a infância em cena: representação e apropriação nas ... · crianças pesquisadas construir...
TRANSCRIPT
1
A Infância em cena: Representação e apropriação nas imagens da cidade e da infância no filme COMO NASCEM OS ANJOS.
Fernando Santos1
O artigo2 que apresento toma como objeto a representação de infância das
classes populares apresentada no filme Como Nascem os Anjos (Murilo Salles, 1996,
Br.) e se propõe analisar e descrever as maneiras de ver de uma comunidade de
espectadores, de modo que se compreenda a chave interpretativa que permitiu às
crianças pesquisadas construir sentidos sobre a representação de infância na obra citada.
Ao me propor analisar a perspectiva infantil diante de filmes recentes, o que
visava era identificar o modo como as crianças significavam a sua experiência social, o
que pressupunha concebê-las como produtoras de cultura, ou seja, “capazes de pensar e
decidir sobre as coisas do mundo e de participar de seu próprio processo formativo” (
Quinteiro, 2005, 139). Tal pressuposto traz novas implicações na produção de pesquisas
com crianças, a maior delas sendo a de aceitar o “testemunho infantil como fonte de
pesquisa confiável respeitável” (ibid., p. 155).
Optamos por trabalhar com as categorias de representação e de apropriação
desenvolvidas pelo historiador Roger Chartier. Pedra angular da História Cultural, a
categoria representação, segundo Chartier (1990; 2002), permite uma análise sobre as
maneiras pelas quais os homens dão inteligibilidade ao mundo social do qual fazem
parte, uma vez que ela é um estatuto de organização deste mundo social.
A grande inovação da História cultural proposta por Chartier, a meu ver, está no
fato de que o social passa a ser abordado por meio dos lugares de produção de
discursos, que apreendem e estruturam o real, no caso, as representações. Dirá o autor
1 Doutorando do PPGE da PUC-Rio. 2 Este trabalho é resultado da dissertação de Mestrado apresentada ao PPG em Educação da PUC-Rio, no ano de 2007, com o título de “As artes de ver de uma comunidade de espectadores: a infância em cena!” orientado pela Prof.ª Dr.ª Rosália Duarte. Agencia Financiadora: FAPERJ (bolsa aluno nota 10).
2
que é a partir desses esquemas intelectuais incorporados que se criam as figuras graças
às quais o presente pode adquirir sentido, o outro se tornar inteligível e o espaço,
decifrável.
Outro ponto que considero fundamental na obra do autor é o fato de que a
categoria representação é indissociável da de apropriação, entendida como maneira de
usar própria dos atores sociais nas relações sócio históricas nas quais estão inseridos e
que toma como referência a posição que estes ocupam nos enfrentamentos sociais.
É a noção de apropriação que coloca o estudo das representações em um campo
de concorrências e de competições cujos desafios são enunciados em termos de poder e
dominação. Esta articulação faz do projeto de pesquisa formulado por Chartier o estudo
das estratégias que tendem, por um lado, impor uma autoridade, legitimar projetos
reformadores (ou não) e, por outro, também justificar para os próprios indivíduos suas
escolhas e condutas.
A infância representada no filme.
Como Nascem os Anjos começa com uma tentativa frustrada de acordo entre
Branquinha e o tradutor da equipe de tevê alemã, interessada em produzir um
documentário sobre a favela do morro Dona Marta. Mais do que uma introdução, essa
apresentação é um resumo do que virá pela frente. Uma tentativa de comunicação entre
mundos diferentes e o desejo frustrado da conciliação entre eles.
Branquinha é uma menina de 12 anos, “casada” com Maguila, um dos bandidos
do morro. Ela vive com os irmãos menores e o sustenta. Em nenhum momento o filme
apresenta a menina furtando ou mesmo assaltando, embora fique evidente que ela sabe
manejar uma arma. Ela assume o papel da mãe ausente.
Japa tem a mesma idade de Branquinha. Diferente da amiga, sua mãe é presença.
