1. lienhard, martin_intelectuais - porta-vozes dos pobres

49
Dossiê Dossiê onhecimentos Compartilhados

Upload: isaac-palma

Post on 02-Oct-2015

11 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Intelectuais porta vozes dos pobres?

TRANSCRIPT

  • Doss iDo

    ssio

    nhe

    cim

    ent

    os

    Compart i lhados

  • Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    Martin Lienhard*

    *Latino-americanista e

    africanista. Docteur s lettres

    pela Universidade de

    Genebra e professor emrito

    da Universidade de Zurique.

    O intelectual engajado

    Em 1967, em plena guer-ra do Vietn, o lingista Noam Chomsky publicou um pequeno livro intitula-do The responsability of the intellectuals

    (A responsabilidade dos intelectuais).

    O papel que ele, nesse livro, atribui aos

    intelectuais o de crticos do poder:

    [] a posio de que disfrutam per-

    mite-lhes denunciar os embustes dos

  • 14Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    governos, analisar as aes, de acordo com as suas cau-

    sas e motivos, e, muitas vezes, as intenes ocultas que

    lhes so inherentes (Chomsky 1968: 9). No mundo

    ocidental, acrescenta, eles tm todas as condies para

    trabalhar na descoberta da verdade, oculta por detrs

    dos vus da distorso e da deturpao, das ideologias

    e dos intereses das classes, atravs dos quais nos so

    apresentados os acontecimentos histricos quotidianos

    (ibid.). Com um discurso deste tipo, Chomsky se inscre-

    ve numa tradio intelectual que surge no contexto do

    iluminismo e que se desenvolve mais tarde no contexto

    do socialismo nascente. Um representante importante

    dessa tradio o escritor francs mile Zola, autor de

    um texto cujo ttulo, Jaccuse! (Eu acuso), traduz

    perfeitamente a ideia que o intelectual crtico se faz de

    seu papel. Neste texto famoso, uma carta aberta ao Pre-

    sidente da Repblica Flix Faure, Zola lana um ataque

    violento contra um establishment militar que, contra

    toda evidncia, condenou, por suposta traio, o capi-

    to Dreyfus, judeu. Como Zola no contexto de laffaire

    Dreyfus, Chomsky, no da guerra do Vietn, trabalha an-

    tes de tudo na crtica do imperialismo, na desmontagem

    da mentira no (do) discurso oficial.

  • Mar-Set/ 2014

    15

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    No mesmo ano 1967, em um curta intitulado Camera

    Eye, Jean-Luc Godard (se) coloca, desde sua perspecti-

    va de cineasta, a mesma pergunta que Chomsky: como

    combater o imperialismo americano, como solidarizar-

    se com o povo vietnamita em luta? Ao comeo deste

    filme podemos ver o cineasta manejando uma grande

    cmera de estdio como se fosse um canho. As ima-

    gens que acompanham sua fala so uma sucesso algo

    cubista de planos breves que aludem, entre outras

    coisas, guerra do Vietn e greve dos operrios da

    Rodiaceta (uma greve com ocupao de fbricas que

    prepara, de alguma maneira, os movimentos que es-

    touram em maio de 1968). Para Godard evidente que

    o nico terreno onde ele, enquanto cineasta, pode se

    enfrentar com o imperialismo americano, o do cinema

    e com as armas que a prtica cinematogrfica lhe ofere-

    ce. interessante ver que a questo da solidariedade

    com o povo vietnamita como tambn com os operrios

    franceses em greve leva o cineasta a problematizar a

    relao ou mais exatamente a falta de relao entre

    eu (o intelectual, o cineasta) e eles (os operrios):

    Eu, por exemplo, cineasta que trabalha na Frana, estou

  • 16Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    completamente separado duma grande parte da popula-

    o, em particular da classe operria, mas minha luta, que

    a luta contra [] o imperialismo econmico e estti-

    co do cinema americano que corrompe o cinema mundial

    finalmente uma luta mais ou menos semelhante [ dos

    operrios][...]. O pblico operrio no vai ver meus filmes,

    [mas] entre mim e ele h mais ou menos a mesma separa-

    o que entre mim e o Vietn ou entre ele e o Vietn. No

    nos interessamos uns aos outros seno por um sentimento

    digamos de generosidade, mas que no corresponde muito

    realidade. No nos conhecemos porque estamos, eu, em

    uma espcie de priso cultural, e o operrio da Rodiaceta

    em uma espcie de priso econmica .1

    1 Moi par exemple, cinaste qui tourne en France, je suis par exemple compltement coup dune grande partie de la po-pulation et la classe ouvrire en particulier, et ma lutte moi qui est la lutte contre le cinma amricain contre limpria-lisme conomique et esthtique du cinma amricain qui a gangren maintenant le cinma mondial est finalement une lutte peu prs semblable. Or nous ne parlons pas le public ouvrier ne va pas voir mes films, mais entre moi et lui, disons quil y a la mme coupure quentre moi et le Vietnam ou bien lui et le Vietnam. Nous nous intressons moins lun lautre autrement que par un sentiment - disons - de gnrosit, mais qui correspond pas vraiment la ralit. Nous nous connais-sons pas parce que nous sommes dans une moi, une sorte

  • Mar-Set/ 2014

    17

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    Exatamente dez anos antes, em 1957, no seu dis-

    curso de recepo do prmio Nobel, Albert Camus afir-

    mou que o escritor, hoje em dia, no pode se colocar au

    servio de aqueles que fazem a histria: est ao servio

    de aqueles que a sofrem2. Nessa frmula de Camus,

    aqueles que fazem a histria so aqueles que dispem

    do poder necessrio para orientar a dinmica histrica

    no sentido que melhor corresponde a seus interesses

    pessoais, de grupo ou de classe; aqueles que a sofrem

    so os demais: o resto da humanidade, aqueles que no

    tm a capacidade de infletir o curso da histria. Camus,

    convm sublinh-lo, no apresenta o compromisso do

    escritor com as vtimas da histria como uma opo

    entre outras, mas como a nica possvel. Nem sempre,

    na verdade, os escritores, os artistas ou os filsofos se

    de prison culturelle et louvrier de la Rodiaceta dans une sorte de prison une prison conomique (Jean-Luc Godard, Ca-mera Eye, 1967; transcrio e traduo: M. Lienhard).

    2 Par dfinition, il ne peut se mettre aujourdhui au service de ceux qui font lhistoire : il est au service de ceux qui la su-bissent, Albert Camus speech at the Nobel Banquet at the City Hall in Stockholm, December 10, 1957 [http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1957/camus-speech-f.html, 10/03/2013].

  • 18Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    consideraram advogados das vtimas da histria. Na ati-

    tude de Camus talvez haja algo do compromisso com

    os pobres que certas ordens catlicas, em particular os

    franciscanos radicais da Idade Mdia, defendiam quer

    por escrito quer na sua prtica, mas finalmente, o es-

    critor evocado por ele representa sobretudo o intelec-

    tual engajado moderno.

    Nos mesmos anos (os anos cinqenta do scu-

    lo XX), no contexto da guerra fria e da descoloniza-

    o, um outro intelectual francs, Jean-Paul Sartre,

    tambm afirmava a necessidade do engajamento po-

    ltico dos intelectuais: um compromisso que para ele,

    no contexto da poca, devia passar pela solidariedade

    com os partidos comunistas. Quando Camus fez suas

    declaraes em Estocolmo, j haviam passado vrios

    anos desde sua ruptura com Sartre. Na verdade, quem

    decretou essa ruptura foi Sartre ao excomunicar

    essa a palavra o autor de Lhomme rvolt (O homem

    revoltado). Nesse livro de 1951, Camus tinha apre-

    sentado uma crtica radical do estalinismo e de outras

    formas autoritrias de politica revolucionria, mas

    sem se afastar da ideia de que o intelectual tinha um

    compromisso com as vtimas da histria. Com todas

  • Mar-Set/ 2014

    19

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    as vtimas, no s com aquelas consideradas tais pelos

    partidos comunistas.

