtica noBrasil; LEAL, V. N. Coronelismo, Enxada e Voto.5 PINHEIRO, P. S.; SADER, E. O controle da polcia no processo de transio democrtica noBrasil in: Temas IMESC, So Paulo, 2 (2), 1985.

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    poltico em vigor, a violncia policial apresenta uma variao de sua intensidadee

    do alvo atingido. No regime militar, os agentes de segurana reprimiram

    violentamente os opositores polticos, promovendo uma especializao das

    tcnicas repressivas. No contexto democrtico, os agentes policiais empregam aviolncia ilegal no combate criminalidade comum e contra os marginalizados de

    uma sociedade excludente.

    Sem desconsiderar essa longa tradio da violncia policial no Brasil,

    parece pertinente concentrar-se nas evidncias de continuidade de certas

    prticas caractersticas do regime autoritrio instaurado em 1964 no perodo de

    redemocratizao ps-1988. Se a exacerbao da violncia pelas agncias de

    segurana no perodo autoritrio um fato, no menos notrio agora o fato de o

    regime democrtico no ter dado uma soluo satisfatria ao problema da

    violncia policial.6 Apesar de verificar-se em momentos diferentes da histria

    brasileira, o contexto atual de redemocratizao, com a instituio de um regime

    constitucional cuja carta de direitos a mais abrangente de nossa histria,

    exige uma abordagem do problema. No convm acostumar-se violncia

    policial, aceitando naturalmente a persistncia desse fenmeno na sociedade

    brasileira. Da a necessidade de investigar por que osavanos na direo da

    democracia, sobretudo os relacionados proteo dos direitos civis, no foramsuficientes para adaptar a Polcia Militar nova ordem. Reconhece -se a

    significao dos avanos ocorridos na prpria PM, entre os quais destacam-se

    as mudanas promovidas na formao dos policiais e os projetos elaborados

    pela instituio com o objetivo de aproximar a polcia sociedade, como a

    criao dos Consegs(conselhos de segurana), e mais recentemente o programa

    de policiamento comunitrio. Se bem-sucedidas, tais iniciativas certamente

    sero fundamentais para a constituio de uma polcia democrtica, mas no

    consistem em medidas diretamente voltadas conteno da violncia policial.

    6 No se afirma que o regime instaurado em 1964 foi mais violento que outros regimes deexceo, pois no h estudos comparativos sobre a violncia policial brasileira em seus diversosperodos histricos. a partir da dcada de 80 que os nmeros da violncia policial passam a sercoletados e sistematizados. Interessa apenas enfatizar que o problema se agrava durante asditaduras e que a influncia exercida pelo regime poltico de 1964 sobre as polcias militares foi

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    Ainda so poucas e sofrem resistncia da corporao as tentativas de

    estabelecer um controle efetivoda atividade policial, como se ver mais adiante.

    Aps a redemocratizao, esclarece P. S. Pinheiro, o Estado no mais

    coordena diretamente aes violentas e arbitrrias como no regime autoritrio,porm a violncia ilegal ainda exercida por seus agentes. Diante dessa

    desobedincia aos preceitos legais por parte dos agentes do Estado, ocorre um

    descompasso entre o quadro formal democrtico e o funcionamento das

    instituies encarregadas de sua proteo e implementao.7 A Polcia Militar do

    Estado de So Paulo - instituio cujas atribuies se definem legalmente de

    acordo com os princpios democrticos expressos na Constituio Federal - no

    suprimiu prticas arbitrrias comuns na ditadura, mantendo um padro de ao

    conflitante com os limites impostos pela nova ordem constitucional. No se trata -

    bem entendido - de atribuir um comportamento invariavelmente ilegal polcia,

    mas de reconhecer que os procedimentos violentos, arbitrrios ou ilegais, por

    serem incompatveis com as normas do Estado de Direito, inevitavelmente

    comprometem toda a instituio, mesmo que boa parte de seu trabalho seja

    realizada de acordo com a lei.8 Os poderes pblicos, em um Estado de Direito,

    devem ser exercidos no mbito das leis que os regulam, da a existncia de

    mecanismos constitucionais que visam a impedir o abuso ou o exerccio ilegal dopoder, como a submisso dos atos da administrao pblica a um controle

    jurisdicional.9

    verdade que o descompasso existente entre a lei e o funcionamento

    efetivo da instituio no exclusividade das polcias militares. Outras

    instituies do Estado brasileiro parecem no funcionar rigorosamente de acordo

    com as determinaes legais, criando condies favorveis para a corrupo e o

    determinante na definio de seu trabalho e ainda se faz presente nas corporaes.7 PINHEIRO, P. S. Direitos Humanos no Ano que Passou: Avanos e Continuidades in: OsDireitos Humanos no Brasil. Universidade de So Paulo, Ncleo de Estudos da Violncia eComisso Teotnio Vilela, So Paulo, NEV/CTV, 1995.8 A atuao da polcia militar ampla e as chamadas ocorrncias sociais, que incluem vriostipos de atendimento populao (inclusive aqueles que no esto relacionados atividadepolicial, como a realizao de partos), correspondem grande parte das ocorrncias.policiais.9BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia. So Paulo, Brasiliense, 1988, p. 18-19; Estado, Governo

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    clientelismo, por exemplo. Mas se o problema da violao de direitos pelas

    prprias instituies do Estado democrtico no se restringe ao caso da polcia,

    esta assegura sua especificidade uma vez que possui a prerrogativa legal de

    usar a fora fsica. Ao no orientar sua ao de acordo com as normasestabelecidas, o policial transforma sua prerrogativa do uso da fora em violncia

    ilegal. O resultado mais extremo desse desvio um alto nmero de mortes de

    civis. Por si s, a violao desse direito fundamental e do direito integridade

    fsica parece justificar um estudo da instituio a que compete a administrao,

    no mbito interno, da violncia fsica monopolizada pelo Estado.

    Polcia na ordem democrtica

    O Estado moderno tornou-se a nica fonte do direito violncia, nos

    termos de Weber, passando a deter positivamente o monoplio do uso legtimo

    da violncia fsica.10 Mesmo nas democracias mais consolidadas, a instituio

    policial no possui de fato o monoplio do uso da fora, visto que tambm podem

    fazer uso dela, entre outros exemplos, seguranas privados, algumas

    autoridades, certos agentes hospitalares e o prprio cidado, em caso de

    legtima defesa.11 Mas para manter a idia de monoplio no necessrio, comoobserva D. Monjardet, consider-la em sentido estrito. Basta ressaltar que o alvo

    do recurso legal fora por outros agentes que no a polcia bastante limitado,

    ao passo que o alvo da instituio policial indeterminado, a saber,

    potencialmente todas as pessoas. Pode-se conservar a idia de monoplio se a

    polcia mantiver a fora suficiente para regular o uso que dela feito por todos os

    demais agentes. Ao exercer a regulao pblica da violncia privada, funo

    e Sociedade. So Paulo, Paz e Terra, 1992, p. 96; O Futuro da Democracia, p. 103.10 WEBER, M. A Poltica como Vocao. In: Cincia e Poltica, Duas Vocaes, So Paulo,Cultrix, 1967; p. 55-66; El Estado racional como asociacin de dominio institucional con elmonopolio del poder legtimo in: Economia y Sociedad. Mxico, Fondo de Cultura, 1944, vol. 2.11 OCQUETEAU, F. A Expanso da Segurana Privada na Frana. In:Tempo Social, 9 (1), 1997;BRODEUR e REINER apudMONJARDET, D. Ce que fait la police, 1996, pp. 18-19,

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    elementar em toda sociedade, a instituio preserva o monoplio do uso da fora

    fsica em relao a todos os outros usos especficos.12

    De acordo com a anlise weberiana, o monoplio estatal da violncia se

    justifica como um meio de pacificar a sociedade e possibilitar a convivncia emum grande grupo social. Os governantes dispem de instituies autorizadas a

    empregar a violncia fsica quando necessrio, a fim de evitar que a ela recorram

    todos os outros cidados. Em todo caso, o monoplio da violncia fsica, como

    observa Elias, uma inveno social ambgua: se por um lado tem por funo

    fundamental a pacificao da sociedade, por outro um instrumento que pode

    ser usado muito mais em benefcio daqueles que o controlam - governantes e

    agentes - do que da prpria sociedade.13 As normas do Estado de Direito

    democrtico impem limitaes ao poder estatal justamente para coibir esses

    possveis desvios, e por essa razo as Foras Armadas e a Polcia so os

    rgos autorizados a administrar a violncia fsica apenas em conformidade aos

    estatutos legais. a partir desse aspecto essencial, assinalado por Elias, que se

    considera o problema da violncia policial brasileira: seja em benefcio dos

    governantes, seja dos agentes, fato que a violncia empregada pelas foras

    policiais extrapola sua finalidade social, voltando-se com freqncia contra a

    prpria sociedade. Em relao fi nalidade social da instituio policial, tem-secomo referncia os padres de uma sociedade democrtica em que a ao da

    polcia regulada por leis, de acordo com as exigncias do Estado de Direito.

    Na definio de E. Bittner, a polcia consiste em um mecanismo de

    distribuio na sociedade de uma fora justificada por situaes em que a

    soluo de problemas entre os cidados exige, ou pode exigir, o uso da fora. 14

    Monjardet complementa essa formulao acrescentando que a fora

    instrumentalizada por quem a comanda, e chama a ateno para os diversos fins

    a que pode servir a polcia. A polcia um instrumento de aplicao de uma

    12 MONJARDET, D. Ce que fait la police, 1996 p. 19.13 ELIAS, N. Violence and Civilization: the state monopoly of physical violence and itsinfringement. In: KEANE, J. (ed.) Civil Society and the State. New European Perspectives, London,New York, Verso, pp. 179-181.