Mãe e filho são apresentados com a mesma coragem redentora. Porém, a honestidade do
menino não é colocada no filme como algo admirado por seus pares, pois a sua
3
masculinidade é o tempo todo posta à prova, tal qual na apresentação que Branquinha
faz dele durante as filmagens: “Esse é o Japa. Ele passa os dias a sonhar com negões só
encestando”.
Um acidente marca o início do filme. Maguila mata o chefe do tráfico do morro
Dona Marta e precisa fugir. Disfarçados, Maguila e Branquinha, tentam escapar do
morro na manhã seguinte ao episódio. Cercado pelos traficantes, o disfarce e o plano de
fuga são descobertos. Japa tenta em vão convencer Branquinha a não seguir com
Maguila. Inicia-se o tiroteio. Sem alternativa os três invadem o carro de uma senhora.
Dentro do carro, outro conflito: a senhora quer deixar os filhos primeiro no colégio,
Japa quer ir para a casa do pai em Niterói e Maguila quer se esconder na Cidade de
Deus. Por fim, os três ficam em São Conrado. Motivo: Maguila quer ir ao banheiro. Ao
descerem uma rua, os três avistam um portão se abrir e sair lá de dentro um americano.
Resolvem pedir para ir ao banheiro. Outra falha na comunicação e a tentativa frustrada
de mediar o conflito, usar ou não o banheiro, resultam em um imprevisto e as três
personagens invadem a casa pela porta da frente.
Já dentro da casa, cenário do encontro entre dois mundos, seis personagens3
buscam negociar o melhor e mais rápido meio de acabar com tudo aquilo. Entretanto,
uma série de casualidades acaba impedindo-os de sair. Quando finalmente o conflito
parece resolvido, uma última crise marcaria o desfecho trágico. Ao retornarem para
dentro da casa, precisam esperar que a polícia desista de cercar a casa, mas o jornal da
noite noticia que dois “pivetes” mantêm em São Conrado uma família de americanos
como refém. Duas imagens se sucedem no telejornal, uma é a sequencia em primeiro
plano de Julie chorando, com a boca atada e as mãos amarradas, que se encerra em um
close e a outra é um plano geral de Japa dançando ao som de um funk. A segunda
sequencia provoca a ira de Branquinha, que se revolta por não ter aparecido na tevê.
Enquanto os policiais disfarçados de representantes do conselho tutelar tocam a
campainha, dentro da casa, Japa e Branquinha discutem novamente porque o plano
mudou novamente. No calor da discussão, Branquinha acidentalmente dispara um tiro
3 Branquinha, Japa, Willian (o gringo), sua filha (Julie) e a empregada Conceição.
4
contra o peito de Japa, que ao cair dispara outro contra a menina. Essa é a senha para a
entrada dos policiais que resgatam pai e filha. Da mesma forma como tudo começou,
um tiro acidental contra o chefão do tráfico do morro Dona Marta, outros dois tiros
acidentais puseram fim à trama. A infância popular é a passagem escolhida por Murilo
Salles para representar a complexidade de uma sociedade que cultiva o fosso entre as
classes.
O não filme:
Após quase meia década de estagnação na produção de filmes no Brasil, a
chamada “retomada do cinema brasileiro” oportuniza que cineastas voltem a filmar.
Entre eles, Murilo Salles. Salles fez cinema na UFF, em 1969. Iniciou a carreira como
fotógrafo de curtas, porém durante os primeiros anos da década de 1990 dedicou-se a
publicidade.
Foi após a “retomada” que o cineasta resolveu realizar um novo desafio, filmar
Despertar de anjos4, um roteiro original que a partir da comédia de erros contava a
história de duas crianças que por acaso vão sendo colocadas em situações imprevisíveis
e que tomam grandes proporções. A história é, segundo o autor, um desejo claro de
fugir de um “papo-bíblia” com ideias catequizadoras. O fundamento para esta
abordagem está na declarada inspiração de O Anjo Nasceu (Julio Bressane, 1969, Br.)
que conta a história de dois marginais5 que invadem a casa de uma família rica. “Gosto
da discussão de linguagem e da situação tensa que propõe sem explicação sociológica”,
afirma Salles (JB, 1996: 41).
