a infancia dos pobres

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A Infância dos no Brasil da modernidade Deise Gonçalves Nunes * Introdução Neste estudo proponhamos uma análise da maneira como historicamente os padrões de intervenção social na área da infância brasileira revelam uma forma específica de reconhecimento social. Desse reconhecimento deriva o estranhamento da infância dos estratos mais pobres da população, entendendo-se infância como etapa do desenvolvimento da sociabilidade humana e fase de aquisição de conhecimentos e experiências. Partimos do pressuposto de que os padrões de intervenção social na área da infância inicialmente atrelam-se a formas arcaicas de controle social, articuladas em torno da caridade tradicional e de diferentes formas de filantropia – que caracterizam os primeiros séculos de domínio colonial imperial e republicano e que no século XX vão compor o quadro das políticas sociais, sobretudo as de porte assistencial. A lógica ordenadora desses diferentes padrões de intervenção é a garantia da acumulação através da legitimidade dos meios de reprodução social pela regulação do acesso ou da exclusão da riqueza socialmente produzida. A essas práticas sociais correspondem, nos planos ideológico e político, representações acerca das crianças que são suas destinatárias, num complexo processo de constituição do seu reconhecimento social. Assim, a infância dos pobres é atravessada por uma forma específica de aparecimento social, determinada predominantemente por relações anômalas de sociabilidade regidas pelos perversos caminhos da desigualdade social e geradoras das modernas formas de filantropia e assistência. Por reconhecimento social consideramos a rede de relações sociais que atravessa a existência humana, ancorada na materialidade da vida social e que dá diferentes sentidos à sociabilidade constitutiva da vida em sociedade. Buscamos em Todorov (l996) as bases para discutir a construção dessa categoria. Este artigo está organizado em três partes. Na primeira, procuramos localizar a emergência e o desenvolvimento da política social para a infância, tendo como marcos definidores desse trajeto o Código de Menores de l927 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de l990. Na segunda parte, analisamos o sistema de atendimento destinado aos abandonados e o sistema de atendimento destinado aos delinqüentes, situando-os dentro da lógica organizadora do padrão de proteção social da infância. Para finalizar, elaboramos algumas reflexões sobre a infância dos pobres, a partir da construção do reconhecimento social implícito no padrão hegemônico de proteção. É de Pequeno que se Torce o Pepino” - A Organização do Sistema de Proteção Social à Infância no Brasil A institucionalização da vida social, nas diferentes formações, determina a maneira como as sociedades definem as práticas sociais e delimitam as diferenças etárias. Ariès (l978) e Rabello (l996) mostram como a infância começa a ser * Doutora em Educação; professora adjunta do SSN/UFF. E-mail: [email protected]

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infancia dos pobres

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  • A Infncia dos no Brasil da modernidade

    Deise Gonalves Nunes

    Introduo

    Neste estudo proponhamos uma anlise da maneira como historicamente os padres de interveno social na rea da infncia brasileira revelam uma forma especfica de reconhecimento social. Desse reconhecimento deriva o estranhamento da infncia dos estratos mais pobres da populao, entendendo-se infncia como etapa do desenvolvimento da sociabilidade humana e fase de aquisio de conhecimentos e experincias.

    Partimos do pressuposto de que os padres de interveno social na rea da infncia inicialmente atrelam-se a formas arcaicas de controle social, articuladas em torno da caridade tradicional e de diferentes formas de filantropia que caracterizam os primeiros sculos de domnio colonial imperial e republicano e que no sculo XX vo compor o quadro das polticas sociais, sobretudo as de porte assistencial. A lgica ordenadora desses diferentes padres de interveno a garantia da acumulao atravs da legitimidade dos meios de reproduo social pela regulao do acesso ou da excluso da riqueza socialmente produzida. A essas prticas sociais correspondem, nos planos ideolgico e poltico, representaes acerca das crianas que so suas destinatrias, num complexo processo de constituio do seu reconhecimento social. Assim, a infncia dos pobres atravessada por uma forma especfica de aparecimento social, determinada predominantemente por relaes anmalas de sociabilidade regidas pelos perversos caminhos da desigualdade social e geradoras das modernas formas de filantropia e assistncia.

