monografia policial

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SUMRIO INTRODUO 1 . .. ESTADO E FORA POLICIAL 0 9

2.

1 3

NECESSIDADE SOCIAL DE SEGURANA E SUA PREVISO CONSTITUCIONAL 2.1. FORA POLICIAL E OS PRINCPIOS JURDICOS INERENTES SUA ATIVIDADE 2.2. 2.2. Princpio da dignidade da pessoa humana 1. Princpio da legalidade 2.2. 2. .

1 6

1 8 1 9 2 1

2.2. Princpio da proporcionalidade 2 3. . 3 2.2. Princpio do uso adequado e progressivo da 4. fora 2.3. ATIVIDADE POLICIAL E PODER DE POLCIA .. 2 4 2 6 2 7 2 9

2.3. Conceito, fundamentos e caractersticas do 1. poder de polcia .. 2.3. Atividade policial como forma de atuao do 2. poder de polcia

3.

DOUTRINA POLICIAL: DO GERENCIAMENTO DE CRISES E DO TIRO DE COMPROMETIMENTO DO SNIPER 3 2 3 3

3.1 DO GERENCIAMENTO DE CRISES: DEFINIES, CARACTERSTICAS E ELEMENTOS OPERACIONAIS

3.1. Crise ou evento crtico e suas caractersticas 1. .. 3.1. Gerenciamento de crises: conceito e objetivos 2. Teatro de Operaes 3.1. 3. . 3.1. Comandante do Teatro de Operaes 4. . Negociador 3.1. 5. .. Grupo ttico 3.1. 6. 3.2. DO TIRO DE COMPROMETIMENTO DO SNIPER .. 3 3 3 4 3 4 3 5 3 6 3 7 3 9 4 0

Do Sniper 3.2. 1. .

4.

DOS ASPECTOS PENAIS QUE ENVOLVEM O TIRO DE COMPROMETIMENTO 4 2

DO CONCEITO DE CRIME 4 4.1. 2 4.2. DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL . 4 5 4 8

4.2. Do conflito aparente de deveres jurdicos 1.

DA EXCLUDENTE DE ILICITUDE DA LEGTIMA DEFESA (DE TERCEIROS) 4.3. 5 .. 1

4.3. Dos bens suscetveis de defesa 5 1. 3 4.3. Requisitos legais para reconhecimento da 2. legtima defesa 5 4

Do excesso doloso e culposo 4.3. 5 3. 9 4.4. DOS EFEITOS CIVIS DAS EXCLUDENTES DE 6 ILICITUDE . 1

DO ERRO NA EXECUO 6 4.5. 2 . DA OBEDINCIA HIERRQUICA E DA RESPONSABILIDADE PENAL DO TIRO DE 4.6. COMPROMETIMENTO ANLISE DOS CASOS HIPOTTICOS DE UTILIZAO DO TIRO DE 5. COMPROMETIMENTO EM FACE DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

6 7

7 1

DISPARO AUTORIZADO QUE ATINGE APENAS 5. O CAUSADOR DA CRISE 1. 7 . 1 DISPARO AUTORIZADO DIRIGIDO AO 5. CAUSADOR DA CRISE, MAS QUE ATINGE 2. APENAS O REFM .. DISPARO AUTORIZADO DIRIGIDO AO 5. CAUSADOR DA CRISE, QUE ATINGE O 3. CAUSADOR E O REFM

7 3

7 4

DISPARO OCORRIDO EM MOMENTO 5. INADEQUADO (NO OPORTUNO) 4 7 . 7 5. DISPARO NO AUTORIZADO 5 . 8 0

DISPARO DIRIGIDO AO CAUSADOR DO EVENTO CRTICO, QUE NO O ATINGE, MAS 5. QUE PROVOCA REAO IMEDIATA CONTRA A 6. VTIMA 8 .. 2 CONSIDERAES FINAIS 6. 85 REFERNCIAS GLOSSRIO . 1. INTRODUO A atuao de grupos tticos ou de atiradores de elite comumente ocupa espao na mdia como alvo de especulaes das mais diversas possveis. Por vezes, os profissionais que compem tais grupos, militantes na rea de operaes especiais ou operaes tticas, so enaltecidos, diferenciados do restante dos agentes policiais, servindo at de inspirao para a indstria cinematogrfica (exemplo disso, o filme Tropa de Elite). Ocorre que na maioria das vezes em que a atuao de grupos especiais vira manchete, no no intuito de elogi-los, mas de question-los acerca dos mtodos empregados, geralmente de forma emprica, atravs de severas crticas, principalmente quando no se alcana sucesso pleno no gerenciamento de uma crise. Exemplo recente, fora o caso Elo, ocorrido na cidade de So Paulo, que estava sendo gerenciado pelo GATE (Grupo de Aes Tticas Especiais) da Polcia Militar do Estado. comum, em meio s crticas levantadas pela imprensa, no sensacionalismo que lhe peculiar nos casos de polcia, o questionamento acerca da no utilizao do tiro de comprometimento como medida possvel de neutralizao do tomador de refm (causador da crise), demonstrando inclusive filmagens que comprovam sua exposio e a possibilidade de ser atingido atravs de um tiro de preciso, executado por um dos atiradores de elite, presentes e posicionados estrategicamente nas proximidades do ponto crtico. As atividades policiais voltadas para atendimento de situaes de crise, dado o elevado risco de vida dos envolvidos, so de relevante visibilidade e interesse social, e isto fomenta inmeras discusses na sociedade acerca dos mtodos e tcnicas empregadas pelas foras pblicas na soluo desses tipos de evento, que, diga-se de passagem, no corresponde a uma atividade rotineira de policiamento ostensivo. O gerenciamento de uma crise, como ser demonstrado adiante, trata-se de interveno policial extraordinria, em situaes em que o risco de vida dos envolvidos bastante elevada, necessitando assim, de uma atuao especializada por parte da fora pblica.

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A prpria sociedade exige do poder estatal e dos seus rgos, em especial da Polcia, a necessidade de constante evoluo e adequao aos ditames do Estado Democrtico de Direito. Ora, a atividade policial por sua natureza, uma atividade fiscalizadora e restritiva de direitos e liberdades individuais, da a importncia da qualificao e preparao cotidiana dos seus profissionais para provimento de uma fora policial mais humana e de atuao em conformidade com o Direito. Nesse contexto, ganha destaque o tiro de comprometimento, como alternativa ttica (medida extrema) de utilizao de fora letal durante o gerenciamento de um evento crtico, com vistas a solucionar a crise e por termo violncia perpetrada pelo tomador de refm(ns). Por ser este autor um oficial da Polcia Militar da Bahia, especializado profissionalmente na rea de Aes Tticas Especiais, e com participao em cursos e palestras de gerenciamento de crises, promovidos pela instituio, verificou-se a existncia de lacuna, na doutrina policial, de estudo e anlise jurdica da tcnica do tiro de comprometimento em face do Direito Penal brasileiro, um dos fatores que motivou o presente trabalho. Vale registrar, que a carncia de fundamentao jurdica encaixada doutrina policial, muitas vezes, acaba por causar uma espcie de insegurana na adoo do tiro de comprometimento como soluo de um evento crtico, sendo parcos os estudos acerca do tratamento jurdico a ser dispensado aos resultados hipotticos advindos de sua utilizao, e como se d a responsabilizao penal nos casos de erro na execuo do disparo. Sendo assim, esta pesquisa tem por finalidade contribuir para a construo de uma fundamentao jurdica palpvel, para um emprego responsvel e humano da doutrina policial do tiro de comprometimento como alternativa ttica e legalmente respaldada para a soluo de eventos crticos, atenuando a insegurana do seu uso. Para tanto, antes de enveredarmos pelas tcnicas policiais que tratam do gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento, bem como da anlise jurdica que se prope no presente trabalho, julgou-se importante, ab initio, uma breve fundamentao a respeito da necessidade da fora policial para o Estado e para a sociedade. Ainda no primeiro captulo, aps defendermos a necessidade da fora policial e demonstrarmos quem a monopoliza, destacamos alguns princpios jurdicos norteadores de sua atividade, enfocando em seguida os conceitos e aspectos que envolvem o poder de polcia e a polcia administrativa, e a relao destes com a atividade policial. No captulo seguinte, so reproduzidos os conceitos mais utilizados na doutrina policial, com nfase aos conceitos e princpios que regulam o Gerenciamento de Crises e o Tiro de Comprometimento, tudo de acordo com as atuais tcnicas utilizadas pelas polcias brasileiras. Demonstrando ainda, as atribuies dos componentes do Teatro de Operaes, importantes para consecuo dos objetivos deste trabalho. Aps os esclarecimentos acerca dos componentes e tcnicas do gerenciamento de crise, tema afeito doutrina policial, chega-se exposio dos institutos de Direito Penal necessrios anlise dos resultados que podem advir do uso do tiro de comprometimento. Dentre os aspectos penais importantes na discusso do tema, selecionamos as causas de justificao do estrito cumprimento do dever legal e da legtima defesa (de terceiros), o instituto do erro na execuo e a anlise da obedincia hierrquica na delimitao da responsabilidade penal dos agentes envolvidos na execuo do disparo de preciso.

Em seguida, como fruto do raciocnio seguido ao longo da pesquisa que ora se apresenta, se d a anlise jurdica, em sede de Direito Penal, dos resultados hipotticos e possveis da utilizao do tiro de comprometimento do sniper. E por fim, tem-se o encerramento do presente trabalho, com breves palavras a ttulo de concluso, em que se ressaltam os aspectos mais importantes levantados durante a pesquisa e a prpria legalidade ou no do disparo de preciso, momento em que ser ratificado o nosso posicionamento a respeito do tema. 2. ESTADO E FORA POLICIAL Neste captulo, antes de abordarmos sobre a importncia da fora policial na preservao da ordem pblica, e no conjunto de rgos necessrios manuteno do Estado Democrtico de Direito, vislumbramos que, didaticamente, interessante uma digresso sobre as relaes entre o Direito, Poder (Estado) e Sociedade. O ser humano como agente social tende a se exteriorizar por meio de relaes estabelecidas com os seus pares, necessitando da coexistncia social e da vida em sociedade como alimento da sua prpria existncia. O isolamento no a regra da vida humana, o comum se agregar. A solido, inclusive, pode ser causa de doenas emocionalmente depressivas altamente nocivas ao homem. Por isso, entende-se que o ser humano, em si, inclinado s relaes sociais. E para garantia da estabilidade social das relaes humanas, como um todo, surge a regulamentao dos direitos e deveres, pois, uma sociedade no existe sem direito, assim como este no subsiste sem aquela, necessariamente acabam se pressupondo um ao outro ubi societas ibi jus[1][1] (RO, 1997). Nas lies de Ro (1997, p. 49), o direito equaciona a vida social, atribuindo aos seres humanos, que a constituem, uma reciprocidade de poderes, ou faculdades, e de deveres, ou obrigaes. Deveras, ao lado do direito, imprescindvel a figura do Estado, como mediador das relaes sociais. No controle dessas relaes, o Poder Pblico confere ao direito um carter de proteocoero, o que significa que para toda proteo jurdica haver uma interveno eventual e de fora correspondente, com vistas a manter a ordem social (RO, 1997). Esta proteo-coero, segundo o autor (1997, p. 50), representa a possibilidade do poder pblico intervir, com a fora, em defesa do direito ameaado, ou violado, a fim de manter, efetivamente, a vida em comum, na sociedade. Sem esta garantia a vida do direito e da prpria sociedade seriam mitigados pelo desrespeito s normas, como pela vontade dos mais fortes sobre os mais fracos. Contudo, tal interveno do poder pblico no deve ser ilimitada. Nesse diapaso, ressalta-se o modelo de Estado concebido por Kant, em que se enaltece a liberdade individual, e a convenincia de limitar a fora coercitiva do Estado atravs de freios constitucionais (lei maior), com vistas a coibir a ao totalitria duramente sentida em governos do tipo absolutistas. Para tanto, uma das medidas necessrias ordem democrtica a tripartio dos poderes (Executivo, Legislativo e Judicirio), constituindo um sistema de freios e contrapesos e conservando a autonomia e harmonia entre os mesmos, conforme idealizado na estrutura montesquiana, o que cria a possibilidade de controle dos excessos por ventura cometidos por um dos poderes. Mas de onde vem o poder do Estado? E como se do as relaes de poder na sociedade? Para entendimento das relaes de poder, imperioso que se observe a existncia, de um lado, de quem exerce o poder, e do outro, aquele sobre o qual o poder exercido, o que leva a defini-lo como um conjunto de relaes pelas quais indivduos ou grupos

