a infância em cena: representação e apropriação nas ... · crianças pesquisadas construir...

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1 A Infância em cena: Representação e apropriação nas imagens da cidade e da infância no filme COMO NASCEM OS ANJOS. Fernando Santos 1 O artigo 2 que apresento toma como objeto a representação de infância das classes populares apresentada no filme Como Nascem os Anjos (Murilo Salles, 1996, Br.) e se propõe analisar e descrever as maneiras de ver de uma comunidade de espectadores, de modo que se compreenda a chave interpretativa que permitiu às crianças pesquisadas construir sentidos sobre a representação de infância na obra citada. Ao me propor analisar a perspectiva infantil diante de filmes recentes, o que visava era identificar o modo como as crianças significavam a sua experiência social, o que pressupunha concebê-las como produtoras de cultura, ou seja, “capazes de pensar e decidir sobre as coisas do mundo e de participar de seu próprio processo formativo” ( Quinteiro, 2005, 139). Tal pressuposto traz novas implicações na produção de pesquisas com crianças, a maior delas sendo a de aceitar o “testemunho infantil como fonte de pesquisa confiável respeitável” (ibid., p. 155). Optamos por trabalhar com as categorias de representação e de apropriação desenvolvidas pelo historiador Roger Chartier. Pedra angular da História Cultural, a categoria representação, segundo Chartier (1990; 2002), permite uma análise sobre as maneiras pelas quais os homens dão inteligibilidade ao mundo social do qual fazem parte, uma vez que ela é um estatuto de organização deste mundo social. A grande inovação da História cultural proposta por Chartier, a meu ver, está no fato de que o social passa a ser abordado por meio dos lugares de produção de discursos, que apreendem e estruturam o real, no caso, as representações. Dirá o autor 1 Doutorando do PPGE da PUC-Rio. 2 Este trabalho é resultado da dissertação de Mestrado apresentada ao PPG em Educação da PUC-Rio, no ano de 2007, com o título de “As artes de ver de uma comunidade de espectadores: a infância em cena!” orientado pela Prof.ª Dr.ª Rosália Duarte. Agencia Financiadora: FAPERJ (bolsa aluno nota 10).

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Page 1: A Infância em cena: Representação e apropriação nas ... · crianças pesquisadas construir sentidos sobre a representação de infância na obra citada. ... um roteiro original

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A Infância em cena: Representação e apropriação nas imagens da cidade e da infância no filme COMO NASCEM OS ANJOS.

Fernando Santos1

O artigo2 que apresento toma como objeto a representação de infância das

classes populares apresentada no filme Como Nascem os Anjos (Murilo Salles, 1996,

Br.) e se propõe analisar e descrever as maneiras de ver de uma comunidade de

espectadores, de modo que se compreenda a chave interpretativa que permitiu às

crianças pesquisadas construir sentidos sobre a representação de infância na obra citada.

Ao me propor analisar a perspectiva infantil diante de filmes recentes, o que

visava era identificar o modo como as crianças significavam a sua experiência social, o

que pressupunha concebê-las como produtoras de cultura, ou seja, “capazes de pensar e

decidir sobre as coisas do mundo e de participar de seu próprio processo formativo” (

Quinteiro, 2005, 139). Tal pressuposto traz novas implicações na produção de pesquisas

com crianças, a maior delas sendo a de aceitar o “testemunho infantil como fonte de

pesquisa confiável respeitável” (ibid., p. 155).

Optamos por trabalhar com as categorias de representação e de apropriação

desenvolvidas pelo historiador Roger Chartier. Pedra angular da História Cultural, a

categoria representação, segundo Chartier (1990; 2002), permite uma análise sobre as

maneiras pelas quais os homens dão inteligibilidade ao mundo social do qual fazem

parte, uma vez que ela é um estatuto de organização deste mundo social.

A grande inovação da História cultural proposta por Chartier, a meu ver, está no

fato de que o social passa a ser abordado por meio dos lugares de produção de

discursos, que apreendem e estruturam o real, no caso, as representações. Dirá o autor

1 Doutorando do PPGE da PUC-Rio. 2 Este trabalho é resultado da dissertação de Mestrado apresentada ao PPG em Educação da PUC-Rio, no ano de 2007, com o título de “As artes de ver de uma comunidade de espectadores: a infância em cena!” orientado pela Prof.ª Dr.ª Rosália Duarte. Agencia Financiadora: FAPERJ (bolsa aluno nota 10).