Nesta renovação da representação da violência carioca nos anos 90, Murilo
Salles opta pela infância. O meio escolhido para a seleção dos atores foram os testes. Na
primeira fase, foram formados dois grupos divido por sexo. Na segunda fase, já
contando com Salles, havia somente oito meninas disputando o papel de Branquinha.
Quem ficou com a personagem foi a atriz Priscila Assum, com 13 anos e moradora do
4 Título provisório logo descartado para o filme, por ser considerado, pelo autor, “dramático demais”. 5 Vividos pelos atores Hugo Carvana e Milton Gonçalves.
5
bairro do Flamengo. Para o papel de Japa, o ator escolhido foi Silvio Guindane, também
com 13 anos e morador da Ilha do Governador. Embora morassem em bairros distintos
da capital carioca, ambos se conheciam, pois faziam parte do elenco da peça Sinos da
Candelária.
Os Lapsos.
Na impossibilidade de cotejar o roteiro com a montagem optamos por ver as
alterações que influenciariam na mudança de títulos do filme. Com o objetivo de
perceber os conflitos para a construção da representação da infância descrita apontando
nas mudanças, o que muda, como muda e porque muda.
Segundo Merten (Estado de São Paulo, 1996: D3), Salles não optou por um final
feliz por considerar que “o problema da miséria é que traz o germe da destruição”.
Porém, o próprio cineasta em entrevista ao JB6 afirma que no roteiro original o final não
era esse, os meninos conseguiam fugir.
Entre os títulos Despertar de anjos e Como nascem os anjos, ainda houve o Aí,
ó. Este último, segundo Salles, fora recusado pelos exibidores que afirmavam que
ninguém sairia de casa para assistir um filme chamado Aí, ó7, cujo título indicaria um
conflito latente. Muito diferente de Despertar de Anjos, que o diretor achou “dramático
demais” e também do título final, Como nascem os anjos que este considera não tão
metafórico, mas bonito e “desdramatizador” da ideia original de Despertar de anjos.
Alterar o título, por considera-lo “dramático demais” e ao mesmo tempo
modificar o seu final, não é um gesto sem implicações, o que estaria por trás dessa
mudança de desfecho e consequentemente de sentido?
O filme de Salles estreou no início de novembro de 1996, uma semana antes do
filme Quem matou Pixote? De José Joffily. Ambos os autores deixam claro em
6 08/11/1996. 7 Expressão idiomática utilizada por Japa. Refere-se a uma tentativa de aproximação, de comunicação com receio.
6
entrevistas suas inspirações: O Anjo Nasceu e os livros Pixote, a lei do mais forte e
Pixote, Nunca Mais! Respectivamente, Murilo Salles e José Joffily. O primeiro filme é
de 1969 e a morte de Fernando Ramos ocorreu em 1997. Além do que o filme de
Bressane8 narra a história de dois adultos. Por que Murilo teria infantilizado seus
protagonistas? Seria coincidência que dois filmes tão significativos fossem lançados
quase que simultaneamente?
A repercussão da Chacina da Candelária foi tão grande que a discussão a
respeito dos menores durou mais do que o momento do seu acontecimento. Pressionado
por organismos internacionais, o Estado brasileiro foi chamado à responsabilidade e a
sociedade discutiu aquele fato. A chacina deu visibilidade a uma questão que Estado e
sociedade fingiam não ver, a infância em situação de risco.
A associação de Como Nascem os Anjos com o episódio que ficou conhecido
com Chacina da Candelária não é mera alusão, mas clara referência. O que fica
evidente se atentarmos para as representações escolhidas pelo diretor. As atuais
encenações do tráfico são mais realistas. Filmes mais recentes9 renovaram a imagem do
crime organizado nos morros cariocas, tornando a encenação de Como Nascem os
Anjos inverossímil. No filme, as imagens dos traficantes fazem lembrar um ócio muito
mais próximo da realidade da rua do que dos morros cariocas. O que faria a tevê alemã
interessar-se pelos meninos das favelas cariocas, senão fosse essa a questão da hora?