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    fora (a fora fsica, em uma primeira anlise) sobre um objeto que lhe

    designado por quem a comanda. Seu carter instrumental universal, mas suas

    finalidades so particulares, variando de sociedade para sociedade. Seguindo a

    abordagem de Monjardet, caberia perguntar quais so as finalidadessocialmente designadas para o uso da fora fsica na sociedade brasileira. Uma

    vez que so identificadas pelas prescries normativas (o Direito) e pelas

    prticas observveis do instrumento15, sobretudo no contrasteentre as leis e as

    prticas que se evidencia o modo como a instituio - a Polcia Militar do Estado

    de So Paulo, no caso deste estudo - emprega a violncia fsica monopolizada

    pelo Estado.

    Monoplio da violncia fsica

    Antes de abordar o problema do desvirtuamento da funo policial exposto

    por Elias, convm insistir na questo do monoplio, visto que boa parte dos

    trabalhos sobre a polcia retoma Weber para defini-la como o aparelho de Estado

    responsvel pela manuteno do monoplio da fora fsica no mbito interno. Se

    a polcia um mecanismo necessrio para garantir o monoplio do uso da fora,

    requisito essencial para a formao do Estado moderno, no se pode desprezarque tal condio no se tenha efetivado completamente em todos os Estados

    nacionais. So expressivas as diferenas entre o contexto brasileiro e de outros

    pases latino-americanos, de um lado, e o contexto das democracias

    consolidadas europias ou norte-americanas, cujas instituies policiais so

    adotadas como referncia por seu enquadramento relativamente bem-sucedido

    s exigncias do Estado de Direito. Essa diferena deve ser apontada,

    considerando-se que o contexto de atuao da polcia tambm um fator

    relevante para a compreenso de seus problemas. No se trata de justificar as

    deficincias da polcia em razo do contexto scio-poltico do pas, apenas

    14 BITTNER apudMONJARDET, D. Ce que fait la police, op. cit., p. 15.15 MONJARDET, D. Ce que fait la police, pp. 16-17.

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    indicar um dado a mais que deve ser levado em conta para que se possa

    compreend-las.

    Em contraste com Estados europeus, que monopolizaram o direito de

    exercer a violncia retirando-o dos cidados, a maioria dos pases latino-americanos no atingiu esse objetivo de forma satisfatria.16 Apesar de

    apresentado como uma democracia formalmente avanada, o Estado

    colombiano, por exemplo, parece perder cada vez mais um monoplio que nunca

    possuiu completamente, pelo fato de no dominar todo seu territrio. So

    conhecidas as regies em que as guerrilhas assumiram funes de Estado e os

    bairros controlados por mfias que pagam aos policiais para serem deixados

    em paz.17 Uma boa frmula para introduzir os estudos sobre a polcia latino-

    americana seria lembrar que se reconhece modernamente que o Estado tem ou

    deveria tero monoplio do uso da fora para a resoluo de disputas e para a

    manuteno da ordem pblica.18

    No se pode dar a mesma dimenso s dificuldades que encontram os

    Estados colombiano, venezuelano ou brasileiro em vista do monoplio da

    violncia, nem afirmar genericamente no existir monoplio no Brasil. Mas pode-

    se afirmar que as regies perifricas de metrpoles como So Paulo sem dvida

    so reas em que o Estado deixa de cumprir funes bsicas como sade,educao e segurana, e que chegam a apresentar nveis de violncia iguais ou

    superiores aos de cidades dominadas pelas guerrilhas colombianas. Em 1993,

    Cali apresentava a taxa de 87 homicdios por 100 mil habitantes; no distrito do

    Jardim ngela, na zona sul de So Paulo, essa taxa alcanava 111 por 100 mil

    habitantes em 1995.19

    16 WALDMANN, P. Introduccin. In: WALDMANN, P. (org.) Justicia en la calle. Ensayos sobre lapolicia en America Latina. 1996, p.19.17 RIEDMANN, A. La reforma policial en Colombia". In: WALDMANN, P. (org.)Justicia en la calle.Ensayos sobre la policia en America Latina, 1996,p. 220-221.18 GABALDN, L. G. La policia y el uso de la fuerza en Venezuela. In: WALDMANN, P. (org.)Justicia en la calle. Ensayos sobre la policia en America Latina, 1996, p. 269 (grifos nossos).19Mapa de risco da violncia: cidade de So Paulo, SP, Cedec, 1996, p. 4.

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    Estudo sobre indicadores de criminalidade e violncia no municpio de

    So Paulo entre 1984 e 1993 aponta o aumento de ocorrncias criminais

    registradas, sobretudo a partir de 1988.20 Os crimes violentos representam em

    mdia 28,8% do total dessas ocorrncias. No perodo de 1988 a 1993, dentre osvrios tipos de crimes violentos, os mais freqentes so roubos, leses corporais

    dolosas e homicdios.21 Roubo a primeira modalidade de crime violento mais

    cometida, homicdio, a terceira. Embora em nmeros absolutos este seja bem

    inferior ao primeiro, ambos os crimes apresentam tendncia de crescimento,

    sendo a de roubo maior que a de homicdio.22 Em vista de sua gravidade, o crime

    de homicdio torna mais evidente a incapacidade de o Estado regular a violncia.

    Uma pesquisa sobre as taxas de mortalidade por homicdio dos 96

    distritos do municpio de So Paulo permite observar como a capacidade de o

    Estado monopolizar a violncia varia entre as regies da cidade.23 Se em

    algumas localidades o monoplio realizado de forma satisfatria, em outras

    pode-se afirmar que o Estado no exerce praticamente a regulao pblica da

    violncia privada. A discrepncia expressiva: na menor taxa, correspondente ao

    distrito de Perdizes, verificam-se 2,65 homicdios por 100 mil habitantes; na

    maior, no distrito do Jardim ngela, esse coeficiente chega a 111,52, sendo de

    43 por 100 mil habitantes a taxa geral do municpio de So Paulo. Entre osextremos, os distritos se dividem em estratos de alto, mdio e baixo risco,

    conforme suas taxas de homicdio em relao do municpio de So Paulo (43

    por 100 mil). Dos 96 distritos, 22 so considerados de baixo risco, 59 de mdio e

    15 de alto. Estes ltimos concentram taxas de homicdio que variam de 65 a 111

    por 100 mil habitantes, em constraste significativo com os distritos mais

    pacficos, cuja taxa mais alta de 18,96. Como demonstram os dados, h

    20 FEIGUIN, D., LIMA, R. "Tempo de violncia: medo e insegurana em So Paulo". In:So Pauloem perspectiva, SP, vol. 9, n 2, abr./jun. 1995.21 Roubo e homicdio incluem tambm as tentativas.22 FEIGUIN, D., LIMA, R. "Tempo de violncia: medo e insegurana em So Paulo",op. cit., p. 76.De 1988 a 1993, a taxa de roubo eleva-se de 567 por 100 mil habitantes para 750,3; a dehomicdio de 41,6 para 50,2 (ambas incluem as tentativas).23 Mapa de risco da violncia: cidade de So Paulo, op.cit. As taxas foram calculadas com base nosdados de mortalidade de 1995 em relao aos 96 distritos do municpio.

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    territrios em que a instituio policial capaz de regular a criminalidade violenta,

    e outros em que o monoplio do uso da fora pelo Estado irrisrio ou quase

    no existe. Na realidade, a diviso do municpio em subterritrios comprova a

    ausncia do Estado para largos contingentes da populao.O enfoque especfico nas faixas etrias de adolescentes (15 a 19 anos) e

    jovens (20 a 24 anos) revela um aumento significativo das taxas de homicdio. No

    Brasil, mortes por causas externas vm aumentando desde 1980, principalmente

    nessas faixas etrias.24 No municpio de So Paulo, esse tipo de morte

    corresponde a 85% do nmero de bitos de adolescentes e jovens, sobretudo do

    sexo masculino. De 1980 a 1995, a taxa de mortalidade por causas externas

    saltou de 152,9 para 312 por 100 mil habitantes na populao de adolescentes e

    jovens do sexo masculino.25 O homicdio, dentre as causas externas, o fator

    predominante de morte violenta dessa populao. Se em 1980 os homicdios

    correspondiam a 38,2% das mortes por causas externas de adolescentes e

    jovens do sexo masculino, em 1985 essa proporo se elevou para 61,3%,

    aumentou para 63,3% em 1990 e chegou a 71,9% em 1995. No sexo feminino,

    essa proporo cresceu de 18,6% em 1980 para 45,1% em 1995, um aumento

    significativo, mas cujos valores absolutos so bem inferiores aos do sexo

    masculino.26

    A comparao entre a taxa geral de homicdio de So Paulo e as taxas de

    homicdio da populao jovem e adolescente do sexo masculino evidencia a

    gravidade da situao. Em 1995, a taxa de homicdio geral (sem distribuio por

    faixa etria e por sexo) era de 43/100 mil.27 No mesmo ano, selecionadas as

    faixas etrias de 15 a 19 anos e 20 a 24 anos do sexo masculino, as taxas se

    24 MELLO JORGE, M. H. P. Adolescentes e jovens como vtimas. In: PINHEIRO, P. S. et al.(org.). So Paulo sem medo: um diagnstico da violncia urbana. Rio de Janeiro, Garamond, 1998,p. 101. Causas externas so causas violentas, no naturais, que podem ser intencionais ou no-intencionais e compreendem acidentes de todos os tipos, suicdios e homicdios (p. 97).25Idem, p. 105.26Idem, pp. 108-116.27Mapa de risco da violncia: cidade de So Paulo, op. cit., p. 4.

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    elevam para 186,7 e 262,2 respectivamente. 28 De 1980 a 1995, a taxa de

    homicdio cresceu de modo expressivo nessa populao de 15 a 24 anos: em

    1980 ocorriam 58,8 homicdios por 100 mil habitantes; em 1985 esse coeficiente

    saltou para 168,8, em 1990 para 197,9 e em 1995 para 224,7

    29

    , ano em que setornou fator de 71,9% das mortes por causas externas.