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que é a partir desses esquemas intelectuais incorporados que se criam as figuras graças

às quais o presente pode adquirir sentido, o outro se tornar inteligível e o espaço,

decifrável.

Outro ponto que considero fundamental na obra do autor é o fato de que a

categoria representação é indissociável da de apropriação, entendida como maneira de

usar própria dos atores sociais nas relações sócio históricas nas quais estão inseridos e

que toma como referência a posição que estes ocupam nos enfrentamentos sociais.

É a noção de apropriação que coloca o estudo das representações em um campo

de concorrências e de competições cujos desafios são enunciados em termos de poder e

dominação. Esta articulação faz do projeto de pesquisa formulado por Chartier o estudo

das estratégias que tendem, por um lado, impor uma autoridade, legitimar projetos

reformadores (ou não) e, por outro, também justificar para os próprios indivíduos suas

escolhas e condutas.

A infância representada no filme.

Como Nascem os Anjos começa com uma tentativa frustrada de acordo entre

Branquinha e o tradutor da equipe de tevê alemã, interessada em produzir um

documentário sobre a favela do morro Dona Marta. Mais do que uma introdução, essa

apresentação é um resumo do que virá pela frente. Uma tentativa de comunicação entre

mundos diferentes e o desejo frustrado da conciliação entre eles.

Branquinha é uma menina de 12 anos, “casada” com Maguila, um dos bandidos

do morro. Ela vive com os irmãos menores e o sustenta. Em nenhum momento o filme

apresenta a menina furtando ou mesmo assaltando, embora fique evidente que ela sabe

manejar uma arma. Ela assume o papel da mãe ausente.

Japa tem a mesma idade de Branquinha. Diferente da amiga, sua mãe é presença.

Mãe e filho são apresentados com a mesma coragem redentora. Porém, a honestidade do

menino não é colocada no filme como algo admirado por seus pares, pois a sua

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masculinidade é o tempo todo posta à prova, tal qual na apresentação que Branquinha

faz dele durante as filmagens: “Esse é o Japa. Ele passa os dias a sonhar com negões só

encestando”.

Um acidente marca o início do filme. Maguila mata o chefe do tráfico do morro

Dona Marta e precisa fugir. Disfarçados, Maguila e Branquinha, tentam escapar do

morro na manhã seguinte ao episódio. Cercado pelos traficantes, o disfarce e o plano de

fuga são descobertos. Japa tenta em vão convencer Branquinha a não seguir com

Maguila. Inicia-se o tiroteio. Sem alternativa os três invadem o carro de uma senhora.

Dentro do carro, outro conflito: a senhora quer deixar os filhos primeiro no colégio,

Japa quer ir para a casa do pai em Niterói e Maguila quer se esconder na Cidade de

Deus. Por fim, os três ficam em São Conrado. Motivo: Maguila quer ir ao banheiro. Ao

descerem uma rua, os três avistam um portão se abrir e sair lá de dentro um americano.

Resolvem pedir para ir ao banheiro. Outra falha na comunicação e a tentativa frustrada

de mediar o conflito, usar ou não o banheiro, resultam em um imprevisto e as três

personagens invadem a casa pela porta da frente.

Já dentro da casa, cenário do encontro entre dois mundos, seis personagens3

buscam negociar o melhor e mais rápido meio de acabar com tudo aquilo. Entretanto,

uma série de casualidades acaba impedindo-os de sair. Quando finalmente o conflito

parece resolvido, uma última crise marcaria o desfecho trágico. Ao retornarem para

dentro da casa, precisam esperar que a polícia desista de cercar a casa, mas o jornal da

noite noticia que dois “pivetes” mantêm em São Conrado uma família de americanos

como refém. Duas imagens se sucedem no telejornal, uma é a sequencia em primeiro

plano de Julie chorando, com a boca atada e as mãos amarradas, que se encerra em um

close e a outra é um plano geral de Japa dançando ao som de um funk. A segunda

sequencia provoca a ira de Branquinha, que se revolta por não ter aparecido na tevê.