    Por reconhecimento social consideramos a rede de relaes sociais que atravessa a existncia humana, ancorada na materialidade da vida social e que d diferentes sentidos sociabilidade constitutiva da vida em sociedade. Buscamos em Todorov (l996) as bases para discutir a construo dessa categoria.

    Este artigo est organizado em trs partes. Na primeira, procuramos localizar a emergncia e o desenvolvimento da poltica social para a infncia, tendo como marcos definidores desse trajeto o Cdigo de Menores de l927 e o Estatuto da Criana e do Adolescente de l990. Na segunda parte, analisamos o sistema de atendimento destinado aos abandonados e o sistema de atendimento destinado aos delinqentes, situando-os dentro da lgica organizadora do padro de proteo social da infncia. Para finalizar, elaboramos algumas reflexes sobre a infncia dos pobres, a partir da construo do reconhecimento social implcito no padro hegemnico de proteo.

    de Pequeno que se Torce o Pepino - A Organizao do Sistema de Proteo Social Infncia no Brasil

    A institucionalizao da vida social, nas diferentes formaes, determina a maneira como as sociedades definem as prticas sociais e delimitam as diferenas etrias. Aris (l978) e Rabello (l996) mostram como a infncia comea a ser

    Doutora em Educao; professora adjunta do SSN/UFF. E-mail: [email protected]

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    delimitada e diferenciada do mundo adulto, a partir de mudanas que ocorrem na estrutura da vida social e econmica da sociedade. O primeiro autor discute as formas de representao da infncia relacionando-as com o processo de institucionalizao da vida social e com os valores dominantes em pocas histricas distintas. Mostra como a passagem do sculo XVII para o sculo XVIII caracterizada por uma acentuada mudana no tratamento dado criana, determinada, sobretudo, pela escolarizao. Rabello analisa as mudanas que o projeto de modernidade promove na representao e interveno na rea da infncia. Para essa autora, a compreenso histrica da infncia implica buscar, em cada formao especfica, o conjunto de significados atribudos a essa etapa do desenvolvimento e s demais fases da existncia humana, em sua trajetria de vida, desde a concepo at a morte.

    Na formao social brasileira, a organizao do sistema de interveno social na infncia comea a ser estruturada numa conjuntura marcada pela expanso do industrialismo e pela acentuada urbanizao, em que a questo social tomava gigantescas propores. Nessa conjuntura, os filhos da classe trabalhadora eram submetidos s mais cruis formas de explorao e aviltamento, sobrevivendo em precrias condies. nesse panorama que surge a questo social relacionada infncia, atingindo as crianas abandonadas e expostas s mais perversas perspectivas de sobrevivncia, que encontram nas ruas os meios de reproduo cotidiana. Excludas dos processos sociais organizativos, as crianas no protagonizavam as lutas das classes trabalhadoras e s passaram a ser includas em suas pautas mais tarde, j na dcada de 1970, atravs da lutas das mulheres por creches, e em 1980, atravs do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Abandonados e entregues prpria sorte, desde o incio do desenvolvimento da industrializao, ficavam dependentes da tutela do Estado ou de grupos filantrpicos.

    O marco do sistema de interveno social na infncia foi o Cdigo de Menores de l927. Ao tornar visvel a infncia pobre, esse cdigo o faz no mbito legalista, como rea de competncia jurdica prpria, o que representou, para a poca, um importante avano. Entretanto, esse tambm foi o marco da diferenciao e segregao da infncia pobre, que logo passou a ser identificada com a infncia dos delinqentes e abandonados. com essas caractersticas que o padro de proteo social se legitima entre ns, cristalizando uma prtica social reprodutora de desigualdades e definidora de lugares sociais para os quais se tm dois olhares: o olhar da compaixo e o olhar da rejeio. Olhares e lugares que se misturam, se confundem e so ordenados por matizes de uma mesma lgica, a lgica da represso.