    Como se pode observar, a proporo de homicdios vem aumentando

    aceleradamente, tornando-se a principal causa de morte de jovens e

    adolescentes, sobretudo do sexo masculino, sendo a arma de fogo o principal

    meio empregado.30 A populao de adolescentes e jovens a mais atingida,

    principalmente os ltimos, apresentando as maiores taxas de homicdio da

    cidade. Anlise das taxas de homicdio da faixa etria entre 20 e 24 anos nas

    oito delegacias seccionais de polcia do municpio de So Paulo indica como

    essas mortes se distribuam espacialmente em 1995. A 6 seccional (Santo

    Amaro) apresentava a maior taxa, 175,4 por 100 mil habitantes, seguida pela 8

    (Guaianazes) e pela 7 (Itaquera), cujas taxas correspondiam a 146,6 e 112,7

    respectivamente.31

    O estudo sugere uma associao entre condies socioeconmicas e

    risco de violncia. As trs seccionais mais violentas tiveram as piores avaliaes

    em condies socioeconmicas: a seccional de Santo Amaro apresentou amaior taxa de homicdio e foi classificada em penltimo lugar em condies

    socioeconmicas; a de Guaianazes apresentou a segunda maior taxa de

    homicdio e a pior posio em condies socioeconmicas, seguida pela de

    Itaquera, com a terceira maior taxa de homicdio e a terceira pior posio em

    28Idem, p. 110.29Idem, p. 116.30

    Idem, p. 110.31 Mapa de risco da violncia: cidade de So Paulo, op. cit., pp. 7-8. Essas taxas se referem a jovensde ambos os sexos e a mdia das 8 seccionais de 105 homicdios por 100 mil habitantes. Sefossem considerados apenas os homicdios de homens entre 20 e 24 anos, as taxas seelevariam. No estudo de M. H. P. Mello Jorge, a taxa de homicdio par a a mesma faixa etria em1995 superior (135,6 por 100 mil), sendo 262,2 para o sexo masculino e 16,2 para o feminino(MELLO JORGE, M. H. P. Adolescentes e jovens como vtimas. In: PINHEIRO, P. S. et al.(org.). So Paulo sem medo: um diagnstico da violncia urbana, op. cit., p. 110). A variaoprovavelmente se deve diferena das fontes consultadas em cada pesquisa.

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    condies socioeconmicas.32 Outros estudos tambm identificam na zona sul da

    cidade, na rea relativa 6 delegacia seccional de polcia, a maior

    concentrao de homicdios. Essa situao se verifica desde o incio da dcada

    de 80: na regio de Santo Amaro localiza-se a maioria dos distritos com maiorndice de homicdios entre 1982 e 1995.33 Constata-se ento a variao do risco

    de violncia por faixa etria e por regio da cidade de So Paulo: so

    adolescentes e jovens do sexo masculino, sobretudo os ltimos, residentes na

    periferia (zonas sul e leste) e nas regies mais pobres, com piores condies

    socioeconmicas, as maiores vtimas de homicdio.34

    No possvel ignorar a diferena de realidades na discusso da

    instituio policial. Na Amrica Latina, com algumas excees, o Estado no vem

    cumprindo sua funo de pacificao, no logrou submeter nem cidados nem

    seus prprios organismos a um controle conseqente.35 Os dados comprovam

    que o Brasil no se encontra entre as excees, e juntamente com Cuba e

    Colmbia apresenta tendncias crescentes de mortalidade por causas

    externas.36 No caso de So Paulo, observa-se que os indicadores de violncia

    variam entre as diversas regies e que a incapacidade estatal de regular a

    violncia muito maior nas periferias, onde so mais intensos os conflitos

    violentos dentro dos grupos sociais e entre a polcia e a populao. Da a guerrade todos contra todos, pois no h controle dos grupos sociais nem dos

    organismos estatais: os habitantes se matam e so mais facilmente mortos pela

    polcia.

    32Mapa de risco da violncia: cidade de So Paulo, op. cit., p. 8.33 MINGARDI, G. O Estado o o crime organizado, So Paulo, Instituto Brasileiro de Cincias

    Criminais, 1998, p. 137; FEIGUIN, D., LIMA, R. "Tempo de violncia: medo e insegurana emSo Paulo". In: So Paulo em perspectiva, SP, vol. 9, n 2, abr./jun. 1995, p. 78.34 Observe-se ainda que h diferena de risco por regio conforme o tipo de crimimalidade: oscrimes contra o patrimnio concentram-se nas regies com melhores condies scio-econmicas, j os crimes contra a vida, nas perifricas (Mapa de risco da violncia).35 WALDMANN, P. Introduccin. In: Justicia en la calle. Ensayos sobre la policia en America Latina.1996, p. 21.36Mapa de risco da violncia: cidade de So Paulo, op. cit., p. 3.

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    Captulo 1 - Polcia e Violncia Ilegal

    1 - Estrutura e funo da polcia

    No Brasil, so as polcias estaduais - Polcia Civil e Polcia Militar - que

    realizam a maioria das atividades policiais. Ambas esto subordinadas ao

    governador de Estado e tm suas atribuies definidas na Constituio Federal enas Constituies Estaduais. A polcia civil exerce funes de polcia judiciria e

    apurao das infraes penais, exceto as militares, e polcia militar cabem o

    policiamento ostensivo e a preservao da ordem pblica.37 Em suma, a polcia

    civil faz investigao e a militar responsvel pelo policiamento ostensivo e

    preventivo. Essas atribuies so regulamentadas em decretos-lei federais e

    estaduais e em lei complementar, no caso das polcias paulistas.

    A configurao atual da Polcia Militar do Estado de So Paulo data de

    1970, quando o decreto-lei estadual n 217 determinou a unificao das duas

    polcias fardadas ento existentes, Fora Pblica e Guarda Civil, sob a

    denominao de Polcia Militar do Estado de So Paulo.38 Constituiu-se ento a

    Polcia Militar com os integrantes da Fora Pblica, que permaneceram com os

    mesmos postos e graduaes de que eram titulares, e com o aproveitamento de

    componentes da Guarda Civil, de acordo com as condies impostas pelo

    decreto, que criou igualmente um Quadro em Extino da Guarda Civil de So

    Paulo, pelo qual os componentes da corporao extinta tambm poderiam

    37 Constituio Federal, Artigo 144, pargrafos 3 e 5.38 Fica constituda a Polcia Militar do Estado de So Paulo, integrada por elementos da ForaPblica do Estado e da Guarda Civil de So Paulo, na forma deste Decreto-Lei... (Decreto-Leiestadual n 217, de 8 de abril de 1970, art. 1).

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    optar39. A legislao referente extinta Fora Pblica foi aplicada Polcia

    Militar40, mantendo-se a estrutura militar da Fora Pblica e extinguindo-se a

    Guarda Civil. Na prtica, "Polcia Militar do Estado de So Paulo" foi a nova

    denominao dada Fora Pblica.

    41

    A competncia das polcias militares definida pelo decreto-lei federal

    667/69 e, no Estado de So Paulo, pelo decreto-lei 217/70, que segue as

    disposies do federal. O decreto 667 reorganizou as polcias militares e corpos

    de bombeiros dos Estados e permanece em vigor com algumas alteraes.

    Definindo a competncia das polcias militares, atribui-lhes com exclusividadea

    execuo do policiamento ostensivo, fardado.42 Alm disso, determina-lhes a

    competncia para atender convocao, inclusive mobilizao, do governo

    federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbao

    da ordem ou ameaa de sua irrupo, subordinando-se Fora Terrestre para

    emprego em suas atribuies especficas de polcia militar e como participante

    da Defesa Interna e da Defesa Territorial43 - reafirmando a condio das polcias

    militares de foras auxiliares e reserva do Exrcito, prevista pela Constituio

    Federal44, que ratificou a determinao da legislao anterior a esse respeito. A

    atribuio de policiamento ostensivo sua principal atividade, exercida

    cotidianamente.Ao decreto-lei 667 seguem-se dois decretos federais para

    regulamentao das polcias militares e dos corpos de bombeiros,

    estabelecendo princpios, normas e conceitos para a aplicao do 667/69. O

    decreto 66.862/70 (8/7/1970) define policiamento ostensivo como a ao policial

    39 Decreto-Lei estadual n 217, .art. 2 , 3 e 7 .40 Decreto-Lei estadual 222, de 16 de abril de 1970, art. 1 .41 As origens da Polcia Militar do Estado de So Paulo remontam ao ano de 1831, quando foi

    criada a Guarda Municipal Permanente. A partir de ento, a fora policial paulista, que seconsolidou durante a Primeira Repblica, mudaria de nome vrias vezes - Corpo PolicialPermanente, Fora Pblica Estadual, Fora Policial, Fora Pblica, Fora Pblica do Estado deSo Paulo - at tornar-se Polcia Militar do Estado de So Paulo, com a unificao das polciasfardadas em 1970.42 Decreto-Lei federal 667/69, art. 3, a.43 Decreto-Lei federal 667/69, art. 3, d.44 Art. 144, pargrafo 6 .