    Sartre, ao contrrio, representava naquela altura

    a figura do intelectual orgnico do proletariado, aque-

    le que sabe, melhor do que os proletrios realmente

    existentes, o que o proletariado e seu papel histrico.

    Como j o disseram Marx e Engels em 1845: No inte-

    ressa saber o que este ou aquele proletrio ou mesmo o

    proletariado inteiro imagina ser o objetivo. O que conta

    saber o que [o proletariado] e o que estar histrica-

    mente obrigado a fazer em conformidade com seu ser3.

    O assim chamado intelectual orgnico do proletaria-

    do tende, embora no tenha nenhuma relao prtica

    ou existencial com os proletrios, a se colocar no lugar

    do proletariado, a se considerar seu porta-voz. Um bom

    exemplo disso o prprio Sartre quando, no seu en-

    saio Orphe noir (Orfeu negro, 1948), introduo a uma

    3 Es handelt sich nicht darum, was dieser oder jener Proletarier oder selbst das ganze Proletariat als Ziel sich einstweilen vorstellt. Es handelt sich darum, was es ist und was es diesem Sein gem geschichtlich zu tun gezwungen sein wird (marx-EngEls, Die heilige Familie, IV. Kapitel, Kritische Randglosse Nr. 2, p. 38).

  • 20Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    antologia de poesia negra, constri desenvolvendo o

    conceito marxista da ideologia proletria a ideologia

    revolucionria negra: [] havendo sofrido mais do

    que todos os outros a explorao capitalista, [o negro]

    adquiriu, mais do que todos os outros, o sentido da re-

    beldia e o amor da liberdade. E sendo o mais oprimido,

    o que persegue quando trabalha na sua emancipao

    a libertao de todos4. Frmula sem dvida brilhante,

    mas construda fora de qualquer interao com os ne-

    gros realmente existentes. Indcio disso j o uso (abu-

    sivo) do singular o negro que Sartre utiliza para

    falar seja dos africanos negros seja dos afrodescendentes

    nas Amricas.

    Intelectuais e subalternos

    O intelectual orgnico do proletariado no precisa de

    ouvir a palavra dos proletrios porque j sabe o que

    4 [] parce quil a, plus que tous les autres, souffert de lex-ploitation capitaliste, il a acquis, plus que tous les autres, le sens de la rvolte et lamour de la libert. Et parce quil est le plus opprim, cest la libration de tous quil poursuit n-cessairement, lorsquil travaille sa propre dlivrance (sartrE 1969 [1948]: XXXIX).

  • Mar-Set/ 2014

    21

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    eles, enquanto coletivo, tm de pensar. Diferente o

    caso dos intelectuais engajados independentes; eles,

    ou pelo menos alguns deles, tendem a ter um ouvido

    mais aberto para a palavra real, concreta, histrica, dos

    subalternos termo de origem gramsciana que usarei do-

    ravante para falar de todos aqueles que no tm, no seio

    da sociedade capitalista, poder de deciso. Mas e aqui

    citarei a famosa pergunta de Gayatri Spivak can the

    subaltern speak? Pode ou sabe falar o subalterno/a

    subalterna? (spivak 1988). O que Spivak, intelectual

    novaiorquina de origem indiana, denuncia no ensaio

    aludido a violncia epistmica exercida pelo Ocidente

    contra o resto do mundo: o remotamente orquestra-

    do, extenso e heterogneo projeto de constituir o su-

    jeito colonial enquanto Outro. Este projeto, como ela

    precisa, tambm a obliterao assimtrica do rasto

    desse Outro em sua precria subjetividade5. O projeto

    de Spivak, ao contrrio, visa oferecer uma anlise al-

    5 The clearest available example of such epistemic violence is the remotely orchestrated, far-flung, and heterogeneous pro-ject to constitute the colonial subject as Other. This project is also the asymetrical obliteration of the trace of that Other in its precarious Subject-ivity (spivak 1988: 280-281).

  • 22Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    ternativa das relaes entre os discursos do Ocidente e a

    possibilidade de falar da mulher subalterna ou por ela6.

    Na argumentao de Spivak, a mulher no ocidental

    como que o equivalente do negro de Sartre: a catego-

    ria tnico-social mais discriminada de todas aqueles que

    existem.

    Para ilustrar o mecanismo da violncia epistmica

    nos serve uma pequena histria do comeo da expanso

    europia. H mais de 500 anos, no seu dirio de a bordo

    publicado pelo padre dominicano Bartolom de las Ca-

    sas, Cristvo Colombo escreveu que ia a levar alguns

    ndios para a Espanha para que deprendan fablar

    (Coln 1982: 31): para eles aprenderem a falar. Ser

    que no sabiam falar? O que no sabiam, claro, era fa-

    lar (n)a lngua dos intrusos europeus, e o que Colombo,

    enquanto representante do mundo ocidental, esperava

    deles, era no s que aprendessem a lngua do invasor,

    como tambm que tomassem conscincia de seu novo

    estatuto de colonizados. No portanto que o outro, o

    no ocidental, no saiba falar. O problema est em que

    6 I will offer an alternative analysis oft he relations between the discourses of the West and the possibility of speaking of (or for) the subaltern woman (spivak 1988: 271).

  • Mar-Set/ 2014

    23

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    no pode falar em um contexto que proibe, ignora ou

    tergiversa a palavra dele.

    Os ndios do almirante genovs e as mulheres

    indianas de Spivak no so, obviamente, os nicos su-

    jeitos que no podem falar. Na verdade, o fato de os

    subalternos no terem acesso palavra pblica mais

    geral. Independentemente das formas concretas de sua

    organizao, todas as sociedades atuais se caracterizam

    como observou Balandier pela presena atuante

    de um sistema de desigualdade e de dominao (BalandiEr

    1985: 147). esse sistema que proibe ou pelo menos

    dificulta - que a palavra dos subalternos, no tergiver-

    sada nem mediatizada, obtenha visibilidade e peso em

    termos ideolgicos e polticos. Sem dvida h, entre

    o Norte e o Sul, nuances importantes quanto ao

    grau de discriminao - ou de ostracismo - da palavra

    subalterna. Nos EUA e na Europa atuais, um sistema

    democrtico relativamente bem desenvolvido parece

    garantir a presena pblica dessa palavra. Na prtica,

    porm, ela monopolizada por aqueles que representam

    - ou pretendem representar - os setores ou grupos su-

    balternos. No falam os subalternos: fala-se no nome

    deles. Maiores ainda so, sem dvida, os obstculos que

  • 24Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    encontra a palavra subalterna ou marginal no espao

    pblico de uma regio como a Amrica Latina, carac-

    terizada por uma desigualdade extrema e, sobretudo

    nas reas com forte populao indgena ou negra, por

    relaes sociais ainda marcadas pela herana colonial/

    escravista.

    H tempo, na verdade, que os intelectuais ou al-

    guns deles comearam, por motivos muito diversos, a

    se interessarem nos discursos de certas categorias de su-

    balternos e/ou colonizados7. o caso, nomeadamente,

    dos etnlogos e seus precursores mais ou menos diretos.

    Tanto na primeira fase da expanso europia, nos scu-

    los XV-XVII, quanto nas empresas coloniais modernas

    7 No conhecia, no momento de redigir este trabalho, a obra clssica de Jacques Rancire, Le philosophe et ses pau-vres (Paris, Fayard, 1983). Nessa obra se discute a estranha pretenso dos filsofos (desde Plato a Marx) de fazer-se passar por intrpretes ou porta-vozes dos pobres. Embora meu enfoque seja sem dvida semelhante ao de Rancire, o propsito que anima meu trabalho muito mais limitado e mais especfico. Se o erudito autor de Le philosophe faz, de alguma maneira, o processo da filosofia ocidental, s se trata, no presente trabalho, de discutir de que maneira alguns his-toriadores e antroplogos modernos (especialmente latino-a-mericanos) manejam e amide manipulam o discurso dos subalternos.