Enquanto os policiais disfarçados de representantes do conselho tutelar tocam a

campainha, dentro da casa, Japa e Branquinha discutem novamente porque o plano

mudou novamente. No calor da discussão, Branquinha acidentalmente dispara um tiro

3 Branquinha, Japa, Willian (o gringo), sua filha (Julie) e a empregada Conceição.

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contra o peito de Japa, que ao cair dispara outro contra a menina. Essa é a senha para a

entrada dos policiais que resgatam pai e filha. Da mesma forma como tudo começou,

um tiro acidental contra o chefão do tráfico do morro Dona Marta, outros dois tiros

acidentais puseram fim à trama. A infância popular é a passagem escolhida por Murilo

Salles para representar a complexidade de uma sociedade que cultiva o fosso entre as

classes.

O não filme:

Após quase meia década de estagnação na produção de filmes no Brasil, a

chamada “retomada do cinema brasileiro” oportuniza que cineastas voltem a filmar.

Entre eles, Murilo Salles. Salles fez cinema na UFF, em 1969. Iniciou a carreira como

fotógrafo de curtas, porém durante os primeiros anos da década de 1990 dedicou-se a

publicidade.

Foi após a “retomada” que o cineasta resolveu realizar um novo desafio, filmar

Despertar de anjos4, um roteiro original que a partir da comédia de erros contava a

história de duas crianças que por acaso vão sendo colocadas em situações imprevisíveis

e que tomam grandes proporções. A história é, segundo o autor, um desejo claro de

fugir de um “papo-bíblia” com ideias catequizadoras. O fundamento para esta

abordagem está na declarada inspiração de O Anjo Nasceu (Julio Bressane, 1969, Br.)

que conta a história de dois marginais5 que invadem a casa de uma família rica. “Gosto

da discussão de linguagem e da situação tensa que propõe sem explicação sociológica”,

afirma Salles (JB, 1996: 41).

Nesta renovação da representação da violência carioca nos anos 90, Murilo

Salles opta pela infância. O meio escolhido para a seleção dos atores foram os testes. Na

primeira fase, foram formados dois grupos divido por sexo. Na segunda fase, já

contando com Salles, havia somente oito meninas disputando o papel de Branquinha.

Quem ficou com a personagem foi a atriz Priscila Assum, com 13 anos e moradora do

4 Título provisório logo descartado para o filme, por ser considerado, pelo autor, “dramático demais”. 5 Vividos pelos atores Hugo Carvana e Milton Gonçalves.

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bairro do Flamengo. Para o papel de Japa, o ator escolhido foi Silvio Guindane, também

com 13 anos e morador da Ilha do Governador. Embora morassem em bairros distintos

da capital carioca, ambos se conheciam, pois faziam parte do elenco da peça Sinos da

Candelária.

Os Lapsos.

Na impossibilidade de cotejar o roteiro com a montagem optamos por ver as

alterações que influenciariam na mudança de títulos do filme. Com o objetivo de

perceber os conflitos para a construção da representação da infância descrita apontando

nas mudanças, o que muda, como muda e porque muda.

Segundo Merten (Estado de São Paulo, 1996: D3), Salles não optou por um final

feliz por considerar que “o problema da miséria é que traz o germe da destruição”.

Porém, o próprio cineasta em entrevista ao JB6 afirma que no roteiro original o final não

era esse, os meninos conseguiam fugir.

Entre os títulos Despertar de anjos e Como nascem os anjos, ainda houve o Aí,

ó. Este último, segundo Salles, fora recusado pelos exibidores que afirmavam que

ninguém sairia de casa para assistir um filme chamado Aí, ó7, cujo título indicaria um

conflito latente. Muito diferente de Despertar de Anjos, que o diretor achou “dramático

demais” e também do título final, Como nascem os anjos que este considera não tão

metafórico, mas bonito e “desdramatizador” da ideia original de Despertar de anjos.

Alterar o título, por considera-lo “dramático demais” e ao mesmo tempo

modificar o seu final, não é um gesto sem implicações, o que estaria por trás dessa

mudança de desfecho e consequentemente de sentido?

O filme de Salles estreou no início de novembro de 1996, uma semana antes do

filme Quem matou Pixote? De José Joffily. Ambos os autores deixam claro em

6 08/11/1996. 7 Expressão idiomática utilizada por Japa. Refere-se a uma tentativa de aproximação, de comunicação com receio.