interferem na atividade de outros indivduos ou grupos (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 214). Nesta linha de pensamento, para que algum exera o poder, ser preciso dispor de fora. Embora seja comum interpretar dessa forma, no quer dizer que seja apenas fora fsica, coercitiva, ou o uso de violncia a fora em questo tem um significado maior, que transcende o mundo fsico. No Estado Democrtico de Direito, pode-se considerar como sendo o poder legitimado pela soberania popular, pela vontade do povo, que mune o poder pblico da fora de fazer prevalecer o interesse pblico sobre o particular (ARANHA; MARTINS, 2003). Sendo o poder estatal legtimo, apenas este se torna apto elaborao e aplicao das leis, recolhimento de tributos, e para dispor de uma fora armada. Esta, importantssima, para a garantia da ordem interna e externa (servios monopolizados pelo Estado). Nesse sentido, Weber (citado por BOBBIO, 2000, p. 165), afirma que a fora fsica legtima o fio condutor de ao do sistema poltico, aquilo que lhe confere a sua particular qualidade e importncia e a sua coerncia como sistema. Dessa argumentao, extrai-se que apenas as autoridades polticas possuem o direito de utilizar a coero e de exigir obedincia com base nela, e que: no h grupo social organizado que tenha at agora podido consentir na desmonopolizao do poder coativo, evento que significaria nada menos que o fim do Estado, e que, enquanto tal, constituiria um verdadeiro salto qualitativo para fora da histria, no reino sem tempo de utopia (BOBBIO, 2000, p. 166). Assim, pode-se afirmar que o poder que o Estado detm para interveno e controle social, de forma monopolizada, advm da soberania popular. um poder legitimado pelo povo com fim de sustentar a prpria coerncia da estrutura estatal. Mas, numa ordem democrtica de direito, por meio de qual rgo o Estado exerce a fora fsica necessria manuteno do poder legitimado pela soberania popular? No poderia ser outro, a no ser a polcia, brao armado do Poder Pblico. Outrora, nos governos absolutistas, caracterizava-se pela natureza perseguidora, com atividades conduzidas sombra das vontades do soberano, mas, dado a influncia das idias jusnaturalistas e jusracionalistas, o Estado assume a condio de garantidor dos direitos individuais, com economia mais liberal, e, conseqentemente, as funes da fora policial passam a ser tipicamente de preveno de perigos e de manuteno da ordem e segurana (CANOTILHO, 2003, p. 91). Feita esta introduo, passa-se a tratar da necessidade da fora policial para provimento da segurana pblica, desejo social que imperiosamente deve ser atendido pelo Estado, com fim de manuteno da ordem e da segurana na sociedade. Nesse sentido, o art. 144, da Constituio Federal, in verbis: A segurana pblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, atravs dos seguintes rgos: I polcia federal; II polcia rodoviria federal; III polcia ferroviria federal; IV polcias civis; V polcias militares e corpos de bombeiros militares. (CF/1988) 2.1. NECESSIDADE SOCIAL DE SEGURANA E SUA PREVISO CONSTITUCIONAL. cedio que a sociedade, desde sua tenra formao, bem como suas instituies, foram estruturadas em torno de princpios e valores que envolvem o desejo de segurana nas relaes sociais como um todo, inclusive, com avaliao de riscos, levando

necessidade de uma ordem jurdica que garanta segurana s relaes estabelecidas (segurana jurdica). A segurana algo to importante para o desenvolvimento da sociedade que j no incio de seu texto, a Constituio Federal de 1988 destaca a relevncia no seu trato pelo poder constituinte, indicando-a como valor supremo de uma sociedade, seno vejamos: Ns, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assemblia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, (). O trato dispensado ao direito segurana no ficou restrito apenas ao prembulo, previsto no prprio bojo da Constituio como direito fundamental e social, in verbis: Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade () (art. 5, caput, CF/88). So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta Constituio. (art. 6, caput, CF/88). Ademais, a partir de uma leitura ampla do art. 144, pode-se concluir que nossa Constituio no atribuiu apenas ao Estado a responsabilidade pelo provimento da segurana pblica, ao contrrio, estendeu a todos, de forma solidria, tanto o direito como a responsabilidade desta. Lgico que, como assevera o dispositivo em questo, a prestao da segurana pblica dever do Estado, contudo, no exclui a responsabilidade de todos os setores da sociedade e dos poderes constitudos (SOUZA, 2008, p. 27)[2][2]. por ser prprio da sociedade o receio e a necessidade de proteo, que a segurana pblica precisa ser garantida pelo Estado, o que levou nossa ordem constitucional a trat-la como direito fundamental e social de elevada importncia. Dentre os diversos rgos estatais que de uma forma ou de outra se preocupam com a segurana pblica, temos as instituies ou corporaes policiais discriminadas taxativamente no art. 144, da nossa carta constitucional, como responsveis pelo exerccio estatal da segurana com vistas preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio. Para que o objetivo de preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio seja alcanado, a fora policial poder atuar tanto de forma preventiva como de forma repressiva, a depender do caso concreto. O que no se pode olvidar da sua existncia como mecanismo necessrio manuteno da ordem democrtica, pois difcil vislumbrar uma democracia sem a conteno e controle do crime, garantindo o respeito ordem jurdica constitucionalmente instalada. Assim, pode-se afirmar que a polcia e a sociedade so interdependentes. Os acontecimentos no campo de uma repercutem forosamente no da outra. Uma analogia interessante, lecionada no curso de Direitos Humanos[3][3] promovido pela Secretaria Nacional de Segurana Pblica (SENASP) para profissionais dessa rea, que: assim como no seio familiar, imperioso a interveno do adulto para limitar e nortear moralmente a conduta dos jovens sob sua tutela ou guarda, em nvel macro (social), tambm necessrio a existncia de uma instituio com a misso de conter e

manter a ordem, de forma a limitar os desvios comportamentais que afrontem o Estado Democrtico de Direito. A polcia , portanto, uma espcie de superego social indispensvel em culturas urbanas, complexas e de interesses conflitantes, contendedora do bvio caos a que estaramos expostos na absurda hiptese de sua inexistncia[4][4]. Por isso no se conhece sociedade que se mantenha sem a existncia do poder de polcia. Cuidar da segurana pblica, da liberdade de ir e vir do cidado, que este no seja molestado ou saqueado, e da garantia de integridade fsica e moral de todos, dever do Estado (representado pela fora policial) e responsabilidade de todos, um pacto com o rol mais bsico dos direitos humanos, os quais devem ser garantidos sociedade em geral. com este fim, que a soberania popular confere ao Estado (fora policial) a funo para o uso da fora, quando necessrio e no atendimento do interesse pblico. 2.2. FORA POLICIAL E OS PRINCPIOS JURDICOS INERENTES SUA ATIVIDADE. A fora policial, concebida no rol dos rgos pblicos discriminados constitucionalmente como responsveis pelo exerccio da preservao da ordem pblica, est inserida na estrutura administrativa do Estado, e como tal regida por normas e princpios de Direito Administrativo. O Direito Administrativo, ramo autnomo na Cincia Jurdica, rene um conjunto de normas que regem a Administrao Pblica e a conduta dos seus agentes. Possui princpios prprios, alguns estabelecidos de forma taxativa no caput do art. 37, da Constituio Federal (legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficincia), e outros dispostos de forma implcita (a exemplo, os princpios da razoabilidade, proporcionalidade, da ampla defesa e do contraditrio, segurana jurdica, motivao, supremacia do interesse pblico), mas que a doutrina majoritria os reconhece como necessrios atuao administrativa. Merece ainda relevante considerao, para efeitos do presente texto, o princpio da dignidade da pessoa humana, previsto na atual ordem democrtica como um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil, bem como os princpios da interveno mnima, que molda a atuao punitiva do Estado como ultima ratio, e do uso progressivo da fora, como orientador dos meios de interveno da fora policial, que dever se dar de forma gradativa. notria a importncia que todos estes princpios assumem no cenrio da atividade administrativa policial do Poder Pblico, principalmente como limitadores da ao do Estado, que j foi muito sentida pelo povo brasileiro nos tempos do governo ditatorial. No entanto, por serem de maior relevncia, sero tratados a seguir apenas os princpios da dignidade da pessoa humana, da legalidade (ou reserva legal), da proporcionalidade, e do uso progressivo da fora, como princpios norteadores da atividade policial e necessrios discusso do tema que se ousa dissertar. 2.2.1. Princpio da dignidade da pessoa humana. Previsto no art. 1, inciso III, da nossa Constituio Federal, como fundamento da Repblica Federativa[5][5], o princpio da dignidade da pessoa humana, considerado ncleo basilar de todos os direitos fundamentais garantidos constitucionalmente. Sarlet (2004, p. 106 e 107), ao discutir a eficcia dos direitos fundamentais, leciona que tanto os direitos positivados taxativamente, como os implcitos, guardam relao com os princpios fundamentais de nossa Carta Magna, dentre estes, a dignidade da pessoa humana, o qual constitui em suas palavras valor unificador de todos os direitos