  • Mar-Set/ 2014

    25

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    dos sculos XIX e XX, eles eclesisticos primeiro e

    logo antroplogos profissionais assumiam a tarefa de

    estudar o funcionamento social e poltico das sociedades

    autctones para facilitar, desta maneira, a implantao

    de relaes de tipo colonial. Objeto da pesquisa eram,

    principalmente, a vida e os discursos tradicionais das

    comunidades colonizadas; o que menos interessava co-

    nhecer no contexto colonial eram os possveis discursos

    crticos dos colonizados sobre a colonizao. verdade

    que por vezes, como aconteceu na conquista espanhola

    de boa parte do continente americano, alguns eclesisti-

    cos, levando a srio o sempre proclamado compromisso

    da Igreja com os pobres, procuraram se fazer advogados

    dos colonizados. Isso no significa, porm, que eles se

    fizessem porta-vozes do discurso dos colonizados, de um

    discurso que consideravam diablico. Mas no pre-

    tendo fazer aqui a histria longa e complexa dos

    auxiliares intelectuais da expanso europia. Voltando

    ao intelectual engajado moderno e encarando o espao

    das Amricas, procurarei discutir a maneira como al-

    guns representantes dessa figura, particularmente entre

    os antroplogos e os historiadores, se enfrentaram (ou se

    enfrentam) com o(s) discurso(s) subalterno(s).

  • 26Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    Histrias de vida

    Quero comear com um caso concreto que permite

    abordar vrios dos problemas que irei discutindo mais

    adiante. Em 1922, Manuel Gamio, antroplogo me-

    xicano, publicou seu livro La poblacin del valle de Teo-

    tihuacn. Esse livro o trabalho fundador da antropo-

    logia mexicana moderna e um dos primeiros deste tipo

    em toda a Amrica Latina. um livro no qual Gamio,

    antroplogo formado na escola culturalista de Franz

    Boas, descreve sistematicamente no alguma comuni-

    dade extica de alguma periferia do mundo, mas uma

    populao que vive no Mxico central, a poucos quil-

    metros da capital federal. Monografia etnolgica, esse

    estudo oferece tambm a histria poltica e social dos

    teotihuacanos desde a poca pre-hispnica at a atuali-

    dade daquele momento. Alm de descritiva, essa obra

    contm numerosas apreciaes crticas da poltica do

    estado mexicano, em particular o fato de ela, at um

    passado recente, no ter considerado os antecedentes

    histricos da populao indgena-mestia, que forma-

    va a abrumadora maioria numrica; suas idiosincrasias;

    suas caractersticas; seus ideais, tendncias, necessidades

  • Mar-Set/ 2014

    27

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    e aspiraes []. No surpreende, acrescenta o autor,

    que os governos do sculo XIX fossem repudiados pela

    maioria dos habitantes8. Dessa maneira, Gamio, inte-

    lectual engajado sua maneira, proclama sua solidarie-

    dade com um tipo de populao que, naquela altura,

    ainda constituia a maior parte dos subalternos mexica-

    nos. Mas Gamio no se limitou desenvolver pesquisas

    antropolgicas; ele procurou tambm, acompanhando a

    poltica nacional-indigenista do governo supostamente

    revolucionrio de sua poca, ressuscitar a ritualidade pre

    -hispnica. Nesse sentido, impulsou atividades teatrais

    populares e projetos cinematogrficos inspirados em

    um suposto teatro pr-hispnico (rEyEs 1991: 11-32);

    iniciativas que retomavam, de alguma maneira, as dos

    eclesisticos do sculo XVI que criaram a tradio das

    chamadas danas da conquista. As imagens que sobrevi-

    veram desses espetculos teatrais e projetos cinemato-

    grficos (ibid.) sugerem que Gamio, para recriar a ri-

    tualidade pr-hispnica, se inspirava nos filmes italianos

    sobre a Roma antiga. Infelizmente no conhecemos a

    8 Citado a partir de http://americaindigena.com/gamio_teo-tihuacan2.htm (10/03/2013).

  • 28Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    recepo que tiveram, na populao, esses projetos, mas

    parece claro que Gamio se considerava o intrprete or-

    gnico da populao indgena-mestia que constituia

    seu objeto de pesquisa.

    Quase uma dcada depois, em 1930, o mesmo Gamio

    publica Mexican Immigration to the United States. A Study

    of Human Migration and Adjustement (Imigrao mexi-

    cana aos EUA. Um estudo sobre migrao e adaptao

    humana). Os subalternos que ele estudou para produ-

    zir esse livro no so uma populao rural-camponesa

    tradicional, mas a populao mexicana na cidade de

    Chicago: uma grande novidade na antropologia lati-

    no-americana. Um ano mais tarde, em 1931, sai mais

    um livro de Gamio, publicado sob a direo editorial

    de Robert Redfield, The Life Story of the Mexican Immi-

    grant: Autobiographic Documents collected by Manuel Gamio

    (A histria da vida do imigrante mexicano. Documen-

    tos autobiogrficos recolhidos por Manuel Gamio). A

    novidade deste novo livro que rene e apresenta, em

    ingls, vrias dezenas de histrias de vida9.

    9 No Mxico, as entrevistas originais s foram publicadas em

  • Mar-Set/ 2014

    29

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    Todo esse trabalho fruto do contato que Gamio

    teve, em 1926 ou j antes, com alguns antroplogos

    norteamericanos. Nesse ano, ele recebeu uma bolsa do

    Committee of Scientific Aspects of Human Migration.

    Poucos anos antes, o socilogo Ernest W. Burgess e o

    antroplogo Edward Sapir tinham comeado um amplo

    estudo sobre a cidade de Chicago e os universos subje-

    tivos dos habitantes dela. Para faz-lo, se apoiavam nos

    relatos orais de seus interlocutores. Um outro membro

    da escola de Chicago, Paul Taylor, estudou en com-

    paa de su esposa Dorothea Lange, fotgrafa famosa

    os migrantes mexicanos na California (langE 1969).

    neste contexto que se vo formando dois dos futuros

    colaboradores de Gamio: Elena Landzuri y Robert Re-

    dfield. J em 1923, Landzuri, no Mxico, comunicou

    Gamio com Redfield, e foi por recomendao de Gamio

    que este, um dos representantes da teoria da acultura-

    o, realizaria em 1930 - seu famoso estudo sobre os

    processos de aculturao em Tepoztln. Um outro co-

    laborador ser o salvadorenho Luis Felipe Recinos, um

    2002: El inmigrante mexicano: la historia de su vida. Entrevistas completas, 1926-1927.

  • 30Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    jornalista aprendiz. Segundo um Guia que Gamio es-

    creveu para seus auxiliares, eles, em Chicago, deviam

    procurar pessoas, mestios ou ndios, pertencentes aos

    grupos mais representativos da imigrao mexicana,

    para interrog-los acerca de sua cultura material, suas

    prticas culturais, os motivos que tiveram para emigrar,

    os possveis projetos de retorno e a percepo que eles

    tinham de si e de sua relao com o Mxico. Encontra-

    mos aqui, por um lado, as perguntas clssicas da antro-

    pologia cultural e outras inspiradas na situao dos in-

    formantes, mas tambm uma pergunta nova, lgica em

    uma situao de exlio, a da identidade. Para garantir

    a espontaneidade das entrevistas, Gamio recomendava

    a gravao feita s escondidas, uma prtica que os an-

    troplogos e os hisoriadores orais, hoje, recusam.