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    em cujo emprego o homem ou a frao de tropa engajados sejam identificados

    de relance, quer pela farda, quer pelo equipamento, armamento ou viatura.45 O

    decreto 88.777 (30/9/1983) substitui o anterior e introduz algumas modificaes,

    destacando a exclusividade das polcias militares na execuo do policiamentoostensivo e sua finalidade de manuteno da ordem pblica. Desde ento,

    policiamento ostensivo a ao policial, exclusiva das Polcias Militares, em cujo

    emprego o homem ou a frao de tropa engajados sejam identificados de

    relance, quer pela farda, quer pelo equipamento, armamento ou viatura,

    objetivando a manuteno da ordem pblica. O policiamento ostensivo

    classificado em vrios tipos: policiamento ostensivo normal, urbano e rural; de

    trnsito; florestal e de mananciais; ferrovirio e rodovirio, nas estradas

    estaduais; porturio; fluvial e lacustre; de radiopatrulha terrestre e area; de

    segurana externa dos estabelecimentos penais do Estado; e outros fixados em

    legislao estadual. 46 No Estado de So Paulo, alm dos relacionados acima,

    incluem-se o policiamento de locais e recintos destinados prtica de desportos

    ou diverses pblicas, vias e logradouros pblicos, reparties pblicas e

    recintos fechados de freqncia pblica, prdios e recintos particulares.47

    Verifica-se a dimenso da competncia da PM pelo amplo e diferenciado

    conjunto de funes que lhe atribudo. Com efetivo previsto de 88.308 policiais, a maior polcia do Estado de So Paulo e do Brasil. Para termos de

    comparao, o efetivo da Polcia Civil paulista no atinge 30 mil policiais.

    Estrutura organizacional da Polcia Militar

    45 Decreto 66.862, art. 2, 13.46 Decreto 88.777/83, art. 2, 27. Alterando a disposio do decreto anterior, esse decretocondicionou a possibilidade de institui o de outros tipos de policiamento ostensivo por meio dalegislao estadual aprovao do Exrcito: outros fixados em legislao da Unidade Federativa,ouvido o Estado-Maior do Exrcito atravs da Inspetoria-Geral das Polcias Militares.47 Decreto-lei estadual 217/70, art. 9.

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    A carreira policial militar se divide em duas categorias - praas e oficiais -

    com suas respectivas subdivises hierrquicas. Em ordem crescente de

    hierarquia, os praas atuam nos postos de soldado, cabo, 3 sargento, 2sargento, 1 sargento e subtenente; os oficiais, nos postos de 2 tenente, 1

    tenente, capito, major, tenente-coronel e coronel. Entre as duas categorias,

    encontram-se os praas especiais de polcia, designao dada ao aluno oficial e

    ao aspirante a oficial (recm-formado no curso de formao de oficiais). A

    grande maioria da corporao constituda por praas (94,3%); os oficiais -

    superiores hierrquicos que ocupam os postos de comandantes, chefes,

    diretores e instrutores, dirigindo as diversas sees da instituio - totalizam

    5,7% do efetivo. Na pgina seguinte, o organograma apresenta essa estrutura

    hierrquica.

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    Estrutura Hierrquica da Polcia Militar

    OFICIAIS DE POLCIA

    PRAAS ESPECIAIS DE POLCIA

    PRAAS DE POLCIA

    2 SARGENTO

    TENENTE-CORONEL

    MAJOR

    1 TENENTE

    2 TENENTE

    SUBTENENTE

    ASPIRANTE A OFICIAL

    ALUNOS DA ESCOLA DE FORMAO DE OFICIAL DAPOLCIA

    1 SARGENTO

    3 SARGENTO

    CABO

    SOLDADO

    CAPITO

    CORONEL

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    A hierarquia se divide em 13 nveis e se assemelha do Exrcito, com

    exceo do posto de general, que no existe na polcia. Essa excessiva diviso

    reflete uma rigidez hierrquica que condiciona todo o funcionamento da

    organizao policial.H na corporao duas carreiras - uma para oficiais e outra para praas

    de polcia militar - marcadas por forte distino hierrquica. A forma de ingresso

    diferenciada para ambas as categorias: os oficiais freqentam o Curso de

    Formao de Oficiais48, no qual ingressam mediante concurso pblico; j os

    praas prestam um outro concurso pblico e fazem o Curso de Formao de

    Soldados oferecido pela PM. Concluda a formao, o policial passa a integrar

    os quadros da instituio, de oficiais e praas, ocupando os postos e

    graduaes iniciais da escala hierrquica.49

    O efetivo da corporao majoritariamente masculino (93,6%). Essa

    diferena acentua-se ao analisar-se o quadro de oficiais: 97,3% homens e 2,7%

    mulheres. Dos 5,7% de oficiais, h apenas 0,15% de oficiais do sexo feminino.

    Efetivo Previsto

    Oficiais Praas TotalMasculino 4873 77814 82687

    Feminino 136 5485 5621Total 5009 83299 88308

    Fonte: Decreto 41.136, de 4/9/1996

    O efetivo de oficiais distribudo em sete quadros: Quadro de Oficiais de

    Polcia Militar (QOPM), Quadro Auxiliar dos Oficiais da Polcia Militar (QAOPM),

    Quadro de Oficiais de Administrao (QOA), Quadro de Oficiais de Sade

    48 Trata-se de um curso superior (3 grau) com durao de 4 anos oferecido pela Academia dePolcia Militar do Barro Branco, localizada na cidade de So Paulo. Cursos de especializao,tambm oferecidos pela Polcia Mi litar, so exigidos para ascenso na carreira alm do posto decapito.49 Posto o grau hierrquico do oficial e graduao o grau hierrquico do praa.

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    (QOS), Quadro de Oficiais de Polcia Feminina (QOPF), Quadro de Oficiais

    Especialistas (QOE)50, Quadro de Oficiais Capeles (QOC).

    Efetivo Previsto para os Quadros de Oficiais

    Coronel Ten Cel Major Capito Tenente SOMAQOPM 51 178 276 822 2450 3777

    QOPF 2 6 8 27 93 136QOS Mdicos

    DentistasFarmacuticosVeterinrios

    1 5111

    22531

    402542

    345154126

    4131852010

    QOC 1 1 2 2 6

    QOE 1 2 13 16QAOPM 18 40 388 446

    TOTAL 54 193 335 964 3463 5009

    Fonte: Quadro Particular de Organizao da Polcia Militar.

    Efetivo Previsto de Praas

    QPM-0 (combatentes) Outros (msicos e auxiliares) total

    Sten. 1 sgt. 2 /3 sgt. cabo sold. Sten. 1 sgt. 2 /3 sgt. cabo sold.

    607 2184 8936 11008 53364 72 290 1074 874 4800 83299

    Fonte: Decreto 41.136/1996.

    Dentre esses efetivos, destacam-se o Quadro de Oficiais de Polcia Militar

    (QOPM), tambm denominados combatentes, que correspondem a 75% dos

    oficiais da Polcia Militar e dominam as atividades administrativas e

    operacionais, e o Quadro de Praas Combatentes (QPM-0).

    de notar a imensa burocracia sustentada pela PM. A existncia de

    quadros de oficiais que escapam atividade policial sugere uma montagem da

    estrutura de forma a dar grande autonomia corporao, assegurando sua auto -

    suficincia.51

    50 So os msicos.51 No se tem a posio oficial da corporao a respeito desta questo, mas em seminriorealizado pelo NEV para debater a formao do policial militar, representantes da PM avaliaramnegativamente a existncia de quadros de oficiais que escapam atividade policial, comomdicos ou dentistas. NEV/CEE, Relatrio de Pesquisa: Democracia e Direitos Humanos, 1998.

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    O efetivo alocado em unidades operacionais e administrativas.52 A

    administrao est concentrada basicamente em sete diretorias (DAL, DAMCO,

    DEI, DF, DP, DS e D.Sist) 53 e o trabalho operacional estruturado sob trs

    comandos: Comando de Policiamento Metropolitano (CPM), Comando do Corpode Bombeiro (CCB) e Comando de Policiamento do Interior (CPI).54 Tanto as

    diretorias quanto os grandes comandos formam, juntamente com o Comandante-

    Geral e seu Estado-Maior (assessoria), a cpula da PM ou o Alto Comando -

    todos cargos de confiana do comandante-geral, nomeado pelo governador do

    Estado. Este estudo concentra-se na estrutura operacional da PM, visto que o

    policial se relaciona diretamente com a populao ao desempenhar essa

    atividade.

    As unidades policiais militares responsveis pelas reas da capital,

    Grande So Paulo e do interior do Estado se estruturam sob os trs grandes

    comandos. Considerando-se no caso o CPM e o CPI, seguem-se em ordem

    decrescente de hierarquia os Comandos de Policiamento de rea Metropolitano

    (CPA/M) e os Comandos de Policiamento de rea do Interior (CPA/I), que

    compreendem seus batalhes, companhias, pelotes e grupos (destacamentos)

    policiais militares.

    A estrutura da Polcia Militar, no que diz respeito a sua atividadeoperacional, assemelha-se estrutura da Infantaria do Exrcito. Trata -se de uma

    organizao ternria, na qual cada rgo superior comanda trs subordinados.

    Por exemplo: o comandante de um batalho (tenente-coronel) comanda trs

    companhias; o comandante de uma dessas companhias (capito), por sua vez,

    comanda trs pelotes e assim por diante. O Quadro a seguir apresenta a

    52 Era a seguinte a distribuio do efetivo por atividade em maio de 1997: 51.744 parapoliciamento geral (61,4%); 25.054 para policiamento ostensivo especializado (28,4%) e 9.042para a administrao (10,2%). Fonte: EM/PM In: Braz Araujo (org.). A Situao Atual das PolciasMilitares no Brasil. Comeando por So Paulo, vol. 1.53 Respectivamente: Diretoria de Apoio Logstico, Diretoria de Assuntos Municipais eComunitrios, Diretoria de Ensino e Instruo, Diretoria de Finanas, Diretoria de Pessoal,Diretoria de Sade, Diretoria de Sistemas. A PM possui um extenso corpo burocrtico que ocupagrandes instalaes.54 Ver organograma da Polcia Militar em anexo.

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    composio hierrquica dessas unidades operacionais. Para cumprir funes

    administrativas e operacionais, os policiais so designados de acordo com seu

    nvel na hierarquia militar: a cada funo corresponde um grau hierrquico.

    Atividade operacional

    FUNO GRAU HIERRQUICO

    Grandes Comandos (CPM, CPI, CCB) coronis (mais antigos na carreira)

    Comando de Policiamento de rea coronel55Batalho PM (unidade de rea) tenente-coronel

    Companhias PM capito

    Peloto tenente

    Grupo PM (destacamento) sargento

    Fonte: entrevistas realizadas na Diretoria de Ensino e Instruo da PMESP em 1997.