fundamentais, e assume funo legitimatria no reconhecimento de direitos fundamentais dispostos de forma implcita no texto constitucional. Para ilustrao da dignidade da pessoa humana como valor supremo em nossa sociedade e no mundo jurdico, tem-se o seguinte julgado do STF: A durao prolongada, abusiva e irrazovel da priso cautelar de algum ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa considerada a centralidade desse princpio essencial (CF, art. 1, III) significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso Pas e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre ns, a ordem republicana e democrtica consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituio Federal (Art. 5, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Conveno Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudncia.[6][6] (grifos nosso). Ora, em que pese a complexidade e dificuldade de um significado universal do que seja dignidade da pessoa humana, pois abarca um conjunto de valores, direitos e garantias que podem variar de acordo com determinada cultura ou religio, uma coisa certa: o Constituinte de 1988 a reconheceu como fundamento do Estado Democrtico de Direito, estabelecendo, assim, que o Estado que existe em funo da pessoa (SARLET, 2004, p. 110), no o contrrio. Vale ressaltar que so vrias as Constituies que consagram tal princpio como valor fundamental da ordem jurdica, e ao considerarem a dignidade da pessoa humana como princpio fundamental e de eficcia plena, partem da premissa de que, ao homem, basta a sua condio biolgica de ser humano para assumir a qualidade de titular de direitos e de um mnimo de dignidade, os quais devem ser respeitados, no apenas pelos seus pares, mas tambm pelo Estado. , portanto, a dignidade, um atributo inerente natureza e condio da pessoa humana (SARLET, 2004). Entendimento este, que pode ser extrado do art. 1 da Declarao Universal dos Direitos do Homem: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. So dotadas de razo e conscincia e devem agir em relao umas s outras com esprito de fraternidade[7][7]. Significa que toda pessoa j nasce com dignidade e com garantia de isonomia entre os seres humanos, sendo defeso todo tratamento discriminatrio, arbitrrio, e todo tipo de perseguio por questes religiosas ou raciais. Falar sobre dignidade da pessoa humana num espao reduzido como este, bastante rduo, em face da dimenso e importncia do tema, mas, sem dvida, o pouco que fora abordado servir de base para a discusso proposta em torno das implicaes jurdicas que envolvem a adoo do tiro de comprometimento do sniper, como alternativa de soluo num evento crtico. Interveno estatal difcil de ser defendida na perspectiva do direito vida, liberdade e igualdade, que, nas lies de Sarlet (2004), correspondem s exigncias mais elementares da dignidade da pessoa humana. Contudo, poder ser tida como necessria e nica medida disponvel a ser adotada pelo Estado como soluo de uma crise, principalmente, quando est em jogo a vida de pessoas tomadas como refm, as quais merecem, sem dvida alguma, ter garantida sua dignidade e respeito. Quando se trata de interveno do Estado (fora policial), no se pode olvidar da exigncia de base legal e do respeito proporcionalidade na consecuo de seus atos administrativos. Imperativos decorrentes do princpio da dignidade da pessoa humana na limitao do Poder Pblico, na condio de requisitos necessrios para uma atuao repressiva do Estado, principalmente, quando ameaar ou ofender direitos e garantias individuais (SARLET, 2004). Da a importncia dos princpios da legalidade e da proporcionalidade, tratados a seguir.

2.2.2. Princpio da legalidade. pacfico na doutrina o entendimento de que o princpio da legalidade serve de limitador da atuao estatal, significando que toda atividade administrativa do Estado deve ser autorizada por lei. Esse princpio, expressamente previsto no art. 37, caput, da CF/88, considerado por Bandeira de Mello (2005, p. 89) como princpio basilar do regime jurdico-administrativo, e especfico do Estado Democrtico de Direito. Sua funo: submeter a Administrao Pblica aos ditames da ordem normativa. Para o particular, o princpio da legalidade, da forma consubstanciada no art. 5, inciso II, da CF/88, ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei, uma garantia de proteo contra possveis arbitrariedades do Poder Pblico, estabelecendo, assim, que a Administrao Pblica no poder impor ou proibir conduta alguma ao particular, salvo se determinado ou facultado por lei. Nesse sentido, so preciosas as lies de Meirelles: Na Administrao Pblica no h liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administrao particular lcito fazer tudo que a lei no probe, na Administrao Pblica s permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa pode fazer assim; para o administrador pblico significa deve fazer assim (2001, P. 82). Em outras palavras, preleciona no mesmo sentido o constitucionalista Cunha Jnior, ao tratar do princpio da legalidade na Administrao Pblica: Sabe-se que, no mbito das relaes privadas, vige a idia de que tudo que no est proibido em lei est permitido. Nas relaes pblicas, contudo, o princpio da legalidade envolve a idia de que a Administrao Pblica s pode atuar quando autorizada ou permitida pela lei. A norma deve autorizar o agir e o no agir dos sujeitos da Administrao Pblica, pois ela integralmente subserviente lei (2008, p. 861). O princpio da legalidade tambm assume papel importante no Direito Penal brasileiro. Insculpido no inciso XXXIX, do art. 5, da Constituio Federal, prescreve que: no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prvia cominao legal. Tal garantia constitucional esclarece que a lei a nica fonte, ou meio, para que o Estado possa proibir comportamentos sob ameaa de punio, ou mesmo, impor sanes, em caso de violao da norma penal. Dessa forma, este princpio atua como limitador do poder punitivo do Estado, exigindo-se para tanto reserva legal. Feitas tais ponderaes, fica claro que as foras policiais devem, de forma imperiosa, se curvar ao princpio da legalidade, tanto no desempenho de suas atividades administrativas, como no exerccio da preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, principalmente, quando atuarem de forma repressiva, pois, estaro auxiliando o Estado em sua pretenso de punir o infrator (so exemplos, casos de priso em flagrante e de inqurito policial). 2.2.3. Princpio da proporcionalidade. O princpio da proporcionalidade no Direito Administrativo tem por objeto o controle e conteno dos atos, decises e condutas dos agentes pblicos, de sorte a limitar a ao destes ao que deve ser entendido por adequado e legal. Consiste, assim, em exigir do Poder Pblico que sua atuao no ocorra de forma abusiva (com excesso de poder ou desvio de poder), mas lastreada na necessidade, equilbrio e adequao ao interesse pblico (CARVALHO FILHO, 2006). Ainda de acordo com Carvalho Filho, o Poder Pblico age dentro do razovel e com proporcionalidade, quando este, ao intervir em atividades sob seu controle, atua porque a situao reclama realmente a interveno, e esta deve processar-se com equilbrio, sem excessos e proporcionalmente ao fim a ser atingido (2006, p 30).

Este entendimento, recepcionado na doutrina ptria, tem origem no direito alemo, o qual apresenta como fundamentos do princpio da proporcionalidade os seguintes elementos: 1) pertinncia, significando que uma interveno do Estado ser pertinente, quando o meio escolhido como ideal for realmente capaz de atingir o fim colimado; 2) necessidade ou exigibilidade, implicando que a medida seja indispensvel para atingir o fim almejado ao considerar a indisponibilidade de outro meio menos gravoso, pois caso exista, este deve ser adotado; e 3) proporcionalidade stricto sensu, ou seja, na escolha do meio, as vantagens devem superar as desvantagens, devendo a escolha recair sobre o meio mais adequado e menos desproporcional (BONAVIDES, 2006, p. 396 p. 398). Outra curiosidade apresentada nas lies do ilustre doutrinador Meirelles (2001, p. 86), em que o princpio da proporcionalidade, tambm pode ser chamado de princpio da proibio de excesso, o qual implica na obrigao do administrador aferir a compatibilidade entre os meios e os fins, de modo a evitar restries desnecessrias ou abusivas por parte da Administrao Pblica, com leso aos direitos fundamentais. Tomando por base as ponderaes ora apresentadas, no restam dvidas o quanto prudente a adoo do princpio da proporcionalidade no desempenho das funes dos rgos policiais, principalmente, ao assumirem posturas repressivas no controle de ocorrncias delituosas, ou da prpria ordem pblica, em face da possibilidade material de restrio de direitos fundamentais. Seguindo tal raciocnio, conclui-se que, no uso da fora, a autoridade policial dever esgotar inicialmente as medidas menos ofensivas aos direitos e garantias fundamentais, utilizando a fora de forma gradativa, progressiva, at que se chegue ao uso da arma de fogo, a qual por prudncia deve ser tida como ltima medida a ser adotada pelo Estado na conteno de uma ao delituosa, mas que no deixa de ser uma alternativa legal, quando baseada na legtima defesa e guardada a devida proporcionalidade. 2.2.4. Princpio do uso adequado e progressivo da fora. No mbito da doutrina policial, o princpio da proporcionalidade ganha um novo contorno, revestindo-se de aplicao prpria, especfica, gerando um novo princpio, decorrente deste, a que se denomina de uso progressivo da fora.[8][8] As foras policiais, como instituies (seja civil ou militar) responsveis pelo provimento da segurana pblica, sem dvida, devem primar pela aplicao da lei, mas tambm so obrigadas a intervir repressivamente nos casos em que esta seja violada. Trata-se de interveno exigida pela prpria sociedade e pela ordem normativa. Como exemplo de exigncia legal para que um policial aja de forma repressiva, tem-se o art. 301, do CPP, qualquer do povo poder e as autoridades policiais devero prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Norma que impe aos agentes policiais a obrigao de agir frente a situaes de flagrante delito, como dever de ofcio, sob pena de responsabilidade criminal e administrativa em casos de omisso. O policial tem o dever de agir diante de flagrante delito, aplicando a fora quando o caso concreto assim exigir. No entanto, no se pode olvidar da necessidade de gradao na atuao repressiva, esgotando inicialmente as possibilidades de negociao, persuaso e mediao, nas situaes em que estas sejam possveis, pois, s vezes, o policial no ter oportunidade de dialogar com o infrator, como exemplo, em casos de resistncia com uso de arma de fogo contra o agente policial, o que o levar adoo de postura mais ofensiva para defesa sua e de terceiros. Nesse diapaso, importante ter a conscincia que o papel da fora policial na sociedade assume importncia ainda maior na medida em que se reconhece a legitimidade para o uso da fora na soluo de conflitos, devendo sua atuao ser submissa ao escalonamento e ponderaes impostas por lei.