    Os auxiliares de Gamio no eram simples instru-

    mentos ao servio dele, mas pessoas com convices

    ou com interesses prprios. Assim, Elena Landzuri, in-

    telectual engajada, no compartilha a teleologia nacio-

    nalista de Gamio: [] no creo que sea factible tratar

    de guiar a nuestra nacin hacia un final ya preconce-

    bido (Carta a Parks, 16 de abril de 1922, em gamio

    2002: 44). Mais ainda, ela no acredita no sucesso de

  • Mar-Set/ 2014

    31

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    um projeto comum entre ns e eles (os ndios):

    Nosotros nos concentramos en la democracia y el voto;

    todas nuestras ideas estn conformadas de manera dife-

    rente a las de ellos (ibid.). Robert Redfield, por sua vez,

    mostra, enquanto adepto da modernidade capitalista,

    uma clara preferncia pelos imigrantes mexicanos poli-

    ticamente moderados, ignorando os muitos que como

    escreve Devra Weber (ibid.: 54) ouviam avidamente

    os oradores socialistas e anarquistas na praa no centro

    de Los Angeles. Recinos, simpatizante da revoluo

    bolchevique, no parece ter aproveitado as entrevistas

    para indoctrinar os entrevistados, mas sim quando

    eram mulheres para seduz-las evidente que no

    s as perguntas previamente formuladas por Gamio

    como tambm as convices ou as preferncias de seus

    colaboradores predeterminavam em grande medida a

    orientao e o contedo das respostas de seus interlo-

    cutores. Ainda assim, Gamio, pelo fato de considerar a

    dimenso histrica do fenmeno estudado e de publi-

    car os testemunhos individuais dos imigrantes, pode ser

    considerado um dos pioneiros da historia ora.

    Nos EUA, a possibilidade de ler a histria de

    vida de um subalterno ou ex-subalterno era, naquela

  • 32Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    altura, muito menos excepcional do que na Amrica La-

    tina. J no sculo XIX, no contexto do movimento pela

    abolio da escravatura, foram numerosos os negros que

    conseguiram publicar, enquanto autores, sua biografia.

    No sculo XX, pouco tempo depois da pesquisa que

    Gamio realizou em Chicago, mas j ao comeo da Great

    Depression, em 1929, duas Universidades do Sul dos

    EUA, a Southern University de Louisiana e a Fisk Uni-

    versity de Tennessee, iniciaram, sob a coordinao de

    John B. Cade, um projeto destinado a recolher teste-

    munhos orais de ex-escravos, um setor subalterno par-

    ticularmente discriminado. O ttulo de um dos traba-

    lhos de Cade (1935), Out of the mouths of ex-slaves

    (Da boca de ex-escravos), j evidencia que o objetivo

    desse projeto era dar a palavra aos prprios ex-escra-

    vos, de lhes oferecer a oportunidade de evocar, desde

    sua prpria perspectiva e na sua prpria linguagem, os

    ltimos anos do regime escravista e e experincia, geral-

    mente frustrante, das primeiras dcadas de vida livre.

    Poucos anos depois, o Federal Writers Project da WPA

    (Work Projects Administration), um projeto anlogo ao

    anterior mas patrocinado pelo governo estadounidense

    (Roosevelt) desembocou, entre 1936 y 1938, na colheita

  • Mar-Set/ 2014

    33

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    de mais de 2000 testemunhos de ex-cativos norteame-

    ricanos. Alm de seu interesse histrico-antropolgico,

    esse projeto permitiu, no contexto da Grande Depres-

    so, dar trabalho a um certo nmero de jovens negros

    de boa formao mas com poucas ou nulas perspectivas

    laborais. Na introduo a uma grande coleo de his-

    trias de vida de ex-cativos norteamericanos, o editor,

    George P. Rawick (1972: XIX), explica o inters que

    oferece o estudo de tais materiais:

    O valor de tais narrativas e entrevistas no reside, geral-

    mente, na descrio de grandes acontecimentos histricos

    []. Esses relatos revelam, antes, a vida quotidiana da

    gente, seus costumes, seus valores, suas ideias, esperanas,

    aspiraes e temores. Podemos derivar deles uma imagem

    da sociedade escravista, de sua estructura social e da inte-

    rao de negros e brancos. Podemos descobrir neles o rosto

    da comunidade de escravos, essa rede de sistemas de co-

    municao que permitiu s pessoas seguir vivendo. Atravs

    deles podemos, em uma palavra, estudar o desenvolvimen-

    to da comunidade10.

    10 The value of such narratives and interviews does not gene-

  • 34Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    Se levarmos a srio as observaes de Rawick, a colheita

    de testemunhos orais no s permite uma aproximao

    histria, vida e ao universo intelectual e afectivo

    de uma comunidade, como tambin favorece, com base

    na experincia narrativizada da prpria comunidade,

    uma viso totalizadora da sociedade. O close-up (que im-

    plica o fato de trabalhar com testemunhos individuais)

    no exclui, portanto, a macrohistria, mas obriga a

    desenvolv-la desde a periferia ou a margem, desde a

    perspectiva da comunidade.

    Todos esses trabalhos, baseados no discurso de um

    setor subalterno, visavam fazer uma histria alterna-

    tiva. Embora dessem, de alguma maneira, a palavra a

    membros de um setor particularmente ignorado e dis-

    criminado, os editores e estudiosos desses testemunhos

    rally lie in their descriptions of great historical events []. Instead, they reveal the day-to-day life of people, their cus-toms, their values, their ideas, hopes, aspirations, and fears. We can derive from them a picture of slave society and social structure and of the interaction between black and white. We can see in them the outlines of the slave community, that net-work of communicaction systems whereby people were enab-led to live. And we can study through them the development of the community (rawiCk (1972: XIX).

  • Mar-Set/ 2014

    35

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    nunca procuraram us-los para falar no nome deles nem

    para afirmar, servindo-se deles como de uma mscara,

    determinadas posies no xadrez poltico do momento.

    O discurso subalterno, para esses historiadores, no era

    seno uma fonte (entre outras).

    O subalterno citado

    Nos anos da Tricontinental (para nomear de alguma ma-

    neira o perodo das lutas revolucionrias que acompa-

    nharam ou seguiram os movimentos de descolonizao

    africanos e asiticos), muitos intelectuais latino-america-

    nos, estudiosos e artistas, procuram de diversas maneiras

    vincularse aos movimentos populares ou revolucionrios.

    Alm da produo de estudos mais ou menos marxistas

    da sociedade, aparecem trabalhos cientficos ou arts-

    ticos nos quais, de uma maneira ou outra, se pretende

    dar um espao palavra daqueles que, at ento, no fi-

    zeram, mas para usar a expresso de Camus sofreram

    a histria. Observam-se tambm esforos individuais

    e coletivos tendentes a construir e legitimar, a partir de

    testemunhos populares, uma perspectiva poltica desen-

    volvida no seio dos grupos de intelectuais progressistas.

  • 36Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    Neste caso, a palavra do subalterno, do trabalhador, do

    pobre, do marginal, no serve ou no prioritariamente

    de fonte para a histria ou a antropologia, mas para le-

    gitimar uma mensagem poltica construda fora do espa-

    o subalterno. Tenemos que ser la conciencia de nuestra

    cultura, el alma y la voz de los hombres sin historia,

    dir peremptoriamente em 1980 um intelectual cubano,

    Miguel Barnet (1998: 55). A experincia dos subalter-

    nos ou a experincia que se atribui aos subalternos

    se transforma em argumento a favor de um projeto de

    transformao social elaborado nos crculos intelectuais.