Há neste contexto dois caminhos de raciocínio para pensar a questão do menor.
Vitimização em função da Chacina da Candelária e o da penalização em função da
violência urbana cotidiana. Salles declara ter optado pelo caminho do meio, o acaso.
Aquele em que não haveria escolha. Seu objetivo seria fugir do “papo-bíblia”. Ora, não
haveria “papo-bíblia” se o objetivo fosse punir. A sociedade brasileira nunca foi
cerimoniosa nas suas exigências por mais prisões (ou reformatórios), mais
policiamento, na redução da maioridade penal e menos tolerância. Só haveria
8 A título de rememoração: Julio Bressane autor de O Anjo Nasceu 9 O caso do filme Cidade de Deus é bem emblemático desta nova representação.
7
necessidade de esmeros se o objetivo fosse ir pelo argumento da vitimização. Como
construir uma tese em que a violência simbólica, a qual é submetida a infância
brasileira, se equivalesse ou fosse maior que a violência física e psicológica, da qual a
classe média espectadora do filme é cotidianamente vítima?
A Tese.
A resposta talvez fosse partir da violência física. A possibilidade que uma
sociedade segregacionista como a brasileira teria de experenciar a solidariedade com o
outro universo só seria possível se partisse daquilo que lhe é próximo. Neste caso, a
violência simbólica é um mito. Só seria possível solidarizar-se com a experiência do
outro se essa partisse daquilo que lhe é cara.
Assim, Salles representa a infância armada na tela. Essa representação é apenas
o mote para uma discussão que se pretende mais profundo. Delicado não é apenas o
ponto de partida, mas o argumento. Como explicar que aquela realidade também é
vítima? Vítima de que ou de quem?
Na obra de Salles, a criança é vítima não da sociedade presente, mas da história.
Sua realidade é resultado de um estado de coisas. É também resultado do desejo
conciliatório de uma sociedade que, segundo Chauí, cultiva a apartheid social, mas não
cansa de se ver como uma e fraterna (2000). Neste sentido, a falta de comunicabilidade
entre classes é para Murilo Salles o vetor que perpetua o fosso entre elas, mas não a
explica.
A situação da infância é a metáfora da situação do país, de um país cujo presente
é inevitável e o futuro é a autodestruição. A morte de Japa e Branquinha é a parábola de
um país sem saídas. A morte de ambos é o caminho lógico para uma sociedade que
finge se perceber de forma semelhante.
Pode-se se dizer que o filme tem dois finais. De um lado a morte de Japa e
Branquinha e de outro o regaste de William e Julie. Precisar onde o filme acaba
significa dizer com qual perspectiva se viu o filme.
8
O circuito, ou a recepção no lançamento.
Como Nascem os Anjos foi lançado em circuito comercial no Rio e em São
Paulo no dia 8 de novembro de 1996, aguardado com expectativa após os seis prêmios
no Festival de Gramado, seis no de Brasília e cinco no de Natal. No Rio, estreou nos
cinemas Espaço Unibanco, Cine Gávea e Palácio. Entretanto, Quem Matou Pixote?
(José Jofilly, 1996, Br.) chegou aos cinemas cariocas e paulistas uma semana antes.
Para Pedro Butcher, crítico de cinema do JB10, ambos os filmes confirmavam
uma fase mais ousada e crítica ao exporem na tela a miséria e a violência refletindo a
realidade atual. Já Carlos Alberto Mattos, crítico de cinema de O Estado de São Paulo11,
Jofilly produz catarse e Salles inova na representação da delinquência infantil.
Uma comunidade de espectadores.