O entendimento de que o uso da fora deve ocorrer de forma progressiva, pode ser extrado de alguns diplomas legais incidentes atuao policial. O Cdigo de Processo Penal, por exemplo, possui em seu bojo dois dispositivos que tratam do uso da fora, in verbis: Art. 284. No ser permitido o emprego de fora, salvo a indispensvel no caso de resistncia ou tentativa de fuga do preso. Art. 293. Se o executor do mandado verificar, com segurana, que o ru entrou ou se encontra em alguma casa, o morador ser intimado a entreg-lo, vista da ordem de priso. Se no for obedecido imediatamente, o executor convocar duas testemunhas e, sendo dia, entrar a fora na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimao ao morador, se no for atendido, far guardar todas as sadas, tornando a casa incomunicvel, e, logo que amanhea, arrombar as portas e efetuar a priso. Como visto acima, o uso da fora no regra, deve ser aplicada pelo policial quando indispensvel, necessria, ao cumprimento do dever, e na graduao adequada e proporcional resistncia encontrada. Como diz Tourinho Filho, a fora haver de ser empregada to somente nos limites necessrios para superar a oposio, o animus oppugnandi. Leciona ainda que outra hiptese de emprego da fora o caso de fuga do preso, e afirma que: se a Polcia vai prender algum e este corre, para tentar impedir a priso, pode o executor, inclusive, usar da fora necessria para evitar a fuga, disparando-lhe, por exemplo, um tiro na perna (2009, p. 614). O Cdigo de Processo Penal Militar outra fonte importante na delimitao do significado do uso adequado e proporcional da fora, e, ao disciplinar o emprego desta, trouxe a baila hipteses no previstas na legislao processual comum. Seno vejamos: Emprego da fora Art. 234 O emprego de fora s permitido quando indispensvel, no caso de desobedincia, resistncia ou tentativa de fuga. Se houver resistncia da parte de terceiros, podero ser usados os meios necessrios para venc-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a priso do ofensor. De tudo se lavrar auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. Emprego de algemas 1 O emprego de algemas deve ser evitado, desde que no haja perigo de fuga ou de agresso da parte do preso, e de modo algum ser permitido, nos presos a que se refere o art. 242. Uso de armas 2 O recurso ao uso de armas s se justifica quando absolutamente necessrio para vencer a resistncia ou proteger a incolumidade do executor da priso ou a de auxiliar seu. (grifos nosso). Depreende-se desses dispositivos que o uso da fora, e aqui se insere o emprego letal de arma de fogo, esto devidamente legitimados em nossa ordem normativa, mas com a responsabilidade de aplicao apenas em casos extremos, em que no haja outra forma de resoluo do conflito. Da o imperativo de estabelecer o uso adequado e proporcional da fora como um dos princpios norteadores da atividade policial, adotando as diversas formas de interveno com maior critrio e ponderao. Deveras, devem ser esgotadas, inicialmente, as medidas menos gravosas aos direitos e garantias fundamentais, para s assim, e como

ultima ratio, apenas em casos extremos, recorrer-se ao uso letal da arma de fogo. o sentido de aplicao do uso adequado e progressivo da fora que se prope. 2.3. ATIVIDADE POLICIAL E PODER DE POLCIA. Os rgos de segurana pblica, por comporem a estrutura da Administrao Pblica, e pela natureza das misses constitucionais que lhes so peculiares, em suas atividades, esto intimamente relacionados aos conceitos de polcia administrativa e de segurana e o de poder de polcia, principalmente no desempenho de restrio de direitos individuais. E sendo a atividade de polcia um poder monopolizado pelo Estado, desta se vale para manter sob sua proteo o interesse pblico em detrimento do comportamento individual passvel de limitao. 2.3.1. Conceito, fundamentos e atributos do poder de polcia. Tem-se no art. 78, do Cdigo Tributrio Nacional, o conceito legal de poder de polcia: Considera-se poder de polcia a atividade da administrao pblica que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prtica de ato ou absteno de fato, em razo de interesse pblico concernente segurana, higiene, ordem, aos costumes, disciplina da produo e do mercado, ao exerccio de atividades econmicas dependentes de concesso ou autorizao do Poder Pblico, tranqilidade pblica ou ao respeito propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Trata-se, assim, de prerrogativa do poder pblico que, calcada na lei, autoriza a Administrao Pblica a restringir o uso e o gozo de liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade (CARVALHO FILHO, 2006, p. 64). J Moreira Neto (2006, p. 395), refere-se ao poder de polcia como funo administrativa de polcia, mas, sem destoar da doutrina majoritria, tambm reconhece a necessidade de previso legal para que o Estado, atravs dos seus agentes, possa restringir ou condicionar o exerccio das liberdades e direitos fundamentais, dos particulares, em prol do interesse pblico. Destes conceitos depreendem-se como objetos do poder de polcia os bens e direitos individuais, os quais sofrem limites com um nico fim, a proteo do interesse coletivo, que obrigatoriamente deve estar previsto em lei. E no seriam outros, seno a lei e a prevalncia do interesse pblico sobre o particular, os fundamentos para o exerccio do poder de polcia. Pois, no considerado regra a interveno estatal que limita direitos e garantias individuais, a restrio e condicionamento das liberdades e da propriedade particular exceo, e somente se d mediante reserva legal, assim est previsto no art. 5, inciso II, da CF/88. Nesse diapaso, Hely L. Meirelles, ao lecionar a respeito da razo e fundamento do poder de polcia, ensina que: A razo do poder de polcia o interesse social e o seu fundamento est na supremacia geral que o Estado exerce em seu territrio sobre todas as pessoas, bens e atividades, supremacia que se revela nos mandamentos constitucionais e nas normas de ordem pblica, que a cada passo opem condicionamentos e restries aos direitos individuais em favor da coletividade, incumbindo ao Poder Pblico o seu policiamento administrativo. (grifo nosso). (2001, p. 127) Vale ainda ressaltar, dado a dinmica caracterstica ao exerccio do poder de polcia, que este possui atributos especficos que lhe so peculiares, quais sejam: a discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade.

A discricionariedade deste poder traduz-se na opo legtima que a Administrao Pblica dispe na escolha da oportunidade e convenincia de exercer os atos de polcia, o que implica em escolher o momento mais adequado, o meio de atuao necessrio, e a sano pertinente ao caso concreto, com fim exclusivo de atingir o interesse pblico (MEIRELLES, 2001). Nas palavras de Meirelles, com toda razo, discricionariedade no se confunde com arbitrariedade. A discricionariedade uma faculdade na escolha das hipteses de condutas previstas em lei, desta no podendo distanciar-se a Administrao Pblica, pois, contrariamente, correr o risco de incorrer em arbitrariedade, que o agir em excesso ou fora da lei (MEIRELLES, 2001, p. 128). Para Carvalho Filho, so formas de abuso, cometido pela Administrao Pblica, o excesso ou desvio de poder. Assim, se diz que houve excesso, quando o agente atua fora dos limites de sua competncia, e desvio, ao afastar-se do interesse pblico, embora atuando dentro da sua competncia (2006, p. 37). J a autoexecutoriedade, trata-se de prerrogativa que tem a Administrao Pblica de praticar e executar seus atos de polcia, por meios prprios, sem a necessidade de interveno do Poder Judicirio. Verificada a incidncia dos pressupostos legais que autorizam a conduta administrativa, a Administrao a executa de forma imediata e integral (CARVALHO FILHO, 2006). Ora, no uso do poder de polcia, a Administrao Pblica no dispe de tempo para aprovao prvia de qualquer outro rgo ou Poder, h casos em que o interesse pblico visado pelo ato de polcia no pode esperar a burocracia administrativa, a atividade ilcita precisa ser obstada imediatamente por questes de ordem social e legal, sob pena de responsabilidade por omisso. Como ltimo atributo, a coercibilidade. Este traduz o grau de imperatividade de que reveste o ato de polcia. Implica na imposio coativa das decises e medidas adotadas pela Administrao Pblica, admitindo inclusive o emprego da fora nos casos de resistncia do administrado, dentro da legalidade e proporcionalidade, postulados norteadores da interveno estatal (MEIRELLES, 2001). 2.3.2. Atividade policial como forma de atuao do poder de polcia. A funo policial se constitui em espcie de atuao do Estado no exerccio do poder de polcia, na medida em que age na limitao de direitos e garantias individuais em prol do bem comum, do interesse pblico, fim ltimo perseguido pelo poder estatal. A princpio, cumpre especificar os tipos de atividade de polcia, que se divide em: polcia administrativa e polcia de segurana. Enquanto as atividades administrativas dizem respeito s limitaes impostas a bens jurdicos individuais ou coletivos, as atividades de segurana referem-se preservao da ordem pblica (atravs de policiamento ostensivo) ou, s atividades de polcia judiciria, de atuao repressiva (SILVA, 2007, p. 778). Di Pietro esclarece que as atividades de polcia administrativa so regidas pelas normas de Direito Administrativo, incidindo geralmente sobre bens, direitos ou atividades, ao passo que as atividades policiais de segurana so regidas pelo Direito Penal e Processual Penal, com incidncia sobre as pessoas (2008, p. 109). Ao lecionar sobre a diferena entre polcia administrativa e judiciria, Bandeira de Mello conclui que: O que efetivamente aparta polcia administrativa de polcia judiciria que a primeira se predispe unicamente a impedir ou paralisar atividades anti-sociais enquanto a

segunda se preordena responsabilizao dos violadores da ordem jurdica. (2005, p. 771). Ademais, pode-se observar que a polcia administrativa atua por meio de rgos de fiscalizao, ou rgos inerentes Administrao Pblica, ao tempo que a polcia judiciria e de segurana atuam atravs de instituies ou corporaes, como o caso das polcias civil e militar. Nesse sentido, o entendimento de Meirelles: a polcia administrativa inerente e se difunde por toda a Administrao Pblica, enquanto as demais so privativas de determinados rgos (Polcias Civis) ou corporaes (Polcias Militares) (2001, p. 123). Em continuidade a esta distino, o presente trabalho no poderia se furtar das preciosas lies de Carvalho Filho, ao lembrar que ambas as polcias (seja administrativa ou judiciria), em verdade, desenvolvem atividades de natureza administrativa, com procedimentos e responsabilidades voltadas ao atendimento do interesse pblico. Nas palavras do aludido autor: A Polcia Administrativa a atividade da Administrao que se exaure em si mesma, ou seja, inicia e se completa no mbito da funo administrativa. O mesmo no ocorre com a Polcia Judiciria, que, embora seja atividade administrativa, prepara a atuao da funo jurisdicional penal, o que faz regulada pelo Cdigo de Processo Penal (arts 4 e seguintes) e executada por rgos de segurana (polcia civil ou militar), ao passo que a Polcia Administrativa o por rgos administrativos de carter mais fiscalizador. (2006, p. 69). Tais consideraes so importantes para os fins deste trabalho, pois, assim, pode-se delimitar o que seja polcia de segurana (ostensiva), natureza jurdica da Polcia Militar, com atribuio constitucional de preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, de essncia preventiva (dada sua ostensividade), mas que muitas vezes acaba exercendo atividades de cunho repressivo ao se deparar com situaes de flagrante delito, o que leva adoo de medidas com vistas restaurao da ordem pblica e aplicao da lei. Definida a importncia da fora policial para a existncia do Estado e para atendimento do desejo de segurana da sociedade, os princpios jurdicos orientadores de sua atividade, e a delimitao do que seja polcia de segurana e o poder de polcia que lhe inerente, passa-se, neste momento, apresentao da doutrina policial de gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento do sniper, necessria anlise jurdica que este trabalho visa realizar. 3. DOUTRINA POLICIAL: DO GERENCIAMENTO DE CRISES E DO TIRO DE COMPROMETIMENTO DO SNIPER A construo da doutrina policial na seara do gerenciamento de crises tem por base a literatura policial norte-americana, utilizando-se de conceitos e princpios formulados pelo FBI (Federal Bureau of Investigation), que, inclusive, serviram como fonte inspiradora para o desenvolvimento dos diversos manuais de gerenciamento de crises hoje existentes no Brasil. Essa fundamentao terica, desenvolvida nos ltimos dez anos, objetivou uma melhor padronizao e evoluo das tcnicas policiais a serem adotadas nas intervenes de eventos crticos, com funo relevante no cenrio brasileiro, pois, at pouco tempo, no existiam parmetros de comportamento ou procedimentos recomendados para gerenciamento de ocorrncias de alto risco. Muitas ocorrncias com refns eram resolvidas na base do improviso, o que no mais se admite na atualidade. Da a importncia de profissionais de segurana pblica desenvolverem estudos nessa rea de conhecimento, visando proporcionar um uso mais