    No sculo XVIII, os filsofos ilustrados inventaram,

    para combater ideologicamente um poder monrquico

    em decadncia, olhares e discursos exticos. Diderot, por

    exemplo, no seu Supplment au voyage de Bougainville, d a

    palavra a Orou, sbio nativo de Tahiti, para desmitificar,

    atravs da fala dele, o sistema monrquico francs. Neste

    caso, a manipulao da palavra do outro to evidente

    que no h verdadeira manipulao: todos os leitores da

    poca sabiam que se tratava de uma fico. Mais com-

    plexo o caso dos textos pelos quais se pretende revelar

    e difundir o discurso de subalternos realmente existentes

    e ainda vivos. Em princpio, o editor, sobretudo quando

  • Mar-Set/ 2014

    37

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    se trata de um historiador ou de um antroplogo, no

    inventa nem modifica a palavra pronunciada por seus in-

    terlocutores subalternos, mas no deixa de manipul-la

    de diferentes maneiras. O problema de base se encontra

    formulado lucidamente num ensaio no qual Dipesh Cha-

    krabarty (1992), historiador indiano, encara a questo da

    histria dos subalternos indianos uma histria para a

    qual no existem fontes escritas:

    [] o sujeito anti-histrico e antimoderno no pode falar

    enquanto teoria [= sujeito de um discurso terico] no

    mbito dos procedimentos de conhecimento implementa-

    dos pela Universidade, mesmo quando esses procedimen-

    tos reconhecem e documentam sua existncia. Semelhante

    ao subalterno de Spivak (ou ao campons do antroplogo,

    que no pode existir seno sob a forma de uma citao no

    meio de um discurso mas amplo, o do antroplogo), esse su-

    jeito, objeto de um discurso que se faz em seu nome ou sobre

    ele, s existe num relato de transio, um relato que sempre

    acaba privilegiando o moderno (quer dizer Europa).11

    11 The antihistorical, antimodern subject, therefore, cannot speak itself as theory within the knowledge procedures of the

  • 38Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    Chakrabarty toca aqui um ponto decisivo para

    nossa argumento. Na sua linguagem, o termo de su-

    jeito anti-histrico ou anti-moderno remete para um

    sujeito coletivo, indiano no caso, que no se reconhece

    na narrativa ocidental da histria, uma narrativa basea-

    da na existncia ou no projeto de um estado nacional

    maneira da Europa (= Ocidente). No mbito da cin-

    cia histrica universitria, esse sujeito no pode falar,

    no reconhecido enquanto portador de um discurso

    terico ou de conhecimento. Nesse contexto, ele s tem

    uma quoted existence: s existe na medida em que sua fala

    citada, situada e comentada pelo discurso do antrop-

    logo ou do historiador. Alm disso, ele o subalterno

    no conta por aquilo que ou pelo que sabe, mas s

    enquanto sujeito envolvido num processo de transio

    modernidade (ocidental). o que j aconteceu, h mais

    university even when these knowledge procedures acknowled-ge and document its existence. Much like Spivaks subaltern (or the anthropologists peasant who can only have a quoted existence in a larger statement that belongs to the anthropo-logist alone), this subject can only be spoken for and spoken of by the transition narrative that will always ultimately pri-vilege the modern (i.e., Europe) (ChakraBarty 1992: 52).

  • Mar-Set/ 2014

    39

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    de 500 anos, com os ndios que tiveram a duvidosa

    sorte de ser descobertos por Cristvo Colombo.

    Embora que por muitos motivos, a histria da

    Amrica Latina no se possa equiparar com a da ndia,

    as aporias epistemolgicas com que na Amrica Latina se

    enfrentam os antroplogos e os outros cientficos sociais

    dedicados ao estudo dos setores subalternos no so quali-

    tativamente diferentes das que mencionam Chakrabarty

    ou Spivak para a ndia. Tambm na Amrica Latina, os

    procedimentos de conhecimento implementadas pela

    Universidade e a teleologia nacionalista exercem uma

    violncia epistmica que proibe que os subalternos (ou

    certas categorias de subalternos) se manifestem enquanto

    sujeitos ou portadores de um discurso terico: de uma

    viso do mundo prpria. Tambm na Amrica Latina,

    portanto, a existncia dos subalternos tende, nos traba-

    lhos dos intelectuais, a no ser seno uma quoted existence.

    Em 1966, a Academia de Ciencias de Cuba publica

    Biografa de un cimarrn (Biografia de um escravo

    fugitivo), obra do jovem antroplogo cubano Miguel

    Barnet. Apesar de seu ttulo, o texto se apresenta como

    uma autobiografia, uma narrativa em primeira pessoa, a

    de um ex-escravo: Esteban Montejo. Quando graas

  • 40Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    a uma nota de imprensa Montejo foi descoberto por

    Barnet, j tinha mas de cem anos e morava em uma

    casa para ancios. Ao comeo, o antroplogo tinha em

    mente obter dele um mximo de informaes sobre as

    religies cubanas de origem africana, mas, com o tempo,

    acabou se interessando mais na viso que o ex-escravo

    tinha de uma poca mal conhecida da histria cubana,

    a que comea nos anos antes da abolio da escravatura

    (1886). A tcnica usada para recolher a informao foi

    a da entrevista diretiva, mas, como admite o autor,

    s parte das sesses foram gravadas. Embora ele precise

    que no intencionamos criar um documento literrio,

    um romance, algumas expresses no prlogo, por

    exemplo tivemos de parafrasear muito ou quisemos

    descrever os recursos empregados pelo informante para

    sobreviver [] no mato (BarnEt 1968: 11-12), levam

    a pensar que o texto publicado, mas do que reproduzir

    a fala de Montejo, a recria (ibid.: 12).

    Grande sucesso pelo fato de fazer ouvir por pri-

    meira vez a voz de um ex-escravo latino-americano, o

    livro de Barnet, a raiz de sua ambiguidade congnita (o

    leitor ignora em que medida o que l a transcrio ou a

    recriao da fala de Montejo), suscitou tambm debates

  • Mar-Set/ 2014

    41

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    e polmicas. Para responder a seus crticos, o autor, num

    ensaio escrito alguns anos depois da primeira edio da

    Biografia, classificou sua narrativa em um gnero dis-

    cursivo inventado por ele ad hoc: o romance-testemu-

    nho (BarnEt 1998: 17 ss.). Distanciando-se de suas

    afirmaes do prlogo da Biografia (no intencionamos

    criar um documento literrio) Barnet se reivindica ago-

    ra artista. E o artista explica tem de ser visionrio

    [], tem de contribuir ao conhecimento da realidade,

    imprimir a essa um sentido histrico e entregar ao

    leitor un mito que lhe seja de proveito (ibid.: 22-23).

    um programa talvez legtimo para um autor de ro-

    mance histrico, mas se torna problemtico quando

    aplicado a posteriori a um texto publicado originalmente

    como etnolgico. A Biografia se retomarmos a fr-

    mula de Chakrabarty reconhece e documenta a

    existncia do sujeito subalterno, no caso um ex-escravo

    velho, mas esse sujeito, objeto de um discurso que se

    faz em seu nome ou sobre ele, s existe num relato de

    transio. Na verdade, o que Barnet fez na Biografia

    foi apresentar, atravs da fala (recriada) de um ex-es-

    cravo, sua prpria viso da histria. No caso, uma vi-

    so teleolgica, nacionalista-revolucionria. Ponto final

  • 42Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    dessa histria a Revoluo (castrista), a consolidao

    de um estado nacional e a de uma cultura igualmente

    nacional. No prlogo a seu livro, Barnet, situando

    sua personagem, diz que su tradicin de revoluciona-

    rio, cimarrn primero, luego libertador, miembro del

    Partido Socialista Popular ms tarde, se vivifica en nues-

    tros das en su identificacin con la Revolucin Cubana

    (BarnEt 1968: 14). como dizer que Montejo, desde

    seu nascimento, estava predestinado a se transformar,

    finalmente, em militante de um movimento moder-

    no, no caso a revoluo cubana de 1959. A aventura

    dele ou da fala dele no acabou com a edio cuba-

    na de seu testemunho. Nos EUA, o livro de Barnet foi

    publicado como Autobiography of a runaway-slave (Auto-

    biografia de um escravo fugitivo). Da quoted existence no

    livro original, Montejo passou, portanto, a autor de um

    livro que nunca escreveu nem viu impreso. Parece mes-

    mo verdade que o subalterno no pode falar por si: os

    donos do discurso histrico ou poltico se encarregam de

    sequestrar e manipular a fala dele.

    interessante ver que no ensaio de 1970, Barnet

    no se limita a defender a legitimidade de seu trabalho,

    como tambm ataca um colega americano, Oscar Lewis,

  • Mar-Set/ 2014

    43

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    cujo mtodo de trabalho, em termos antropolgicos,

    talvez fosse mais profissional do que o seu. Pelo menos

    dois dos livros de Lewis pertencem au gnero criado por

    ele da autobiografia mltipla: The children of Snchez/

    Los hijos de Snchez (1961/1964), trabalho no qual falam os

    membros de uma famlia que mora na periferia da Cidade

    do Mxico, e La vida (1966/1987), livro que d a palavra

    a vrias geraes de porto-riquenhos em Nova Iorque.