    2 - Violncia Policial Ilegal

    A questo proposta na Introduo trata da dificuldade de conciliar as

    prticas da instituio policial s prescries do regime constitucional brasileiro.

    O problema est relacionado ao carter discricionrio da atividade policial,

    carter que dificulta de certa maneira a aplicao rigorosa de parmetros para

    delimitao do uso legtimo da fora no desempenho da atividade, a fim de

    distinguir a ao discricionria da simplesmente arbitrria.56

    Em certas situaes, o policial autorizado a usar a fora fsica para

    cumprir seu dever legal. Em caso de resistncia armada a uma abordagem, por

    exemplo, o uso de armas de fogo protegido pela lei, nos limites da legtima

    defesa e do estrito cumprimento do dever legal. 57 Ao empregar a fora em tal

    situao, o policial, de acordo com a lei, no comete crime, pois no h crime se

    55 Os coronis com menos tempo de carreira so designados para comandar o policiamento derea do interior, que no Estado de So Paulo est dividido em 12 regies (12 CPAs-I).56 Discricionariedade a margem de liberdade conferida pela lei ao agente pblico para quecumpra seu dever; o poder de o agente pblico agir ou no, de decidir atos de sua competncia,dentro dos limites legais, para realizar o interesse pblico. (DINIZ, M. H. Dicionrio Jurdico. SoPaulo, Saraiva, 1998, vol. 2).57 GRECCO. Abordagem policial. In: A Fora Policial. Polcia Militar do Estado de So Paulo, p.

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    o fato ocorre em estrito cumprimento do dever legal.58 Aes policiais violentas

    que resultam em homicdio podem ser includas nessa causa de excluso de

    ilicitude, tornando-se legtimas. A jurisprudncia entende que agem em estrito

    cumprimento de dever legal os policiais que matam um homicida que faz uso dearma ao receber voz de priso.59

    Circunscrito aos parmetros legais, o uso da fora pelo policial no

    constitui crime, do contrrio o agente dever ser responsabilizado pelo excesso.

    Em todas as causas de excluso de ilicitude pode haver excesso do agente. Isso

    ocorre quando ele, aps iniciar seu comportamento em conformidade com a

    justificativa, ultrapassa os limites legais desta, excede-se nela.60 Da a noo de

    estritocumprimento do dever legal: se o agente excede os limites de seu dever,

    h excesso ilcito de poder. Impe-se que a ao fique limitada ao estrito

    cumprimento do dever legal61.

    O problema consiste justamente em avaliar como empregada a fora

    fsica nas aes policiais, se o emprego da fora ocorre normalmente de acordo

    com as prescries legais ou se ultrapassa seus limites, ferindo direitos

    fundamentais do cidado. Trata-se de analisar, no caso, as aes que escapam

    ao enquadramento legal, sejam elas resultantes de excessos cometidos nos

    casos de estrito cumprimento do dever legal ou de condutas claramentedesviantes ou criminosas. A polcia possui objetivos legais e sua ao deve

    executar-se por meios admitidos em lei: os meios de ao tambm devem ser

    legais, ou previstos na lei ou admitidos pela lei.62 precisamente esse critrio

    de delimitao - objetivo legal, meios de ao limitados pela lei - que legitima a

    ao policial e a diferencia das aes criminosas cometidas por bandidos.

    86.58 Cdigo Penal Militar, art. 42; Cdigo Penal, art. 23.59 DELMANTO, C. Cdigo Penal Comentado, So Paulo, Renovar, 3 ed. 1991, p. 42.60 DELMANTO, C. Cdigo Penal Comentado, p. 41.61 DELMANTO, C. Cdigo Penal Comentado, p. 42.62 DALLARI, D. A. A polcia e as garantias de liberdade. In: MORAES, B. B. (org).O Papel daPolcia no Regime Democrtico, So Paulo, Magerar, 1996, p. 55.

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    Pode-se afirmar que na prtica esse critrio no se estabeleceu

    razoavelmente no Brasil. Com a redemocratizao, a violncia policial passou a

    ser uma preocupao da sociedade, ou de grupos da sociedade, mais

    especificamente aqueles ligados defesa dos direitos humanos, e a instituiose tornou objeto de investigao. Por um lado, estudos que analisam a polcia

    como instrumento de poder caracterizam a fora policial como um elemento

    essencial de controle das classes populares. Ao exercer seu papel repressivo de

    controle social, a instituio policial no restringe sua ao s formalidades

    legais. Referncias a maus-tratos de autoridades policiais contra esses cidados

    so contnuas tanto nos perodos de limitada democracia quanto nos regimes de

    exceo, acentuando-se nesses ltimos o desrespeito s garantias

    constitucionais de direitos individuais.63 Com a especializao da violncia, o

    arbtrio e a impunidade policiais, disseminados durante o regime autoritrio,

    aprofundaram uma dinmica j presente nos rgos repressivos mesmo antes de

    1964.64 Prticas policiais comuns na dcada de 70, como grandes operaes de

    rondas em que eram feitas detenes e revistas de suspeitos, eram socialmente

    discriminatrias e geralmente ilegais. No faltam exemplos de aes

    desastrosas que provocaram a morte das pessoas abordadas, alm de

    ameaas, espancamentos, torturas dos detidos etc. Com a pretenso de conter acriminalidade e o objetivo de controlar as classes populares, o vigilantismo

    policial combatia uma populao potencialmente suspeita.65

    A abordagem organizacional, por outro lado, tambm indica a

    desvalorizao dos formalismos legais no trabalho policial cotidiano. Mais do

    que categorias legais, [so] ideologias e esteretipos formulados

    organizacionalmente [que] orientam a ao dos membros de linha em sua

    63 PINHEIRO, P. S. Violncia e cultura. In: LAMOUNIER, B. et alii (org.). Direito, cidadania eparticipao. So Paulo, T. A. Queiroz, 1981.64 PINHEIRO, P. S.; SADER, E. O controle da polcia no processo de transio democrtica noBrasil. Temas IMESC, So Paulo, 1985, vol. 2, n. 2, p. 91.65 PINHEIRO, P. S. Polcia e crise poltica. In: PAOLI, M. C. et. alii (org.).A violncia brasileira.So Paulo, Brasiliense, 1982, p. 69-79; FERNANDES, H. R. Rondas cidade: uma coreografia dopoder, Tempo Social, So Paulo, 1989, vol. 1, n. 2, p. 121-134.

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    atividade rotineira... 66 Escapar ao formalismo da lei, na perspectiva dos policiais,

    condio para a eficincia do trabalho policial. 67 Resultado dessa conduta

    abusiva e ilegal a violao dos direitos fundamentais integridade fsica e

    vida, sendo expressivas as transgresses cometidas por agentes do Estado,apesar das mudanas ocorridas desde a instaurao do novo regime

    constitucional. A partir da redemocratizao, os dados sobre a violncia policial

    passaram a ser sistematizados, permitindo algumas interpretaes do fenmeno.

    No caso da PM paulista, o nmero de vtimas fatais em razo de confrontos

    sugere um questionamento da legalidade das aes policiais.68 O Quadro a

    seguir d a dimenso do emprego da fora policial militar no Estado de So

    Paulo entre 1981 e 1992:

    Quadro 1

    Mortes e ferimentos em aes da PM no Estado de So Paulo entre 1981 e 1992

    Ano Civis Mortos PMs Mortos Civis Feridos Policiais feridos

    1981 300 - - -

    1982 286 26 74 -

    1983 328 45 109 -

    1984 481 47 190 -

    1985 585 34 291 -

    1986 399 45 197 -1987 305 40 147 559

    1988 294 30 69 360

    1989 532 32 135 -

    1990 585 13 251 256

    1991 1140 78 - 250**

    1992 1359* 59 317 310**

    * Este nmero no inclui os 111 mortos na Casa de Deteno do Carandiru.

    ** Estimativa aproximada fornecida informalmente pela PM.

    66 PAIXO, A. L. A organizao policial numa rea metropolitana. Dados. Revista de CinciasSociais, Rio de Janeiro, 1982, vol. 25, n. 1, p. 64.67Idem, p. 7468 Em princpio, as condenaes na justia deveriam ser o critrio para indicar a dimenso daviolncia policial. Dadas as circunstncias, como se v a seguir, no se pode tom-las de fatocomo critrio suficiente.

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    Fonte: Os Direitos Humanos no Brasil, NEV-CTV (USP), So Paulo, 1993, p. 18 -20.

    Os dados sobre a violncia policial no so homogneos, encontram-se

    lacunas e pequenas variaes do nmero de mortes e feridos nas pesquisasbaseadas em fontes oficiais. Em um primeiro momento, os dados quantitativos

    do um panorama do problema da violncia policial, indicando grande nmero de

    mortes de civis sobretudo nos anos de 1991 e 1992. Como se v, as aes

    policiais militares resultaram em 1470 mortes em 1992,69 nmero que

    corresponde a um tero do total de homicdios cometidos no Estado de So

    Paulo naquele ano.