adequado e legal das tcnicas policiais a partir da anlise de suas implicaes jurdicas, como prope o presente trabalho. Contudo, para se chegar anlise jurdica proposta tematicamente preciso apenas uma breve apresentao dos conceitos bsicos e fundamentos tcnicos que envolvem o tema do gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento, tratados a seguir. 3.1. DO GERENCIAMENTO DE CRISES: DEFINIES, CARACTERSTICAS E ELEMENTOS OPERACIONAIS. 3.1.1. Crise ou evento crtico e suas caractersticas. A Academia Nacional do FBI define crise como um evento ou situao crucial, que exige uma resposta especial da Polcia, a fim de assegurar uma soluo aceitvel. Merece destaque a expresso da polcia na definio acima, pois demonstra ser a Polcia o rgo responsvel para gerenciar e solucionar as situaes de crise, no sendo recomendado a utilizao de pessoas estranhas ao quadro policial do Poder Pblico no desempenho de tais funes. Segundo Wanderley M. de Souza (1995, p. 20), especialista e estudioso das tcnicas de gerenciamento de crises, inconcebvel o envolvimento de religiosos, psiclogos, elementos da mdia, advogados e outros como negociadores ou responsveis pela conduo e resoluo de crises, devido ao risco e imprevisibilidade decorrentes de tal interveno. O ilustre oficial da Polcia Militar de So Paulo, sintetiza como caractersticas especficas de uma crise: a imprevisibilidade; a compresso de tempo (urgncia); a ameaa de vida; e a necessidade de uma postura organizacional no rotineira, de planejamento analtico especial e consideraes legais especiais. (1995, p. 21). Dessa forma, cuida-se a crise de um evento de natureza crucial que demanda um esforo especializado para sua correta soluo, exigindo da Polcia (Estado) adoo de medidas no rotineiras, face s peculiaridades e elevado risco de vida que envolve a ocorrncia. 3.1.2. Gerenciamento de crises: conceito e objetivos. Wanderley M. de Souza (1995, p. 23), mais uma vez, faz referncia a conceito proposto pela Academia Nacional do FBI, a qual adota a seguinte definio acerca do gerenciamento de crises: Gerenciamento de Crise o processo de identificar, obter e aplicar os recursos necessrios antecipao, preveno e resoluo de uma crise. Nas palavras de Marcelo Veigantes (2008, p. 38), o correto gerenciamento da crise que vai definir, na maior parte das vezes, o sucesso da operao. Nesta oportunidade, o autor acrescenta a importncia das instituies policiais proverem o estudo do gerenciamento de crises como disciplina obrigatria nos cursos de formao e especializao. Em fim, trata-se de uma cincia que deve lidar, geralmente sob parco tempo, com problemas de ordem pblica da maior complexidade, em momentos arriscados de sua evoluo, tendo sempre por meta, e como objetivos fundamentais, a preservao de vidas e aplicao da lei. Esses dois objetivos esto dispostos numa ordem valorativa, em que o comando preservar vidas deve ser colocado, para os profissionais imbudos no processo de gerenciamento de evento crtico, acima da prpria aplicao da lei (DE SOUZA, 1995). A fuga negociada[9][9] pode ser considerada exemplo prtico dessa hierarquia, vez que a aplicao da lei (dever de realizar a priso, ou a prpria persecuo penal) pode ser retardada, ao passo que a perda da vida de um refm irreversvel. 3.1.3. Teatro de Operaes.

O teatro de operaes, tambm denominado cena de ao ou permetro do local de crise, corresponde rea circundante do ponto crtico, e abrange um espao que deve ser isolado no intuito de se estabelecer o gabinete de gesto e gerenciamento, de onde sero deliberadas as aes policiais a serem adotadas. Na organizao da cena de ao de grande importncia a delimitao dos permetros de segurana, estabelecendo total isolamento e controle da rea de situao pela polcia, rgo que passa a ser o nico veculo de comunicao entre os protagonistas do evento e o mundo exterior, com acesso limitado s pessoas e autoridades envolvidas na soluo da crise, todos sob a coordenao do Comandante do Teatro de Operaes. 3.1.4. Comandante do Teatro de Operaes. Trata-se da autoridade executiva, elemento operacional, que comanda e coordena todas as aes policiais no local do evento crtico. O teatro de operaes fica sob a sua responsabilidade. Assim, qualquer ao desenvolvida no mbito do teatro de operaes depender da anuncia expressa desse policial, que passa a ser a mais alta autoridade na rea em torno do ponto crtico (DE SOUZA, 1995, p. 53). Existe a possibilidade do comandante da cena de ao, durante o processo, ser substitudo por outra autoridade policial[10][10], por determinao ou poltica do escalo superior, contudo, vlido esclarecer que independente de quem venha assumir a dita funo, este dever ser respeitado e deter o poder de deciso no local da crise. Postulado que, nas lies Wanderley M. de Souza, tem como objetivo bvio trazer coeso e definio de autoridade no gerenciamento da crise, evitando-se a disperso de comando e a nefasta ocorrncia de cadeias de comando paralelas (1995, p. 54). Sendo o comandante do teatro de operaes a mais alta autoridade, e com poder hierrquico e funcional sobre todos os policiais envolvidos no processo de gerenciamento de crise, este que detm o poder decisrio para autorizar, ao atirador de preciso (sniper), a realizao do tiro de comprometimento a fim de neutralizar o perpetrador da crise ou tomador de refns. Malgrado este entendimento, no se pode olvidar da influncia que agentes polticos do Poder Executivo, ou mesmo do Legislativo, exercem na tomada de deciso por parte do comandante do permetro do local de crise, principalmente quando esta envolve pessoas da alta sociedade. Mas como este trabalho se restringe anlise jurdica do disparo de comprometimento, no pertinente que se aprofunde tal discusso. 3.1.5. Negociador. o elemento operacional responsvel pelo processo de negociao estabelecido com o causador da crise. O papel fundamental do negociador, segundo Wanderley M. de Souza (1995, p. 56 e 57) o de servir de intermedirio entre os causadores do evento crtico e o comandante da cena de ao. O negociador, como intermedirio, no processo dialtico entre os protagonistas do gerenciamento de crises, serve de catalisador entre as exigncias dos causadores do evento crtico (tese) e a postura das autoridades (anttese), na busca de uma soluo aceitvel (sntese). Este personagem no possui poder de deciso, entretanto, assume importante funo de assessoramento do comandante do teatro de operaes, o auxiliando na tomada de decises (DE SOUZA, 1995). A tarefa de negociao, dada a sua primazia, no pode ser confiada a qualquer um. Dela ficar encarregado um policial especializado, com treinamento especfico, devendo ser uma pessoa criativa e tica, de dilogo fcil, e que assuma esta funo de forma voluntria.

A negociao, em si, quase tudo no gerenciamento de crises. Costuma-se dizer que gerenciar uma crise negociar, negociar e negociar, e quando se esgotarem as possibilidades de negociao, tentar realiz-la mais uma vez (DE SOUZA, 1995, p. 55). Esta a poltica de ao policial adotada majoritariamente, no entanto, sabe-se que em alguns casos, uma vez esgotada as alternativas no letais de soluo da crise, necessrio ser o emprego de fora letal como medida extrema, e esta dever ser empregada dentro da legalidade e proporcionalidade exigidas por lei. Da a relevncia do presente estudo. Pois, h casos em que retardar demasiadamente o uso de fora letal contra o infrator, poder ser fatal para a vtima. 3.1.6. Grupo ttico. Alm do comandante da cena de ao e do negociador, existe um outro elemento operacional essencial para o gerenciamento de uma crise, denominado de grupo ttico ou time ttico, equivalente SWAT (Special Wapons and Tactics) da polcia americana. O grupo ttico, segundo o Manual de Aes Tticas da PMBA, composto basicamente por dois subgrupos: os franco-atiradores (Snipers), tambm chamados de atiradores de elite, e os atacantes (assalters), ou clula de assalto, a quem cabe a misso de invaso adentramento do ponto crtico e resgate dos refns (MAGALHES, 2003). O grupo comandado por um policial denominado chefe ou comandante do grupo ttico, o qual no deve ser confundido com o comandante do teatro de operaes, anteriormente tratado. Wanderley M. de Souza, com base na doutrina americana (SWAT), traz em sua obra, como fundamentos doutrinrios de um grupo ttico: (1) ser composto por uma frao pequena de policiais (5 a 10), fundada na hierarquia, na disciplina e na lealdade; (2) em que o recrutamento do efetivo feito na base do voluntariado, sendo a escolha pautada na conduta, coragem, experincia e especializao do policial candidato em situaes de crise; (3) seus componentes devem ser submetidos a treinamentos constantes e to assemelhados quanto possvel realidade, trabalhando em regime de dedicao exclusiva; (4) e que todos assumam o compromisso de matar (1995, p. 76 e 77). Purificao (apud VEIGANTES, 2008, p. 42), ao lecionar sobre grupo ttico, tambm faz referncia a este ltimo princpio, e assevera que um dos fundamentos doutrinrios destes grupos o compromisso de matar, assumido por todos os seus integrantes. No entanto, este compromisso proposto pela doutrina norte americana e, inicialmente, reproduzido no Brasil, j foi e continua sendo alvo de severas crticas nas discusses que tratam a respeito do gerenciamento de crises. Pois, primeira vista, uma contradio clara: como pode ser admitido como fundamento de um grupo ttico, o compromisso de matar, se a preservao da vida e aplicao da lei so objetivos consagrados no gerenciamento de crises? Nesse diapaso, considerando o ordenamento jurdico ptrio, e com base nos princpios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da proporcionalidade, e do uso adequado e progressivo da fora, inicialmente defendidos nesta pesquisa como orientadores da atividade policial, fcil a concluso de que fundamento dessa natureza no possui nenhum respaldo legal, configurando-se numa verdadeira aberrao da doutrina policial. O agente policial em operaes de alto risco, numa crise com refns, por exemplo, seja ele de grupo ttico ou no, deve respeito inconteste aos mandamentos constitucionais. O compromisso ou dever de matar, que pode ser tratado, analogicamente, como dever de aplicao de pena de morte, particularmente, conduz o policial condio de carrasco, figura inexistente no direito penal ptrio.