    O sistema de proteo social infncia foi organizado em duas dimenses: uma pblica, de responsabilidade do Estado, e outra privada, de responsabilidade de instituies filantrpicas, muitas ligadas Igreja Catlica. Integravam esse sistema o Departamento Nacional da Criana, o Servio de Atendimento ao Menor e a Legio Brasileira de Assistncia. O sistema sofre algumas modificaes, mas na essncia essa estrutura perdurou at meados da dcada de 1960, quando organizada a Poltica Nacional do Menor, coordenada pela Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor. Na dcada de 1980, so construdas as bases da reformulao dessa poltica, e em 13 de julho de l990 lanado o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), Lei 8.069.

    O processo de construo desse estatuto revela a luta entre diferentes projetos societrios, representativos de prticas sociais que reafirmavam o velho estilo tutelar repressivo e daqueles que buscavam super-los. Pela primeira vez na histria das lutas sociais o tema da defesa dos direitos das crianas assume feies prprias e mobiliza amplos segmentos da sociedade envolvendo, inclusive, sindicatos e partidos polticos mais sensveis questo social. A luta pela defesa dos direitos da criana agregou-se mobilizao popular poca da elaborao da Constituio de 1988, tendo como centralidade a defesa da criana e do adolescente como sujeitos de direitos, que deveriam ser respeitados em suas condies especiais de seres em

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    desenvolvimento. Entretanto, o Estatuto no conseguiu superar aquelas velhas prticas por estar sendo implementado numa conjuntura de retrao dos investimentos pblicos na rea social e de persistncia num modelo de desenvolvimento em que a lgica do ordenamento sociopoltico tem na excluso social um elemento constitutivo. Em l995, o gasto com o servio da dvida pblica federal foi de 46,7%, ao passo que o gasto social federal (composto das reas de educao, habitao e urbanismo, sade, saneamento, proteo ao meio ambiente, trabalho, assistncia social e previdncia) foi de 12,5%. Tambm em l995, o gasto social do governo federal com crianas foi de 12,4% do total desse gasto. Comparativamente, o universo total de crianas, adolescentes e jovens corresponde a 38,2% da populao total de adultos (Brasil, 1997).

    O Cdigo de Menores de l927, preocupado em regular o atendimento ao menor, define-o em trs categorias: o abandonado, o vadio e o libertino. Essa categorizao se constri a partir dos tipos de prticas socioinstitucionais a que cada um seria submetido. Essas prticas tm como ponto comum a represso, embora em cada uma delas a represso adquira feies especficas. Assim, para crianas abandonadas, a montagem do sistema de proteo vai girar em torno da mercantilizao da mo-de-obra infantil. Para os vadios e libertinos, o sistema de proteo se organiza a partir da criminalizao e penalizao. Este foi o caminho aberto construo do reconhecimento social da infncia dos pobres entre ns.

    No mbito do Estado, as iniciativas se organizam a partir do Cdigo de 1927, que tinha como inteno consolidar a base jurdica da interveno numa perspectiva tutelar, priorizando a recluso dos menores delinqentes em instituies correcionais. Esse sistema se concretiza na montagem do Sistema de Atendimento ao Menor (SAM). No mbito da ao privada, as iniciativas se concentraram, desde o incio, no amparo aos rfos e abandonados, sendo a primeira grande iniciativa desse gnero desenvolvida pela Fundao Romo Duarte, mantenedora da Casa dos Expostos, ou da Roda, como era popularmente conhecida, onde as crianas permaneciam at completarem l8 anos.

    A Casa dos Expostos inaugura uma concepo de atendimento que procura conciliar a educao com o trabalho. Desde cedo, essas crianas eram treinadas para diferentes ofcios, atravs do trabalho em oficinas cujas produes eram destinadas a subsidiar o atendimento prestado pela Santa Casa da Misericrdia, e a ajudar a manter as necessidades da prpria casa. Esse modelo de atendimento inspirou muitas outras iniciativas do gnero, que se propagaram e se mantm at os nossos dias.