No conjunto de desenhos relacionados ao filme Como Nascem os Anjos é
possível perceber três blocos temáticos: a representação da sequência inicial, quando
Branquinha é entrevistada pelos repórteres da tevê alemã, a sequência da fuga das
crianças da favela e a sequência final, quando ela e Japa se matam acidentalmente.
Da pesquisa surgiu uma categoria: “guerra”. Ela qualifica a situação de conflito
nos filmes. O “dia da guerra” é tratado pelos meninos como um evento. O momento do
acerto de contas entre os bandidos. Dos jovens soldados espera-se lealdade, porque o
“dia da guerra” é mais do que uma prestação de serviço, ele é propriamente um rito de
iniciação. O “dia da guerra” é, na fala das crianças, o batismo e a possibilidade de um
menino que deseja entrar para “a bandidagem” tornar-se de fato um “bandido”.
Na representação das crianças, virar bandido, acima de tudo, é uma experiência
coletiva. Há toda uma regra subjacente que vai além do desejo pessoal de vir a se tornar
ou não bandido. Ela depende da aceitação do grupo no qual se pretende inserir. A chave
10 Revista Programa, 8 de fevereiro de 1996. 11 Caderno 2, 1 de novembro de 1996.
9
passa pela figura de um padrinho e dos préstimos que se deve a ele. Do contrário, o
máximo que se consegue ser é uma caricatura dos mesmos, tal qual Branquinha foi
representada.
Parece-lhes também que as características de virilidade, coragem e empáfia são
pré-requisitos básicos para a aceitação de um menino nesses contextos, posto que elas
são indispensáveis para a atuação naquilo que se caracteriza como o grande evento da
experiência do narcotráfico: a guerra.
Assim, a grande figura do narcotráfico nem é o bucha, aquele com menor
prestígio, e nem seria o gerente, aquele com o maior cargo. Na representação dos
meninos, o fascínio está na figura do soldado, aquele que vai ao enfrentamento, para
quem se justifica e faz-se necessário o uso da arma.
O soldado e sua arma convertem-se em figura de fascínio, pelo menos é essa
imagem que emerge a partir do que expõem as crianças. Talvez porque para as crianças,
elas percebam mais claramente o “capital” que a arma mobiliza nas relações sociais em
contextos cuja influencia do narcotráfico seja grande.
Ocupar-se de pesquisar a produção de sentido é assumir o risco como valor,
porque estamos num campo do conhecimento em que aquilo que se produz é parcial,
fluido e provisório, sobretudo, porque o terreno é instável. Entretanto, faz-se necessário
tentar percorrer os caminhos da produção de sentidos que selam o estatuto de verdade
entre o espectador e o filme.
Este estatuto é selado a partir da negociação que estabelece a relação entre a
criação estética e o mundo social, a partir da compreensão de como cada obra é
construída numa relação com os discursos e práticas comuns que não são alçados a
registros históricos pelos contemporâneos.
Para Chartier (1998), o termo negociação tem um duplo significado, porque, ao
mesmo tempo em que ele permite aos produtores culturais transferir um regime de
10
discursos e práticas do mundo social para a obra de ficção, permite também aos
espectadores (leitores e ouvintes) tornar a obra legível, compreensível para si.
Esse procedimento visa identificar como as intrigas e cenas das obras de ficção
são construídas numa relação forte com o cotidiano, porém deslocadas dos discursos e
práticas deste, além de colocar as questões dos diferentes significados da mesma obra
para públicos distintos, que ao mesmo tempo partilham experiências comuns e reagem
em função de sua própria cultura.
A importância dessa reconstrução se faz sentir pela possibilidade de
compreender as relações estabelecidas entre as intrigas colocadas na obra de ficção,
suas percepções possíveis pelos diferentes públicos e o estatuto do discurso travado com
o mundo social. Para Chartier, aí residiria a questão da verdade da ficção.
A crítica leu esses filmes numa linha sociológica, comum na discussão sobre a
pobreza e seus efeitos, no Brasil, mas também em virtude da tradição inaugurada pelo
Cinema Novo de associar a discussão cinematográfica a um pensamento acadêmico-
social brasileiro. No entanto, para as crianças pesquisadas, não foi essa a chave
interpretativa pela quais construíram o sentido das narrativas. Então quais foram?