Destarte, a doutrina policial ao recepcionar tal princpio em seus manuais, demonstra desconhecimento e grande atraso frente aos direitos e garantias fundamentais consagrados constitucionalmente. notrio que a pena de morte no Brasil somente encontra suporte jurdico em tempo de guerra, oportunidade em que poder o militar infrator ser condenado a uma pena de morte, conforme previso do Cdigo Penal Militar agindo o executor em estrito cumprimento de dever legal. Os rgos policiais, taxativamente discriminados na Constituio ptria, possuem como Estado o dever de prestar uma segurana pblica eficaz com vistas preservao da ordem e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, no sendo da melhor tcnica ou doutrina atribuir aos seus agentes o compromisso de matar, mesmo em situaes de alto risco. Mais sensato seria lecionar que o policial (ou sniper) tem, na verdade, o dever de proteger e defender a pessoa vtima de uma agresso humana injusta, atual ou iminente, conduta qualificada como legtima defesa de terceiros na legislao penal, no o compromisso de matar. 3.2. DO TIRO DE COMPROMETIMENTO DO SNIPER. O Manual Bsico de Aes Tticas da PMBA (MAGALHES, 2003, p. 13), assim como outros, prev como alternativas tticas a serem empregadas na soluo de uma crise: a negociao, o uso de tcnicas no letais, o tiro de comprometimento realizado pelo atirador de preciso e a invaso ttica ou assalto por clula policial. Segundo Digenes V. D. Lucca (2002, p. 98), dentre as alternativas apresentadas, o tiro de comprometimento e a invaso por clula ttica, no processo de gerenciamento, so alternativas tticas de fundamental importncia para resoluo de crises envolvendo refns localizados. No entanto, sintetiza que a aplicao do tiro de preciso ou a invaso necessitam de uma avaliao minuciosa de todo o contexto da crise, devendo ser esgotado inicialmente as tcnicas no letais disponveis ao aparato policial. Isto, numa perspectiva de adequao e uso proporcional da fora. Embora a realizao do tiro de comprometimento parea uma atuao simples, em fim, s enquadrar o alvo e atirar, podendo ser realizado distncia sem necessidade de se expor, na realidade, bastante difcil e complexa sua execuo, principalmente quando existe mais de um seqestrador e a possibilidade de se atingir tambm o refm. Por isso, o atirador de elite costuma ser uma figura criticada em muitos eventos crticos, mesmo quando deixa de atuar concretamente. Por fim, a realizao desse disparo corresponde a uma alternativa que, quando adotada, deve ser infalvel, dado a imensa responsabilidade em hipteses de erro. So vidas que esto em risco, devendo ser um disparo comprometido com o acerto e preciso. Da a denominao: tiro de comprometimento. 3.2.1. Do Sniper. Digenes V. D. Lucca, em sua pesquisa, revela que a origem da palavra sniper se deu por um fato curioso: No perodo entre as duas grandes guerras mundiais, os americanos faziam seus treinamentos militares em grandes campos abertos e, ao realizarem o tiro, notavam o vo rpido e irregular de uma pequena ave chamada sniper, que fugia espantada. Esse pequeno pssaro era um grande freqentador de linhas de tiro, devido ao seu alimento preferido, uma planta gramnea, ser freqente naqueles lugares. Assim, muitos atiradores preferiam acertar o tiro no pssaro em movimento, da surgiu o apelido sniper, ou seja, aquele que se dedica ao pssaro sniper. (2002, p. 100).

Quanto ao conceito, nas lies de Marcelo Veigantes, sniper o policial que busca a melhor posio de viso e tiro, de tal maneira que, utilizando equipamentos pticos de aproximao, como lunetas e binculos, pode ver sem ser visto, servindo de elemento surpresa e como grande fonte de informaes para o Comandante do Teatro de Operaes, dado o equipamento ptico que dispe. (2008, p. 43). Ser um atirador de preciso vai alm da condio de ter equipamentos de ltima gerao (arma e luneta de pontaria), para realizar um disparo perfeito. Trata-se de uma funo de grande responsabilidade institucional, podendo ser alvo de severas crticas, em caso de erro, ou de fascnio social, quando a ao acertada. (LUCCA, 2002, p. 98) Uma distino digna de registro entre sniper militar e policial. Enquanto o primeiro desempenha sua funo em tempo de guerra imbudo do compromisso de matar, como regra, agindo com objetivo de causar baixa na tropa inimiga, o sniper policial, diferentemente, empregado como alternativa ttica extrema num gerenciamento de evento crtico, com funes pautadas na possibilidade de garantir a proteo e defender vtimas de aes delituosas, e com ofcio de contribuir para a restaurao da ordem pblica. Dessa forma, o sniper corresponde ao policial a quem cabe a funo de atirador de preciso dentro do grupo ttico (ou grupo de operaes especiais), responsvel pela execuo do tiro de comprometimento, quando adotado como soluo mais adequada para a crise. Tambm de sua responsabilidade, o papel subsidirio de observao e colheita de informaes a respeito do ponto crtico (tais como, nmero de refns, de seqestradores, de armas, etc.) atravs dos equipamentos pticos que dispe, auxiliando assim o comandante do teatro de operaes com informaes precisas acerca de circunstncias que envolvem a crise. Funo muito mais comum que a prpria execuo do tiro de comprometimento. Outro ponto digno de registro quanto ao momento de execuo propriamente dita do tiro de comprometimento. Ficou esclarecido que o comandante do teatro de operaes a autoridade policial competente para autorizar e determinar a realizao do disparo, no entanto, uma vez autorizado, ser o atirador que possui o domnio do momento em que o tiro ser executado, dado as questes tcnicas inerentes sua realizao. Nesse diapaso, pode-se concluir que ambos, comandante e atirador possuem responsabilidades quanto realizao do tiro. Assunto que ser mais detalhado a frente, ao tratarmos da obedincia hierrquica e da responsabilidade penal no concurso dos atores envolvidos na execuo do tiro de comprometimento. Enfim, uma vez adotado como alternativa ttica de soluo de uma crise, sua execuo enseja o estudo de alguns aspectos jurdicos atinentes ao Direito Penal brasileiro, o que se passa a analisar no captulo seguinte. 4. DOS ASPECTOS PENAIS QUE ENVOLVEM O TIRO DE COMPROMETIMENTO Para discusso e enquadramento das hipteses de resultado da utilizao do tiro de comprometimento, necessrio se faz verificar os aspectos penais relevantes ao estudo desta medida, bem como a existncia ou no de respaldo legal e suas implicaes na legislao penal brasileira. Enfim, como o disparo tende a ser fatal, ocorrendo em tese o crime de homicdio, importante, para fins de evoluo da doutrina policial de gerenciamento de crises e desenvolvimento do tema proposto: delimitar as circunstncias que excluem a antijuridicidade da conduta; a quem se deve atribuir a responsabilidade penal pela execuo do disparo, dentre os protagonistas da cena de ao; e como incidir o

instituto do erro na execuo no caso concreto. Basicamente, objetivos a serem alcanados neste captulo aps analisarmos o conceito de crime. 4.1. DO CONCEITO DE CRIME O conceito de crime ponto inicial para discusso das circunstncias que envolvem o tiro de comprometimento. Tem-se nas lies de Cludio Brando, que o Direito Penal, busca investigar o crime luz das normas, do dever-ser, utilizando para tanto o mtodo normativo. Assevera ainda que, como a norma uma unidade dialtica entre preceito e contedo, ela traduz-se numa frmula que expressa uma conduta (por exemplo, art. 121, do CP, Matar algum: Pena recluso, de seis a vinte anos), chamada de preceito, e, em seguida, prever uma sano. Quanto ao contedo da norma penal, este representado pelo bem jurdico por ela tutelado com a norma proibitiva, no exemplo do homicdio: a preservao da vida. (BRANDO, 2007, p. 05 e 06) Considerado o contedo normativo como o bem jurdico tutelado pela norma penal, importante que se traga a definio do que seja bem jurdico. Ainda nas palavras de Cludio Brando (2007, p. 10), bem jurdico deve ser definido como o valor tutelado pela norma penal, funcionando como um pressuposto imprescindvel para a existncia da sociedade. O autor conclui que, sendo o bem protegido a justificativa para as regras punitivas do Direito Penal, o crime pode ser definido, materialmente, como violao ou exposio a perigo do bem jurdico tutelado. Porm, na anlise jurdica almejada, tambm digno de registro, o conceito formal de crime, a partir do entendimento dos elementos que o compe: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Este conceito ficou a cargo da doutrina, vez que o legislador conceituou crime de sorte a relacion-lo to somente s penas cominadas (recluso e deteno), in verbis: considera-se crime a infrao penal que a lei comina pena de recluso ou de deteno, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. (art. 1, primeira parte). Considerando o conceito formal de crime tutelado pela doutrina, tem-se como primeiro elemento constitutivo a tipicidade, decorrente do Princpio da Reserva Legal ou da Legalidade (nullum crimen nulla poena sine lege), que se traduz numa relao de adequao entre a conduta humana e a norma penal incriminadora. A conduta uma vez tipificada entendida como contrria ao direito, antijurdica. (BITENCOURT, 2003) Ocorre que podem existir aes tpicas que, malgrado a adequao com a norma penal, no se configuram crimes, no so antijurdicas. Isto decorre da previso de causas que justificam a conduta tpica, ou seja, excluem a antijuridicidade. Da, o segundo elemento do crime: a antijuridicidade. (CLUDIO BRANDO, 2007) Nas palavras de Rogrio Greco, a antijuridicidade corresponde relao de antagonismo, de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurdico (ilicitude formal) que cause leso, ou exponha a perigo de leso, um bem juridicamente protegido (ilicitude material). (2008, p. 99) J para Cludio Brando, a antijuridicidade um juzo de valor negativo ou desvalor que qualifica o fato como contrrio ao Direito. Segundo o autor, um juzo de valor sobre a ao humana, que tambm feito ao analisar se um fato tpico ou no. (2007, p. 11) Do exposto, deduz-se que, para ser considerada crime, a conduta humana precisa ser tpica e antijurdica (teoria bipartida do delito). Porm, h hipteses em que aes tpicas e antijurdicas no so tidas como crime. o que ocorre em aes delitivas promovidas por menores, por serem inimputveis (desprovidos de capacidade penal),