    O SAM e o Cdigo de 1927 inauguram uma concepo de atendimento que concilia a ressocializao com o confinamento, fornecendo as diretrizes gerais para a predominncia de uma viso judicial e tutelar destinada s crianas e aos adolescentes que cometem atos infracionais. Esse modelo se mantm at os dias atuais, numa tnica modernizada, dada pelo Estatuto de 1990. Vejamos, a seguir, o ordenamento socioinstitucional do sistema de proteo infncia pobre no Brasil, a partir destas duas categorias centrais: o sistema organizado para os abandonados e o sistema organizado para os chamados delinqentes.

    O Reconhecimento Social da Infncia Abandonada: Das Ruas para o Trabalho

    A primeira perspectiva de proteo social ser construda a partir da categoria do abandonado. O abandonado aquele que vitimizado, deixado por seus pais, que so culpabilizados pelo abandono e pela situao de carncia e risco social a que submetido. O abandonado, como vtima desprotegida, deve submeter-se proteo dada pela sociedade e a ela ser eternamente grato. Esta, por sua vez, tem o dever de suprir as carncias sociais atravs de mecanismos compensatrios, organizados, em

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    geral, numa perspectiva assistencial a partir de iniciativas de carter filantrpico (no mbito privado) e tutelar (no mbito do Estado).

    A categoria do abandonado se constitui a partir de duas bases centrais para a compreenso de todo o arcabouo socioinstitucional que a ela se destina. A primeira diz respeito ao eixo vitimizaoculpabilizao. A segunda diz respeito subalternizao. Como vtimas do abandono dos pais, as crianas devem submeter-se s diretrizes que a sociedade lhes destina. O abandonado, ao entrar em contato com o padro de proteo social, tem o seu reconhecimento social construdo pela via da no-cidadania, determinada pelas condies de miserabilidade a que est submetido. identificado como um necessitado, aquele que deve submeter-se ao padro de proteo como um reforo da prpria existncia. Condenado precocemente a receber sem nada poder dar, o mximo de reconhecimento social a que deve aspirar aquele construdo pelos laos da subalternizao aos padres societrios vigentes. Para tanto, a sociedade oferece os meios: a preparao para o trabalho. Regido pela tica do trabalho, desde cedo aprende os meios para obter a meritocracia e o reconhecimento social.

    Os abandonados constituem o que denominamos exrcito de reserva da infncia produtiva. A preocupao em regulamentar o trabalho infantil, fartamente utilizado pela expanso do industrialismo, surge j no Cdigo de 1927, que previa escolaridade adequada ao trabalho, atravs da aprendizagem de ofcio. A proteo trabalhista vai aparecer mais tarde, em 1943, na Consolidao das Leis do Trabalho (CLT). Assim como o nvel de escolarizao dependia do ofcio, o nvel de proteo dependia dos interesses dos patres. Para o segmento dos abandonados trabalhadores, foram criadas as bolsas de trabalho poca do surgimento do Servio Nacional da Aprendizagem Industrial (Senai) e do Servio Social do Comrcio, na dcada de 1940. Essas instituies foram coadjuvantes do expansionismo industrial e legitimaram a incorporao da mo-de-obra infantil atravs das bolsas de trabalho. A CLT obrigava o patronato remunerao de meio salrio mnimo, em troca do aprendizado de ofcio, e proibia o trabalho do menor de l4 anos. Porm, em pargrafo nico, determinava: No se incluem nesta proibio os alunos ou internados nas instituies que ministrem exclusivamente o ensino profissional e nas de carter beneficente ou disciplinar submetidas fiscalizao oficial.

    Ao mesmo tempo, o pargrafo 2 do artigo 405 pontuava: O trabalho exercido nas ruas, praas ou outros logradouros depender de prvia autorizao do juiz de menores, ao qual cabe verificar se a ocupao do menor indispensvel sua sobrevivncia.