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entrevistas suas inspirações: O Anjo Nasceu e os livros Pixote, a lei do mais forte e

Pixote, Nunca Mais! Respectivamente, Murilo Salles e José Joffily. O primeiro filme é

de 1969 e a morte de Fernando Ramos ocorreu em 1997. Além do que o filme de

Bressane8 narra a história de dois adultos. Por que Murilo teria infantilizado seus

protagonistas? Seria coincidência que dois filmes tão significativos fossem lançados

quase que simultaneamente?

A repercussão da Chacina da Candelária foi tão grande que a discussão a

respeito dos menores durou mais do que o momento do seu acontecimento. Pressionado

por organismos internacionais, o Estado brasileiro foi chamado à responsabilidade e a

sociedade discutiu aquele fato. A chacina deu visibilidade a uma questão que Estado e

sociedade fingiam não ver, a infância em situação de risco.

A associação de Como Nascem os Anjos com o episódio que ficou conhecido

com Chacina da Candelária não é mera alusão, mas clara referência. O que fica

evidente se atentarmos para as representações escolhidas pelo diretor. As atuais

encenações do tráfico são mais realistas. Filmes mais recentes9 renovaram a imagem do

crime organizado nos morros cariocas, tornando a encenação de Como Nascem os

Anjos inverossímil. No filme, as imagens dos traficantes fazem lembrar um ócio muito

mais próximo da realidade da rua do que dos morros cariocas. O que faria a tevê alemã

interessar-se pelos meninos das favelas cariocas, senão fosse essa a questão da hora?

Há neste contexto dois caminhos de raciocínio para pensar a questão do menor.

Vitimização em função da Chacina da Candelária e o da penalização em função da

violência urbana cotidiana. Salles declara ter optado pelo caminho do meio, o acaso.

Aquele em que não haveria escolha. Seu objetivo seria fugir do “papo-bíblia”. Ora, não

haveria “papo-bíblia” se o objetivo fosse punir. A sociedade brasileira nunca foi

cerimoniosa nas suas exigências por mais prisões (ou reformatórios), mais

policiamento, na redução da maioridade penal e menos tolerância. Só haveria

8 A título de rememoração: Julio Bressane autor de O Anjo Nasceu 9 O caso do filme Cidade de Deus é bem emblemático desta nova representação.

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necessidade de esmeros se o objetivo fosse ir pelo argumento da vitimização. Como

construir uma tese em que a violência simbólica, a qual é submetida a infância

brasileira, se equivalesse ou fosse maior que a violência física e psicológica, da qual a

classe média espectadora do filme é cotidianamente vítima?

A Tese.

A resposta talvez fosse partir da violência física. A possibilidade que uma

sociedade segregacionista como a brasileira teria de experenciar a solidariedade com o

outro universo só seria possível se partisse daquilo que lhe é próximo. Neste caso, a

violência simbólica é um mito. Só seria possível solidarizar-se com a experiência do

outro se essa partisse daquilo que lhe é cara.

Assim, Salles representa a infância armada na tela. Essa representação é apenas

o mote para uma discussão que se pretende mais profundo. Delicado não é apenas o

ponto de partida, mas o argumento. Como explicar que aquela realidade também é

vítima? Vítima de que ou de quem?

Na obra de Salles, a criança é vítima não da sociedade presente, mas da história.

Sua realidade é resultado de um estado de coisas. É também resultado do desejo

conciliatório de uma sociedade que, segundo Chauí, cultiva a apartheid social, mas não

cansa de se ver como uma e fraterna (2000). Neste sentido, a falta de comunicabilidade

entre classes é para Murilo Salles o vetor que perpetua o fosso entre elas, mas não a

explica.

A situação da infância é a metáfora da situação do país, de um país cujo presente

é inevitável e o futuro é a autodestruição. A morte de Japa e Branquinha é a parábola de

um país sem saídas. A morte de ambos é o caminho lógico para uma sociedade que

finge se perceber de forma semelhante.

Pode-se se dizer que o filme tem dois finais. De um lado a morte de Japa e

Branquinha e de outro o regaste de William e Julie. Precisar onde o filme acaba

significa dizer com qual perspectiva se viu o filme.

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O circuito, ou a recepção no lançamento.

Como Nascem os Anjos foi lançado em circuito comercial no Rio e em São

Paulo no dia 8 de novembro de 1996, aguardado com expectativa após os seis prêmios

no Festival de Gramado, seis no de Brasília e cinco no de Natal. No Rio, estreou nos

cinemas Espaço Unibanco, Cine Gávea e Palácio. Entretanto, Quem Matou Pixote?