suas aes, quando tpicas e antijurdicas, so classificadas como atos infracionais e sofrem sanes especficas previstas em lei especial (Estatuto da Criana e do Adolescente). Nessa linha de raciocnio, Cludio Brando assevera que: Para que o crime se perfaa necessrio que, alm dos juzos sobre a ao (tipicidade e antijuridicidade), se faa um juzo sobre o autor da ao. Esse juzo sobre o autor da ao chamado de culpabilidade. (2007, p. 20) Dessa forma, chega-se culpabilidade, terceiro elemento do delito. Trata-se de um juzo de reprovao realizado sobre o autor da conduta tpica e antijurdica, quando, mesmo diante da possibilidade de agir conforme o Direito, escolhe livremente contrarilo. (CLUDIO BRANDO, 2007) Dessa forma, visto os trs elementos que compem o conceito analtico de crime, defini-se este, majoritariamente, como sendo a conduta tpica, antijurdica e culpvel (teoria tripartida do crime). (DOTTI, 2005, p. 300) Partindo-se para a anlise do caso concreto, esta deve ser feita na ordem determinada pelo prprio conceito, sendo o juzo de um elemento pressuposto necessrio para o juzo do elemento subseqente. Ou seja, primeiro verifica-se se houve a conduta, para ento definir se ou no tpica. A seguir, uma vez havida a conduta e sendo esta tpica, observa-se se est amparada por uma causa de justificao ou contrria ordem jurdica e, por conseguinte, se reprovvel (juzo de culpabilidade). Percorrido este caminho, pode-se interpretar o fato como penalmente relevante. (PEGORARO, 2008) Feito esta breve anlise do conceito de crime possvel vislumbrar que o tiro de comprometimento uma ao humana, e que ao atingir o causador do evento crtico de forma letal, se adequa ao tipo do crime de homicdio. Sendo assim, a deciso que autoriza tal medida dever ser pautada por uma norma permissiva, para que num juzo de antijuridicidade da ao, esta assuma conformidade com o Direito. A seguir, analisar-se- os aspectos penais pertinentes ao disparo de comprometimento, pontuando de incio as causas de excluso de antijuridicidade, mais adequadas ao fato em estudo, em seguida, o instituto do erro na execuo e as questes relevantes obedincia hierrquica, na delimitao da responsabilidade penal. 4.2. DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL O Cdigo Penal prev como causa de excluso de ilicitude o estrito cumprimento de dever legal (art. 23, inciso III, 1 parte). Esta norma, de carter permissivo, aduz que no haver crime quando o agente agir em cumprimento de um dever imposto por lei. Dessa forma, no constituem crime a ao do policial que prende o infrator em flagrante delito, do carrasco que executa a pena de morte, ou do bombeiro que viola domiclio para prestao de socorro, dentre outras. (BITENCOURT, 2003) Nossa legislao no positivou o conceito desta causa de justificao como o fez em relao legtima defesa e o estado de necessidade. Mas, do quanto estabelecido no Cdigo Penal, aduz-se que o estrito cumprimento de um dever legal corresponde a uma causa de excluso de antijuridicidade baseada em norma de carter geral, cujo preceito impe o dever de realizar uma ao tpica, respeitando os limites legalmente disciplinados. (CLUDIO BRANDO, 2007, p. 124) Observa Cludio Brando que: No existe esta causa de justificao, portanto, quando falte uma norma de carter geral. Se o dever de agir for imposto por uma norma de carter particular, como aquela emanada de um superior hierrquico, no se pode falar em incidncia do estrito cumprimento do dever legal, embora se possa, eventualmente, reconhecer a obedincia

hierrquica (art. 22 do Cdigo Penal) para excluir a culpabilidade do agente. (CLUDIO BRANDO, 2007, p. 124) Este entendimento tambm compartilhado por Bitencourt, o qual ensina que: a norma da qual emana o dever tem de ser jurdica, e de carter geral: lei, decreto, regulamento etc. [...] se a norma tiver carter particular, de cunho administrativo, poder configurar a obedincia hierrquica (art. 22, 2 parte, do CP), mas no o dever legal. (2003, p. 272) Nesse diapaso, para reconhecimento dessa causa de justificao, necessrio a observncia dos seguintes requisitos: existncia de um dever imposto por lei em sentido amplo; o cumprimento deste dever por quem tenha competncia para tal; ter o agente o animus de cumprir com o dever imposto por lei (elemento subjetivo); e que sua atuao esteja adstrita ao previsto no mandamento legal. (DOTTI, 2005) Dos conceitos e requisitos expostos, pode-se concluir que no correspondem ao estrito cumprimento de um dever legal as obrigaes de natureza social, moral ou religiosa; e que, seu cumprimento deve se dar atravs de atos estritamente necessrios ao fim almejado pela norma, pois, ocorrendo excesso, o agente poder ser responsabilizado civil, penal e administrativamente. Dessa forma, considerando que a segurana pblica, como dever do Estado, se traduz na preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, pode-se inferir que a ao policial que interfere e visa gerenciar um evento crtico, com vistas a restaurar a ordem pblica, ocorre no estrito cumprimento de um dever legal. Mas, a questo : poderia a execuo do tiro de comprometimento, realizado durante o gerenciamento de uma crise, se dar tambm amparada pelo estrito cumprimento de um dever legal? Dever este, entendido na obrigao do Estado em garantir a ordem pblica e a vida dos personagens envolvidos no evento? Parece-me, todavia, que no seja esta excludente de antijuridicidade ideal a justificar a execuo do tiro de comprometimento, vez que pela natureza letal da medida, seria o mesmo que admitir a possibilidade do Estado, atravs dos seus agentes, dispor do dever de matar, quando na verdade o dever o de proteger. Como exposto outrora, diferente do particular, ao qual permitido fazer tudo que a lei no proba, ao Estado apenas se permite fazer o que est autorizado ou determinado por lei. Assim sendo, qual a norma que determina a execuo sumria de algum pelo Estado? Mesmo considerando o destinatrio um agente criminoso, no tem o Estado dever de mat-lo. A nica hiptese admitida no ordenamento ptrio, em que o Estado dispe do dever de aplicar a pena de morte, refere-se aos casos de crimes militares cometidos em tempo de guerra, previstos no Cdigo Penal Militar. Da, o entendimento de que a realizao do disparo de preciso com vistas a neutralizar (ou matar) o causador da crise no seja compatvel com a excludente de antijuridicidade do estrito cumprimento de um dever legal. Mais se encaixa ao permissivo da legtima defesa de terceiros Contudo, pode-se considerar esta decorrente de uma ao iniciada sob o cumprimento de um dever legal restaurao da ordem pblica e preservao da incolumidade fsica das pessoas e do patrimnio. o caso de uma excludente dentro da outra. Nesse sentido, ao tratar do estrito cumprimento de um dever legal, Bitencourt leciona que: Esta norma permissiva no autoriza, contudo, que os agentes do Estado possam, amide, matar ou ferir pessoas apenas porque so marginais ou esto delinqindo ou ento esto sendo legitimamente perseguidas. A prpria resistncia do eventual infrator

autoriza essa excepcional violncia oficial. Se a resistncia ilegtima constituir-se de violncia ou grave ameaa ao exerccio legal da atividade de autoridades pblicas, configura-se uma situao de legtima defesa, permitindo a reao dessas autoridades, desde que empreguem moderadamente os meios necessrios para impedir ou repelir a agresso. Mas, repita-se, a atividade tem que ser legal e a resistncia com violncia tem que ser injusta, alm da necessidade da presena dos demais requisitos da legtima defesa. Ser uma excludente dentro de outra. (2003, p. 272)[11][11] Colha-se, por oportuno, o entendimento do Tribunal de Justia do Estado de Minas Gerais, quanto ao dever ou no do uso da arma de fogo pelo agente policial, digno de transcrio: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PRONNCIA PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE CINCIA A NOVO PROCURADOR PRINCPIO DA INTERPRETAO EM BENEFCIO DO RECORRENTE REJEITA-SE ALEGAO DE Legtima defesa E ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL INEXISTNCIA DE OBRIGAO DE USO DE FORA LETAL POR PARTE DO AGENTE INDCIOS DE EXCESSO NA AO DO RU TESE ABSOLUTRIA QUE DEVE SER EXAMINADA PELO TRIBUNAL DO JURI. No Processo Penal, em matria de prazos processuais, vigora o princpio da interpretao em benefcio do recorrente, de forma a assegurar a ampla defesa e o duplo grau de jurisdio. inexiste dever legal, por parte do policial, de utilizar fora letal, ainda que seja para a defesa de terceiros, tendo o agente extrapolado os limites da lei, no se configurando a excludente alegada. Estando a prova coligida a evidenciar possvel excesso na ao do ru, consubstanciado na quantidade de disparos de arma de fogo realizados, inclusive pelas costas da vtima, no h falar no acolhimento de legtima defesa nesta fase, devendo a tese defensiva ser examinada pelo tribunal do jri, juiz natural nos crimes contra a vida. inocorrendo situao concreta de surpresa e tratandose de policial presente no local para responder a ocorrncia, no h falar na qualificadora do recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa, impondo-se seu decote, por manifestamente contrria prova dos autos. recurso provido parcialmente. (Minas Gerais. Tribunal de Justia. Penal e Processo Penal. RSE n 1.0024.00.0458307/001. Rel. Beatriz Pinheiro Cares. Julgado em 16/11/2006. Pesquisa no site do TJMG em 05.02.2009). Isto, no significa afirmar que as medidas adotadas inicialmente, tais como o cerco realizado ao local do evento crtico e as tentativas de negociao, com objetivo de restaurar a ordem pblica e prender quem se encontre em flagrante delito, sejam indiferentes s obrigaes do Estado. Ao contrrio, ocorrem exclusivamente no cumprimento de deveres impostos por lei. No entanto, o agente policial responsvel pela execuo do tiro de comprometimento, ao nosso sentir, malgrado iniciar sua ao no estrito cumprimento de dever legal, no momento em que recebe autorizao para realizar o disparo e o faz, agir amparado pela excludente de ilicitude da legtima defesa de terceiros, a ser tratada mais a frente. 4.2.1. Do conflito aparente de deveres jurdicos. Antes de passarmos anlise da legtima defesa de terceiros, valioso fazer aluso ao entendimento de alguns autores, os quais vislumbram, na anlise do estrito cumprimento de um dever, a hiptese de casos em que o agente, na condio de garantidor, estar diante de uma coliso de deveres de igual hierarquia, e sendo assim, ser necessria a escolha de salvaguardar um dos bens jurdicos em risco. Cezar Roberto Bitencourt, ao explanar acerca da excludente de ilicitude do estado de necessidade, reconhece a possibilidade de coliso de deveres, vislumbrada quando o