    Dessa maneira, o padro de proteo social destinado ao abandonado introduz, no sistema jurdico, a possibilidade de uma explorao diferenciada do trabalhador infantil tanto atravs do que se denominou aprendizagem de ofcio (um trabalho semi-escravo), quanto das probabilidades que se abrem para a legitimao do trabalho nas ruas. Isso fica claro tanto nos destaques acima, quanto no que diz o artigo 413 da CLT:

    vedado prorrogar a durao normal do trabalho dos menores de l8 anos, salvo excepcionalmente: a) quando [...] o trabalho do menor for imprescindvel ao funcionamento normal do estabelecimento. b) quando [...] o interesse pblico o exigir. c) quando se tratar de prevenir a perda de matrias-primas ou de substncias perecveis.

    Essa perspectiva de proteo social para os abandonados, associada ao

    trabalho infantil, prevalece tanto na Poltica Nacional de Bem-Estar do Menor, desenvolvida pela Funabem e congneres durante as dcadas de 1960 e 1970, quanto no cdigo de 1979. O Estatuto de 1990, que pretende alterar a base doutrinria do atendimento e a prtica socioinstitucional apresenta, uma modernizao

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    conservadora dessa perspectiva. Define, em seu ttulo II, as chamadas medidas de proteo, destinadas aos abandonados. No artigo 60, captulo 5, define: proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condio de aprendiz. E no artigo 64 afirma: Ao adolescente at l4 anos assegurada bolsa de aprendizagem.

    O modelo inaugurado com a Casa dos Expostos modernizado durante as dcadas subseqentes. Porm, o princpio do reconhecimento social permanece o mesmo: o reconhecimento pela subalternizao s condies de explorao da mo-de-obra. As iniciativas podem ser encontradas nos diferentes programas desenvolvidos durante esse perodo, vinculados tanto ao Estado, quanto s iniciativas particulares (programas desenvolvidos pelo Senai e Senac, Programa Bom Menino, Patrulheirismo, Casa do Pequeno Jornaleiro etc.).

    O Estatuto de l990 conserva o ncleo central do atendimento aos abandonados nos termos at aqui descritos. So preservadas as condies de trabalho para os aprendizes menores de 14 anos (captulo 5, artigo 60), o que abre inmeras possibilidades de colocao do trabalho infantil no mercado por um custo muito menor que o do adulto. Muitos programas mantm o preo de meio salrio mnimo como valor das bolsas de aprendizes, no mesmo modelo dos primeiros programas. Em l995, 24% do universo de crianas brasileiras ocupadas na faixa etria de 10 a 14 anos trabalhavam 40 horas ou mais por semana. Note-se que essa a faixa etria em que o trabalho infantil constitucionalmente proibido, salvo na condio de aprendizado. Na faixa de 15 a 17 anos, esse percentual se eleva para 63,6% (Brasil, 1997). Para essa faixa o trabalho infantil deve compatibilizar ocupao e escola, e garantir os direitos trabalhistas e previdencirios. importante destacar que experincias mais recentes do governo FHC, como o Programa Brasil Criana Cidad, vinculado ao Ministrio da Previdncia e Assistncia Social da Secretaria de Assistncia Social, at o ano de l997, apoiava financeiramente as iniciativas de formao de mo-de-obra infantil.

    O Reconhecimento Social da Infncia Delinqente - Das Ruas para a Priso

    A forma mais explcita de represso do sistema de proteo social ocorre nas medidas destinadas queles que cometem atos considerados infracionais. A esses, o confinamento e a privao da liberdade. As primeiras medidas aparecem no Cdigo de 1927; algumas so reformuladas em 1979 e se modernizam com o Estatuto de 1990.