(José Jofilly, 1996, Br.) chegou aos cinemas cariocas e paulistas uma semana antes.

Para Pedro Butcher, crítico de cinema do JB10, ambos os filmes confirmavam

uma fase mais ousada e crítica ao exporem na tela a miséria e a violência refletindo a

realidade atual. Já Carlos Alberto Mattos, crítico de cinema de O Estado de São Paulo11,

Jofilly produz catarse e Salles inova na representação da delinquência infantil.

Uma comunidade de espectadores.

No conjunto de desenhos relacionados ao filme Como Nascem os Anjos é

possível perceber três blocos temáticos: a representação da sequência inicial, quando

Branquinha é entrevistada pelos repórteres da tevê alemã, a sequência da fuga das

crianças da favela e a sequência final, quando ela e Japa se matam acidentalmente.

Da pesquisa surgiu uma categoria: “guerra”. Ela qualifica a situação de conflito

nos filmes. O “dia da guerra” é tratado pelos meninos como um evento. O momento do

acerto de contas entre os bandidos. Dos jovens soldados espera-se lealdade, porque o

“dia da guerra” é mais do que uma prestação de serviço, ele é propriamente um rito de

iniciação. O “dia da guerra” é, na fala das crianças, o batismo e a possibilidade de um

menino que deseja entrar para “a bandidagem” tornar-se de fato um “bandido”.

Na representação das crianças, virar bandido, acima de tudo, é uma experiência

coletiva. Há toda uma regra subjacente que vai além do desejo pessoal de vir a se tornar

ou não bandido. Ela depende da aceitação do grupo no qual se pretende inserir. A chave

10 Revista Programa, 8 de fevereiro de 1996. 11 Caderno 2, 1 de novembro de 1996.

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passa pela figura de um padrinho e dos préstimos que se deve a ele. Do contrário, o

máximo que se consegue ser é uma caricatura dos mesmos, tal qual Branquinha foi

representada.

Parece-lhes também que as características de virilidade, coragem e empáfia são

pré-requisitos básicos para a aceitação de um menino nesses contextos, posto que elas

são indispensáveis para a atuação naquilo que se caracteriza como o grande evento da

experiência do narcotráfico: a guerra.

Assim, a grande figura do narcotráfico nem é o bucha, aquele com menor

prestígio, e nem seria o gerente, aquele com o maior cargo. Na representação dos

meninos, o fascínio está na figura do soldado, aquele que vai ao enfrentamento, para

quem se justifica e faz-se necessário o uso da arma.

O soldado e sua arma convertem-se em figura de fascínio, pelo menos é essa

imagem que emerge a partir do que expõem as crianças. Talvez porque para as crianças,

elas percebam mais claramente o “capital” que a arma mobiliza nas relações sociais em

contextos cuja influencia do narcotráfico seja grande.

Ocupar-se de pesquisar a produção de sentido é assumir o risco como valor,

porque estamos num campo do conhecimento em que aquilo que se produz é parcial,

fluido e provisório, sobretudo, porque o terreno é instável. Entretanto, faz-se necessário

tentar percorrer os caminhos da produção de sentidos que selam o estatuto de verdade

entre o espectador e o filme.

Este estatuto é selado a partir da negociação que estabelece a relação entre a

criação estética e o mundo social, a partir da compreensão de como cada obra é

construída numa relação com os discursos e práticas comuns que não são alçados a

registros históricos pelos contemporâneos.

Para Chartier (1998), o termo negociação tem um duplo significado, porque, ao

mesmo tempo em que ele permite aos produtores culturais transferir um regime de

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discursos e práticas do mundo social para a obra de ficção, permite também aos

espectadores (leitores e ouvintes) tornar a obra legível, compreensível para si.

Esse procedimento visa identificar como as intrigas e cenas das obras de ficção

são construídas numa relação forte com o cotidiano, porém deslocadas dos discursos e

práticas deste, além de colocar as questões dos diferentes significados da mesma obra

para públicos distintos, que ao mesmo tempo partilham experiências comuns e reagem

em função de sua própria cultura.

A importância dessa reconstrução se faz sentir pela possibilidade de

compreender as relações estabelecidas entre as intrigas colocadas na obra de ficção,

suas percepções possíveis pelos diferentes públicos e o estatuto do discurso travado com

o mundo social. Para Chartier, aí residiria a questão da verdade da ficção.