Para sabermos, voltemos aos filmes que elas classificaram como sendo “filmes
de ação”. Quando indagados se gostaram mais de Cidade de Deus ou de Como nascem
os anjos, a turma como um todo respondeu ter gostado mais do primeiro, sendo que a
principal razão foi a maior quantidade de “ação”. Ação é claramente identificada como
as sequências da guerra: o momento do confronto.
Segundo as crianças pesquisadas, Como nascem os anjos, com pouquíssimas
variações, narra a história de duas crianças cujo sonho de uma delas é se tornar dona da
favela Dona Marta. Do relato global do filme fica claro que Maguila e a família de
americanos perdem importância. É via o desejo de Branquinha, de vir a se tornar
bandida, que as crianças relatam a história do filme. É o desejo dela que coloca os três
envolvidos naquela situação, mais do que o tiro acidental dado por Maguila, ou mesmo
11
o incidente com o motorista do senhor William. Se a trama proposta por Salles baseia-se
em um jogo de erros, ou seja, as personagens seriam vítimas do acaso, na interpretação
das crianças a situação toda é provocada porque Branquinha queria se tornar dona do
morro.
Entretanto, se a porta de entrada das crianças é Branquinha, ainda assim, não se
pode afirmar que ver os filmes da perspectiva dessa personagem signifique aprovar suas
atitudes. Quando indagados sobre que cena eles mais gostaram, responderam que foi a
sequência da morte da menina. Já quando indagados também sobre quem era a
personagem de que mais gostavam, muitos disseram que era do Japa, mesmo que na
maior parte do tempo ele tenha passado desapercebido. Justificavam pelo fato do
personagem ser do bem.
Ao identificar o enredo da trama, selecionar as personagens, destacarem trechos,
falar sobre aquilo que lhes chamou atenção, os meninos evidenciam que têm no
cotidiano e nas informações que adquirem nele os meios que lhes permitem lerem os
filmes, usando a própria experiência de proximidade com este universo para construir
uma narrativa coerente.
Fontes:
CENTRAL DO BRASIL. Direção: Walter Salles Júnior. Produção: M de
Clemont-Tonnere e Arthur Cohn. Roteiro: Marcos Bernstein, João E. Carneiro e
Walter Salles Jr. Intérpretes: Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Vinícius de
Oliveira, Sôia Lira, Othon Bastos e outros. [S.l]: Le Studio Canal; Rio Filme;
MACT Productions, 1998. 1 filme (106 min), son., color., 35mm.
BUTCHER, Pedro. O que mudou da vida para a tela. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro. 1 nov., 1996. Ano 12 nº30.
MATTOS, Carlos Alberto de. Jofilly produz catarse e Salles descortina nova maneira de dramatizar a delinquência infantil. O Estado de São Paulo. São Paulo. Caderno 2. 1 nov. 1996. Ano 9, nº 3.554.
12
MERTEN, L Carlos. Salles exorciza drama de crianças armadas. O Estado de São Paulo. São Paulo. Caderno 2. p. D3, 1 nov. 1996. Ano 9, nº 3.554.
Bibliografia:
CHARTIER, R. A verdade entre ficção e história. In: BAECQUE, Antonie, DELAGE, Christian. De l’histoire au cinema. Trad. Maria Carolina Granato da Silva. IHTP – CNRS/Ed. Complexe: Bruxela, 1998, p. 29-44
______. O Mundo Como Representação. In: CHARTIER, R. À beira da falésia: A historia entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
CHAUÍ, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
QUINTEIRO, Jucirema. Infância e Educação na Sociologia: questões emergentes. In: MAFRA, L. de A; TURA, M de L R. (orgs.) Sociologia para educadores 2: o debate sociológico da educação no século XX e as perspectivas atuais, Rio de Janeiro: Quartet: 2005.