    So consideradas aes anti-sociais aquelas que infringem as normas ticas e jurdicas da sociedade. O Cdigo de 1927 define, em seu captulo 4, os menores vadios como aqueles que se mostram refratrios a receber instruo ou entregar-se ao trabalho srio e til, vagando pelos logradouros e ruas pblicas, sem domiclios, sem meios de vida regular, e enquadrando-se, portanto, como mendigos. Os menores libertinos so definidos praticamente como obscenos que se entregam prostituio ou vivem da explorao da prostituio de outros. Os menores libertinos e vadios, a autoridade judicial tinha o poder de intern-los nas ento denominadas instituies de preservao. Em l943, pelo Decreto-Lei n 6.026, de 24 de novembro, tambm conhecido como lei de emergncia, foram determinadas as normas relativas aos menores infratores, na faixa de 14 a 18 anos. Por essa lei, a autoridade judiciria tinha o poder de retirar a guarda dos pais, desde que o a infrao cometida por seu filho implicasse periculosidade, e de encaminhar menores a instituies que atendessem a adultos. Ao completarem l8 anos, se o juiz reconhecesse a cessao da periculosidade, os jovens poderiam ainda ficar em liberdade vigiada e, a partir do comportamento revelado nesse perodo, ser libertados definitivamente ou reencaminhados para a recluso.

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    Se, para os abandonados, o reconhecimento social construdo com base na subalternizao dos menores explorao da sua fora de trabalho, para os delinqentes, esse reconhecimento construdo pela insubordinao e transgresso daquilo que considerado moral e tico pela vida em sociedade. Aqui, o reconhecimento dado pela negao, pela usurpao do que considerado moral e bons costumes. Quanto mais insubordinado, mais reconhecido e, quanto mais reconhecido como delinqente, mais legtimas as medidas adotadas para sobre eles se exercer a punio e o controle.

    Assim como a Casa dos Expostos inaugura o atendimento que articula a proteo com a mercantilizao do trabalho infantil, o SAM, criado pelo Decreto-Lei 3.799, em 5 de novembro de l941, inaugura o atendimento que articula a ressocializao confinamento e privao de liberdade. Esse servio estava subordinado ao Ministrio da Justia e Negcios Interiores e se ligava ao trabalho do Juizado.

    O SAM inaugura, tambm, a profissionalizao do atendimento ao menor. A equipe responsvel por estudar, classificar e definir o tipo de tratamento indicado era composta por um assistente social, um mdico e um professor. Todos tinham como meta promover a integrao do menor sociedade, baseados em teorias funcionalistas de socializao pela incorporao das normas sociais dominantes. Aos que fugiam dessas normas ou aparentavam problemas em incorpor-las, o confinamento e a privao da liberdade. Os laudos tcnicos legitimavam a interveno repressiva.

    O Estatuto de l990 moderniza essa perspectiva. Agora, juridicamente, as medidas penais so substitudas por medidas de proteo integral. Para os que cometem atos infracionais, essas medidas so denominadas socioeducativas (captulo 4, item 3). Pretende-se, com elas, substituir o ciclo perverso da apreenso/triagem/confinamento por uma poltica descentralizada de atendimento, apoiada na comunidade, na famlia e na sociedade civil organizada. A punio pelo simples confinamento deve ser substituda por diferentes medidas, aplicadas conforme o grau de periculosidade e as circunstncias de ocorrncia. Podem graduar entre (artigo 112):

    . advertncia; . obrigao de reparar o dano; . prestao de servios comunidade; . liberdade assistida; . insero em regime de semiliberdade; . internao em estabelecimento educacional. O estabelecimento educacional exatamente o que funciona nos moldes da

    represso e do confinamento. Essas medidas, no Rio de Janeiro, so aplicadas em instituies como o Instituto Padre Severino e o Instituto Joo Luis Alves, palcos de inmeras rebelies, fugas, denncias de maus-tratos, trfico de entorpecentes etc.

    A Construo do Reconhecimento Social da Infncia dos Pobres: a Infncia sem Infncia

    O gradual reconhecimento da infncia como etapa especfica do desenvolvimento humano diferenciada do mundo adulto ocorre paralelamente consolidao do projeto de modernidade. Rabelo (l995) discute muito bem esta relao demonstrando como as mudanas scio-histricas decorrentes da consolidao do projeto de modernidade determinam a diferenciao da infncia com relao ao mundo adulto. No Brasil, o reconhecimento e a delimitao da infncia, relao ao termos de tratamento e proteo jurdica, quanto em relao ao campo especfico da produo do

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    conhecimento e da interveno de diferentes categorias profissionais, ocorrem j no sculo XX, com a expanso da industrializao e urbanizao. A infncia comea a ser duplamente regulada: tanto nas prticas socioinstitucionais, na representao no plano ideopoltico.