A crítica leu esses filmes numa linha sociológica, comum na discussão sobre a

pobreza e seus efeitos, no Brasil, mas também em virtude da tradição inaugurada pelo

Cinema Novo de associar a discussão cinematográfica a um pensamento acadêmico-

social brasileiro. No entanto, para as crianças pesquisadas, não foi essa a chave

interpretativa pela quais construíram o sentido das narrativas. Então quais foram?

Para sabermos, voltemos aos filmes que elas classificaram como sendo “filmes

de ação”. Quando indagados se gostaram mais de Cidade de Deus ou de Como nascem

os anjos, a turma como um todo respondeu ter gostado mais do primeiro, sendo que a

principal razão foi a maior quantidade de “ação”. Ação é claramente identificada como

as sequências da guerra: o momento do confronto.

Segundo as crianças pesquisadas, Como nascem os anjos, com pouquíssimas

variações, narra a história de duas crianças cujo sonho de uma delas é se tornar dona da

favela Dona Marta. Do relato global do filme fica claro que Maguila e a família de

americanos perdem importância. É via o desejo de Branquinha, de vir a se tornar

bandida, que as crianças relatam a história do filme. É o desejo dela que coloca os três

envolvidos naquela situação, mais do que o tiro acidental dado por Maguila, ou mesmo

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o incidente com o motorista do senhor William. Se a trama proposta por Salles baseia-se

em um jogo de erros, ou seja, as personagens seriam vítimas do acaso, na interpretação

das crianças a situação toda é provocada porque Branquinha queria se tornar dona do

morro.

Entretanto, se a porta de entrada das crianças é Branquinha, ainda assim, não se

pode afirmar que ver os filmes da perspectiva dessa personagem signifique aprovar suas

atitudes. Quando indagados sobre que cena eles mais gostaram, responderam que foi a

sequência da morte da menina. Já quando indagados também sobre quem era a

personagem de que mais gostavam, muitos disseram que era do Japa, mesmo que na

maior parte do tempo ele tenha passado desapercebido. Justificavam pelo fato do

personagem ser do bem.

Ao identificar o enredo da trama, selecionar as personagens, destacarem trechos,

falar sobre aquilo que lhes chamou atenção, os meninos evidenciam que têm no

cotidiano e nas informações que adquirem nele os meios que lhes permitem lerem os

filmes, usando a própria experiência de proximidade com este universo para construir

uma narrativa coerente.

Fontes:

CENTRAL DO BRASIL. Direção: Walter Salles Júnior. Produção: M de

Clemont-Tonnere e Arthur Cohn. Roteiro: Marcos Bernstein, João E. Carneiro e

Walter Salles Jr. Intérpretes: Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Vinícius de

Oliveira, Sôia Lira, Othon Bastos e outros. [S.l]: Le Studio Canal; Rio Filme;

MACT Productions, 1998. 1 filme (106 min), son., color., 35mm.

BUTCHER, Pedro. O que mudou da vida para a tela. Jornal do Brasil. Rio de

Janeiro. 1 nov., 1996. Ano 12 nº30.

MATTOS, Carlos Alberto de. Jofilly produz catarse e Salles descortina nova maneira de dramatizar a delinquência infantil. O Estado de São Paulo. São Paulo. Caderno 2. 1 nov. 1996. Ano 9, nº 3.554.

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MERTEN, L Carlos. Salles exorciza drama de crianças armadas. O Estado de São Paulo. São Paulo. Caderno 2. p. D3, 1 nov. 1996. Ano 9, nº 3.554.

Bibliografia:

CHARTIER, R. A verdade entre ficção e história. In: BAECQUE, Antonie, DELAGE, Christian. De l’histoire au cinema. Trad. Maria Carolina Granato da Silva. IHTP – CNRS/Ed. Complexe: Bruxela, 1998, p. 29-44

______. O Mundo Como Representação. In: CHARTIER, R. À beira da falésia: A historia entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

CHAUÍ, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

QUINTEIRO, Jucirema. Infância e Educação na Sociologia: questões emergentes. In: MAFRA, L. de A; TURA, M de L R. (orgs.) Sociologia para educadores 2: o debate sociológico da educação no século XX e as perspectivas atuais, Rio de Janeiro: Quartet: 2005.