    Uma das crticas que Barnet dirige a Lewis que ele, em

    Los hijos de Snchez (1964), faz o estudo de um estrato

    social e no de um contexto nacional (BarnEt 1998:

    38). Crtica inconsistente (e no caso tambm injusta) que

    confirma que o antroplogo cubano subordina tudo a

    uma teleologia nacional: para ele, o estado nacional o

    ponto de partida e de chegada obrigatrio para qualquer

    pesquisa, independentemente do tipo de relao que o

    grupo social estudado mantenha com o estado-nao.

    Sempre no mesmo ensaio, Barnet enfatiza a falta

    de literariedade dos trabalhos de Lewis, antroplogo cujo

    mtodo, segundo ele, o seguinte: escrevo o que voc

    me diz e como o diz12. Para ele, a imaginao literria

    12 Dois anos antes, porm, em 1968, Barnet, em uma resenha

  • 44Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    tem de acompanhar a imaginao sociolgica (BarnEt

    1998: 27). Lewis, cuja trajetria cientfica comeou antes

    da de Barnet, nunca pretendeu escrever romances-teste-

    munho. Isso no quer dizer que La vida ou Los hijos de

    Snchez sejam simples transcries de entrevistas: como

    qualquer trabalho que pretenda dar a palavra aos su-

    balternos, estes livros so produto de todo um complexo

    processo de seleo, montagem, edio e difuso. E como

    Barnet, Lewis escolheu seus interlocutores em funo do

    discurso que pretendia produzir, no caso a defesa de sua

    antropologia da pobreza13. Para Lewis, os pobres e,

    particularmente, os habitantes desse espao transnacio-

    nal que Mike Davis (2006) chamou de Planet of slums,

    tm, independemente de sua origem e seu lugar de resi-

    dncia, o mesmo tipo de cultura: uma cultura condicio-

    nada, fundamentalmente, pela marginalidade.

    sobre Lewis intitulada Testimonio falso o realidad? (Barnet 1998: 58-69), reconhece repetidamente no s as qualidades etnolgicas como tambm o valor literrio da obra do antro-plogo americano, chegando a afirmar que la literatura lati-noamericana se enriquece con este libro (ibid.: 69).

    13 Uma formulao sistemtica desta teoria se encontra em La vida, Mexico, Grijalbo, 1983, XLIV-LVII.

  • Mar-Set/ 2014

    45

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    Nos anos de auge dos movimentos revolucionrios

    na Amrica Latina, os testemunhos populares que vo

    sando, em alguns casos graas ao prmio Testimonio

    da Casa de las Amricas (Havana), se baseiam amide

    nos depoimentos de lderes populares. No Peru, Huill-

    ca: habla un campesino peruano, publicado por Hugo Nei-

    ra Samnez (prmio Casa de las Amricas, 1974)14; na

    Bolvia, Si me permiten hablar. Testimonio de Domitila, una

    mujer de las minas bolivianas, Moema Viezzer (Siglo XXI,

    1980 [1977]); no Guatemala, Me llamo Rigoberta Mench

    y as me naci la conciencia, editado por Elizabeth Burgos-

    Debray (prmio Casa de las Amricas, 1982). Para dar

    maior peso ao discurso progressista ou revolucionrio

    que pretendem difundir, os editores enfatizam, habitual-

    mente, a representatividade de seu(s) informante(s).

    Editora da biografia de Domitila, Moema Viezzer (1980:

    3), por exemplo, escreve na sua introduo: El itinerario

    de Domitila se inscribe dentro de la gran trayectoria de

    14 No seu prlogo, Neira (1974: 8) admite que seu interlocu-tor, Huillca, contina hablando solamente quechua []. Se isto verdade, como que se realizaram as entrevistas? Quem as dirigi? Quem realizou a traduo para o espanhol? O editor do texto no oferece nenhuma resposta a tais perguntas.

  • 46Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    la clase trabajadora y del pueblo boliviano. O que se

    sugere demagogicamente ao leitor que a voz reco-

    lhida pelo editor ou a editora do testemunho a voz de

    todo um povo. No caso de Rigoberta Mench, a preten-

    dida representatividade da testemunhante contribuiu

    a provocar grandes polmicas. Mas essa a pergunta

    fundamental quem fala realmente neste tipo de textos?

    No seu ensaio j mencionado, Spivak se refere,

    irnicamente, ao intelectual do primeiro mundo dis-

    farado de no-representante ausente que deixa que

    os oprimidos falem em seu prprio nome15. Embora

    ela tenha em mente Foucault e Deleuze, no h dvida

    que sua observao pode ser aplicada a todos os inte-

    lectuais no s aos do primeiro mundo que se-

    questram fragmentos de discurso subalterno em funo

    de objetivos no necessariamente compartilhados pelos

    autores originais desse discurso. Mas qual a alternati-

    va? Na verdade, a existncia do sujeito anti-moderno

    (Chakrabarty) sempre e inevitavelmente ser, nos livros

    15 [] first-world intellectual masquerading as the absent nonrepresenter who lets the oppressed speak for themselves (spivak 1988: 292).

  • Mar-Set/ 2014

    47

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    ou nos filmes realizados pelos intelectuais urbanos de

    classe mdia (ou alta), uma quoted existence. Tambm nos

    escritos como os de Boaventura Santos Sousa que

    de maneira algo paternalista atribuem, a esse sujeito

    anti-moderno, uma epistemologia outra, a do sul 16.

    Nesta situao de aporia poltico-epistemolgica, a ni-

    ca sada praticvel, a meu ver, de o intelectual se des-

    mascarar radicalmente, explicitando seu papel e sua

    16 A epistemologia do sul, tal como definida por Boaventu-ra de Santos Sousa no trecho reproduzido a seguir, lembra, na sua formulao apodctica, a definio da ideologia proletria pelos marxistas. The two premises of an epistemology of the South are as follows. First, the understanding of the world is much broader than the Western understanding of the world. This means that the progressive change of the world may also occur in ways not foreseen by Western thinking, including cri-tical Western thinking (Marxism not excluded). Second, the diversity of the world is infinite. It is a diversity that encompas-ses very distinct modes of being, thinking and feeling, ways of conceiving of time and the relation among human beings and between humans and non-humans, ways of facing the past and the future and of collectively organising life, the production of goods and services, as well as leisure. This immensity of alter-natives of life, conviviality and interaction with the world is largely wasted because the theories and concepts developed in the global North and employed in the entire academic world do not identify such alternatives (santos 2012: 51)

  • 48Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    posio (privilegiada, preeminente) no dilogo com os

    subalternos. No caso da apresentao de testemunhos

    subalternos, por exemplo no contexto de uma pesquisa

    em histria oral, isso significa revelar com um mximo

    de transparncia as condies de produo e de edio

    dos depoimentos.