agente, diante da obrigao de proteger bens jurdicos alheios, tem que optar pelo cumprimento de um dever-proteo em detrimento de outro. (2003, p. 258) O reportado autor, erige discusso curiosa, digna de transcrio: Entre o dever de agir e o dever de omitir-se, qual o dever que deve prevalecer? Todos tm o dever de omitir qualquer comportamento que possa lesar interesses alheios. Temos o dever de omitir uma conduta que cause a morte de algum. Mas, por outro lado, podemos ter o dever de agir para salvaguardar uma vida humana, na condio de garantidor. S que para salvaguardar essa vida, para cumprir a norma mandamental, o dever de agir, poderemos ter que descumprir o dever de no matar, de no agir. Enfim, para salvarmos a vida de uma pessoa poderemos ter de sacrificar a vida de outra. Das duas uma: ou cumprimos o dever de no matar, e descumprimos o dever de agir, de salvar uma vida humana, ou, ao contrrio, cumprimos o dever de salv-la, e descumprimos o comando proibitivo, matando algum. um grande conflito! Temos que optar por um dever ou outro. Ou matamos para salvar ou deixamos de salvar para no matar. (BITENCOURT, 2003, p. 258 e 259). O questionamento suscitado pelo autor, quanto ao dever de salvaguardar a vida de uma pessoa em hiptese na qual ser foroso o sacrifcio de outra, vem a calhar com o conflito que vive o policial no desempenho da funo de atirador de elite (sniper). Ora, por um lado, este poder agir e realizar o disparo, desprezando a vida do causador da crise e, com isso, proteger e garantir a vida do refm. De outro, considerando o entendimento supracitado, lhe ser facultado a hiptese de no matar, de no agir. Diante da situao de conflito ora apresentada, Bitencourt conclui que, nestes casos, entre um dever de agir e um dever de omitir-se, prevalece este. Entende o autor que se no salvar aquela pessoa garantida, na verdade, no se est fazendo nada: ela morrer, mas no pela ao do agente, morrer pelo no impedimento. Ao fim, explica que a presente posio, que tem por primazia o dever de no agir, mais consentneo ao Direito. (2003, p. 259) Ocorre que, na inteligncia do art. 144 da Constituio Federal, o Estado tem o dever de provimento da segurana pblica, e esta se traduz na preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, exercida atravs dos rgos policiais relacionados taxativamente. Assim, em conta deste mandamento constitucional, que impe ao Estado e seus agentes o dever de proteger, de garantir a vida e a integridade fsica das pessoas, como admitir a possibilidade de omisso frente a um evento crtico, em que a nica chance de proteger a vida do(s) refm(ns) desprezando a vida do causador? Reputando que o tomador de refm sabedor da ilicitude de seu comportamento, bem como da hiptese de reao da prpria vtima ou de terceiros, assume os riscos que envolvem as aes delituosas, e coloca em perigo a prpria vida. Sendo assim, particularmente, acreditamos que neste caso, tem o agente policial dever de agir sim, e se, para a soluo da crise, apenas restar a utilizao do tiro de comprometimento, como ultima ratio, a adoo de tal medida guarda conformidade com o Direito. Outro tipo de posicionamento, digno de ressalva, preconizado pelo professor Eugnio Ral Zaffaroni. Segundo este, o conflito de deveres discutido acima jamais pode ocorrer, posto sempre haver um dever preponderante, ao qual se chega mediante um juzo de ponderao decorrente do princpio da razoabilidade. (2004, p. 523-526) Na anlise da questo, Zaffaroni e Pierangeli fundamentam a posio atravs de exemplos, e ao final concluem que todas as colises de deveres so aparentes, porque na ordem jurdica nunca h coliso de deveres de igual hierarquia. Por mais conflitiva

que seja a situao, uma das condutas possveis deve ser sempre conforme o direito. (2004, p 526) Destarte, pode-se declarar com firmeza que as autoridades policiais envolvidas no gerenciamento de um evento crtico (com refns), ao decidirem pela adoo do tiro de comprometimento, no estaro diante de deveres (preservar vidas) de igual hierarquia. O conflito entre preservar a vida do refm e sacrificar a vida do causador da crise se d de forma aparente. Ou seja, mediante uma ponderao dos deveres impostos por lei, guardando respeito aos princpios da razoabilidade e proporcionalidade, chega-se facilmente concluso de que apenas haver uma conduta a ser adotada, no caso concreto: garantir, a priori, a vida das vtimas (refns), mesmo em detrimento da vida do agressor. 4.3. DA EXCLUDENTE DE ILICITUDE DA LEGTIMA DEFESA (DE TERCEIROS). A legtima defesa se revela uma exigncia natural, um instinto de defesa, em que o agredido conduzido a reagir a uma agresso que viola bem jurdico de sua titularidade. Trata-se de uma possibilidade jurdica de autodefesa, reconhecida em diversas legislaes e existente desde as formas mais primitivas de sociedade. (BITENCOURT, 2003) O Estado reconhece a legtima defesa no ordenamento jurdico por saber da sua natural impossibilidade de solucionar todas as violaes da ordem pblica, ou mesmo, proteger todos os administrados das leses ou tentativas de leses aos seus bens jurdicos, admitindo assim, excepcionalmente, a reao imediata a uma agresso injusta, desde que atual ou iminente, contra direito prprio ou de terceiros. (BITENCOURT, 2003) Grosso, nesse sentido, assevera que: A natureza da legtima defesa constituda pela possibilidade de reao direta do agredido em defesa de um interesse, dada a impossibilidade da interveno tempestiva do Estado, o qual tem igualmente por fim que interesses dignos de tutela no sejam lesados. (apud REALE JNIOR, 1998, p. 76) Para Bettiol, age em conformidade com o Direito, sob uma norma permissiva, aquele que reage no intuito de proteger direito prprio ou alheio, ao qual o Estado, dada as circunstncias do caso, no capaz de prover a proteo devida, ou falha na prestao desta. (citado por BITENCOURT, 2003, p. 265) De outro lado, interpretao diversa encontrada nas lies de Jos Cezero Mir: A impossibilidade de atuao do Estado no sequer um pressuposto ou requisito da legtima defesa. Se a agresso coloca em perigo o bem jurdico atacado, a defesa necessria com independncia de que os rgos do Estado possam atuar ou no nesse momento de um modo eficaz. Se o particular, ao impedir ou repelir a agresso, no vai mais alm do estritamente necessrio e concorrem os demais requisitos da eximente, estar amparado pela mesma, ainda que um agente da autoridade houvesse podido atuar nesse mesmo momento, do mesmo modo. (apud ROGRIO GRECO, 2006, p. 363) O prprio Cdigo Penal preocupou-se em fornecer aos operadores do direito a definio de legtima defesa, acompanhada de todos os elementos necessrios ao reconhecimento desta causa de justificao. Seno vejamos: Art. 25. Entende-se em legtima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessrios, repele injusta agresso, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Dessa forma, no se observa dentre os elementos caracterizadores descritos na lei, a impossibilidade de atuao do Estado. Malgrado alguns doutrinadores definirem a legtima defesa utilizando-se desta argumentao, no podemos consider-la como

requisito de caracterizao da legtima defesa, mas sim uma necessidade face o direito de todo cidado no ser obrigado a suportar passivamente o sofrimento de uma agresso injusta. Ademais, a realidade denota que os agentes estatais, como longa manus do Estado, quando no estrito cumprimento de deveres legais, podem tambm se valer desta causa excludente de antijuridicidade, com vistas a defender direitos prprios ou de terceiros. Ento, se o agente policial representa o prprio Estado seria um equvoco afirmar que a autorizao para agir em legtima defesa decorre da impossibilidade de atuao estatal. No caso do agente policial, no obstante compor categoria profissional em que o risco faz parte da prpria atividade, ningum pode ser privado de defender a prpria vida ou a de terceiros, nem mesmo o policial, a vida um bem jurdico indisponvel. E se considerarmos o dever de prestao da segurana pblica, e de proteo, os policiais devero na verdade agir em defesa de terceiros, vtimas de um injusto. Destarte, neste caso, estaria o prprio Estado, na figura dos seus agentes, utilizando-se do permissivo legal. Ento, pode-se inferir do exposto, que a legtima defesa corresponde ao direito que todos dispem de refutar uma injusta agresso, atual ou iminente, a direito prprio ou de terceiros, usando para tanto os meios necessrios com a devida proporcionalidade, num nico sentimento: o de defender. No esclio de Diego-Manuel Luzn Pena (apud BITENCOURT, 2003, p. 265), a legtima defesa constitui uma causa de justificao lastreada no fundamento individual de necessidade de defesa dos bens jurdicos em face de uma agresso, e no fundamento social de defender o prprio ordenamento jurdico, que se v contrariado ante uma agresso ilcita. De outro modo, ao falarem sobre o fundamento deste permissivo legal, Zaffaroni e Pierangeli, afirmam que: Na realidade, o fundamento da legtima defesa nico, porque se baseia no princpio de que ningum pode ser obrigado a suportar o injusto. [...] O fundamento individual (defesa dos direitos e dos bens jurdicos) e o fundamento social (defesa da ordem jurdica), no podem ser encontrados simultaneamente, porque a ordem jurdica tem por objetivo a proteo dos bens jurdicos, e se, numa situao conflitiva extrema, no consegue logr-lo, no pode recusar ao indivduo o direito de prover a proteo dos bens por seus prprios meios. (2004, p. 549) Este ltimo posicionamento parece-me mais objetivo e consegue demonstrar a verdadeira essncia (fundamento) da legtima defesa. Norma permissiva, que dever ser utilizada de forma subsidiria, pois, caso existam outros meios jurdicos e menos lesivos para provimento da defesa dos bens jurdicos ameaados, estes devero ser esgotados antes da reao propriamente dita. o entendimento da legtima defesa sob o princpio da proporcionalidade. 4.3.1. Dos bens suscetveis de defesa Em sua origem a legtima defesa surgiu ligada aos crimes contra as pessoas, principalmente ao homicdio e leses corporais. Contudo, ao passar do tempo, ganhou espao e atualmente est prevista nas legislaes contemporneas de diversos pases como um direito de defesa que alcana qualquer bem jurdico. (ZAFFARONI, 2004) Ora, a prpria expresso a direito seu ou de outrem, capitulada no art. 25 do Cdigo Penal, ao nosso sentir, j abarca a possibilidade de defender legitimamente qualquer bem jurdico.

Por fim, vale ressaltar que foi o industrialismo o fator motivador para a extenso da legtima defesa a todos os bens jurdicos, mesmo daqueles no tutelados penalmente. E que o alargamento do rol de bens defensveis tambm sofreu influncia do poder dominante, no desejo de garantir segurana s riquezas acumuladas diante da ameaa representada pelas classes menos favorecidas. (ZAFFARONI, 2004) 4.3.2. Requisitos legais para reconhecimento da legtima defesa Nos termos propostos na legislao penal, o reconhecimento da legtima defesa exige a presena dos seguintes requisitos: agresso injusta, atual ou iminente; direito prprio ou alheio; meios necessrios usados moderadamente; e o nimo de defender-se (elemento subjetivo). Ao conceituar agresso, Rogrio Greco se vale das lies de dois grandes tratadistas: Maurach, o qual ensina que por agresso deve entender-se a ameaa humana de leso de um interesse juridicamente protegido; e Wezel, que define agresso como a ameaa de leso de interesses vitais juridicamente protegidos (bens jurdicos), proveniente de uma conduta humana. (2006, p. 366) Assim sendo, agresso no pode ser entendida como uma simples provocao. Enquanto esta uma mera turbao, de efeitos psquicos ou emocionais, aquela o efetivo ataque contra os bens jurdicos de alguma pessoa. A legtima defesa pressupe uma agresso composta em um ataque provocado e praticado por pessoa humana. Ou seja, no incorrem em legtima defesa as reaes contra ofensa de animais ou de movimentos reflexes, destitudos de vontade. Diante desses, apenas poder-se- invocar o estado de necessidade como causa de justificao. A lei tambm impe a necessidade da agresso ser injusta. Entenda-se por agresso injusta aquela no autorizada e contrria ao Direito. Se a agresso for devidamente autorizada por lei no h que se falar na possibilidade de legtima defesa. Ademais, tal norma permissiva no precisa necessariamente estar prevista na legislao penal, poder ser imposta