    Para justificar esses ndices, a instituio alega de modo geral que as

    mortes resultam do combate criminalidade nas ruas. Contudo, se primeira vista

    o emprego da fora pode ser entendido como resultado da represso necessria

    e legal, a anlise dos dados leva ao questionamento de tais aes. Durante o

    perodo em questo, a ao repressiva da polcia militar resultou em mais civis

    mortos que feridos, embora o padro de tiroteios em confrontaes reais deva

    resultar em uma proporo maior de feridos que de mortos.70 Assim como

    acontece com os policiais militares em So Paulo, seria de esperar nessas

    situaes um nmero maior de civis feridos ao de mortos. Estudo comparadoentre as polcias das cidades de So Paulo, Los Angeles, Nova York, Buenos

    Aires e Cidade do Mxico mostra como a PM paulista se destaca por recorrer de

    forma mais intensa violncia fatal. 71 A comparao entre o nmero de civis

    mortos pelas polcias de outras grandes metrpoles d uma medida do grau da

    violncia policial em So Paulo e de sua discrepncia em relao aos padres

    internacionais. Entre os anos de 1992 e 1995, a ao policial militar resultou na

    morte de 2097 civis na Grande So Paulo (ver Quadro 2). Em contrapartida, entre

    1990 e 1993, 117 civis foram mortos pela polcia de Nova York; 48 civis foram

    69 Incluindo os 111 presos mortos na invaso da Casa de Deteno do Carandiru pela PM apsrebelio.70 Ver CHEVIGNY, P. The Edge of Knife, 1994, p. 45.71Idem, ibidem.

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    mortos pela polcia de Los Angeles entre 1991 e 1992; e 230 civis foram mortos

    pela polcia de Buenos Aires entre 1986 e 1990.72 Embora no compreendam

    exatamente o mesmo perodo, os dados servem de referncia para avaliar o uso

    da fora pela polcia militar em So Paulo.Quadro 2

    Civis e PMs mortos e feridos na Grande So Paulo entre 1992 e 1995

    Ano Civis mortos Civis feridos

    1992 1190 165

    1993 243 194

    1994 333 194

    1995 331 220

    Fonte: Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo

    Outro dado relevante que em 1991, ano em que se verifica um aumento

    do nmero de policiais mortos em relao aos anos anteriores (ver Quadro 1),

    70% das mortes de policiais militares no ocorreram em confrontao, mas em

    acidentes ou fora de servio.73 Como indicam os dados do Quadro 3, essa

    situao no se modificou em 1994 e 1995, quando a grande maioria dos

    policiais militares morreu fora de servio (85,3% e 79,6% respectivamente). Os

    policiais so vtimas de aes violentas geralmente no desempenho deatividades extra-oficiais, sobretudo de segurana privada, ao passo que as

    mortes de civis ocorrem durante o servio policial. Se tais mortes civis

    resultassem exclusivamente de confrontos reais com agentes policiais no

    cumprimento do dever legal, a maior probabilidade de o policial ser vitimado

    ocorreria tambm nessas situaes de confronto durante o servio. Como ocorre

    o contrrio, a menor proporo de policiais vitimados em servio permite colocar

    em dvida a verso freqentemente apresentada pela PM de que as mortes de

    civis resultam de confrontos que justificam o emprego da fora no cumprimento

    do dever legal.

    72Idem, p. 105, p. 243 e p. 272.73 CALDEIRA, T. P. R. City of Walls: Crime, Segregation and Citizenship in So Paulo, 1992, p. 173.

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    Quadro 3

    PMs mortos e feridos no Estado de So Paulo, 1994-1995

    1994 1995PMs mortos em servio 25 23

    PMs mortos em folga 104 90PMs feridos em servio 216 224PMs feridos em folga 297 289

    Fonte: Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo

    O questionamento da verso oficial resultante da anlise quantitativa dos

    dados reforado pelas informaes apresentadas em relatrios de entidades

    de defesa dos direitos humanos. Segundo esses relatrios, grande parte das

    mortes de civis so extralegais, execues decorrentes de aes arbitrrias deuma polcia que se outorga o direito de fazer justia com as prprias mos. 74

    Com base em trabalhos realizados por pesquisadores, os relatrios de direitos

    humanos descrevem casos exemplares de uso ilegal da fora pela PM e do

    suporte problematizao da violncia policial. Sob a alegao de resistncia

    priso seguida de morte, os confrontos so justificados pela PM como

    decorrncia de situaes em que o policial age no cumprimento da lei. Em

    muitos casos, reportam os relatrios, as evidncias contrariam essa alegao e

    indicam que houve execuo da vtima, a despeito da dificuldade de provar a

    ilegalidade dessas aes policiais na Justia.

    Segundo os promotores do Ministrio Pblico que atuam na Justia Militar

    estadual,75 mesmo que existam evidncias ou suspeitas de ilegalidades, nem

    74 Ver Human Rights Watch, Final Justice: Police and Death Squad Homicides of Adolescents inBrasil, 1994. NEV e CTV (USP), Os Direitos Humanos no Brasil, 1993. Americas Watch/NEV(USP), Violncia Policial Urbana no Brasil: Mortes e Tortura pela Polcia em So Paulo e no Rio deJaneiro nos ltimos Cinco Anos (1987-1992), 1993. Americas Watch, Violncia Policial no Brasil:

    Execues Sumrias e Tortura em So Paulo e Rio de Janeiro, 1987.75 Os policiais militares so processados e julgados pela Justia Militar estadual nos crimesmilitares definidos em lei. H oito promotores na Justia Militar estadual: so promotores decarreira do Ministrio Pblico (integram o Ministrio Pblico de So Paulo) alocados na JustiaMilitar. So encarregados de produzir as provas, fazer a denncia ou pedir o arquivamento dosinquritos policiais e recorrer das decises. Foram entrevistados cinco desses promotores paraesta pesquisa. Todos apontam as mesmas dificuldades de trabalhar na Justia Militar nos casosde crimes praticados por policiais militares contra civis e afirmam que a posio do MinistrioPblico a esse respeito unnime.

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    sempre possvel comprov-las, e a ausncia de provas consiste no maior

    obstculo condenao de policiais militares. Como as investigaes so feitas

    pela prpria PM mediante os inquritos policiais militares,76 as provas podem ser

    facilmente manipuladas e um crime transformado em ao legtima. Antesmesmo de comear a investigao, os agentes envolvidos podem

    descaracterizar o delito j no momento em que aparentemente prestam socorro

    vtima. Muitas vezes a morte j um fato consumado, mas os policiais

    transportam o corpo para um hospital, dando indcios de cumprimento do dever

    legal e dificultando a comprovao de ilegalidade da ao.77 Conforme o caso, o

    laudo pode contradizer a verso policial, indicando que houve execuo da

    vtima. De qualquer forma, resistncia priso seguida de morte a justificativa

    constante nos inquritos policiais militares, prevalecendo no processo essa

    verso oficial quando no h provas nem testemunhas que a contrariem. De

    acordo com os promotores, a maioria dos inquritos no termina em processo,

    pois no h elementos para fazer a denncia.78 A duplicidade de investigao -

    civil e militar - permite que os promotores levantem dvidas quanto

    descaracterizao do crime por agentes policiais ao confrontar os dois

    inquritos. Analisando a ocorrncia, o Ministrio Pblico leva em considerao

    as circunstncias do crime - local, horrio, testemunhos -, que podem trazerindcios de execues. A apurao dos fatos depende tambm da cooperao

    da sociedade, da presso das ONGs de direitos humanos, das testemunhas etc.

    A partir dos dados obtidos, os promotores podem colocar em suspeio a

    veracidade do inqurito policial militar e, se possvel, transformar essas suspeitas

    76 O inqurito policial militar foi institudo durante o regime militar (Dec reto Lei 1002, de21/10/1969). A partir de ento, os crimes praticados por policiais militares passaram a serinvestigados pela prpria PM. Em alguns casos, como os de resistncia priso seguida demorte, h uma duplicidade de investigao, pois a vtima tambm cometeu um crime - deresistncia priso - e a polcia civil faz a apurao mediante o inqurito policial civil. Nessescasos, possvel comparar as duas investigaes.77 Ver BARCELLOS, C. Rota 66. A Histria da Polcia que Mata, So Paulo, Globo, 1993.78 Os promotores entrevistados forneceram informaes que no esto disponveis em textospublicados, uma vez que os arquivos da Justia Militar no esto abertos ao pblico. De qualquermaneira, a informao de que a maioria dos inquritos no se torna processo se baseia naexperincia de trabalho dos prprios promotores e serve para dar uma idia do funcionamento daJustia Militar estadual.

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    em provas. Essas dificuldades so confirmadas em relatrio da Human Rights

    Watch/Americas, que descreve todos os empecilhos condenao de policiais

    criminosos.79

    A viso dos prprios policiais militares d sustentao ao panoramatraado a respeito da violncia policial. Exposto ao debate pblico, o tema

    provoca polmica, sobretudo devido polarizao que norteia o trata mento da

    questo. Direitos humanos e atividade policial so colocados em lados opostos,

    em parte porque os direitos humanos permanecem associados idia de

    direitos de bandidos, idia que encontra respaldo tanto na polcia quanto na

    sociedade. Contra as crticas freqentes, a corporao adota muitas vezes a

    posio defensiva e limitada de afirmar que os casos de violncia policial so

    isolados e que so tomados os procedimentos cabveis para a punio dos

    policiais envolvidos nessas ocorrncias. Alm de influenciada pelo conflito

    ideolgico direitos humanos / polcia, a posio oficial apresentada em pblico

    limitada pela homogeneidade que normalmente uma corporao militar impe ao

    prprio discurso ao se expor sociedade. O recurso a fontes primrias, a

    monografias redigidas por oficiais da Polcia Militar em cursos de

    aperfeioamento, permite apreender a maneira como uma parte do meio oficial

    aborda o problema da violncia policial dentro da prpria corporao, fora dapolarizao que caracteriza o debate pblico.80

    Em um universo de aproximadamente 1.500 monografias que tratam dos

    temas mais diversos, visto ser diversificado o campo de atuao da corporao

    79 Human Rights Watch/Americas, Brutalidade Policial Urbana no Brasil, 1997, pp. 22-27.80 Trata-se de um conjunto de monografias redigidas por oficiais da Polcia Militar em dois cursospromovidos pela PM/SP: Curso de Aperfeioamento de Oficiais (CAO) e Curso Superior dePolcia (CSP). Tais cursos so oferecidos para oficiais em determinada fase da carreira e so

    obrigatrios para os que pretendem ascender na hierarquia alm do posto de capito. Sorealizados no Centro de Aperfeioamento e Estudos Superiores da Polcia Militar duranteaproximadamente 5 meses e correspondem a uma ps-graduao lato sensu. O Curso deAperfeioamento de Oficiais oferecido aos capites e requisito para promoo ao posto demajor. O Curso Superior de Polcia oferecido a tenentes -coronis e majores como exignciapara o posto de coronel. Ao final dos cursos, os oficiais devem apresentar uma monografia a serexaminada por uma banca composta por instrutores da Polcia Militar e professores de outrasinstituies. A produo de monografias teve incio em 1984; elas so fontes de pesquisa ereferncias de estudo para os prprios polic iais militares, sobretudo durante a participao nos cursos.