    O intelectual se desmascara: histria oral e cinema documental

    Um trabalho de histria oral cuidadosamente prepara-

    do e executado Canto de morte kaiow de Jos Carlos

    Sebe Bom Meihy (1991). No Brasil, comea por expli-

    car o autor, existem segmentos da populao contem-

    plados apenas pela documentao externa, produzida

    sobre eles []17. Mas para mudar essa situao, no

    basta acrescenta lucidamente o autor entregar-se

    seduo de dar voz aos vencidos. Levando em conta

    o contexto no qual se trabalha, importante relacionar

    o conhecimento com a realidade poltica; objetivo do

    17 Todas as citaes deste pargrafo provm dos dois captulos introdutivos de Canto de morte kaiow (mEihy 1991: 15-33).

  • Mar-Set/ 2014

    49

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    trabalho chegar a fazer uma histria pblica, uma

    histria que privilegia o social como alvo do conheci-

    mento. Para isso se parte de uma questo inspirador,

    no caso o suicdio dos ndios sul-mattogrossenses: uma

    proposta socialmente comprometida a ao mesmo tem-

    po cientfica. Mas, se pergunta logo o autor, como

    vencer a inevitvel distncia entre brancos [] e os

    ndios pobres, a incompatibilidade entre duas cultu-

    ras?. A soluo sugerida consiste em adotar o mtodo

    da entrevista no-diretiva, respeitando ao mximo

    a sofisticada lgica dos ndios. Quanto edio dos

    testemunhos, o autor indica, sem precisar o que isto

    significa exatamente, que a fala dos ndios tem de ser

    traduzida para o cdigo do branco. Nesta fase, diz

    logo, anula-se a voz do entrevistador e passa-se su-

    presso das perguntas e sua incorporao no discurso

    do depoente. As vezes, admite o autor, se impe a

    complementao de palavras ou frases que no foram

    mais que insinuadas. Consciente do carter delicado

    deste procedimento, o autor explica que vital que as

    entrevistas, antes de sua publicao, sejam legitimadas

    pelos depoentes. Precauo louvvel, mas que no pode

    ocultar o fato de o subalterno no estar em condies de

  • 50Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    conhecer todas as implicaes de sua participao em

    um projeto elaborado e realizado em funo dos objeti-

    vos e dos critrios do editor18.

    Se no Canto de morte kaiow as (muitas) pre-

    caues tomadas na obteno das entrevistas parecem

    adequadas, os procedimentos usados na sua edio me-

    receriam, a meu ver, alguma discusso. Ao anular a voz

    as perguntas do entrevistador se melhora sem d-

    vida a legibilidade do texto, mas se suprime um dos

    componentes decisivos da situao (comunicativa) que

    permitiu obter o testemunho: a interao entre entre-

    vistador e entrevistado. verdade que o autor faz ques-

    to de trazer ao leitor o que chama a aura do momento

    da gravao, mas s a aura: no sua realidade. Uma

    realidade sempre caracterizada, como bem lembra Bill

    18 J no sculo XVI, em Cusco, o cronista Sarmiento de Gam-boa, para legitimar sua histria oral dos Incas, fez ler em pblico e logo aprovar pelos representantes das grandes fam-lias os depoimentos recolhidos e transcritos por ele. pouco provvel que os depoentes incaicos se dessem conta de que o objetivo que perseguia Sarmiento era demonstrar que os Incas eram usurpadores. Alis, os indios presentes s aprovaram o esqueleto do texto de Sarmiento: um texto que desqua-lifica constantemente a veracidade de seus depoimentos (cf. liEnhard 2008: 90).

  • Mar-Set/ 2014

    51

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    Nichols no seu livro sobre o cinema documental, pela

    existncia de uma relao inevitavelmente hierrquica

    entre entrevistador e entrevistado (niChols 1991: 47).

    Em uma gravao audio-visual (e quero agora,

    para terminar, comentar brevemente as vantagens des-

    ta tcnica), essa relao fica sempre patente. Embora

    o cineasta, como amide acontece, procure anular sua

    presena ou seu papel, as imagens e a banda sonora de-

    latam inevitavelmente o tipo de interao se estabele-

    ceu entre ele e o entrevistado. A diferena de um de-

    poimento transcrito, um depoimento filmado deixa ver

    e ouvir uma infinidade de detalhes que contribuem a

    situar a fala do entrevistado, entre eles as caractersticas

    da encenao (cenrio, distribuio dos interlocutores

    no espao, presena ou no de ouvintes), a atuao e o

    jogo do entrevistado (que reage ao jogo do entre-

    vistador), as particularidades de sua enunciao (cadn-

    cia e ritmo da fala, tom da voz). Pelo menos parte desses

    detalhes escapam inevitavelmente ao controle do ci-

    neasta, mas hoje, de toda maneira, muitos documen-

    taristas, seguindo a lio do cinma-vrit (inaugurado

    em 1961 por Chronique dun t, Crnica de um vero,

    de Jean Rouch e Edgar Morin), optam por revelar os

  • 52Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    secretos de seu trabalho cinematogrfico, em parti-

    cular as modalidades de interao que vigoram durante

    a filmao entre o cineasta e seus personagens. Diante

    de um filme ou vdeo auto-reflexivo, o espetador no s

    ouve a voz e v a performance do(s) testemunhante(s),

    como tambm recebe informao sobre a maneira como

    se obtiveram os testemunhos apresentados pelo filme.

    Um exemplo quase didtico no de cinma-vrit mais

    de um filme no qual o aspeto auto-reflexivo se torna

    decisivo Santiago (2007) de Joo Moreira Salles. Per-

    sonagem dessa obra Santiago, o antigo mordomo da

    famlia Moreira Salles; o documentarista um dos filhos

    dessa famlia de banqueiros brasileiros. No ano 1992,

    o cineasta filmou vrias entrevistas com Santiago, al-

    gumas delas imobilizando-o no que tinha sido, antiga-

    mente, seu lugar de trabalho por excelncia: um estrei-

    to corredor que leva para a cozinha. Nessas entrevistas,

    Santiago lembra sua fascinao pela(s) histria(s) de to-

    dos os reis e prncipes que j houve na histria do mun-

    do, revelando dessa maneira que ele, mordomo de uma

    famlia da alta burguesia brasileira, tinha tambm uma

    outra vida: a de historiador da aristocracia mundial.

  • Mar-Set/ 2014

    53

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    Moreira Salles, no satisfeito com o resultado de suas fil-

    magens, abandonou o projeto para retom-lo depois da

    morte de Santiago, quase quinze anos mais tarde. No

    se tratava, j, de completar um filme j comeado, mas

    de fazer, com os mesmos materiais, um outro filme para

    entender ou explicar o fracasso do projeto inicial. Uti-

    lizando rushes do processo de filmao, o cineasta deixa

    ver e ouvir, nas sequncias finais do filme definitivo, o

    autoritarismo que caracterizou a encenao e a condu-

    o das entrevistas com Santiago. Seu comentrio em off

    lembra, de alguma maneira, o que Godard, meio sculo

    antes, disse acerca da impossibilidade da comunicao

    entre o cineasta e os operrios:

    que ele [Santiago] no era apenas meu personagem, eu

    no era apenas um documentarista. Durante os cinco dias

    de filmagem, eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa

    e ele nunca deixou de ser nosso mordomo.

    O filme de 1992 teria sido, simplesmente, um re-

    lato sobre a curiosa alienao de um mordomo brasilei-

    ro. Na verso definitiva de 2007, o cineasta, fazendo-

    se personagem do filme, deixa ver que tanto Santiago

  • 54Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    quanto ele prprio se encontram presos no papel que

    era o seu na realidade social brasileira. Diante da cma-

    ra, Santiago, alm de subalterno em termos sociais,

    tambm como que um ttere que o documentarista

    maneja sua vontade. Ao no ocultar a relao dupla-

    mente hierrquica que existe entre o cineasta (filho de

    banqueiro) e seu personagem (mordomo de banquei-

    ros), Santiago o filme realiza uma operao simulta-

    neamente autocrtica (dirigida contra o abuso de poder

    por parte do cineasta) e crtica (contra a remanescncia,

    no Brasil, de relaes sociais quase feudais).

    Mais de vinte anos antes, no terreno do cinema pol-

    tico, Eduardo Coutinho, realizou, com Cabra marcado

    para morrer (1984), um filme que constitui, alm de seu

    valor documental, uma importante reflexo cinemato-

    grfica sobre o cinema engajado19. Em 1962, a raiz do

    assassinato de Joo Pedro Teixeira, fundador da Liga

    Camponesa em Sap (Paraba), Coutinho decide realizar

    um filme de fico sobre a vida e a morte de Joo Pedro

    19 Um excelente trabalho sobre este filme se encontra em Lins 2007: 30-57.

  • Mar-Set/ 2014

    55

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    Teixeira, filme no qual a viva de Joo Pedro, Elizabeth

    ia a fazer o papel que lhe correspondeu na realidade

    vivida. A filmagem comea em fevereiro de 1964 em

    Galilia (Pernambuco), mas brutalmente interrompi-

    da, poucas semanas depois, pelo golpe militar. Vrios

    camponeses e membros da equipe de filmagem so

    apreendidos; os militares confiscam parte do material.