    As prticas socioinstitucionais, e a representao se desenvolvem a partir de um paradigma dominante na modernidade, o da apreenso emancipatria do homem com relao vida em comum, vida em sociedade. Todorov (l996) mostra como o pensamento social vai sendo construdo dentro dessa perspectiva, numa dupla dimenso: aquela que se assenta no isolamento do homem, corroborada por teorias sociolgicas e psicolgicas, e outra que concebe a sociedade como autnoma e como determinadora de regras e normas para regular a vida em comum, a partir de um consenso coletivo ou de uma vontade geral.

    No Brasil, os principais termos de reconhecimento social da infncia como rea de proteo social ocorrem com base num duplo movimento em que a infncia pobre, ao se tornar visvel como rea de interveno social, se torna, tambm, diferente. Na anlise sistema de proteo social a que este segmento submetido, observamos que a infncia destituda do sentido de infncia como lugar da brincadeira, do jogo, do desenvolvimento das habilidades necessrias a um saudvel crescimento e desenvolvimento. Ao contrrio, todo o padro de proteo parece destituir a infncia dos pobres desses direitos.

    interessante se observar como as prticas sociais, ao serem institudas, vo definindo um estranhamento com relao ao lugar da infncia na vida dos pobres. Essa diferena passa a ser to significante que se perde a dimenso da desigualdade e da miserabilidade sociais que destinam as crianas e jovens a esse lugar. Na perspectiva da apreenso dicotomizada homemvida em comum, as diferenas sociais vo se condensando em diferenas individuais. A criana de rua, abandonada, no mais reconhecida como criana, nem como um ser humano. a absolutizao da diferena que determina uma ampla indiferenciao social e uma naturalizao da destituio do lugar da infncia na vida dos pobres.

    Amorim (l996), ao analisar textos de pesquisa produzidos no Brasil nas dcadas de 1980 e 1990, levanta duas ordens de questes que considera relevantes. Uma diz respeito enunciao da pesquisa, com questes relativas aos lugares definidores da mesma, tanto do ponto de vista do lugar de quem fala, quanto do ponto de vista do lugar do destinatrio e da forma como se fala. A outra ordem de questes diz respeito ao enunciado da pesquisa, destacando-se, aqui, no mais o como se diz com relao ao outro, mas o que dito sobre ele (no caso as crianas de rua). Aqui, a autora pontua questes importantes sobretudo no que diz respeito categoria infncia: seria uma categoria universal, que permitiria pensar as diferenas entre meninos de rua e meninos de apartamento? Ou, a partir de um determinado ponto, no mais possvel falar de infncia?

    Salvo iniciativas isoladas, que no chegam a constituir linhas gerais definidoras do sistema de proteo social, o que organiza as prticas socioinstitucionais o trabalho e a privao da liberdade. Entretanto, o que deve organizar a vida da criana exatamente o contrrio: a brincadeira e a liberdade. Entendemos que o padro de proteo social infncia no Brasil, na medida em que se organiza sob o binmio trabalhoconfinamento, priva os pobres da infncia. Nesse sentido, achamos que, a partir do lugar da classe, no mais possvel se falar de infncia.

    As crianas no Brasil no so reconhecidas como crianas na medida em que trabalham e na medida em que tm seus direitos humanos violados, principalmente quando submetidas s chamadas medidas de privao de liberdade (ou confinamento). Ora, so exatamente esses dois elementos os aniquiladores da infncia dos mais pobres, que ordenaram, e ainda ordenam, todo o sistema socioinstitucional de proteo social.

    Ao mesmo tempo, a visibilidade da crise social nesta conjuntura dos anos 90, agravada pela lgica perversa da desregulamentao dos direitos sociais, determina

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    um indiferentismo em face da defesa dos direitos humanos, sobretudo quando relacionados a jovens que cometem atos infracionais. O aumento da violncia urbana, a incorporao de crianas e jovens aos esquemas do narcotrfico e de redes de prostituio, a repercusso social dada pela mdia a infraes cometidas por jovens e adolescentes, associada a reiterados mecanismos de impunidade contra aqueles que atentam contra os direitos humanos das crianas e adolescentes, sedimentam um reconhecimento social em que a pobreza vem associada delinqncia e determina uma demanda de represso e punio por parte do Estado.