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    (policiamento de trnsito, florestal, guarda externa de presdios, defesa civil etc.),

    os trabalhos dedicados questo da violncia policial tm por objetivo explicar e

    buscar solues para o problema. Escritas por oficiais, as monografias so

    representativas da realidade profissional da Polcia Militar e constituem uma fonteprivilegiada de pesqui sa, pois o trabalho de campo na polcia mostra que no

    habitual o reconhecimento explcito e realista do problema da diante dos civis

    ou do pblico externo, referncias comuns na corporao aos no policiais. No

    interior da corporao, a violncia policial um tema constrangedor e de difcil

    abordagem.

    Nas monografias, a motivao do questionamento da violncia policial por

    parte dos oficiais abrange desde razes de fundo religioso at a preocupao

    com a sobrevivncia institucional da Polcia Militar. Os oficiais introduzem o tema

    geralmente com a seguinte constatao: a violncia policial existe e o lado

    negativo da corporao. A Polcia tem uma face lmpida, que cumpre bem o seu

    papel social, e outra suja, onde existe o vrus demolidor.81 Na viso desses

    oficiais, a violncia policial uma das principais causas da degradao da

    imagem da instituio e uma ameaa a sua continuidade, uma vez que por esse

    motivo chegou a ser proposta a extino das polcias militares. 82 Em seguida,

    descreve-se o fenmeno, identificado com clareza, semelhana dos relatriosde denncias de violaes dos direitos humanos: atos violentos praticados por

    integrantes da PM, em servio ou fora de servio, contra cidados (populao ou

    delinqentes) ou mesmo familiares dos prprios policiais, que vo do abuso de

    autoridade a leses corporais e homicdios. Ilustram o problema algumas

    tipologias do policial violento: o policial truculento, o policial arbitrrio, o policial

    prepotente, o policial arrogante etc. so os sujeitos de diversas prticas abusivas

    e/ou ilegais. s tipologias so acrescentadas descries de casos de violncia

    policial que se tornaram pblicos pela imprensa e os vivenciados pelos prprios

    autores. Os comportamentos so qualificados ora como agressivos, ora

    psicologicamente desequilibrados, podendo ser sintetizados como violentos e

    81 Cap. PIRES, A. C. Violncia policial. Estudo de casos. CAO-I/1986 (19).

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    ilegais, tais como, nas palavras dos oficiais, bater em pessoas indefesas, em

    presos algemados, abusar do poder, julgar-se acima de todos, arbitrar de acordo

    com sua vontade particular e contra a lei etc. Em suma: ele o juiz, o carrasco e

    o executor. Aplica a pena e a executa, batendo, torturando e matando. o todo-poderoso, boal e soberano. 83

    Ao definir o objeto, os autores diferenciam a violncia policial do uso

    legtmo da fora, prerrogativa da instituio policial. Em participaes da PM no

    debate pblico, no raro so confundidos esses conceitos, provavelmente em

    virtude da posio defensiva e corporativa, que alarga a noo de uso legtimo

    da fora, permitindo que nela sejam includos atos de violncia ilegal. Como

    salienta um oficial, seu tema de trabalho no o problema da violncia causada

    por reao necessria e circunstancial, mas as causas da violncia fcil,

    covarde, gratuita e inadmissvel, que compromete a toda uma tradicional e

    gloriosa Corporao.84 Ainda que um ou outro oficial apresente a PM ora como

    bode expiatrio na rea da violncia e da criminalidade, ora como vtima da

    imprensa sensacionalista, predomina o reconhecimento de que a violncia

    policial um grave problema, que deve ser analisado independentemente dessas

    questes paralelas. As seguintes passagens so exemplares quanto

    caracterizao da violncia policial:

    O policial militar, que convive com os recursos da violncia

    arbitrria, pode aprender essa prtica e passar a gostar desse

    convvio. Desumano, preposto, arbitrrio, sempre pronto adoo

    do expediente violento, usando a arma e a lei como suportes do

    atendimento dos seus impulsos, conscientes ou inconscientes, de

    agressividade ou periculosidade, o policial militar torna-se um

    marginal amparado e resguardado pela lei. um delinqente maisperigoso, porque usa da sua credencial, do seu ttulo e de sua farda,

    82 Ten-cel. ROZA, A. S. Violncia policial militar. CSP-I/1994 (4).83 Ten-cel. ROZA, A. S. Violncia policial militar. CSP-I/1994 (4), p. 16.84 Cap. LUZ, W. A. A violncia policial militar. CAO-I/1992 (9), p. 17.

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    para a prtica da violncia. Ele integra uma minoria da PM e a sua

    impunidade contamina a prpria Instituio.85

    Em breve no teremos uma tropa que objetiva a tranqilidade

    pblica com as suas aes, mas sim um bando, que aterroriza eintranqiliza a populao.86

    Obviamente esse reconhecimento explcito no chega ao debate pblico.

    Frente s crticas, sobretudo quando algum caso de violncia policial se converte

    em escndalo, embora a instituio tome as providncias formais de

    averiguao, prevalece entre os membros da instituio uma postura defensiva,

    preferindo-se atacar o sensacionalismo da imprensa a reconhecer e questionar

    as violncias cometidas pelos pares. Nas monografias, alguns oficiais revelam

    dificuldade para qualificar a violncia, para apontar os casos mais graves, como

    os homicdios, e se referem de maneira genrica violncia policial. Isso no

    significa que se distanciem ou estejam alheios a esses casos graves. Se entre os

    vrios relatos apresentados em uma monografia de 1986 no h nenhum caso de

    homicdio, o autor nem por isso deixa de lembrar que em anos anteriores (...) a

    violncia foi mais intensa em quantidade e qualidade, resultando em mortes. 87 A

    projeo no passado de problemas que esto sendo vivenciados pelos oficiaistambm aparece com clareza em uma monografia cuja questo central a

    preveno das mortes de policiais militares em servio. Nesse caso, a violncia

    policial, apontada como ao desastrosa que aumenta a probabilidade de o

    policial ser vitimado, reconhecida como prtica estimulada pela instituio:

    Temos nos avistado com advogados que tm tido contato com

    bandidos e eles nos tm dito que muitos deles no querem ser

    maus, mas reagem quando acuados pela polcia por no terem

    oportunidade de fugir e por saberem que, se se entregarem, no

    85 Maj. SILVA, J. E. Violncia policial militar. CSP-I/1989 (39), p. 7.86 Cap. PIRES, A. C. Violncia policial. Estudo de casos. CAO-I/1986 (19), p. 36-37.87 Cap. PIRES, A. C. Violncia policial. Estudo de casos. CAO-I/1986 (19), p. 30.

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    chegaro vivos nas Delegacias, quando no sero na maioria das

    vezes maltratados. Parece a mim que estes advogados no deixam

    de ter razo, pois houve poca em nossa Corporao que se

    estimulava at a prtica do homicdio como medida saneadora

    (grifos nossos).88

    Curiosamente, o autor cita ainda um caso que teve repercusso na poca

    de sua ocorrncia e novamente por ocasio da publicao de um livro sobre

    violncia policial em 1993: Rota 66, do jornalista Caco Barcellos.89 Em 1982, o

    ento capito Conte Lopes, mais tarde eleito deputado estadual, matou um

    operrio em ao desastrosa e ilegal, na qual havia sido ferido tambm um

    policial. Na monografia, a morte do operrio narrada de acordo com a verso

    publicada na imprensa da poca - ratificada posteriormente por Barcellos -,

    condenando a ao policial.

    A contradio entre as prescries normativas e a prtica de uma polcia

    que deveria sero anjo protetor e zelar pela integridade das pessoas referida a

    todo momento pelos oficiais. Segue-se o questionamento do fenmeno: por que

    policiais - cidados pacatos, bons chefes de famlia- se transformam em

    policiais violentos?90

    Por que homens humildes e pacatos quando esto na vidacivil, se modificam e se tornam grosseiros, arrogantes e agressivos aps

    investidos nos Poderes de Polcia e de manuteno da ordem pblica? (...) Por

    que h grande incidncia de policiais militares arbitrrios, que mesmo sabendo

    que seu dever proteger, fazem o contrrio?91

    Pode-se verificar com clareza a concordncia entre o discurso de alguns

    setores do meio oficial da PM e a avaliao dos crticos da instituio a respeito

    da questo da violncia policial. Os apontamentos das monografias confirmam

    as consideraes do presente trabalho sobre o problema. Apesar da reduo

    88 Cap. OLIVEIRA, V. G. Heris que jazem no mausolu poderiam estar vivos. CAO-II/1987 (30), p.10.89 BARCELLOS, C. Rota 66. Histria da polcia que mata, So Paulo, Globo, 1993.90 Cap. PIRES, A. C. Violncia policial. Estudo de casos. CAO-I/1986 (19).

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    das mortes pela polcia a partir de 1993 (ao menos em relao aos anos mais

    violentos: 1991 e 1992),92 os ndices ainda so altos e o perodo da

    redemocratizao est marcado por um nmero significativo de mortes pela

    polcia. Os depoimentos dos prprios policiais, alm dos dados quantitativos,revelam a dimenso do problema a ser enfrentado no processo de consolidao

    da democracia brasileira, uma vez que qualquer ao por parte de agentes

    estatais que viole direitos fundamentais inaceitvel em um regime dessa

    natureza.