    Em 1981, na poca do governo de transio do general

    Figueiredo, Coutinho volta a Galilia para retomar seu

    filme ou, mais exatamente, para fazer um filme novo,

    diferente, que comea com o reencontro com os cam-

    poneses atores de 1964 e a projeo dos materiais que

    se filmaram com eles nessa poca. Cabra marcado para

    morrer, um filme de 1984, ser um filme sobre um filme

    inacabado de 1964, que contm, alm de fragmentos

    desse filme, a narrativa voz e imagens dos sucessos

    de 1962, entrevistas com os camponeses-atores de 1964

    que assistiram em 1981 projeo do filme de 1964 em

    Galilia e, finalmente, a narrativa cinematogrfica do

    encontro no s com Elizabeth, viuda de Joo Pedro e

    atriz principal do filme de 1964, como tambm com os

    descendentes dela. Alm de um documentrio sobre um

    projeto poltico-cinematogrfico abortado, Cabra

  • 56Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    um testemunho coletivo sobre o movimento campons

    antes e durante a ditadura militar e um discurso sobre

    a histria poltico-social brasileira entre 1962 e 1981.

    Mas tambm, e o que quero enfatizar aqui, um filme

    que permite avaliar o itinerrio intelectual e artstico de

    um importante cineasta brasileiro entre 1964 e 1981.

    Em 1964, Coutinho ia fazer um filme no qual os cam-

    poneses atores seguiam um roteiro idealizado e escrito

    pelo cineasta; um filme agit-prop vagamente inspirado

    na tradio neo-realista. Em 1981, quando ele volta

    ao Nordeste, no h roteiro nem a inteno de fazer

    um cinema propriamente militante. O filme, agora,

    avana em grande medida ao ritmo dos encontros e das

    revelaes dos atores-personagens, de aqueles homens

    e mulheres que 16 anos antes s foram atores-recitan-

    tes de uma histria contada por outro. Cabra marcado

    para morrer produto de umas circunstncias nicas e

    portanto inimitvel20, mas ao mesmo tempo um filme

    20 Combinando imagens das grandes greves do ABC paulista de 1979-1980 e entrevistas com os antigos grevistas, Pees (2002) de Eduardo Coutinho , sem dvida, o filme que mais se aproxima, no pela histria que conta mas enquanto traba-lho cinematogrfico, a Cabra marcado para morrer.

  • Mar-Set/ 2014

    57

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    que inaugura um novo tipo de relacionamento, menos

    demaggico ou paternalista e mais horizontal, entre o

    intelectual e os pobres.

    Bibliografia

    BalandiEr, Georges. Anthropo-logiques. Paris: Librairie Gnrale Franaise, 1985 [1974].

    BarnEt, Miguel. La novela-testimonio. Socio-Literatura (1970). En: La fuente viva. La Habana: Letras Cubanas, 9-40.

    ______. Biografa de un cimarrn. La Habana: Academia de Ciencias de Cuba, Instituto de Etnologa y Folklore, 1966.

    Burgos, Elisabeth (ed.). Me llamo Rigoberta Mench y as me naci la conciencia. Barcelona: Argos Vergara, 1983.

    CadE, John B. Out of the mouths of ex-slaves. In: The Journal of Negro History 20, 1935, 294-337.

    ChakraBarty, Dipesh. Postcoloniality and the Artifice of History: Who Speaks for Indian Pasts?. In: Representations, No. 37, University of California Press, Special Issue: Imperial Fantasies and Postcolonial Histories (Winter, 1992), pp. 1-26. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/2928652 [11/02/2013].

  • 58Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    Chomsky, Noam. The responsability of the intellectuals. New York: Pantheon Books, 1967. Verso portuguesa: A responsabilidade dos intelectuais. Lisboa: Quixote, 1968.

    Colon, Cristbal. Diario del primer viaje. In: Textos y documentos completos, ed. Consuelo Varela. Madrid: Alian-za, 1982.

    davis, Mike. Planet of slums. London, New York, Verso, 2006.

    gamio, Manuel. Mexican Immigration to the United States. A Study of Human Migration and Adjustement. Chicago: University of Chicago Press, 1930.

    ______. El inmigrante mexicano: la historia de su vida. Entrevistas completas, 1926-1927. Compilacin Devra Weber, Roberto Melville y Juan Vicente Palerm. Mxi-co: Secretara de Gobernacin/Universidad de Califor-nia/CIESAS/Miguel Angel Palerm, 2002

    langE, Dorothea, and Paul Schuster Taylor. An Ame-rican exodus : a record of human erosion in the thirties. New Haven : Yale University Press, 1969

    lEwis, Oscar. Antropologa de la pobreza Cinco famlias. Mxico: FCE, 1961.

    ______. Five families (Mexican case studies in the cultu-re of poverty). New York: Basic Boooks, 1959.

    ______. La vida. A Puerto Rican family in the culture of

  • Mar-Set/ 2014

    59

    Intelectuais: porta-vozes dos pobres?

    poverty. San Juan & New York: 1966.

    ______. La vida. Mxico: Grijalba, 1987.

    ______. Life in a Mexican village: Tepoztln restudied. Urbana: University of Illinois Press, 1951

    ______. Los hijos de Snchez Autobiografa de una fam-lia mexicana. Mxico: FCE, 1964.

    ______. Tepoztln Un pueblo de Mxico. Mxico: Mortiz, 1968.

    ______. The children of Sanchez Autobiography of a Mexican family. New York: Random House, 1961

    liEnhard, Martin. Indigenous texts. In: Guide to Documentary Sources for Andean Studies 1530-1900, ed. Joanne Pillsbury. University of Oklahoma Press, in col-laboration with the Center for Advanced Study in the Visual Arts, National Gallery of Art, 2008, vol. I, 87-103.

    lins, Consuelo. O documentrio de Eduardo Coutinho. Tele-viso, cinema e vdeo. Rio de Janeiro, Zahar, 2007.

    marx, Karl / ENGELS, Friedrich. Die heilige Familie (1845). In: Werke. Berlin, Dietz Verlag, 1972, Band 2, 3-223.

    mEihy, Jos Carlos Sebe Bom. Canto de morte kaiow. Histria oral de vida. So Paulo: Loyola, 1991.

  • 60Mar-Set/ 2014

    Mart

    in L

    ienh

    ard

    nEira samanEz, Hugo. Huillca: habla un campesino pe-ruano. Lima, Peisa, 1974.

    ranCiErE, Jacques. Le philosophe et ses pauvres. Paris: Fayard, 1983.

    rEdfiEld, Robert. Tepoztlan, a Mexican village: A study in folk life. Chicago: University of Chicago Press, 1930.

    rEyEs, Aurelio de los. Manuel Gamio y el cine. Mxico: UNAM, 1991.

    santos, Boaventura de Sousa. Public Sphere and Epis-temologies of the South. In: Africa Development, Vol. XXXVII, N 1, 2012, 43-67.

    sartrE, Jean-Paul. Orphe noir (1948). In: Lopold Sdar Senghor, Anthologie de la nouvelle posie ngre et mal-gache. Paris: PUF, 1969 [1948], IX-XLIV

    spivak, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak?. In: Marxism and the Interpretation of Culture. Eds. Cary Nel-son and Lawrence Grossberg. Urbana, IL: University of Illinois Press, 1988: 271-313

    viEzzEr, Moema (ed.). Si me permiten hablar... Testimonio de Domitila, una mujer de las minas de Bolivia [1977]. Mxico: Siglo XXI, 1980, 5ta. ed.

    2_Dossie1. LIENHARD, Martin_Intelectuais - porta-vozes dos pobres