    A reiterao do sistema de proteo social ancorado na represso, quer pela via do trabalho, quer pela via da punio, encontra, na conjuntura desses difceis anos 90, bases fecundas para a sua reproduo, num profundo retrocesso diante das conquistas do Estatuto de 1990. O debate atual acerca da inimputabilidade penal para os 16 anos e da flexibilizao dos direitos sociais para estimular o trabalho dos menores podem ser apontados como eixos preocupantes dessa tendncia conservadora.

    Concluses

    A construo do sistema de proteo social infncia no Brasil como um conjunto de prticas socioinstitucionais s pode ser compreendida medida que remetida s determinaes da vida material e ao conjunto de relaes sociais que se articulam para legitimar a insero e/ou excluso das classes trabalhadoras na redistribuio da riqueza socialmente produzida. Esse processo vem acompanhado por uma srie de justificativas construdas nos planos ideolgico e poltico e que vo perpassar a trajetria dos sujeitos sociais, desde a infncia at a velhice, no conjunto das instituies sociais que organizam a vida em sociedade. Nessa rede de relaes tecido tanto o processo de reconhecimento social quanto o de assujeitamento dos diferentes segmentos sociais a ele.

    Na anlise do padro de proteo social infncia, observamos que o aparato jurdico e o ordenamento institucional fornecem s crianas e adolescentes pobres duas vias de reconhecimento. Uma, pela subalternizao s diferentes modalidades de explorao da sua mo-de-obra (como aprendizes ou como trabalhadores efetivos). Aqui, o reconhecimento ocorre pelo olhar que mistura compaixo e pena. Outra, pela insubordinao e transgresso das normas sociais vigentes dominantes na sociedade. Aqui, o reconhecimento ocorre pelo dio e criminalizao. Todorov (l996, p. 94), afirma que

    o que pedimos aos outros , em primeiro lugar, que reconheam nossa existncia ( o

    reconhecimento ao p da letra) e, em segundo lugar, que confirmem nosso valor (denominemos essa parte do processo de confirmao) [...] Reciprocamente, a admirao dos outros apenas a forma mais visvel de seu reconhecimento, pois se refere a nosso valor; mas seu dio ou agresso tambm o so, embora de maneira menos evidente: atestam com a mesma intensidade nossa existncia.

    Assim, ao fornecer visibilidade infncia dos pobres, o padro de proteo

    social a diferencia ao ponto de provocar um estranhamento da infncia como uma categoria universal do desenvolvimento da sociabilidade humana.

    Transgredir essa lgica perversa, numa conjuntura de acirramento das contradies sociais de crescente excluso e de naturalizao da pobreza, implica uma perspectiva de luta pela defesa dos direitos da criana e do adolescente, numa dimenso emancipatria e articulada a outras lutas no campo democrtico popular.

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    Referncias

    AMORIM, Marlia. Um estrangeiro do interior: reflexes sobre a pesquisa com meninos de rua: Agalma, Boletim da Escola Brasileira de Psicanlise, Seo Rio de Janeiro, set. l996.

    ARIS, Philiphe. Histria social da criana e do adolescente. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, l986.

    BRASIL criana urgente: a lei. So Paulo: Columbus, l990.

    BRASIL. IBGE. Indicadores sobre crianas e adolescentes: Brasil, l99l-l996. Braslia, DF: Unicef; IBGE, Rio de Janeiro, l997.

    NUNES, Deise Gonalves. Da roda creche: proteo e reconhecimento social da infncia de 0 a 6. Tese (Doutorado em Educao) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000.

    RABELO, Lcia. Infncia e modernidade. Mimeografado.

    TODOROV, Tzvetan. A vida em comum. Campinas: Papirus, l996.