    Em grande medida, a violncia policial um dos indicadores do modo

    como se desenvolve a democracia brasileira. Se em alguns setores ocorreram

    progressos inegveis, em outros permanecem prticas autoritrias, que

    dificultam a efetivao de direitos de cidadania fundamentais e dos direitos

    humanos. Os avanos no campo dos direitos civis introduzidos pela Constituio

    de 198893 continuam inexistentes para a maioria da populao que no alcanou

    efetivamente, apesar dos princpios formais, o statusde cidadania atribudo aos

    membros integrais da comunidade nos regimes democrticos.94 Grande parte

    das arbitrariedades dos policiais militares cometida contra suspeitos de aes

    criminosas, pessoas sem culpa comprovada. Discriminao social leva

    associao da populao pobre a essa categoria,95

    a quem no se faz valer osdireitos fundamentais previstos na Constituio. O mesmo problema apontado

    em relao polcia civil do Rio de Janeiro, a qual, na medida em que ampara

    suas aes na suposta oposio entre as categorias sociais de "trabalhadores"

    e "marginais", associa segunda tanto o infrator da lei quanto os social e

    economicamente marginalizados96 - o desempregado, o negro, o pobre. Tambm

    91 Ten-cel. ROZA, A. S. Violncia policial militar. CSP-I/1994 (4), p. 20.92

    A questo da reduo do nmero de mortes ser retomada adiante.93 Constituio Federal, art . 5 , que determina basicamente o direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade.94 MARSHALL, T. H. Cidadania e Classe Social. In: Cidadania, Classe Social e Status. Rio deJaneiro, Zahar Editores, 1967.95 CALDEIRA, T. P.R. Direitos Humanos ou Privilgios de Bandidos? Novos Estudos/Cebrap, SoPaulo, 1991, n. 30.96 LIMA, R. K. A Polcia da Cidade do Rio de Janeiro. Seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro,

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    na tica da polcia a sociedade aparece composta por cidados, tratados de

    acordo com as normas do Estado de Direito, e por aqueles que no so

    reconhecidos como tais, contra quem incide toda espcie de ilegalidades.

    Na letra da lei, conforme o artigo 144 da Constituio Federal, asegurana pblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,

    exercida para a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e

    do patrimmio, atravs dos seguintes rgos: polcia federal, polcia rodoviria

    federal, polcia ferroviria federal, polcias civis, polcias militares e corpos de

    bombeiros militares. Responsvel pelo policiamento ostensivo e preventivo, a

    PM deve atuar em contato direto com a populao com o objetivo de zelar pela

    segurana pblica. As freqentes violaes integridade das pessoas pela

    prpria instituio encarregada de garantir o direito segurana mostram como a

    ordem legal muitas vezes descumprida pela PM e como a relao entre a

    polcia e a populao ainda no corresponde s expectativas de uma sociedade

    democrtica, em que os poderes pblicos devem ser exercidos no mbito das

    leis que os regulam. Como poder pblico que transgride leis estabelecidas, a

    polcia um dos sintomas da fragilidade da democracia brasileira, incapaz de

    superar a sistemtica violao dos componentes liberais (direitos civis)

    essenciais no Estado de Direito.97

    Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro, 1994, pp. 56-59.97 ODONNELL, G. Sobre o Estado, a Democratizao e alguns problemas conceituais, NovosEstudos/Cebrap, So Paulo, 1993, n 36.

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    Captulo 2 - Segurana Pblica e Democracia

    Se o uso ilegal da violncia um problema reconhecido pelos prprios

    membros da Polcia Militar, abordado pelos oficiais nas monografias, resta saber

    as razes da conduta antidemocrtica da PM, passados mais de dez anos de

    vigncia da nova Constituio. Com base nos dados apresentados no captulo

    anterior, os quais revelam a dimenso da violncia da PM contra civis, possvelformular a hiptese de que essa descaracterizao da funo constitucional da

    instituio, responsvel pela segurana dos cidados, est relacionada

    basicamente fragilidade ou mesmo inexistncia de uma concepo de

    segurana pblica adequada ao Estado de Direito democrtico. O vnculo entre

    polcias militares e exrcito e a atribuio de competncia Justia militar

    estadual para processar e julgar policiais militares so dois fatores, talvez os

    principais, que dificultam a democratizao da concepo de segurana pblica

    no Brasil. Sem a pretenso de fornecer uma explicao acabada e exaustiva da

    questo, pode-se afirmar que esses dois fatores esto diretamente ligados s

    funes historicamente atribudas instituiopolicial brasileira e que eles tiveram

    reflexos no funcionamento de sua organizao, uma vez que influenciaram e ainda

    influenciam os rumos da segurana pblica no pas.

    Para a formulao de uma concepo democrtica de segurana pblica,

    pode-se tomar por base a discusso proposta por D. Monjardet a respeito do

    artigo dedicado fora pblica na Declarao dos Direitos do Homem e do

    Cidado (1789), considerando-se que o artigo enuncia, nos termos de E.

    Piccard, tudo o que preciso saber, ou ao menos esperar da polcia em um

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    Estado de Direito.98 A Declarao atribui fora pblica a funo primo rdial de

    garantir os direitos do homem e do cidado, sendo esta a razo de sua existncia e

    de seu mandato legtimo.99 Desde ento, no pode ser outro o ncleo de uma

    concepo democrtica de segurana pblica: trata-se de eleger como objetivoessencial da instituio, em primeiro plano, a garantia de direitos, orientando o

    desempenho das atividades policiaisem funo desse objetivo preciso.

    Na prtica, essa concepo de segurana pblica no vigora, em seu

    sentido mais rigoroso, nem mesmo em democracias consolidadas, como no

    caso francs. Comparando as prescries do cdigo da polcia na Frana com

    os propsitos da Declarao, Monjardet observa a inverso que o cdigo

    promove ao definir a finalidade da instituio policial: a garantia de direitos deixa

    de constituir a funo essencial da polcia, passando a ser apenas uma exigncia

    ou uma condio para a execuo de outrosobjetivos que lhe so conferidos.

    Como afirma o autor, comentando essa inverso de valores, uma coisa confiar

    instituio a garantia de direitos, o que asseguraria a ordem e a paz pblicas,

    outra confiar-lhe a manuteno da ordem e da paz pblicas, sob a condio do

    respeito aos direitos, como prescreve o cdigo.100

    No caso brasileiro, no h historicamente correspondncia entre os

    propsitos da Declarao de Direitos e aqueles expressos nos textos legaisreferentes s foras policiais. Como a prtica policial demonstra, nem mesmo o

    respeito aos direitos do homem e do cidado foi efetivamente imposto como

    uma condio para o exerccio da atividade policial. Duas razes contriburam

    para a formao dessa concepo de segurana que dissociou os fins das

    polcias militares do respeito aos direitos, colocando-os muitas vezes em

    campos opostos no Brasil, como se ver a seguir.

    98 PICCARD apudD. MONJARDET. Ce que fait la police, op. cit., p. 24. Segundo o Art. 12 daDeclarao dos Direitos do Homem e do Cidado: A garantia dos direitos do homem e docidado necessita de uma fora pblica; esta instituda para vantagem de todos, no para usoparticular daqueles a quem ela confiada.99 MONJARDET, D. Ce que fait la police, op. cit., p. 24.100Idem, p. 23-27.

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    1 - Polcia e Exrcito

    Pode-se associar a debilidade ou mesmo a inexistncia de uma

    concepo de segurana pblica adequada ao Estado de Direito democrtico vinculao histrica entre duas instituies com funes diferenciadas, as

    polcias militares e o exrcito. O objetivo do exrcito garantir a defesa da Ptria

    e os poderes constitucionais, o da polcia garantir a segurana pblica.101 No

    h proximidade, objetivamente, entre as atividades de cada uma dessas

    instituies em um regime democrtico; polcia atri bui-se a funo

    eminentemente civil de policiamento, distinta da atividade militar, finalidade do

    exrcito.

    Historicamente, o processo de especializao da polcia, ao tornar

    exclusividade dessa instituio a tarefa de aplicar a fora fsica dentro de um

    grupo social, significou o afastamento dos militares do trabalho de manuteno

    da ordem no mbito domstico. Dessa perspectiva, o emprego de unidades

    militares internamente representa uma especializao imperfeita da polcia.102

    No Brasil, embora a relao entre exrcito e polcia tenha se acentuado

    durante o regime autoritrio de 1964, o vnculo histrico entre essas duas

    instituies remonta a perodos anteriores. A retomada desse processo por meioda legislao referente s foras policiais estaduais perm ite observar as

    conseqncias dessa associao no mbito da segurana pblica. As primeiras

    leis que relacionaram as foras policiais ao Exrcito datam do incio do sculo,

    quando se estabeleceu a possibilidade de incorporao das polcias

    militarizadas estaduais ao Exrcito Nacional:

    As foras, no pertencentes ao Exrcito Nacional, que existirempermanentemente organizadas, com quadros efetivos,

    composio e instruo uniformes com (os) do Exrcito ativo,

    101 Constituio Federal, artigos 142 e 144 respectivamente.102 BAYLEY, D. Patterning of policing. A comparative international analysis, p. 40-41.

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    podero ser a ele incorporadas, no caso de mobilizao e por

    ocasio das grandes manobras anuais.

    (...) A Brigada Militar e o Corpo de Bombeiros do DistritoFederal, bem como as polcias estaduais que tiverem organizao

    eficiente, a juzo do Estado Maior do Exrcito, sero

    consideradas foras permanentemente organizadas podendo

    ser incorporadas ao Exrcito Nacional em caso de mobilizao

    deste e por ocasio das grandes manobras anuais. 103

    Essas leis indicam que a vinculao d